ACAREAÇÃO
DECLARAÇÃO PARA MEMÓRIA FUTURA
PRESTAÇÃO DE DECLARAÇÕES EM AUDIÊNCIA POR VÍTIMA OUVIDA EM DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Sumário

1. A existência de contradição entre depoimentos não determina, obrigatoria e necessariamente, a realização de acareação, havendo a necessidade da mediação de um juízo sobre a utilidade dessa diligência probatória que compete ao julgador.
2. A prestação em julgamento de eventuais novas declarações pela alegada vítima, já ouvida para memória futura, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos essenciais.
3. A possibilidade de prestar novamente depoimento na audiência de julgamento deve ser usada com alguma cautela, nomeadamente, quando estão em causa vítimas especialmente vulneráveis, como são as crianças - a não ser assim, transforma-se em regra o que deve ser uma excepção, sob pena de se desvirtuar todo o sistema de protecção de uma vítima que é vulnerável por ser criança e que vai reviver o seu passado de horror de forma impune e desnecessária, e apenas por razões que se prendem com o mero jogo processual de «partes» interessadas em forçar o tribunal a inverter alguma ideia pré-concebida que tenha sido criada após as declarações iniciais e desejavelmente únicas daquela.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Crime de homicídio qualificado na forma tentada
Crimes de violência doméstica
Recurso interlocutório
Nulidades processuais
Vícios de facto e erros de julgamento
Qualificação jurídica dos factos – o crime de detenção de arma proibida
Medida da pena
Valor da indemnização civil

Acordam, após AUDIÊNCIA, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
1. O ACÓRDÃO RECORRIDO

No processo comum colectivo nº 157/23.2PCLRA do Juízo Central Criminal da Comarca de Leiria (Juiz ...), por acórdão datado de 2 de Julho de 2024, foi decidido: 
«a) Julgar a acusação parcialmente improcedente e não provada e, consequentemente:
a.1) Absolvem o arguido AA da prática do crime de maus tratos p. e p. no artº 152º-A nº 1 al. a) do Cod. Penal, porque vem acusado.
Sem embargo, operando a respectiva convolação:
b) Julgar a acusação - com a alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica – parcialmente procedente e provada e, consequentemente, condenam o arguido AA pela prática em autoria material, e concurso efectivo, de:
b.1) um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 22º nºs 1 e 2 als. a) e b), 23º nºs 1 e 2, 73º nº 1 als. a) e b), 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j), todos do Cod. Penal, na pena de 6 anos de prisão;
b.2) um crime de violência doméstica agravada, na forma consumada, p. e p. no artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Cod. Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
b.3) um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. no artº 152º nº 1 al. e) do Cod. Penal, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão;
b.4) um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23/02, por refª. ao artº 3º nº 2 al. ab) do mesmo diploma, na pena de 9 meses de prisão.
b.5) Operando o respectivo cúmulo jurídico, condenam o arguido AA na PENA ÚNICA de 7 anos de prisão.
(…)
c) Julgam o pedido de indemnização civil deduzido pelo MºPº totalmente procedente e provado e, consequentemente, condenam o demandado AA a pagar ao Estado Português (MAI) a quantia de € 43,05, acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4%, vincendos, até integral pagamento.
(…)
d) Julgam o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante BB totalmente procedente e provado e, consequentemente, condenam o demandado AA a pagar ao demandante BB:
1 - A quantia de € 612,00, acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4%, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos com despesas de deslocação durante a baixa médica.
2 - A quantia de € 30.000,00, acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4%, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por este até 18/10/2023 em consequência da conduta do demandado.
3 - As quantias que se vierem a liquidar em incidente de liquidação de sentença, acrescidas de juros de mora, contados à taxa anual de 4%, vencidos desde a liquidação, e vincendos até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos desde 19/10/2023 até à consolidação médico-legal das lesões e sequelas, e danos patrimoniais e não patrimoniais que se venham a verificar posteriormente a tal data da consolidação médico-legal, decorrentes de recidivas, em consequência da conduta do demandado.
(…)
e) Julgam o pedido de indemnização civil deduzido pelo CH ..., EPE totalmente procedente e provado e, consequentemente, condenam o demandado AA a pagar ao demandante Centro Hospitalar de ..., EPE, a quantia de € 486,16, acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4%, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento, a título de custo dos cuidados médicos prestados ao BB em consequência da conduta do demandado».

2. Foi também proferido o seguinte DESPACHO, datado de 12 de Junho de 2024 (refª 107522676):
«Reqto. Refª. 10880786 de 12/06/2024:
Após deliberação do Tribunal Colectivo, decide-se:
- Admitir a tomada de declarações complementares ao arguido;
- Admitir o depoimento das duas novas testemunhas ora arroladas, CC e DD, a requisitar à respectiva OPC.
- Indeferem-se as requeridas acareações entre as cinco indicadas testemunhas, todas já inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento, e por se considerar que tal diligência não se afigura útil à descoberta da verdade (artº 146º nº 1 parte final, “a contrario”, do CPP).
- Igualmente se indefere a (re)inquirição em audiência da menor ofendida EE, porquanto a mesma foi ouvida em declarações para memória futura, cuja gravação foi reproduzida em audiência, afigurando-se desnecessário à descoberta da verdade material a reinquirição presencial da mesma em audiência, que no fundo se reconduziria a uma dupla vitimização da mesma, frustrando desse modo os objectivos que o legislador pretendeu lograr com a inquirição por declarações para memória futura (artº 271º nº 8 parte final, “a contrario” do CPP)».


