APRECIAÇÃO CRÍTICA DA PROVA
COMPORTAMENTO DAS VITIMAS DE AGRESSÃO SEXUAL E DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES
PORNOGRAFIA
CONCEITO DE MENOR PARA EFEITOS DO CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES
VALORES PROTEGIDOS PELO CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES
«SEXTING»
CONSENTIMENTO
CRIME DE VIOLAÇÃO AGRAVADO
VIOLÊNCIA NO CRIME DE VIOLAÇÃO
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário

I - Estudos indicam que na reacção perante o agressor, as vitimas de agressão sexual e de violência doméstica podem ter comportamentos considerados incoerentes pelo cidadão comum, por ficarem, muitas vezes, mumificadas durante e após o contacto sexual, por não serem capazes de tomar decisões nem de pedir ajuda, por se culparem a si próprias, por se tornarem dependentes emocionalmente do agressor, por apresentarem sentimentos ambivalentes de amor/ódio, desejo/repulsa, libertação/dependência, comportamentos que podem traduzir a maneira como a vitima conseguiu sobreviver a eventos tão violentos e traumáticos.
II - Na fundamentação da decisão de facto não basta afirmar-se que a vitima teve comportamentos incongruentes – por exemplo ter pedido namoro ao arguido em vez de o afastar, manter a relação abusiva e, quando traída, insistir para reatarem -, para descredibilizar a sua versão porque, provado o domínio do arguido, o contexto demonstra que o comportamento da ofendida ocorreu numa relação de violência física e psíquica, da qual resultou stress prós traumático, com surtos psicóticos e ideação suicida.
III - Numa tal relação não é necessário que o arguido verbalize que publicará fotos e vídeos íntimos da vítima se ela não aceder às suas exigências para que a ameaça de publicação se verifique, pois só o facto de o arguido ter as fotos e vídeos na sua posse vale por si só como ameaça, contribuindo para a manutenção da relação.
IV - Com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de pornografia de menores do artigo 176.º do Código Penal alargou o âmbito da incriminação a comportamentos novos.
V - Tal como está definida no artigo 2.º, alínea c), do Protoloco Facultativo, de 25 de maio de 2000, à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo à venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil, a pornografia infantil designa qualquer representação, por qualquer meio, de uma criança no desempenho de actividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais.
VI - A pornografia abrange todo o material que, independentemente do seu suporte, representa menores, sejam estes reais, aparentes ou até virtualmente criados, em comportamentos sexualmente explícitos.
VII - Para efeitos do artigo 176.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e como decorre do artigo 9.º da Convenção sobre o Cibercrime, menores são crianças e jovens que ainda não tenham completado 18 anos de idade, sendo irrelevante se já iniciaram a sua actividade sexual.
VIII - Na tipificação objectiva o legislador não previu idade inferior aos 18 anos, sendo a única excepção o n.º 6 do artigo 176.º do Código Penal.
IX - Os valores protegidos pelo crime de pornografia de menores ultrapassam a liberdade e autodeterminação sexual do individuo que, no critério do artigo 176.º do Código Penal, se presume que não se encontra formada e consolidada antes dos 18 anos.
X - O tipo legal de pornografia de menores do artigo 176.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, prevê e pune o que na terminologia anglo-saxónica se designa por «sexting» (de sex e tenting) de adulto com crianças ou jovens com menos de 18 anos de idade, que consiste em estabelecer contactos à distância, através da internet, do telemóvel, ou de qualquer outra tecnologia da informação e da comunicação, aliciando as crianças ou jovens a enviar fotografias, filmes ou gravações pornográficas.
XI - O crime de pornografia de menores é um crime de perigo abstracto, porque o preenchimento do tipo objectivo do ilícito basta-se com a mera colocação em perigo do bem jurídico, perigo esse abstracto dado que não integra o elemento do tipo, e é um crime de mera actividade, porque o tipo incriminador se preenche através da mera execução de um determinado comportamento.
XII - Para efeitos do artigo 38.º, n.º 2 e 3, do Código Penal para que o consentimento seja válido o jovem tem que ter mais de 16 anos de idade, tem de possuir discernimento suficiente para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta e ele tem que traduzir uma vontade séria, livre e esclarecida.
XIII - O consentimento a que se refere o artigo 38.º do Código Penal não abrange os direitos salvaguardados pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b).
XIV - O crime de violação agravado pressupõe o constrangimento da vitima por um dos meios previstos no n.º 2 do artigo 164.º do Código Penal e a existência de um nexo causal entre a prática dos actos sexuais em causa e o meio utilizado para alcançar esse fim.
XV - Violência, para efeitos do n.º 2 do artigo 164.º do Código Penal, é «apenas o uso da força física … destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. … Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso … a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima».
XVI - Com a agravação da pena do crime de violência doméstica da alínea a) do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal o legislador quis censurar de forma mais grave os casos de violência doméstica praticada num espaço confinado, subtraído a olhares alheios, por tal «enquadramento» favorecer a acção do agressor e dificultar a existência de testemunhas.

Texto Integral

*



Acordam, em Conferência os juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

A -  RELATÓRIO

1. … deliberou o Colectivo do Juízo Central de Coimbra (Juiz ...):

- Absolver o arguido … de um crime de pornografia de menores, na forma agravada, p. e p. nos artigos 176º/n.ºs 1-b) e 3 e 177º/n.º 1-c) C.P., pelo qual vinha acusado, como autor material, nestes autos;

- Condenar o mesmo arguido …, como autor material de um crime de pornografia de menores, na forma simples, p. e p. no art. 176º/n.º 1-b) C.P., na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

- Absolver o mesmo arguido … de dois crimes de violação, na forma agravada, p. e p. no art.164º/n.º 2-a) C.P., pelos quais vinha também acusado, como autor material, nestes autos;

- Condenar o arguido …, como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.ºs 1-b) e 2-a) C.P., na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Operar o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios dos arts. 30º/n.º 1 e 77º/n.ºs 1 e 2 C.P. … e condenar o arguido … na pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão;

- Condenar ainda o arguido nas custas do processo (presente parte-crime), com 3 U.C. a título de taxa de justiça.

*

Nos termos dos arts. 50º, 53º e 54º, todos C.P., … decide-se suspender a execução da pena única de prisão definida …pelo mesmo período de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses, acompanhada de um regime de prova assente em plano individual de reinserção social …, é igualmente imposta ao arguido a condição de, findo cada período de 6 (seis) meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão, comprovar nos autos haver entregado à assistente … uma tranche de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), relativos à compensação e indemnização  global daqui a pouco fixada a favor de tal assistente, e até atingir a quantia total de € 12.500 (doze mil e quinhentos euros) àquele título fixada.

*

(…)

- Julgar o pedido de indemnização civil formulado pela assistente e demandante … parcialmente provado e procedente e condenar o arguido e demandado … a pagar à primeira a quantia indemnizatória e compensatória global de € 12.500 (doze mil e quinhentos euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal (contados desde a notificação do pedido de indemnização civil ao arguido e demandado quanto ao valor de € 630 e contados desde a presente decisão quanto ao restante), no mais indo o referido arguido e demandado absolvido». 

2. Descontentes, recorrem a assistente e o arguido, formulando as seguintes conclusões:

2.1. Recurso da Assistente

(…)

DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

10. MATÉRIA DE FACTO: A decisão recorrida deu como provado e não provado, para o que aqui importa, os factos supra transcritos.

11. Do erro de julgamento sobre a matéria de facto, visando a recorrente a modificação da matéria de facto nos termos do art. 431, alínea b) do CPP (erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida):

14. No caso em concreto que trazemos perante V. Exos. Senhores Juízes Desembargadores e, salvo o devido respeito por outro entendimento, entendemos que existe efectivamente erro na apreciação da prova, sobretudo na valoração que o tribunal recorrido fez das declarações do Arguido ….

15. Discordamos da valoração efectuada por aquele Tribunal de tais declarações porque consideramos que as mesmas não foram valoradas da maneira correta, tendo em conta o que foi dito pelo próprio arguido em sede de julgamento, conjugada com o restante da prova produzida e a prova documental existentes nos autos (especialmente as mensagens trocadas entre o arguido e a assistente), bem como com as regras da experiência e do normal acontecer, pelos circunstancialismos do caso concreto.

16. Assim, impugnamos a matéria de facto nos termos e para os efeitos do art. 412º, nº 3 alínea a) e b) do CPP, pelo que se indicam: A recorrente considera incorretamente julgados os seguintes pontos dados como provados pelo Tribunal recorrido: Pontos 10, 20, 22, 23, 24 e 25, no sentindo de que teria a assistente consentido nas relações sexuais mencionadas em tais pontos.

18. AS CONCRETAS PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA (art. 412º, nº 3 alínea b) do CPP):

23.Na sua fundamentação e que supra transcrevemos para o que aqui importa, o Tribunal recorrido entendeu que, na medida em que houveram sérias dúvidas quanto a um hipotético contexto de sevícia generalizada, por parte do arguido à assistente, e por esta não desejada, foi aplicado ao arguido o princípio in dubio pro reo, com as consequências daí advindas para a apreensão do segmento factual atinente. Posição essa com a qual não podemos concordar.

58.Assim, entendemos que o Tribunal recorrido incorreu em erro notório na apreciação da prova.

68.MATÉRIA DE DIREITO:

69.O artigo 177.º do CP nas versões do Código Penal dos anos 2015 e 2016 dispunha da seguinte forma, conforme melhor transcrevemos: 2015: 5 - As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos;

 6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.

71. No presente caso, não se trata de uma criminalização em forma de agravação, na medida em que, na altura dos factos, isto é, 2015 e 2016, as penas também eram agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo em razão da idade da vítima. Razão pela qual entendemos que o arguido deveria ter sido condenado pelo crime de pornografia na forma agravada, e não na forma simples, na medida em que não estamos perante uma sucessão de lei no tempo que posteriormente criminalizou/agravou a atuação do arguido à data da prática dos factos. Tal criminalização e agravação já existia!

 73.No que diz respeito aos crimes de violação, a decisão recorrida entendeu por absolver o arguido.

74.Porém, tendo em conta o supra alegado em matéria de facto, isto é, de que as relações sexuais mencionadas nos pontos 10, 20 e 22 a 25 (da factualidade assente) foram mantidas entre o arguido e a assistente contra a vontade e o consentimento desta, estando o arguido de facto cônscio de que dessa forma punha em causa a liberdade sexual da assistente, entendemos que, para todos os efeitos legas, houve o preenchimento do ilícito penal em questão (crime de violação na forma agravada), na medida em que se observa o elemento de constrição da vítima a sofrer ou praticar o acto sexual.

77.O bem jurídico protegido pelo tipo inserto no art. 164.º é agora e inequivocamente a liberdade e autodeterminação sexual que o legislador continua a invocar para incriminar comportamentos que se prendem com a esfera sexual das pessoas.

80.Com efeito, representando o tipo de ilícito em todos os seus contornos objetivos, o arguido atuou com intenção de conseguir o resultado típico. Agiu comprovadamente com dolo direto, sabendo e representando conscientemente os atos praticados, conformando-se com isso, desse modo ofendendo e afetando a liberdade sexual da ofendida, pelo que deverá então o arguido ser condenado por dois crimes de violação, na forma agravada, p. e p. no art.164º/n.º 2-a) C.P., pelos quais vinha também acusado, como autor material, nestes autos.

81. Sem prescindir,

 82.Caso não se entenda proceder às alterações supra requeridas, mesmo assim, entendemos que as penas parcelares concretamente aplicadas ao arguido, e consequentemente, a pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, essa suspensa na sua execução pelo mesmo período, acompanhada de um regime de prova, é manifestamente insuficiente tendo em conta o grau de culpa que deflui da factualidade provada relativamente ao arguido.

92.DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL: …

93.Na decisão recorrida, o pedido de indemnização civil formulado pela assistente e demandante foi parcialmente provado e procedente, tendo sido o arguido condenado a pagar à primeira a quantia indemnizatória e compensatória global de € 12.500 …

94.Contudo, e face ao exposto até aqui em sede de recurso, entende a Recorrente que tudo o que foi peticionado em sede de PIC encontra-se devidamente provado e demonstrado, pelo que tal pedido deveria ter sido procedente na sua totalidade.

(…)».

2.2. Recurso do Arguido:

5ª) O arguido não se conforma com a sua condenação pela prática dos mencionados crimes – de onde o presente recurso.

Com efeito e, desde logo quanto ao crime de pornografia de menores

7ª) A condenação do arguido, ora Recorrente, pela prática de tal crime, sustenta-se na factualidade, considerada como provada nos pontos 1 a 4, 28 e 30 da fundamentação de facto, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.

Acontece que

8ª) Compulsada tal matéria de facto resulta do próprio teor da mesma um non liquet quanto à idade que a assistente teria à data em que entabulou com o arguido conversações na aplicação “Kik “e, mais tarde, quando o arguido lhe solicitou e a mesma lhe remeteu os vídeos e fotografias a que alude nos pontos 3, 4 e 28 daquela matéria de facto.

Ora

9ª) A idade que assistente teria, nesta altura, é um facto relevante, decisivo até para a condenação ou absolvição da prática do crime de pornografia de menores, desde logo na medida em que os 16 anos são a idade legal para o consentimento (art. 38º, nº 3 do Código Penal)

Assim sendo

10ª) Sob pena de violação do Princípio da Presunção da Inocência e, bem assim, do seu corolário, o Princípio do in dubio pro reo – cf. art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa - deverá aquele non liquet ser decidido no sentido mais favorável ao arguido – e este será o de admitir/considerar provado que, maquela altura, a assistente teria 16 anos de idade.

Assim sendo

11ª) Como se alega supra, a idade legal para o consentimento são os 16 anos ( cf. art. 38º, nº 3 do Código Penal ), decorrendo dos pontos 3 e 4 da matéria de facto dada por assente pelo Tribunal recorrido - conjugada, aliás, com a matéria de facto respeitante a esta questão, pelo mesmo dada por não provada ( não foi por ter sido ameaçada pelo arguido, por receio ou por inexperiência que a assistente lhe enviou fotografas e vídeos ) - que a assistente, agindo como agiu, o fez livre, voluntária e conscientemente, e não por a isso ter sido obrigada e/ou constrangida, ou seja, no pleno exercício da sua liberdade sexual e no âmbito da sua autodeterminação sexual.

De facto

12ª) Se aos 16 anos de idade um menor pode consentir, validamente e eficazmente na prática de qualquer acto sexual, por maioria de razão pode, se assim o entender fazer, remeter a outrem vídeos e fotos de cariz sexual, divulgando em qualquer um destes suportes a sua imagem, nua ou seminua, num contexto sexual.

13ª) Atento o supra alegado, verifica-se, pois, aqui a existência de uma causa de exclusão da ilicitude – o consentimento (art. 38º do Código Penal).

14ª) Face a esta causa de exclusão da ilicitude – ou seja, não sendo ilícito, por força da mesma, o comportamento do arguido (nem, já agora, o da assistente) – não há crime, devendo o arguido, em consequência, ser absolvido do crime de pornografia de menores pelo qual foi condenado, sob pena de violação das disposições conjugadas dos arts. 176º, nº 1, alínea b) e 38º do Código Penal e do art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

16ª) Não se encontram juntos aos autos quaisquer fotos ou vídeos de conteúdo pornográfico – ou de cariz sexual - que hajam sido remetidos pela ofendida ao arguido – ou vice-versa - não existindo de igual modo qualquer registo de qualquer conversa de cariz sexual encetada entre os dois, sendo aquela menor de idade.

18ª) Decorre da fundamentação de direito do acórdão ora recorrido – cf. fls. 14 e 15 do mesmo - que a prova da mencionada factualidade resulta exclusivamente da análise que o Colectivo faz do teor das conversas de fls. 379 a 427 dos autos, mantidas entre o arguido, ora Recorrente e a assistente através do Instagram, já no ano de 2020 (tinha a assistente 20 anos de idade, portanto).

Ora

19ª) Não existindo nos autos quaisquer conversas, fotos ou vídeos remetidos pela assistente ao arguido – ou vice-versa – nos aludidos períodos temporais, mormente entre 2015 e 2016, e desconhecendo-se, portanto, o seu específico conteúdo e/ou teor, não é possível dar-se por assente que tais conversas teriam um cariz predominantemente sexual, muito menos podendo dar- se por provado que os alegados vídeos e fotos seriam pornográficos, ou sequer que os mesmos seriam, efectivamente, vídeos e fotos da assistente.

De todo o modo

20ª) O que resulta à evidência destas conversas mantidas entre o arguido e a assistente em 2020 é que, se assistente manteve anteriormente conversas com o arguido, lhe enviou fotos e/ou vídeos de cariz sexual, fê-lo livre e conscientemente, no exercício da sua liberdade e da sua autodeterminação sexual.

21ª) Pelos motivos supra expostos – que impõem decisão diversa – não poderia o Tribunal a quo ter dado por provada a matéria de facto dos pontos 2, 3, 4 e 28 do acórdão recorrido – que expressamente e nos termos do art. 412º, nº 3, alínea a) do CPP se deixam impugnados e que agora deverão passar a constar dos factos não provados.

Sem conceder

22ª) Caso assim não se entenda, e se o Tribunal ad quem considerar dever manter-se esta matéria de facto, então deverá de igual modo considerar-se provado que se assistente manteve anteriormente conversas com o arguido, lhe enviou fotos e/ou vídeos de cariz sexual, fê-lo livre e conscientemente, no exercício da sua liberdade e da sua autodeterminação sexual.

Quanto ao crime de violência doméstica

25ª) Arguido e assistente nunca tiveram uma residência e/ou um domicílio comum – com aspas ou sem aspas, apenas se encontrando esporadicamente, aos fins-de-semana, …

28ª) Assistente e arguido encontravam-se a mantinham relações sexuais, sim, não em qualquer residência ou domicílio comum, mas sim num quarto arrendado que a assistente mantinha, durante o período escolar, num apartamento em ....