            3. OS RECURSOS

3.1. RECURSO Nº 1
Inconformado, o arguido AA recorreu do DESPACHO INTERLOCUTÓRIO referido em 2., finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
I. «O arguido foi notificado do despacho de alteração não substancial (art. 358.º, n.º 1 do CPP) com vinte e nove factos; no fundo, uma factologia quase tão extensa como a própria acusação de que vinha acusado.
II. O extenso despacho de alteração não substancial sub judice reportava-se para, pelo menos, quatro segmentos distintos da acusação: 1) Factologia referente à abordagem da polícia até á detenção do arguido; 2) Factologia referente ao crime de violência doméstica sobre a esposa, FF; 3) Factologia referente a maus-tratos, ou violência doméstica sobre a filha menor, EE; e 4) Consequências do ferimento agente da polícia.
III. Perante este novo circunstancialismo apresentado, distribuído nos referidos 29 novos factos, e uma alteração da qualificação jurídica que poderia agravar a situação do arguido, veio este, como a lei o acolhe, apresentar e requerer novos meios de prova!
IV. O arguido foi repristinar toda a prova registada em audiência e mais convencido ficou de que os factos não se passaram como foram descritos pelos polícias.
V. Não é verdade que tenha descido uma segunda vez para interagir com a polícia. Depois de lhe ter sido atirado “gás pimenta”, o arguido (como é normal e a experiência comum o demonstra a saciedade) ficou sem poder ver e sem conseguir respirar normalmente.
VI. O arguido não mais desceu. O ferimento do agente só pode ter acontecido nesse momento. A entrada da polícia na casa e a saída do agente ferido, aconteceu em cerca um/dois minutos no máximo, como o referiram as testemunhas, nas declarações que fizeram em tribunal.
VII. Não é verdade, nem haveria tempo para isso: depois de ter sido alvo de “gás pimenta”, subir à cozinha, apanhar mais duas facas e dirigir-se de novo aos polícias, seria impossível. Tal factologia não aconteceu; não seria possível!.
VIII. Também era importante apurar-se quem recolheu as facas e as alinhou, para serem fotografadas (cfr. fls. 180); assim como não se conseguiu apurar onde tais facas foram encontradas!
IX. Para esclarecer estes factos – determinantes para a não condenação do arguido no crime de homicídio agravado, na forma tentada – mas sobretudo porque havia contradições nos depoimentos sobre o tempo de chegada da polícia e a saída para a rua do agente ferido, de ter subido as escadas e torando a descer, de ter usado as facas fotografadas (ou quais usou) era fundamental a produção da prova requerida pelo arguido: a acareação requerida.
X. Por isso se requereu a acareação. Em causa estava a prova que o arguido pretendia fazer e apurar, confrontando a versão dos dois polícias com as narrativas e os pormenores que as testemunhas vieram acrescentar.
XI. que o Tribunal indeferiu essa possibilidade. Considerou que “as cinco testemunhas todas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento, e por se considerar que tal diligência não se afigura útil à descoberta da verdade (artº 146º 1 parte final,a contrario”, do CPP).” Salvo o devido respeito, não era isso que estava em causa nem tal indeferimento é aceitável.
XII. A diligência não era demorada, nem era inútil. Era essencialíssima para a defesa do arguido (livrar-se do crime de homicídio)!
XIII. Com a produção de tal prova, conseguiria o arguido comprovar que depois de se ter envolvido com os agentes (uma única vez) nada mais aconteceu. O agente BB foi ferido nessa única altura (durante o envolvimento em que levou com gás pimenta e bastonadas) e nunca numa segunda vez (que nunca existiu, nem tempo para isso haveria, entre a chegada dos agentes e o ferimento do agente ferido) ainda para mais, depois de ter sido alvo do gás pimenta.
XIV.E só com uma prova por acareação (que, entenda-se, não é uma reinquirição de testemunhas, mas um confronto de narrativas antagónicas) poderia ser esclarecida esta factologia.
XV. Ficou assim preterido este inalienável direito do arguido se poder defender. A produção desta prova por acareação era fundamental.
XVI. Por outro lado, era fundamental também apurar-se quais os factos que podem levar à condenação por violência doméstica sobre FF (quando esta veio declarar nos autos que o arguido não a agrediu (cfr. fls. 532 a 534) e reiterou o mesmo na audiência de julgamento, conforme ficou registado (gravado) em acta e sobre a filha EE.
Para além do mais;
XVII. Com a produção de prova requerida (e não autorizada), pretendia o
arguido comprovar que não actuoulivre, voluntária e conscientemente”. O arguido estava alcoolizado, com grande défice de compreensão das suas expressões e dos seus actos (que nem deles se recorda com rigor).
XVIII. Em causa está uma nulidade relativa, prevista no art. 120.º/2, al. d) do CPP que desde já se invoca.
XIX. Disposições violadas:
  • art. 340.º., do CPP, 120/2, al. d) do CPP, art.146.º/1 “a contrario”, do CPP.
  • art. 32.º da CRP
  • Da CEDH: art. 6.º, n.º 1 e n.º 3.

TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, A DECISÃO PROFERIDA SER REVOGADA, POR OUTRA QUE DETERMINE A REQUERIDA PROVA DE ACAREAÇÃO, POR A MESMA SER ESSENCIALÍSSIMA À DESCOBERTA DA VERDADE MATERIAL E BOA DECISÃO DA CAUSA, TUDO COM AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS».