32ª) Não pode, assim, o Tribunal a quo fazer uma interpretação extensiva do conceito de domicílio comum por forma a abranger um qualquer local em que, com maior ou menor frequência, arguido e assistente se encontravam e mantinham relações sexuais.

33ª) Termos em que, sob pena de violação do disposto no art. 152º, nº 2, alínea a) do Código Penal e, bem assim, dos Princípios da Tipicidade e da Legalidade, não poderia o tribunal de primeira instância ter condenado o arguido com base na citada norma daquele diploma legal.

Sem conceder

34ª) Não podia, de igual modo, ter o arguido sido condenado pelo crime de violência doméstica, tout court.

 35ª) Na verdade, quando o arguido e a assistente iniciaram o seu relacionamento – inicialmente apenas sexual – tinha a assistente 20 anos de idade.

36ª) A assistente conhecia – porque o arguido sempre lho disse – as preferências sexuais do arguido: sadomasoquismo, bondage, relação de domínio/submissão, sexo anal.

37ª) Mais sabia, tendo desde início tal circunstância ficado esclarecida entre um e outro, que o arguido buscava uma relação sadomasoquista e/ou de domínio/submissão, em que ele seria o sádico/dominador e a assistente a masoquista/submissa.

38ª) Isso mesmo é reconhecido pelo tribunal a quo, a fls. 30 da fundamentação de direito, onde se constata que as relações sexuais mantidas entre arguido e assistente o eram num contexto de sadomasoquismo e bondage no qual se desenvolvia o seu envolvimento sexual.

Assim sendo

39ª) Quando a assistente encetou a sua relação com o arguido fê-lo no exercício pleno da sua liberdade e, bem assim, da sua autodeterminação sexual.

41ª) Uma ligação sexual do tipo cima    mencionado pressupõe o desenvolvimento de uma relação de domínio/dependência que vai para além da relação sexual, estendendo-se a outros contextos da vida do dominador e da submissa.

43ª) Tais factos, praticados no âmbito de relação sadomasoquista e/ou de domínio/submissão, não podem ser entendidos como consubstanciadores de um crime de violência doméstica e/ou como elementos objectivos deste tipo de crime, sendo, pelo contrário, factos e comportamentos característicos, precisamente, de uma relação com os ditos contornos.

Diga-se ainda, que

44ª) Foi a assistente quem, passados quatro meses sobre o início da sua relação com o arguido, em Outubro de 2021, o pediu em namoro.

47ª) Vai contra todas as regras da experiência comum que, caso, nessa altura, a assistente vivenciasse uma relação abusiva, uma relação de violência doméstica, quisesse manter e, mais do que isso, formalizar tal relação.

49ª) Como vem em 26 da matéria de facto, foi o arguido, ora Recorrente quem tomou a iniciativa de terminar a relação com a assistente, terminus este que esta não aceitou de bom grado passando a insistir, durante algum tempo, com o arguido, para que mantivessem o respectivo relacionamento amoroso (cf. ponto 27 da matéria de facto).

3. O Ministério Público e a arguido, em resposta aos recursos, …

4. Nesta Relação o Digno Procurador Geral Adjunto defende a manutenção do Acórdão recorrido.

5. Cumpridos o disposto no artigo 417º, do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento dos Recursos.

B. ACÓRDÃO RECORRIDO

A primeira instância decidiu a matéria de facto como segue:

«Após a audiência de discussão e julgamento, entende-se provado, com relevância para a decisão a proferir, o seguinte conjunto de factos (e abstendo-se o Tribunal da enunciação de meros juízos valorativos e considerações de cariz extra-factual que existam no despacho de pronúncia):

*             

Não se provaram outros factos com interesse para a causa.

*

O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida – e não produzida –, “peneirada” à luz das regras normais da experiência da vida, ou seja, das «(…) definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judicio, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade» (Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Curso de processo penal”, volume II, Lisboa, 1988, pág. 30), conforme, aliás, determina o art. 127º C.P.P..

Diga-se, aliás, que este foi um dos julgamentos em que se fez sentir, de forma evidente, a necessidade de adopção de um especial senso crítico na depuração dos contributos processuais prestados em sede de audiência, quer para efeitos de determinação da factualidade provada quer para tentar alcançar uma explicação minimamente plausível para os factos praticados pelo arguido.

Segundo o despacho de pronúncia, a atitude de uma pessoa, o ora arguido, que, enredando a assistente, desde a sua meninice, em uma “teia” de ameaças, chantagens e uso de força física (evidentemente) superior às da mesma assistente, a dominou por completo nos mais variados domínios da respectiva existência, com particular ênfase no do envolvimento sexual, por forma a, em determinados momentos, manter com ela relações sexuais contra a sua vontade e mediante o uso não consentido (pela assistente) da força.

Ora, confortará a prova produzida a totalidade da ideia acabada de expressar?

Desde logo, o arguido começou por explicar que em 2017 era seu hábito conversar com diversas mulheres por via digital, dizendo respeito, muitas dessas conversas, a temas de cariz sexual. Ora, foi precisamente nesse contexto das redes sociais que travou conhecimento com a assistente, com quem encetou várias conversas … mas dela, no entanto, perdendo o contacto no ano de 2018, e só dois anos mais tarde, em 2020, o vindo a retomar, e por tal forma que acabaram ambos por se encontrar pessoalmente, pela primeira vez, … em Junho ou Julho de 2020. Mais admitiu haverem mantido relações sexuais, no interior do veículo do declarante, na ocasião ora referida, repetindo o encontro e as relações sexuais cerca de três semanas mais tarde, dessa feita em um quarto de motel, … vindo, após alguns fins-de-semana passados juntos … a iniciar uma relação de namoro em Outubro desse mesmo ano (2020). … negou ter solicitado (mediante a utilização ou não de ameaça ou chantagem) à assistente que lhe remetesse qualquer tipo de vídeo ou fotografia, de natureza sexual …. Admitiu ser adepto de práticas sexuais de cariz sadomasoquista e de dominação de um dos parceiros sobre o outro, o que acabou igualmente por se revelar do agrado da assistente, assim explicando que qualquer acto a priori tido por menos “convencional” do ponto de vista sexual obtivesse sempre o acordo e a aquiescência daquela, …

… a tese pelo arguido expressa em juízo no sentido de nunca haver efectuado tal solicitação à assistente esbarrou de frente com algumas das conversas entre ambos mantidas, uns anos mais tarde, na rede social “Instagram”, como se pode analisar, desde logo, de fls. 379 a 427, …

Sem embargo, e independentemente do juízo crítico, acabado de expor, que as declarações do arguido nos suscitaram (para além da óbvia nota de parecer estar subjacente às mesmas uma certa “autoestima” exacerbada…), notar-se-á, também, que alguns segmentos das declarações da assistente foram de molde a criar enormes dúvidas e aporias interpretativas sobre o real significado, para si, do envolvimento sexual mantido ao longo dos meses com o arguido. Assim, foi a própria assistente a admitir “gostar” muito do arguido e a pensar que tudo iria conduzir a um relacionamento afectivo sério e duradouro. …

E as interrogações acabadas de expressar (a que poderíamos, sem dúvida, somar outras mais) não ganharam resposta nem iluminação nos demais elementos testemunhais produzidos no processo.

Pelo que, e independentemente do que dirá de seguida, não poderá o Colectivo deixar de afirmar as suas muitas e sérias dúvidas quanto a um hipotético contexto de sevícia generalizada, por parte do arguido à assistente, e por esta não desejada…, e de tal modo assim que, nesta parte, foi fundamental a intervenção do básico princípio in dubio pro reo, com as consequências daí advindas para a apreensão do segmento factual atinente.

Outro raciocínio, todavia, terá de ser aportado quanto à restante dinâmica do relacionamento entre arguido e assistente, convicto que o Tribunal ficou do efeito objectivamente destrutivo para a saúde e bem-estar da assistente que se desprendeu do modo como o arguido a foi tratando ao longo do tempo em que se conheceram e restaram namorados e o que tal tratamento pôde revelar quanto ao animus emprestado pelo arguido a essas mesmas condutas.

C -  QUESTÕES A DECIDIR

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

[1]  …[2].

[3], …

Neste quadro, a assistente submete à apreciação desta Relação, as questões de saber se:

(i) Se o tribunal errou na decisão que julgou provados os factos impugnados;

(ii) O arguido cometeu dois crimes de violação e um crime de pornografia agravada

(iii) A pena única não satisfaz as finalidades da punição;

(ii) O valor da indemnização não compensa os danos não patrimoniais sofridos.

Já o arguido pretende ver apreciado e conhecido:

(i) Se tribunal errou na decisão da matéria de facto;

(ii) Se verificou uma causa de exclusão da ilicitude, relativamente ao crime de pornografia;

(iii) O tribunal violou o principio in dúbio pro reo;

(iv) Os factos provados integram os elementos típicos dos crime do crime de violência doméstica;

D -   APRECIAÇÃO DO RECURSO

I – Recurso da Assistente

1. Impugnação de facto

Em causa estão os seguintes factos:

a) Não provados:

- Na situação descrita no ponto 20 dos factos provados, o arguido afirmou à assistente “estás a ver, eu é que sei, eu faço o que quiser, não me consegues impedir nada”.

- As relações sexuais mencionadas nos pontos 10, 20, 22, 23, 24 e 25 (da factualidade provada) foram mantidas entre o arguido e a assistente contra a vontade e consentimento desta, estando o arguido cônscio de que dessa forma punha em causa a liberdade sexual da assistente.

b)  Provados:

- O facto n.º 32, na parte em que considera provado que a sintomatologia apresentada pela ofendida teve, também, como causa a violação mencionada no ponto n.º 7.

Sustenta a recorrente que as declarações do arguido, as declarações da vitima e as declarações das testemunhas, …, devidamente conjugadas com a troca de mensagens entre arguido e ofendida, impõem se julgue provado que as relações sexuais mantidas nos moldes descritos nos factos provados o foram contra a vontade e consentimento da assistente, o que o arguido bem sabia.

E, diga-se com razão.

Com efeito, da análise das múltiplas mensagens trocadas entre a assistente e o arguido entre 2019 e finais de 2020 e do estado de saúde em que … já se encontrava em finais de 2020; das declarações do arguido prestadas em audiência e, ainda dos depoimentos da ofendida uma única conclusão se pode extrair: que a assistente acedeu em determinada práticas sexuais mais agressivas  mas disse que não a outras, as mencionadas nos factos impugnados, facto que era do conhecimento do arguido.

Mas vejamos, em primeiro lugar, os fundamentos que no entender do Tribunal recorrido e do arguido (na resposta ao recurso) descredibilizaram a versão da ofendida por via das incongruências evidenciadas na conduta da assistente quer à data dos factos quer posteriormente.

Afirma-se no Acórdão sindicado que a assistente não explicou a razão, pela qual : (i) a ser verdade o por si afirmado, e impor o arguido as relações sexuais pela força e contra a sua vontade, não teria ela, pelo menos quando tal sucedeu no seu quarto, pedido auxílio a alguma(s) das suas companheiras de apartamento; (ii) iniciaram a relação de namora depois dos factos corridos em 26 e 27 de setembro;  (iii) pronúncia, não tentou libertar-se ela desse “cativeiro”, antes permitindo a recalcitrância daquele, acabou a assistente por dizer que veio ela a pôr fim ao relacionamento, embora explicando que por haver descoberto que o arguido a traíra.

Pelo que, estranha o tribunal recorrido, que a assistente, perante a prática de relações sexuais através do uso da força física enquanto meio de constrangimento a essa mesma prática, não tivesse encetado as normais diligências de quem se sentiu ultrajada e totalmente manietada na sua própria condição de mulher e ser humano ou não houvesse feito o que quer que fosse para (tentar, pelo menos) cortar cerce as hipóteses de repetição da agressão sexual.

Daqui decorre que o tribunal recorrido esperava que a assistente tivesse expressado um não consentimento claro e explicito às práticas sexuais abusivas e que se afastasse do arguido, pondo termo àquela relação.

Porém esta ideia não corresponde à forma como as vitimas de agressão sexual e de violência doméstica reagem e respondem perante o agressor. Estudos indicam que estas vitimas podem ter comportamentos considerados pelo cidadão comum como incoerentes e incongruentes; mas que no caso concreto não o são, em virtude de, nem sempre são capazes de tomarem as decisões mais adequadas a protegê-las.  

É comum, as vitimas ficaram mumificadas durante e após o contacto sexual; não serem capazes de tomar decisões, nem de pedirem ajuda, culparem-se a si próprias, tornarem-se dependentes emocionalmente do agressor, apresentarem sentimentos ambivalentes de amor/ ódio; de desejo/repulsa e libertação/dependência.

Tais comportamentos aparentemente incoerentes podem traduzir a maneira como a vitima reage e como conseguiu sobreviver a eventos tão violentos e traumáticos. 

Vale por dizer que não basta afirmar-se que a vitima teve comportamentos incongruentes -  como ter pedido namoro ao arguido (veremos que não foi bem assim) em vez de o afastar, manter a relação abusiva e, quando se sentiu traída, ter insistido para reatarem – para descredibilizar a versão da assistente quando diz que se sentiu pressionada pelo arguido e lhe disse que não queria algumas das práticas sexuaisas descritas nos pontos de facto provados n.ºs 10, 20 e 23 -   se as mensagens trocadas antes da prática dos factos, evidenciam quer a pressão, quer o domínio que o arguido impôs à ofendida, durante o tempo em que mantiveram conversas sobre este tipo de relação. E isto, porque é necessário contextualizar o comportamento da ofendida numa relação de violência física e psíquica, da qual resultou stress prós traumático, com surtos psicóticos e de ideação suicida.

Tal como explicou a testemunha, …, psiquiatra que acompanhou a vitima, …, tratou-se de uma relação que ela vai seguindo a par e passo o que ele exige dela, manipulando uma jovem que se vê enrolada numa teia que não pode parar porque quer, o que é consonante com as explicações dadas pela ofendida para manter a relação com o arguido.

Nas declarações que prestou em audiência, esclareceu … que, ao mesmo tempo que o arguido a agredia, também a convencia que só estava a fazer aquilo para o seu bem.

Não podemos olvidar que a relação física sexual - apenas durou cerca de seis meses …- surge após as múltiplas conversas índole sexual que a assistente, desde os seus 15 ou 16 anos de idade, vinha mantendo com o arguido (então, com 26 ou 27 anos de idade), sendo natural que aquela, por um lado receasse que o arguido, só pelo facto de ter na sua posse as fotos e vídeos pedidos e enviados, as poderia vir a publicar,  e, por outro, se deixasse seduzir, entregando-se e confiando no arguido.

Sublinhe-se que não era necessário que o arguido verbalizasse que publicaria as fotos e os vídeos para que a ameaça de publicação não se verificasse. Só o facto de as ter na sua posse valia por si só como ameaça.

Assim o demonstra a conversa de 30 de novembro de 2020, em que a assistente pediu clara e expressamente ao arguido para apagar as conversas e as fotos, porque «é humilhante para mim, eu era uma miúda ainda e não acho que seja correcto guardares isso», pedido que o mesmo recusou.  

Não admira, pois, que na decisão de manter ou não a relação, aquela ameaça pairasse sob o espirito da assistente, contribuindo para continuar na relação, com avanços e recuos.

Ao que acresce o facto de o arguido ter acusado a assistente de ser uma puta, dizendo-lhe que «se pôs a jeito», por estar bêbeda, quando foi violada pelos três indivíduos, fazendo-a sentir culpada pelo que tinha acontecido (…).

E, ao contrário do decidido pelo Tribunal recorrido, não foi este evento a principal causa do trauma, mas a conduta do arguido e a reacção que manifestou, aproveitando-se da situação. (…).

A assistente apaixonou-se pelo arguido e sonhou com um relacionamento afectivo, sério e duradouro, tudo fazendo para que ele ficasse com ela, até porque corria o risco de ficar sozinha, sem ninguém, porque não havia quem lhe pegasse (conversa de 14 de julho de 2019).

Não admira, pois, a confusão vivenciada pela assistente … ora, sentindo amava o arguido e não podia viver sem ele, ora querendo terminar com a relação (…);   ora não aceitando o final da relação – que a levou ao quadro psicótico …, no âmbito do qual, se enquadra a perseguição ao arguido, umas vezes com raiva  e ódio, outras com amor, pedidos de desculpa e de recomeços.

Os comportamentos da assistente que tantas interrogações suscitam no Colectivo não constituem, pois, motivo para não acreditar na vitima, quando assegura que chorou e tentou impedir alguns actos sexuais -  em particular, os que a faziam sangrar do ânus e causavam feridas na garganta, ao ponto de vomitar sangue (o que aconteceu pelo menos uma vez) – e que, mesmo assim, o arguido os concretizou.

Com o devido respeito pelo tribunal recorrido, encontrando-se a ofendida inibida de dizer fosse o que fosse, na presença da amiga, …, com receio de provocar a ira ou o desagrado do arguido, não se afigura razoável, à luz das regras da experiência comum, exigir que a vitima, no momento em que estava a ser agredida, tivesse gritado e/ou pedido ajuda aos companheiros de quarto para se acreditar no que, a este propósito, declarou.

Todas estas conversas evidenciam que, apesar da assistente declarar expressamente, mais do que uma vez, que não queria sujeitar-se a determinadas práticas sexuais, o arguido insistia em praticá-las, mesmo contra a vontade daquela. E, caso não aceitasse as suas propostas, seria ainda pior.

Ou seja, por mais do que uma vez, a assistente disse ao arguido, que não concordava com o uso da força nos actos sexuais, uns porque não queria, outros porque lhe faziam impressão e, ainda, outros porque a magoavam e deixavam triste, circunstância que afasta a possibilidade de gostar de ser agredida nos termos em que o foi.

As palavras da assistente não revelam sinais de desejos de submissão (ou de masoquismo) que pudessem ser conciliados com os instintos sádicos do arguido, o que contraria as declarações deste quando afirma que a assistente também gostava do jogo da dominação e submissão.