3.2. RECURSO Nº 2
Inconformado, o arguido AA recorreu do acórdão condenatório, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
(…)[1]

B - Impugnação da matéria de facto
XVII. O recorrente discorda da forma como a prova produzida nos presentes autos foi avaliada pelo Tribunal a quo, razão pela qual vai pugnar perante este Tribunal da Relação, pela sua modificação, ou seja que este Tribunal proceda à reapreciação da prova produzida, da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento e, sobretudo, da articulação entre a mesma.
XVIII. Em concreto, discorda o Recorrente que, perante a prova produzida neste processo, se pudessem ter como factos provados, os factos constantes dos pontos a.5), a.6), a.7), a.12), a.15), a.16), a.20), a.23), a.24-a), a.30) - a.34), a.48), a.49), a.50), a.51, a.52), a.53), da decisão sob recurso.
XIX. Para dar como provada a factologia assente, o Tribunal baseou-se:
  • Nas declarações do arguido que negou a prática dos factos imputados, não lhe reconhecendo, contudo, credibilidade por estarem em oposição com a demais prova
  • Nas declarações para memória futura da menor (16 anos) EE.
  • E nas declarações das testemunhas ouvidas, mas desconsiderando as de FF (por entender o Tribunal que foram parciais e se afastaram da verdade – entendimento este que o recorrente não pode acolher, como adiante demonstrará [ver nota apresentada no ponto 63 a 67]).
XX. Basicamente, são estes os pontos com os quais o recorrente se não conforma:
a. Que alguma vez tenha querido ferir ou matar o assistente BB.
b. Que tenha praticado os crimes de violência doméstica na pessoa da sua companheira, FF, e da sua filha EE.
c. Que tenha usado a faca de cozinha como arma branca, com a intenção de ferir os polícias.
d. Os actos praticados tenham sido praticados de forma livre e consciente.
XXI. E aqui surge a respeitosa discordância, facilitada na sua explanação, pelo laborioso trabalho de fundamentação que permite detectar os pontos que geram controvérsia, devendo ser alterada a matéria de facto dada como provada e os erros a subsumir no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
XXII. A expressão “livre apreciação da prova” terá de ser a antítese da ideia liminar e intuitiva que se tem quando se fala em íntima convicção. Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada na 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder autónomo conferido à Relação – e que aqui se reclama – de formular a sua própria convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

Contradição insanável (art.410.º /2, do CPP)

XXIII. No segundo parágrafo da fundamentação da matéria de facto (p. 15) ao reportar-se às declarações do arguido, o Tribunal toma como referência ele ter negado “ter atingido a esposa na cabeça com um arranca-pregos, quando a mesma se encontrava de costas para si, declarando que nunca teve intenção de agredir ou atingir fisicamente a companheira ou a filha...”.
XXIV. Acontece que em parte alguma da matéria de facto provada se pode fundar tal juízo: ter utilizado um “arranca-pregos” e de, com ele, ter agredido a esposa na cabeça. O Tribunal parte dessa convicção, mas fá-lo de forma errada; este erro de julgamento coloca desde logo em causa o apuramento, não só da alegada violência doméstica contra a esposa, como até a justeza da severa pena que, por isso, lhe foi atribuída: condenação 2 anos e 6 meses.
XXV. Outro ponto da fundamentação que denuncia erro de julgamento, prende-se com a questão abordada na pág. 29, do acórdão, quando afirma que “Ora, da discussão da causa resultou provado que o arguido detinha em seu poder na garagem, da sua residência, quatro facas de cozinha...”.
XXVI. As quatro facas surgem expostas numa fotografia à porta da garagem, mas nenhum dos agentes da polícia foi capaz de explicar quem as encontrou, quem as recolheu, quem as colocou naquela posição para a fotografia, ou até, onde estavam as mesmas.
XXVII. A teoria das quatro facas, que impulsionou a história mirabolante dos dois agentes da polícia, só surge depois de ser vista a fotografia onde eram exibidas quatro facas (que poderia ser 6 ou 7...) mas que ninguém explicou de onde foram recolhidas, quem as recolheu e quem as colocou para serem fotografadas. O próprio agente que as fotografou, como ele próprio o declarou, quando o fez, já a exposição estava montada!...
XXVIII. O tribunal dá o caso como adquirido, mas sem apurar quantas e onde foram encontradas as facas. Este erro de julgamento vai conduzir à errada percepção da intenção de matar os agentes, que acabou o Tribunal por concluir. E não fica por aqui. Vai igualmente condicionar a subsunção desta factualidade ao direito e concluir (mas erradamente) pela existência do crime de detenção de arma proibida.
XXIX. Tais vícios toldam o acerto da decisão e conduzem à sua anulação, com as legais consequências – o que desde já se requer.

Alteração da matéria de facto e provas

XXX. O Tribunal deu como provada a matéria constante dos pontos a.5), a.6) e a.7). Contudo, para lá do texto acusatório, em parte alguma foi encontrado suporte factual para dar tal matéria ser dada como provada.
XXXI. Dos três envolvidos no episódio do ponto “a.5)”, o arguido negou tê-la agredido; a esposa, FF, declarou em julgamento que não houve agressão alguma (disse mesmo que o arguido nunca a agrediu14); e a filha, EE, em DMF15 declarou que “estava de costas para mãe” e com o pai à frente, e que o viu(!) dar-lhe com uma extensão, no braço e em baixo, mas que a ela não tocou.
XXXII. Do titubeante relato da EE também não consta que o arguido chamasse à mãe, os nomes de ‘vagabunda’ e ‘puta’, e lhe tenha dito que ‘a matava’, conforme, erradamente, é dado como provado, no ponto a.6). Nada consta. Tal facto é também negado pelo arguido e por FF.