Por tudo se conclui, que o arguido não respeitou a vontade da ofendida e, mesmo nos casos em que havida declaração expressa de não querer e não consentir, actuava contra a vontade daquela. Ao fim e ao cabo era o arguido quem decidia como, quando e que actos sexuais praticava com a assistente, fosse qual fosse a vontade desta.

Consequentemente, sabia o arguido que com a conduta descrita punha em causa a liberdade sexual da assistente.

Termos em que, se modifica a matéria de facto, transferindo para os factos provados a seguinte matéria não provada:

- na situação descrita no ponto 20 dos factos provados, o arguido afirmou à assistente: «estás a ver, eu é que sei, eu faço o que quiser, não me consegues impedir de nada;

- as relações sexuais acima mencionadas nos pontos 10, 20, 22 a 24 da factualidade assente foram mantidas entre o arguido e a assistente contra a vontade e o consentimento desta, estando o arguido cônscio de que dessa forma punha em causa a liberdade da assistente.

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Por último, impugna a assistente o facto provado n.º 32, …

Ouvidas estas declarações e bem assim as da assistente, conjugadas com as mensagens mantidas com o arguido, delas não resulta que a violação por de que assistente foi vitima por três indivíduos, foi a principal causa do stress pós-traumático, com ideação suicida da assistente.

… tais factos ocorreram quando a assistente se encontrava bastante alcoolizada, não se recordando do que sucedeu.

Por isso, …, tal situação não teve na assistente os efeitos tão graves quantos os que resultaram da conduta do arguido, já que os flashs backs que surgiam na mente da assistente correspondiam aos abusos praticados pelo arguido.

Deste modo, assiste razão á assistente, quando afirma que os efeitos retratados no ponto de facto n.º 32 resultaram do comportamento do arguido, …

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Do que antecede resulta a procedência da impugnação de facto da assistente.

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2. Modificada a matéria de facto, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pela assistente, nas Conclusões 58 a 66.

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3. As demais questões – qualificação jurídico-penal, medida da pena e pedido cível - serão apreciadas após a apreciação do recurso interposto pelo arguido.

II. Recurso do arguido

1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Impugna o Recorrente os factos provados n.ºs 2, 3, 4 e 28, com dois fundamentos: o não se encontrar junto aos autos as fotos e os vídeos que terão sido pedidos pelo arguido à assistente e por esta enviados e violação do principio in dubio por reo no que no que respeita à idade da vitima.

Sobre o primeiro aspecto -  a solicitação pelo arguido do envio de vídeos ou fotografias de cariz sexual da assistente, na fase em que a mesma era ainda menor de idade …, quando ambos comunicavam através das redes sociais -  não subsistem dúvidas que inexistem nos autos registos documentais que sustentem a afirmação da ofendida. 

Porém, tal como decidiu a primeira instância, a tese do arguido no sentido de nunca haver efectuado tal solicitação à assistente é contrariada por «algumas das conversas entre ambos mantidas, uns anos mais tarde, na rede social “Instagram”, …

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Prossegue o Recorrente, dizendo que foi violado o princípio in dúbio pro reo porquanto existe uma dúvida razoável quanto à idade (15 ou 16 anos) que a vitima teria à data em que entabulou as conversações com o arguido …

Na verdade, diz o recorrente, a ausência de prova quanto a esta matéria deve levar a um non liquet, a ser valorado probatoriamente a favor do arguido, …

Não subsistindo dúvidas acerca da data de nascimento da vitima … a questão coloca-se acerca do momento em que se terão iniciado as conversações com o arguido de cariz marcadamente sexual.

Resulta das conversações entre o arguido e a ofendida acima transcritas que tais conversações tiveram inicio quando a ofendida ainda tinha 15 anos. …

Não tendo o Ministério Público, nem assistente impugnado este facto, no sentido de clarificar a idade da vitima, importa convocar o in dubio pro reo, nos termos assinalados pelo recorrente, alterando o ponto de facto n.º 1, substituindo-se a frase …, por «o arguido e a assistente nascida em …, quando a ofendida tinha 16 anos de idade (…)».

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2. Exclusão da ilicitude do crime de pornografia

Alega o recorrente que o consentimento da assistente no envio das fotografias de dos vídeos de cariz sexual excluem a ilicitude do crime do crime de pornografia, nos termos do artigo 38.º, n.º 3, do Código Penal.

Mas com o devido respeito, não acolhemos este entendimento.

O crime de pornografia de menores previsto e punido pelo artigo 176.º, do Código Penal resulta da alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, que, para além de incriminar condutas que já estavam compreendidas no tipo legal de abuso sexual de menores, alargou o âmbito da incriminação a comportamentos novos.

Tendo na sua base o Protoloco facultativo de 25 de maio de 2000 à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil[4],  a pornografia infantil definida no artigo 2.º, alínea c), designa qualquer representação, por qualquer meio, de uma criança no desempenho de actividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais, e inclui no seu âmbito.

Inserido na Secção II, que trata dos «crimes contra a autodeterminação sexual»[5] (artigos 172.º e seguintes), a pornografia abrange todo o material que, independentemente do seu suporte, representa menores, sejam estes reais, aparentes ou até virtualmente criados, em comportamentos sexualmente explícitos.

Para este efeito, menores são crianças ou jovens que ainda não tenham completado 18 anos de idade, sendo irrelevante se esta já iniciou ou não a sua actividade sexual, se esta prestou consentimento ou mão.

Tal decorre, no que ao caso interessa,  do artigo 9.º da Convenção sobre o Cibercrime[6]  que define menores as pessoas com menos de 18 anos de idade.

Na tipificação objectiva, não escalonou, nem diferenciou o legislador a idade entre 16 e 18 anos.  A única excepção consta no n.º 6, do artigo 176.º, do Código Penal.

Daí que, a referência a menores mencionada no artigo 176.º, do Código Penal, n.º 1, alínea b), enquadre todas as crianças ou jovens com idade inferior a 18 anos, sendo irrelevante o consentimento a que alude o artigo 38.º, do Código Penal. 

Tal resulta da inserção sistemática do preceito e da natureza do bem jurídico tutelado com esta incriminação: essencialmente o direito ao desenvolvimento da personalidade da criança ou jovem, um direito indisponível.  

O tipo legal de pornografia de menores que nos ocupa – artigo 176.º, n.º1, alínea b) do Código Penal (utilização de menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou de aliciamento para esse fim) -  prevê e pune, o que na terminologia anglo-saxónica se designa por «sexting» (de sex e tenting) de adulto com crianças ou jovens com menos de 18 anos de idade e que consiste em estabelecer contactos à distância, através da internet, do telemóvel, ou de qualquer outra tecnologia da informação e da comunicação, aliciando as crianças ou jovens a enviar fotografias, filmes ou gravações pornográficas. 

Como sublinha o Acórdão desta Relação de Coimbra[7], o bem jurídico tutelado incide na protecção da sexualidade durante a infância e começo da adolescência e na preservação de um adequado desenvolvimento sexual nestas fases de crescimento. Só mediatamente se pode dizer que se protege a liberdade e autodeterminação sexual, posto que naquelas idades, a capacidade de avaliação e autodeterminação está ainda em fase de formação e desenvolvimento, sofrendo, em tal caso, traumas irreparáveis nesse processo.

Não se trata apenas de proteger a liberdade e autodeterminação sexual das crianças e jovens com menos de 18 anos[8], mas também e primacialmente de proteger valores que ultrapassam a esfera individual.

O bem jurídico protegido pela referida norma incriminadora é a liberdade ao nível da sexualidade, de pessoas que, situadas abaixo de determinado nível etário, não são ainda suficientemente maduras para se autodeterminarem a esse nível. Procura-se proteger a autodeterminação sexual, «face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade.[9]».

Como sublinha a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, com a incriminação da pornografia de menores, protege-se «um bem jurídico supra individual, de interesse público, de proteção e defesa da dignidade de menores, na produção de conteúdos pornográficos e divulgação ou circulação destes pela comunidade[10]” e só «remotamente, a autodeterminação sexual do menor de 18 anos[11]».

Na verdade, lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[12]:

«O que aqui está realmente em causa não é somente a autodeterminação sexual, mas, essencialmente, o direito de cada um e de todos os menores a um desenvolvimento físico natural e a gozar de uma infância e adolescência harmoniosas e sem traumas. Importa que a criança continue criança durante toda a sua infância e o adolescente o seja em toda essa importante fase da sua formação. Estamos, por isso, perante um bem jurídico plurisubjetivo e coletivo que protege o bem-estar das crianças e adolescentes, a sua segurança formativa e a dignidade da infância no seu todo. A proteção das crianças, desde logo por imposição da Constituição, coloca-se com particular acuidade em função da sua real (e legalmente presumida) fragilidade para se constituírem potenciais vítimas da pornografia infantil e do impacto que as condutas que a materializam e que estão penalmente tipificadas têm na sua orientação de vida, não apenas na vertente da sexualidade, mas também no são desenvolvimento físico e psíquico das crianças e adolescentes.

A pornografia infantil –  e estamos a cingir-nos às condutas que a materializam – prejudica, sem dúvida, a formação e o desenvolvimento da personalidade integral, incluindo a sexualidade do próprio menor – a sexualidade é componente essencial da personalidade da pessoa humana -, mas também coloca em perigo, ainda que abstrato, o bem-estar e o desenvolvimento harmonioso das crianças em geral, do coletivo que está na idade da infância e da juventude, e que a sociedade entende ser igualmente importante e do interesse geral proteger».

Quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, trata-se de um crime de perigo abstracto, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique afastada; e, trata-se, ainda, de um crime de mera actividade dado o tipo incriminador se preencher através da mera execução de um determinado comportamento.

Para o preenchimento do tipo objectivo do ilícito basta a mera colocação em perigo do bem jurídico, perigo esse abstracto, dado que não integra o elemento do tipo[13]

«A utilização de um concreto menor em fotografia, filme ou gravação pornográfica ou o aliciamento para ser fotografado, filmado ou gravado nessa situação constitui crime, desde logo porque a lei presume que assim se colocou em perigo o livre desenvolvimento da sua personalidade global, incluindo a vertente da esfera sexual. Mas também porque a simples existência desse material pornográfico cria o perigo abstrato de ser distribuído, divulgado, exibido cedido a outras crianças, ou de outros menores a ele acederem, a qualquer título ou por qualquer meio, e deste modo se multiplicar aquele perigo para o coletivo infantil e juvenil. E também porque é do interesse geral que a sexualidade dos adultos jamais envolva crianças, ainda que através de pornografia infantil, e mesmo que utilizando material pornográfico com representação realista de menor inexistente. Por isso que a pornografia infantil, deve tratar-se “de forma abrangente, abarcando a repressão dos autores dos crimes, a proteção das crianças vítimas dos crimes e a prevenção do fenómeno” (…). [14]».

Os valores que com esta incriminação se pretendem acautelar situam-se, assim, no âmbito de interesses que ultrapassem a liberdade e autodeterminação sexual do individuo que, no critério do artigo 176.º, do Código Penal, se presume que não se encontra formada e consolidada antes dos 18 anos, tornando irrelevante o consentimento prestado nesta faixa etária.

No caso em apreço não demonstram os autos que a ofendida, aos 16 anos, possuísse já maturidade e capacidade bastante para compreender o sentido e alcance dos gostos do arguido – prática sexuais sadomasoquistas, relacionadas com bondage, dominação e submissão (facto provado n.º 2) – e bem assim dos pedidos à assistente que lhe enviasse fotografias e vídeos, onde a mesma surgisse a introduzir objectos como escovas de cabelo e marcadores no ânus.  

Ademais, se atendermos que estas conversas culminaram num relacionamento violento e agressivo atentório da dignidade humana, sempre o consentimento para a prática dos actos referenciados nos factos provados n.ºs 2 a 5 (a admitir-se), exigia se demonstrasse que AA, com 16 anos de idade tinha capacidade suficiente para avaliar o seu sentido e alcance dos pedidos realizados pelo arguido.

Na verdade, para que o consentimento seja válido, nos termos do artigo 38.º, n.º 2 e 3, do Código Penal, o jovem com idade superior a 16 anos, tem de possuir discernimento suficiente para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta e se for prestado por qualquer meio de traduza uma vontade séria, livre e esclarecida, o que não está evidenciado no caso em apreço.

Ora, do que resulta provado é que a iniciação da ofendida neste tipo de actos sexuais foi levada a cabo pelo arguido, sem que este lhe tenha prestado qualquer informação sobre as regras exigentíssimas das práticas sadomasoquistas que invoca (facto provado n.º 25).   

Por tudo se concluiu, que o consentimento a que se refere o artigo 38.º, do Código Penal não abrange os direitos salvaguardados pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma e, mesmo que assim não se entenda, para que produzisse efeitos, sempre teria de se comprovar que a jovem com idade compreendida entre os 16 e 18 anos, possuía discernimento para avaliar o sentido e alcance da sua decisão, o que não sucedeu no caso concreto.

Não tem, pois, razão o recorrente.

3. Violação do in dubio pro reo

Excluído do âmbito de aplicação do artigo 38.º, n.º 3, do Código Penal o consentimento da assistente para a prática do crime previsto e punido pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, nos termos sobre ditos, não se mostram violados os princípios inscritos no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o principio da presunção de inocência e o in dubio pro reo.

O primeiro, de inspiração jusnaturalista iluminista, e assenta na dignidade do ser humano e na defesa da sua posição individual perante a omnipotência do Estado que se impõe ao julgador ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido é mais abrangente que o segundo.

O in dubio pro reo salvaguarda dos direitos do arguido relativamente ao qual não existe prova suficiente de ser ele o autor dos factos acusados ou, de, pelo menos, estes terem acontecido daquele concreto modo narrado.

Em caso de dúvida acerca dos factos probandos (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática), deve o juiz resolver essa dúvida em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à sua absolvição[15].

E isto porque é imperioso que profira decisão, mesmo quando existam dúvidas insanáveis e razoáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa.

A violação do in dubio pro reo o ocorrerá quando o julgador, tendo ficado com dúvidas sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao arguido, ainda assim, o julgou provado, ou quando, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto respeitante quer ao facto criminoso, quer à pena, o considerou não provado.

Trata-se de um principio que, segundo a doutrina e jurisprudência maioritária, o opera unicamente em matéria de facto. Se as dúvidas respeitaram ao direito a aplicar ou quanto à interpretação da norma jurídica, o julgador tem o dever de estudar com maior cuidado e rigor a questão.

Para Figueiredo Dias[16], o non liquet tem que ser sempre valorado a favor do arguido, o seu conteúdo e sentido só vale para a matéria de facto e não para a matéria de direito. Neste caso, a solução correta assenta pela opção pelo entendimento que juridicamente se reputar mais exacto.

Maria João Antunes[17], defende que «o princípio vale para toda a matéria de facto, quer para a relativa ao crime quer para a atinente à sanção que lhe corresponde (...) mas já não para a matéria de direito)».

Também tem sido este entendimento maioritário da jurisprudência.

O in dubio «não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais o problema deve ser solucionado com o recurso às regras da interpretação entre as quais o princípio in dubio pro reo se não inclui, uma vez que tem reflexos exclusivamente ao nível da matéria de facto».

No caso em apreciação, as dúvidas que podiam existir relativamente á idade da jovem à data da prática dos factos – 15 ou 16 anos – foram sanadas na impugnação de facto.

Já quanto ao direito, devem observar-se os princípios e regras gerais de interpretação das leis, optando-se pela solução que decorrer da interpretação dos artigos 38.º e 176.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, segundo os princípios e regras de hermenêutica e não o in dubio pro reo.

Carece, assim de fundamento a arguida violação do principio in dubio reo ou qualquer outro principio consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, improcedendo, esta pretensão do recorrente.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 

Na procedência a procedência parcial da impugnação de facto do arguido (relativamente à idade da assistente) e na procedência da impugnação de facto da assistente, importa considerar para efeitos de qualificação jurídico-penal da conduta do arguido, os factos provados decorrentes da decisão anterior.

São eles: 

1 – O arguido e a assistente …, em 2016, quando a ofendida tinha 16 anos de idade, entabularam conversações entre si nas redes sociais, através de uma aplicação denominada “Kik”;

2 – logo no início, e não obstante ser o arguido sabedor da idade da assistente, tais conversas começaram a ter um cariz predominantemente sexual, dando o arguido a conhecer à assistente que apreciava práticas sexuais sadomasoquistas e relacionadas com bondage, dominação e submissão;

3 – ainda na época referida no ponto 1 … solicitou igualmente o arguido à assistente que esta lhe enviasse fotografias e vídeos de teor sexual, onde a mesma surgisse a introduzir objectos como escovas de cabelo ou marcadores no ânus;

4 – assim, ainda em tal época temporal aludida no ponto 1 … a assistente enviou ao arguido diversas fotografias e vídeos de cariz sexual, nos moldes por ele solicitados;

5 – mais tarde, o arguido e a assistente passaram a utilizar a aplicação “WhatsApp” para comunicarem entre si;

6 – as conversas tinham lugar periodicamente e prolongaram-se durante cerca de quatro ou cinco anos, embora entrecortados por diversos períodos temporais sem que arguido e assistente contactassem entre eles;

7 – em data também não apurada, mas após meados de 2019, a assistente, acreditando que o arguido era uma pessoa confiável, confidenciou-lhe que teria sido vítima de violação, por três colegas, …, em virtude de estar alcoolizada, passando então o arguido a conhecer o quão traumático fora este episódio para o bem-estar psicológico da assistente;

8 – por seu turno, o arguido relatou à assistente que teria agredido uma ex-namorada até a deixar estendida no chão a chorar, arrastando-a pelos cabelos e ejaculando na sua cara, como castigo por desobedecer às suas ordens;

9 – em Junho ou Julho de 2020, o arguido e a assistente acordaram encontrar-se, pela primeira vez, pessoalmente, …