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14 Minuto 6:34h a 8:10h, registado na Acta de julgamento de 27/02/24, das 11:30h às 12:08h
15 DMF de EE, ouvidas na Audiência de Julgamento de 23/04/24
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XXXIII. Quanto ao ponto a.7), a palmada na cara da EE não existiu e foi indevidamente dado como provado. O arguido negou dar palmadas à filha. Por sua vez a filha, EE, ao longo das DMF apresenta uma versão bem diferente sobre esta questão (DMF, minuto: 31:20) Categoricamente diz que o arguido nunca lhe bateu na cara! E se lhe tocava era da cabeça para baixo, não se recordando sequer onde!.... E, acima de tudo, confessa que o arguido (tal como acontecia com a mãe) nunca lhe chamou nome nenhum!
XXXIV. No ponto a.12), não se pode dar como provado que “Assim que viu a EE, a FF disse a esta que o arguido a queria matar, que queria enforcar.” FF nega por completo que lhe tenha dito isso e nas declarações prestadas explica o motivo de ter chamado a EE: que levasse o pai dali, porque queria descansar.
XXXV. Há aqui um discurso de mero “ouvir dizer”. O certo é que a EE refere só ter ouvido a mãe dizer que o pai lhe disse. Ela própria não ouviu tais afirmações. E mais; acaba por confessar nunca ter ouvido ao arguido tais afirmações!
XXXVI. O Tribunal desconsiderou o depoimento de FF, por as suas declarações se “afastarem clara e deliberadamente da verdade assumiram contornos tendenciosos e parciais apostava se em aligeirar a gravidade das responsabilidades do arguido” (sic., Ac. p. 17). Todavia, e com o máximo respeito por opinião contrária, não ousando sequer a beliscar a livre convicção do julgador, sempre se terá de trazer à colação o que já se referiu nos artigos 34. a 36, deste recurso: reclama-se deste Tribunal de Recurso o poder autónomo, conferido à Relação, de formular a sua própria convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
XXXVII. O depoimento da assistente FF (empregada fabril) foi límpido e sincero; não de quem tem prática das salas de tribunais, mas de quem fala com humildade, com serenidade, dando explicações simples e claras sobre as questões de que foi interpelada. As suas declarações não entram em contradição, ou conflito, com as declarações prestadas pelas demais testemunhas. Pelo contrário; são, na sua magnitude, corroboradas pelos demais intervenientes, nos momentos por ela descritos. Vejam-se, resumidamente (Depoimento registado na Acta de julgamento de 27/02/24, das 11:30h às 12:08h):
Minuto: 4:58 – ele bebia muito e estava alterado.
6:34 – ele nunca me bateu... nunca me insultou, nem chamou nomes
8:15 (Ela dá uma explicação de como tudo se passou)
8:50 Eu queria estar sozinha e chamei a minha filha
9:40 Ela (filha) chegou e agrediu e empurrou o pai
10:05 Ele (arguido) não estava a fazer nada, mas ... não imaginei
11:34 (Interpelação da Sr.a Juiz Presidente que comenta a estranheza do depoimento,
e manifesta admiração por a filha, com 17 anos, chegar a agredir e empurrar o pai!)
13:40 – Chamou a polícia porque ele estava muito alterado.
15:43 Falava para a gente sair (do quarto) porque queria falar com elas.
16:13 Não batia á porta; o outro sobrinho estava do lado de fora.
16:52 Chamou a polícia para tudo ficar tranquilo
24:25 Não saiu do quarto porque o sobrinho dele disse que não, porque ela queria sair.
30:20 Ele está bêbado; o sobrinho dizia: fica no quarto.
31:07 Não esperava que as coisas tomassem estas proporções
35:22 Ele estava no quarto com um prato de carne
35:35 Tinha a faca com que estava a assar a carne... não tinha medo dele
XXXVIII. No ponto a.15) e a.16) não poderia ser dado como provado que o recorrente empurrou a EE com força, o que fez com que esta caísse para cima da cama partindo-a e que após o arguido desferiu um soco, que atingiu a FF na cara, no lado direito.
XXXIX. O arguido negou que tenha desferido um soco que atingiu a FF. A FF negou igualmente que tenha sido o arguido a dar-lhe um soco. Presente neste episódio, disse o GG (Minuto 5:38) que a EE é que começou a empurrar o pai. Ele tentou segurá-la e caíram os dois na cama onde estava deitada a FF. Não viu ninguém bater nela, mas admite que lhe poderiam ter tocado quando caíram na cama.
XL. Por sua vez, nas DMF (minuto 11:00) EE conta “Eu chego à frente dele, mando-o ir embora e ele disse que não ia; foi quando eu me alterei, o empurrei. Ele ainda estava ajoelhado junto da mãe... depois ele empurrou-me e caí para cima da mãe, e caímos na cama. Quanto ao soco, disse que foi a mãe que lhe contou; ela não viu dar soco algum, até porque estava virada para o pai (a quem empurrava para sair do quarto) e de costas para a mãe. Ou seja, não viu dar soco nenhum e só insinuou isso por dedução, e porque a mãe lhe contou.
XLI. O ponto a.20) transporta em si uma das afirmações que não é verdadeira nem foi produzida prova que a sustentasse: “... continuando a anunciar que ia matar FF. Nenhuma testemunha o ouviu, nem o declarou em julgamento. Para além de vir anunciado na acusação, nenhuma prova foi produzida que sustentasse tal intenção do arguido –  em o poderia, porque não corresponda à verdade. Deve de tal ponto ser retirada tal frase.