10 – em Setembro de 2020, estiveram novamente juntos, dessa feita em um motel … o arguido contra a vontade da ofendida, com esta praticou sexo oral, prendendo-lhe a cabeça com as pernas e introduzindo-lhe o pénis na boca, chegando a assistente a vomitar sangue;

11 – a partir de Setembro de 2020, começaram a estar juntos com regularidade, … em um apartamento arrendado, … sendo que para o efeito o arguido, … ali se deslocava aos fins-de-semana;

12 – logo que iniciaram um relacionamento amoroso, o arguido começou a dar ordens à assistente sobre a forma como esta deveria vestir-se, apresentar-se e comportar-se, dizendo-lhe que não poderia usar decotes, vestidos, saias, saltos altos, não poderia beber e se fosse sair teria que lhe pedir, primeiro, permissão e dizer-lhe para onde e com quem iria;

13 – disse-lhe ainda que teria de usar unhas mais curtas, com cores menos vistosas, e de fazer piercings nas orelhas como ele queria;

14 – do mesmo modo, o arguido proibiu a assistente, em diversas situações, de falar com outras pessoas, a não ser que ele a autorizasse a tal;

15 – ordens que a assistente acatava, porquanto o arguido lhe disse, além do mais, que, caso desobedecesse, bater-lhe-ia até ela ficar inconsciente e de seguida, levá-la-ia ao hospital, para ver que desculpa é que a assistente ali daria;

16 – em datas não determinadas, …, sugeriu à assistente que engravidasse, bem como quando circulavam de carro ou estavam em uma varanda sugeriu que ambos se suicidassem ou que a poderia matar e, de seguida, matar-se, por forma a ficarem juntos para sempre;

17 – quando, na sua perspectiva, a assistente o desrespeitava, o arguido descontrolava-se e agredia-a, atingindo-a no corpo com um cinto, estrangulando-a com um cinto, desferindo-lhe chapadas, agarrando-a pelo cabelo e arrastando-a pelo chão e apelidando-a de “puta”;

18 – …, a assistente saiu com umas amigas e bebeu álcool, o que desagradou ao arguido, que lhe disse “é bom que não estejas podre!” quando este chegasse para passar o fim-de-semana …

20 – – já em casa da assistente, o arguido, contra a vontade desta, começou a despi-la, tirando-lhe as calças do pijama, e agarrou-a e virou-a de barriga para cima e desferiu-lhe várias bofetadas na cara, com o que lhe provocou dores. Acto contínuo, virou-a também de costas, segurou-a com uma mão e com a outra tapou-lhe a boca, e contra a vontade desta, inseriu-lhe o seu pénis no ânus, até ejacular; ao mesmo tempo que dizia à assistente: «estás a ver, eu é que sei, eu faço o que quiser, não me consegues impedir de nada».

21 – o arguido e a assistente começaram oficialmente a namorar em Outubro de 2020;

22 – no contexto das relações sexuais que mantinham entre ambos, aconteceu o arguido desferir à assistente algumas bofetadas, agarrando-a pelos cabelos e arrastando-a pelo chão contra a vontade e consentimento desta;

23 – em data não concretamente apurada, … o arguido contra a vontade da …, agarrou-a pelos cabelos, atirou-a contra a cama, e introduziu o pénis no ânus;

24 – por via dos comportamentos agressivos do arguido durante as relações sexuais, a assistente chegou a sangrar do ânus e a ficar com feridas na garganta, vomitando sangue uma vez.

25 – nas suas relações sexuais – … –, o arguido e a assistente nunca combinaram qualquer palavra de segurança que pudesse servir para fazer cessar algum acto de violência que o arguido imprimisse àquelas relações;

26 – no final de Dezembro de 2020 ou inícios do ano de 2021, …, a relação entre o arguido e a assistente terminou, por iniciativa daquele;

27 – não obstante, passou a assistente a, durante algum tempo, e apesar de sentir que tal não era saudável para si própria, a insistir com o arguido para que mantivessem o respectivo relacionamento amoroso;

28 – ao solicitar à assistente, à época com 15 e-ou 16 anos de idade, que lhe enviasse vídeos e fotografias a inserir objectos no ânus, conhecia o arguido a menoridade da assistente, sabendo igualmente que as imagens e os vídeos enviados por esta eram referentes a práticas com cariz sexual por si (arguido) determinadas, tendo em vista satisfazer os seus instintos sexuais;

29 – ao perpetrar os factos descritos nos pontos 12 a 19 … actuou o arguido querendo afectar, como afectou, o bem-estar físico, psíquico, a tranquilidade, a imagem e a autoestima da assistente, fazendo-a sentir-se humilhada, temer pela sua segurança, vida e integridade física, provocando-lhe ainda pânico;

32 – Por via dos comportamentos do arguido, a assistente passou a experimentar sintomatologia depressiva e ansiosa, culpabilização, sentimentos de injustiça, tensão, insónia e medo, perda de vontade de sair de casa, perda de autoestima e alegria de viver, tendo mesmo tentado o suicídio …

33 – devido ao seu quadro de ansiedade e à tensão psicológica sentida, após o termo do relacionamento com o arguido veio a assistente a emagrecer cerca de 15 quilogramas;

34 – passou a ser seguida clínica e terapeuticamente, o que ainda hoje acontece, em consultas de psicologia clínica;

IV - CRIME DE PORNOGRAFIA AGRAVADO

Modificada a matéria de facto relativamente ao ponto provado n.º 1, no sentido de que os factos foram praticados quando a assistente já tinha 16 anos de idade, fica prejudicado o conhecimento desta questão.

V -  CRIME DE VIOLAÇÃO

O arguido foi pronunciado pela prática de dois crimes de violação na forma agravada. previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.

Dispõe o artigo 164.º, n.º 1, do Código Penal, «quem constranger outra pessoa a sofrer ou praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; é punido com pena de prisão de um a seis anos».

O n.º 2, alínea a) do preceito em análise pune com pena de prisão de três a dez anos, «quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral».

Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos actos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima (artigo 164.º, n.º 3, do Código Penal).

Quanto ao crime de violação agravado, pressupõe o tipo previsto na alínea a) do n.º 2, do artigo 164.º, do Código Penal o constrangimento da vitima, por um dos meios aí previstos (a violência, a ameaça grave, ou a colocação num estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir), impondo-se a existência de um nexo causal entre a prática dos actos sexuais referidos e o meio utilizado para alcançar esse fim.

No tocante ao conceito de violência, deverá ser considerado como tal «apenas o uso da força física (…) destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. (…) Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso (..,.) a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima[18]».

É o que sucede no caso em apreço.

Em todas estas situações, o arguido usou da força física (violência) para a constranger a assistente a com ele praticar coito oral … e coito anal … sabendo o arguido que actuava contra a vontade e consentimento da ofendida e estando consciente de que dessa atentava contra a liberdade sexual da assistente.

Deste modo, cometeu o arguido dois crimes de violação, na forma agravada previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, nos termos peticionados pela Assistente.

Quanto aos factos ocorridos, entre 27 de setembro de 2020 e janeiro de 2021, já na fase de namoro do arguido e da assistente, pese embora, integrem os elementos constitutivos do crime de violação, este não foi autonomizado na acusação do crime de violência doméstica, pelo que se encontra prejudicada a questão de saber se tais crimes deveriam ser punidos em concurso real.

VI –  CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O arguido vinha pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal.

Nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do código Penal:

Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Esta pena é agravada de dois a cinco anos se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

Com esta incriminação quis o legislador censurar de forma mais grave os casos de violência doméstica praticada num espaço confinado, subtraído a olhares alheios «enquadramento» que, sem dúvida, favorece a ação do agressor e dificulta a existência de testemunhas[19].

Entende o arguido que não se verifica a agravante prevista no artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, em virtude da assistente e do arguido não terem um domicilio comum.

Pois bem, ainda que assim se entenda, a agravação do crime verifica-se, também, quando o agente praticar os factos no domicilio da vitima, sendo, por isso, indiferente, a qualificação de domicilio comum.

E, tal como o recorrente afirma, a assistente … residia num quarto arrendado … local onde passavam todos os fins de semana e onde foram praticados os actos elencados …

Tendo os actos sido praticados na residência da vitima, está consumada a agravação da alínea a) do n.º 2, do citado artigo 152.º, do Código Penal, não assistindo razão ao recorrente.

Quanto à existência de uma relação de namoro sadomasoquista por consenso com a ofendida, não demonstram os autos que assim fosse, nos termos já decididos na impugnação de facto da assistente, soçobrando assim esta pretensão do recorrente.

  

VII - MEDIDA DA PENA

O crime de violação previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal é punido com pena de três a dez anos de prisão.

Dispõe o artigo 71º, do Código Penal:

Na determinação concreta da pena, deve o tribunal atender à culpa do agente e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra este, designadamente as nomeadas no nº 2, do mesmo preceito e diploma.

A culpa, para além de traduzir um juízo de censura, tem uma função delimitadora da intervenção penal do Estado, pois a medida da pena a não pode ultrapassar a medida da culpa, designadamente por razões de prevenção (artigo 40º, nº 2, do Código Penal).