XLII. Também a parte do ponto a.23) onde é referido que “...dizendo que a mataria”, não pode manter-se como provado. FF nunca referiu tal bizarria; disse até que queria sair do quarto para falar com ele, mas o GG (como ele também confessou) a impediu porque o tio estava alterado (e alcoolizado).
XLIII. Sem nada que o corrobore, nem o Tribunal indique como chegou a essa conclusão, não pode manter-se tal afirmação no corpo do referido ponto a.23).
Deve, por isso, tal proposição ser retirada do conteúdo desse ponto e ser o mesmo reescrito, para o mesmo se poder manter como provado.
XLIV. O Ponto a.24-a) concluiu que O arguido deslocou-se então à cozinha ...local onde retirou duas facas que segurou, uma em casa mão”. O arguido confirma-o; só que não o fez para enfrentar os polícias (como a frase o sugere). Quando pegou nas facas ainda não tinha chegado a polícia, nem ele sabia que tinha sido chamada – isso vem bem explícito nas DMF prestadas pela EE (minuto 16:50):
ME: Sim. A mãe disse que ele tinha alguma coisa na mão J: A tua mãe disse que ele tinha alguma coisa...
ME: Porque antes disso (da polícia chegar) o meu primo tinha dito que ele tinha ido buscar duas facas à cozinha
XLV. Esta parte é absolutamente determinante para ficar claro que o arguido – ao contrário da percepção do Tribunal – não foi buscar as facas para enfrentar os polícias; ela tinha pegado nelas, e não para fazer mal a alguém. Por tais motivos, deve ao ponto a.24-a) ser alterado, retirando-se a insinuação, de que foi por ter chegado a polícia que ele se muniu de duas facas (retirar-se o “deslocou-se então à cozinha”). Ao invés, deve ser introduzida a ressalva e ficar expresso que “antes da polícia ter chegado, o arguido tinha ido à cozinha e tinha já, em cada mão, uma faca de cozinha”. Só assim estará a matéria provada coadunante com a realidade dos factos provados em julgamento.
XLVI. Os Pontos a.30) a a.34) referem-se ao envolvimento dos agentes da polícia com o  arguido. Acabam por ser a base da sua condenação por homicídio agravado, na  forma tentada. Mas não é correcto, nem tal matéria poderia ser dada como provada, quer por falta de prova, quer pela experiência comum do homem médio.
XLVII. As bastonadas que existiram e foram descritas pelos agentes em sede de  julgamento, estão completamente omitidas no texto do ponto a.30). Mas terão de ser incluídas; vir narrado que “o agente principal BB, fez uso do gás pimenta para neutralizar o arguido e desferiu-lhe várias bastonadas, para assim permitir a sua detenção e algemagem”.
XLVIII. A história narrada pelos agentes não bate certa; a experiência comum contesta-a e os depoimentos recolhidos das testemunhas GG, HH e II, desmentem-na categoricamente – só com o indeferimento da prova de acareação requerida pela defesa, essa máscara não chegou a cair!
XLIX. O arguido (alcoolizado e por isso diminuído de percepção) não as facas de imediato. E que sucedeu? Lançaram-lhe gás neutralizante que o deixou sem ver, com dificuldade em respirar e a proteger-se, como podia, das bastonadas que lhe caíam em cima. Queriam detê-lo, mas ninguém lhe deu, sequer,voz de detenção!
L. Bem sabem eles que é falso o que declararam18. Segundos depois de terem entrado na garagem, saiu o agente ferido para a rua. Nem tempo haveria para o arguido fugir para a cozinha (e fugir para quê?) e voltar de novo. Os depoimentos de GG, HH e II, são consentâneos entre si. GG declarou
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18 No auto de Inquirição Judicial, de 29/06/23, respondendo à Sr.a Procuradora acerca da foto com quatro facas, de fls. 180, o agente JJ declarou que “pensa que o arguido, depois de ser atingido com gás neutralizante, deixou cair duas facas e subiu as escadas de acesso ao primeiro andar, indo buscar outras duas”. Nessa data “pensava que”,... em julgamento ganhou tinha certeza! Mas o certo é que acabou por ser dada como provada esta falsa narrativa – que o arguido entende dever ser reapreciada e, consequentemente, modificada.
19 Depoimento registado na acta de 27/02/24, das 15:17h às 15:53h
20 Depoimentos registados na acta de 23/04/24: HH das 10:56h às 11:13h e II das 11:13h às 11:30h
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que, logo que os polícias entraram conseguiu escutar barulho de briga e viu um polícia sair para a rua, ferido (Minuto: 17:46). Por sua vez, HH e II, foram claros ao referir que só decorreram segundos entre a entrada dos polícias e um deles sair já ferido para a rua, assim como viram o cassetete torto de ter sido usado.
LI. Acerca do gás neutralizante (gás pimenta) diz-nos a experiência comum que ele provoca implicações directas na visão e na respiração. Alguém que seja atingido com esse gás, fica com a visão perturbada (não consegue abrir os olhos) e com dificuldades em respirar. Não é possível que depois ser sido atingido com esse gás (e de ter levado bastonadas) fugisse para o andar de cima e voltasse. Isso não aconteceu. A realidade e a dinâmica dos factos demonstram tal impossibilidade e o Tribunal não poderia dar como provado a factologia constante dos pontos a.30), a.31), e a.32).