Por todos é conhecida a lição de Figueiredo Dias, que, nesse particular ensina:

«Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do facto concretamente praticado pelo agente e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena; com a consideração da culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.[20]».

No nosso caso, depõem contra o arguido: (i) o elevado grau de ilicitude dos factos e o modo da sua execução, com aproveitamento da fragilidade emocional da assistente; (ii) o elevado grau de culpa, porque nem a fragilidade da assistente nem o tempo do relacionamento o impediram de manter a decisão de a violar; (iii) a motivação subjacente, a de satisfazer os seus institutos sexuais á força do sofrimento da vitima; (iv) as concretas consequências dos factos manifestadas no sofrimento físico e emocional que culminou num estado de saúde debilitado, mantendo até aos dias de hoje, necessidade de acompanhamento médico e terapêutico.

A favor do arguido pesa a circunstância de não ter antecedentes criminais, não deixando, contudo de se acentuar, que os factos praticados demonstram um afastamento em relação ao dever e à ordem jurídica, bem como as condições pessoais, familiares, sociais e profissionais.

Perante esta factualidade, entendemos adequada ás finalidades da punição, uma pena de prisão de três anos e nove meses para o primeiro crime de violação (facto provado n.º 10) e uma pena de quatro anos, para o segundo crime de violação (facto provado n.º 20).

***

Encontradas as penas parcelares, cumpre, agora, realizar o cúmulo jurídico, com vista à aplicação de uma pena única.

Sobre as regras da punição do concurso de crimes, rege o artigo 77º, do Código Penal, …

Trata-se de uma opção politico-legislativa de um sistema de pena conjunta obtida através do principio do cumulo jurídico das penas parcelares da mesma espécie.

Com vem sendo repetidamente afirmado, pela Jurisprudência[21]  e pela doutrina, na medida concreta da pena do concurso – tal como a medida concreta das penas parcelares, determinada em função da culpa do agente e das finalidades da punição – assume especial relevância a apreciação global conjunto dos factos e a personalidade do agente.

A este propósito, lê-se, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2012[22] :

«Como esclareceu o autor do Projecto do Código Penal, no seio da respectiva Comissão Revisora (…), a razão pela qual se manda atender na determinação concreta da pena unitária, em conjunto, aos factos e à personalidade do delinquente, é de todos conhecida e reside em que o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, de onde resulta, como ensina Jescheck (…), que a pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente.

Posição também defendida por Figueiredo Dias (…) , ao referir que a pena conjunta deve ser encontrada, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique, relevando, na avaliação da personalidade do agente sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro daquele, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluriocasionalidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta.

Adverte, no entanto, que, em princípio, os factores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta (dupla valoração), muito embora, «aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração» (…).

Daqui que se deva concluir, como concluímos, que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado».

Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos (…), tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele (…).

A fixação da pena conjunta do concurso, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente, há-de, pois, resultar, de uma visão global do conjunto dos factos, procurando, alcançar uma valoração tão abrangente quanto possível da pessoa do arguido e do seu comportamento.

Neste domínio, assumem relevância as exigências de prevenção especial de socialização e inserção do arguido na comunidade, evidenciada, designadamente, pelo comportamento anterior aos factos e posterior aos factos, e pela personalidade expressa nos factos praticados, vistos no seu conjunto. 

A pena única deve ser encontrada na moldura abstractamente aplicável à punição do concurso de crimes calculada nos termos do nº 2, do mesmo preceito, tendo como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias de multa, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes.

No nosso caso, a moldura penal abstracta do concurso situa-se entre os quatro anos de prisão e os doze anos e nove meses de prisão, resultante das seguintes penas parcelares: (i) um ano e seis meses de prisão para o crime de pornografia de menores; (ii) três anos e nove meses de prisão para um crime de violação; (iii) quatro anos de prisão para outro crime de violação e (iv) três anos e seis meses de prisão para o crime de violência doméstica.

Na determinação da medida concreta, é de realçar, a ilicitude do global do facto, entendida esta como um juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e por em causa bens jurídico-criminais e a persistente intenção criminosa mantida pelo Recorrente, a começar pelo uso das plataformas digitais para encontrar a assistente, então com 16 anos de idade e, desta forma, obter as fotografias de cariz sexual, como preparação para os crimes de violação e de violência doméstica que viria a praticar.    

O dolo manifestado na multiplicidade dos factos é elevado.

O arguido assumiu um domínio sobre a vitima, coisificando-a a seu bel prazer; o que é revelador de distorções cognitivas associadas à sexualidade e da desvalorização do impacto deste tipo de conduta.

O arguido tem actualmente 33 anos de idade, não regista antecedentes criminais e mostra-se familiar, social e profissionalmente inserido.

Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, reputa-se ajustada às finalidades de prevenção e culpa, a pena única de oito anos de prisão.

  

VIII – PEDIDO CIVEL

A modificação da decisão de facto produz efeitos na indemnização por danos não patrimoniais fixados pela primeira instância, em virtude de o tribunal recorrido não ter ponderado os episódios de violação, assistindo, assim, razão á recorrente.

Não havendo alteração das dos fundamentos do direito enunciados no Acórdão recorrido, que acolhemos na integra, resta fixar a indemnização.

Deste modo, para além do já ponderado na primeira instância, importa, ainda, atender ao sofrimento psíquico e físico imposto à assistente com a prática dos actos sexuais elencados nos factos provados n.º 10, 20 e 22 a 24, ao estado de saúde referenciado no ponto de factos provado n.º 32 -   … e, ainda ao quadro de ansiedade e tensão que sentiu, perdendo 15 Kgs, necessitando de acompanhamento médico e terapêutico e continuando a ser seguida em psicologia clinica.

Por outro lado, importa considerar a idade da assistente … o abandono dos estudos, por incapacidade psicológica e o sofrimento que esta situação lhe causou.

Finalmente, há que ter atenção a situação económica do arguido. …

Diante desta factualidade, entendemos equilibrado fixar a indemnização por danos não patrimoniais, em 20 000,00 € (vinte mil euros) mantendo-se no mais o decidido na primeira instância

 

E -  DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação:

- Julgar procedente o recurso da assistente e em consequência condenar o arguido, …, como autor material e na forma consumada, em concurso real, pela prática de dois crimes de violação previstos e punidos pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, o primeiro (facto provado n.º 10) na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão e o segundo (facto provado n.º 20), na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

- Manter a condenação …, como autor material de um crime de pornografia de menores, na forma simples, previsto e punido no artigo 176.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

- Manter a condenação …, como autor material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152., n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Operar o cúmulo jurídico, … e condenar o arguido … na pena única de 8 (oito) anos meses de prisão;

- Julgar procedente o pedido cível deduzido pela demandante/assistente, …, e, em consequência condenar o demandado, …, a pagar-lhe a quantia de 20 000,00€, (vinte mil euros) a titulo de danos não patrimoniais, nos termos e condições fixadas pela primeira instância.

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, …  

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Coimbra, 6 de novembro de 2024

Relatora: Alcina da Costa Ribeiro

1.ª Adjunta: Ana Carolina Cardoso

 2.ª Adjunta:  Alexandra Guiné


[1] Designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242 e Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271.
[2] Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995.
[3] Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, p. 335.
[4] Aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 16/2003, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14/2003 (in D.R., I Série-A, de 05.03.2003.
[5] Sobre os contornos da diferença entre os crimes contra a liberdade sexual (artigo 163.º e seguintes do Código Penal) e os crimes contra a autodeterminação sexual, cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, p.s 441 e 442.  
[6] Adoptada em Budapeste em 23.11.2001 aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 88/2009 ratificada por Decreto do Presidente da República nº 91/2009 (in DR 1ª Série de 15-09-2009.
[7] De 24 de abril de 2018, que subscrevemos como Adjunta, em www.dgsi.pt, sitio a que, de ora em diante nos referiremos, sem menção do contrário.
[8] Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 701, o bem jurídico protegido é, ainda que remotamente, a autodeterminação sexual do menor de 18 anos.
[9] Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, págs. 542 e 541.
[10] Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 17/05/2017, Proc. 194/14.8TEL.SB. S1.
[11] Acórdão de 7/11/2018, proc. 161/15.4T9RMZ.E1. S1.
[12] Acórdão de 19/02/2020, proc. 4883/15.1TDLSB.L1. S1
[13] Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, p. 880.
[14] Acórdão de 19/02/2020, proc. 4883/15.1TDLSB.L1. S1
[15] Cf. Simas Santos e Leal Henriques, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, páginas 50 e 51.
[16] Direito Processual Penal, I vol. p. 215.
[17] Direito Processual Penal, p. 181.
[18] Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 453
[19] Cf. Teresa Beleza, Violência Doméstica, Revista do CEJ, n.º 9, p. 289; Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 406.
[20] Direito Penal Português - Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, II volume, 1993, §281.
[21] CF., entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de janeiro de 2008, na Coletânea, I, p. 181; de 20 de dezembro de 2006; de 18 de junho de 2009, de 16 de dezembro de 2010, 27 de maio de 2015, 27 de junho de 2012.
[22] Processo nº 605/09.4PBMTA.L1. S1