LII. Corroborando esta posição, convoca-se aqui o aditamento n.º 2, feito ao auto de notícia (cfr. fls. 129 e 104 dos autos) onde é clara a narração: “...numa manobra para o manietar e dominar, acabam por se envolver altura em que um dos elementos, o agente principal BB é ferido com uma faca de cozinha que o agressor segurava numa das mãos.” Não houve qualquer fuga e regresso. Não houve mais duas facas em cena; nem foi o arguido que se dirigiu aos agentes da polícia. Estes, ao verem-no de facas nas mãos é que agiram. “Acabaram por se envolver” (como refere o aditamento 2.) e foi nessa altura e não noutra – como quiseram fazer crer os agentes BB e JJ, que o agente saiu ferido.
LIII. Nenhum sentido faz a insinuação de que o arguido pretendia atingir a veia femoral ou qualquer outro órgão sensível. O arguido, que nem conhecimento tinha da existência de tal veia, nem do perigo do seu ferimento, jamais lhe quis acertar.
LIV. Sem aligeirar as responsabilidades que lhe cabem, ousa o recorrente levar à consideração do Tribunal de Recurso, a quota parte de responsabilidade que a desastrosa actuação dos agentes implicou no caso (não fora isso e não teriam necessidade de mentir, nem de se vitimizar com argumentos que desde início bem sabem ser falsos). Se em causa estava a sua segurança, ou até a sua vida, como argumentaram, deveriam ter seguido os procedimentos que o NEP determina para essas alturas.
LV. Os agentes dizem ter ouvido “quem entrar vai abaixo”. Só eles o ouviram; mais ninguém o referiu! Porém, depois do incidente do ferimento do agente BB, o agente JJ ficou lá; e ficou sozinho. E mais; subiu as escadas e foi a falar com o arguido (foi aí que lhe disse para não estragar mais a vida). Mas então, nessa altura, já não teve receio que o arguido o matasse, ou que o ferisse com mais facas?
LVI. Antes da Equipa da PSP chegar, estava o arguido em diálogo ameno com o agente JJ, sem manifestar qualquer insurreição e bem sabendo que a polícia o viria prender. Por causa disso, queria ele dar um último abraço de despedida à filha – como ele o declarou e o agente JJ o confirmou. Assim, esta ideia de ter sido necessária uma Equipa especial da PSP para o deter, não é correcta.
LVII. Por tais motivos, não pode aceitar-se a valoração seguida pelo Tribunal a quo, razão pela qual se requer a este Tribunal que seja retirada da factologia dada como provada, este segmento factológico, ínsito nos pontos a.30) a a.34), uma vez que não corresponde com a verdade dos acontecimentos.
LVIII.   Pontos a.48), a.49) e a.50), reportam-se ao elemento subjectivo que tem de verificar-se para a prática dos crimes de que foi condenado. O arguido discorda porque a prova foi noutro sentido. Como anteriormente se foi demonstrando, o arguido, apesar de estar com elevada carga etílica, nunca quis atingir o agente BB (ou qualquer outro). Apesar da consciência diminuída, nunca foi munir-se de facas para atingir o agente, nem tão pouco procurou o sítio do seu corpo para o fazer (para além, como se disse, da sua escolaridade mínima e formação não lhe ser obrigatório saber a existência e a parte do copo em que se encontra a dita veia femoral (nem conduta, nem instrumento, nem zona, nem morte do agente!).
LIX. Nunca teve o arguido intenção de retirar a vida ao agente BB. Todas as circunstâncias em que decorreram os acontecimentos, bem como os depoimentos ouvidos em sede de julgamento (com excepção dos dois agentes da PSP, KK e JJ) são disso bem demonstrativos. Nem tão pouco se deve manter a frase: haver vontade de desferir o golpe.
LX. Deixe-se também claro que o arguido não surpreendeu o agente (ao invés do que vem descrito no ponto a.50)). Nem o agente sem defesa. O episódio reporta-se a envolvimento de ambos, nada de surpresas, de matreirice, ou ter decorrido à contrafé.
LXI. Em parte alguma se encontrou prova que sustentasse a matéria dada como provada nos pontos a.51) e a.52). Não se consegue alcançar como foi dado como provado que “em virtude da conduta do arguido, FF sofreu dor e mau estar físico vergonha e humilhação”? (ponto a.51)) Não se encontra. O Tribunal também não esclarece e teria, até, muitas dificuldades em fazê-lo quando a
própria assistente desmente a acusação e nega qualquer situação depreciativa do arguido para com ela (retirando o ser aborrecido, quando está alcoolizado). Com a filha EE acontece o mesmo.
LXII. Por fim o ponto a.53). Pelas razões já invocadas, mas sobretudo a provada embriaguez que o arguido experienciava, jamais a sua conduta poderia ser livre, voluntária e consciente. O arguido na altura dos acontecimentos demonstrava uma consciência diminuída, uma alteração geral de actuação reveladora de um desequilíbrio da sua conduta habitual (como descrito por quase todas as testemunhas ouvidas). O estado dele, apesar de não ter sido quantificado, nem poderia, era, contudo, notoriamente alterado e diminuído (com errada percepção das coisas, como a testemunha GG o declarou). Deve, como a demais que se indicou, ser tal matéria (pontos a.48) a a.53)) igualmente retirada do capítulo dos factos provados.

C - Impugnação da matéria de direito

LXIII. O crime de homicídio agravado na forma tentada e os dois crimes de violência doméstica, sobre a sua esposa e filha, terão inevitavelmente de cair e o arguido deles ser absolvido. Como ao longo dos artigos se se ode verificar, os elementos do tipo não estão preenchidos.
LXIV. Quanto ao crime de detenção de arma proibida, embora por motivos diferentes dos anteriores, o mesmo não se verificou. Uma faca de cozinha, sendo embora uma arma branca, é um objeto de uso comum, com aplicação definida, cuja detenção não é proibida, mesmo que a detenção ocorra na via pública, sem o detentor ter justificação para a sua posse (cfr. Ac. do TRG, de 30-06-2014).
LXV. O entendimento manifestado na decisão recorrida redunda num alargamento da punibilidade a condutas que não representam qualquer perigo para o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora em causa, em contradição com a natureza fragmentária e a função de última ratio do direito penal. Perdurando tal entendimento, então qualquer pessoa que sai à rua, ou vá à garagem ou anexos da casa, com uma faca de cozinha de lâmina com um comprimento igual ou superior a 10 cm, estará a cometer um crime de detenção de arma proibida – o que não seria aceitável.
LXVI. Desta forma terá de concluir-se que a detenção pelo arguido da faca de cozinha com 13,6 cms de cabo e 18,8 de lâmina, nas circunstâncias apuradas, não integra o cometimento do crime p. e p. pelo art. 86º, n.1, al. d), da Lei 5/2006, de 23.02 (RJAM). Não pode, por isso, manter-se a subsunção dos factos ao direito levada a cabo pelo Tribunal a quo, impondo-se a absolvição do Recorrente.
LXVII. A imputabilidade diminuída de que o arguido era portador na altura dos factos, deveria ter sido ponderada na contextualização das despropositadas atitudes (desvalorizando-as em parte) mas, sobretudo, na parte da graduação da pena, em mitigar o grau de culpa em sede de determinação da pena concreta (como o enuncia também o Ac. TRC, de 18/09/2019).
LXVIII. Esta “consciência diminuída” está directamente relacionada com a questão do elemento subjectivo, existente (ou não) nos crimes de que foi condenado. O arguido não actuoulivre, voluntária e conscientemente”. O arguido estava alcoolizado, com grande défice de compreensão das suas expressões e mesmo dos seus actos (que nem deles se recorda com rigor). Para além do mais,
LXIX. Nem as ameaças por ele vociferadas foram levadas a peito. A própria FF só não saiu do quarto porque foi impedida. O agente JJ, mesmo depois de ter visto o seu colega sair ferido, não teve medo de ir ao encontro do arguido, subindo ao andar de cima e permanecido a falar com ele.
LXX. O arguido foi condenado no pedido cível requerido pelo assistente que, devido ao ferimento sofrido, teve tratamento hospitalar, apresentando a seguinte lesão:
traumatismo perfurante com arma branca na face interna da coxa direita com hemorragia. Levado ao BOC tendo sido efetuada sutura da perna. Sem lesão objetivável de grandes vasos.” (cfr. fls. 225).
LXXI. Depois de ter dado entrada no dia 1 de Abril de 2023, saiu com Alta médica dia 3 de Abril. A 18 de Abril (15 dias depois) o agente voltou ao hospital.
LXXII. Com a alta médica interrompe-se o nexo causa-efeito e deixa de ser o arguido, responsável por tal regresso, por tal eventual retrocesso na cura do agente. Como a declaração de Alta o descreve (fls. 225), o doente foi levado ao BOC  tendo sido efectuada sutura de pele, sem lesão objectivável de grandes vasos. À data da alta sutura com boa evolução. A tolerar levante (...).
LXXIII. Quanto ao Plano de alta, passava por Alta para o domicílio, recomendando-se (apenas) cuidados com o penso, retirar os pontos aos 11/ 12 dias, analgesia em caso de SOS e deambulação conforme tolerância. Nada mais.
LXXIV. O que não pode é atribuir-se à conduta do arguido também a responsabilidade deste novo quadro clínico do agente, 15 dias depois de ter tido Alta médica, de ter retirado os pontos, de ter estado em casa?!, etc., Terá sido precipitada a alta médica, ou foi mal diagnosticada a enfermidade? Ou houve também comparticipação negativa do doente? O esclarecimento de tal questão nunca foi avançada, nem produzida, em sede de audiência!
LXXV. Sem embargo do que ficou dito em matéria de nexo causal, sempre terá de se discordar do valor da indemnização atribuído pelo Tribunal a quo. A exorbitância do mesmo chega a ser chocante, quando em causa está um ferimento de 2 centímetros, diagnosticado pela médica que o observou como sendo “sem lesão objectivável de grandes vasos”.
LXXVI. Por outro lado, excessivo valor acabaria por ser uma “sentença perpétua” para o arguido que poucos bens possuiu, só tem a escolaridade mínima e poucos recursos aufere, quando até, e ainda bem, o agente está ao trabalho normal, aufere o seu vencimento sem redução alguma, não sofre de nenhuma incapacidade profissional e vive a sua vida familiar e social normal, sem grandes contrariedades de que se prive.
LXXVII. O arguido discorda das penas individuais que lhe foram aplicadas. Admitindo-se, em tese, que o comportamento do arguido seria passível de censura penal, sempre se diria que, em matéria de culpa e funções de prevenção, estarem claramente atenuadas (cfr. v.g, Relatório Social)
LXXVIII. Face a tudo o que foi supra descrito, aos actos em si de que foi condenado, às confusões e aos equívocos jurídicos denunciados, as penas atribuídas individualmente nunca poderiam manter-se (sobretudo as referentes à alegada violência doméstica), assim como o cúmulo jurídico calculado, deveria baixar para o mínimo legal.
LXXIX. Por sua vez, a personalidade do arguido permite concluir, com suficiente segurança, que não só a pena aplicável não poderia ultrapassar o limite mínimo da moldura penal, como também a ameaça de cumprimento da pena de prisão é plenamente suficiente, para o afastar de eventuais desígnios criminosos no futuro – razão pela qual se termina, ousando requer a suspensão na sua execução.
LXXX. Norma violadas:
  • Art. 71.º CP, art. 131.º CP, 132.º CP, 152.º do CP
  • Art. 80, n.º 1, da Lei 5/06, de 23/2.
  • Art. 340.º, do CPP, 120.º/2, al. d), do CPP, art.146.º/1 “a contrario”, do CPP.
  • Art. 29.º e art. 32.º da CRP
  • Da CEDH: art. 6.º, n.º 1 e n.º 3.

TERMOS EM QUE
DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, PROCEDER O RECURSO INTERLOCUTÓRIO PENDENTE NOS AUTOS, SER ALTERADA A MATÉRIA DE FACTO COM AS CONSEQUENTES IMPLICAÇÕES NO DIREITO APLICADO SER O RECORRENTE ABSOLVIDO.
SE ASSIM NÃO SE ENTENDER
DEVE SER ORDENADO O REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO, NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DOS ART.S 426.º, N.º 1, E 426.º A, DO CPP.
TUDO COM AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS».

            3. O Ministério Público em 1ª instância e o assistente/demandante cível BB responderam aos recursos, opinando que eles não merecem provimento, defendendo o decidido e sentenciado em 1ª instância.

4. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento aos recursos, acompanhado as respostas do Exmº Colega de 1ª instância.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que se realizou a requerida AUDIÊNCIA que decorreu segundo o figurino legal.

6. Cumpre decidir.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto dos recursos

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.
Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
RECURSO Nº 1
1. Existe a nulidade processual do artigo 120º, nº 1, alínea d) do CPP no acto de indeferimento da requerida acareação entre 5 testemunhas do processo e da reinquirição em julgamento da jovem EE, já ouvida em sede de declarações para memória futura?
RECURSO Nº 2
1. Existe algum vício do artigo 410º, nº 2 do CPP?
2. Existe algum erro de julgamento na prova dos factos a.5, a.6. a.7, a.12, a.15, a.16, a.20, a.23, a.24-a), a.30 – haverá lapso na não transcrição no ponto 29 da motivação deste facto -, a.31, a.32, a.33, a.34, a.48, a.49, a.50, a.51, a.52 e a.53?
3. Estão perfectibilizados os crimes em causa, nomeadamente, o de detenção de arma proibida?
4. As penas individuais e de cúmulo jurídico foram exageradas, deveria ter sido ponderada a imputabilidade diminuída do arguido e deveria a prisão ter sido suspensa na sua execução?
5. A indemnização civil foi exagerada?
 
            2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):

«a.1) Desde o ano de 2003, o arguido e FF vivem juntos, como se de marido e mulher se tratassem, partilhando cama, mesa e a habitação sita na Rua ..., em ....
a.2) Deste relacionamento, no dia 11 de Fevereiro de 2007, nasceu EE.
a.3) Desde há cerca de quatro anos que o arguido passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso.
a.4) E passou a manifestar ciúmes de FF, bem como a manter discussões frequentes com a mesma.
a.5) Em data não concretamente apurada, no período compreendido entre Janeiro de 2023 e o dia 31 de Março de 2023, na sequência de uma discussão mantida entre o arguido e FF, no interior da casa que partilham, o arguido, munido de um fio elétrico, desferiu dois golpes na FF, que a atingiram no braço e nas nádegas.
a.6) E chamou-lhe “vagabunda” e “puta”, e disse-lhe que a matava.
a.7) Nessa ocasião, quando se encontrava com a filha, EE, na cozinha, o arguido desferiu-lhe uma palmada na cara.
a.8) No dia 31 de Março de 2023, depois do jantar, o arguido, a sua filha EE, a sua companheira, FF, o LL, sobrinho desta, e GG, sobrinho do arguido, estavam na casa sita na Rua ..., em ....
a.9) Cerca das 23 horas, encontrando-se a EE na sala com o GG, a FF chamou pela filha, pedindo ajuda, pelo que a EE foi em direcção ao seu quarto, local onde a mãe se encontrava.
a.10) Aí chegada, deparou-se com a porta do quarto fechada, pelo que a empurrou e conseguiu abri-la.
a.11) Dentro do quarto encontravam-se a FF, deitada em cima da cama, e o arguido, ajoelhado junto à cama.
a.12) Assim que viu a EE, a FF disse a esta que o arguido a queria matar, que a queria enforcar.
a.13) Em face do que a EE disse ao arguido para sair do quarto, o que este não fez, pelo que a EE o empurrou.
a.14) Em face disso, o arguido levantou-se, ficando a EE de frente para si e de costas para a mãe, FF.
a.15) Após o que o arguido empurrou a EE com força, o que fez com que esta caísse para cima da cama, partindo-a.
a.16) Após, o arguido desferiu um soco, que atingiu FF na cara, no lado direito.
a.17) De seguida, o GG segurou o arguido por detrás, por forma a permitir que a EE e a FF fugissem do quarto, o que estas lograram fazer, indo ambas refugiar-se no quarto ocupado por LL, que ali se encontrava a pernoitar.
a.18) Após as mesmas entrarem no quarto, o LL encostou o seu corpo à porta, do lado de dentro do quarto, pressionando-a por forma a evitar que o arguido ali entrasse.
a.19) O arguido batia à porta com força e empurrava-a, ao mesmo tempo que dizia que ia matar a FF e que ia partir as pernas à EE.
a.20) De seguida, o arguido deslocou-se à garagem, local de onde retirou um ferro, voltando para junto da porta do quarto munido do ferro, dizendo para a EE e a FF saírem do quarto, continuando a anunciar que ia matar FF e que ia partir as pernas a EE.
a.21) Em face disso, o LL cedeu o seu telefone à FF, que contactou a PSP, aguardando os três a chegada da polícia dentro do quarto, sito no 1º andar da residência.
a.22) O agente da PSP JJ, o agente Principal BB e o Agente Principal KK chegaram ao local, pelas 23h30.
a.23) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, a FF encontrava-se na janela do quarto, no 1º andar da casa, a pedir ajuda, estando o arguido do lado de fora do quarto, com o ferro na mão, dizendo que a mataria.
a.24) Ao avistar os agentes da PSP, a FF abriu com o comando automático o portão da garagem da sua residência, em consequência do que os três agentes da PSP entraram no interior da garagem, sita no rés-do-chão da moradia.
a.24-a) O arguido deslocou-se então à cozinha, sita no 1º andar da casa, local de onde retirou duas facas que segurou, uma em cada mão.
a.25) Os agentes da polícia aproximaram-se da escada de acesso ao 1º andar da residência, dirigindo-se ao arguido, dizendo: “Polícia! Pára! Larga as facas!”
a.26) Em resposta, o arguido dirigiu-se-lhes, dizendo: “Quem entrar vai abaixo! Não entrem!”
a.27) Os elementos policiais voltaram a informar o arguido da sua qualidade de polícia, ordenando-lhe que saísse de casa e que largasse as facas.
a.28) O arguido não acatou a ordem, e desceu à garagem, empunhando uma faca em cada mão, na direcção dos identificados elementos policiais.
a.29) Os agentes policiais voltaram a ordenar ao arguido que largasse as facas, o que este não fez, mantendo-as nas mãos, e empunhando-as na direcção daqueles.
a.30) Assim sendo, o agente principal BB fez uso do gás pimenta para neutralizar o arguido, e assim permitir a sua detenção e algemagem.
a.31) O arguido fugiu para a cozinha, sita no 1º andar da casa, voltando pouco depois, sendo abordado pelo agente principal BB.
a.32) De imediato, o arguido, com uma faca desferiu um golpe que atingiu aquele na coxa direita, na zona da virilha, e voltou a fugir para o 1º andar da casa.
a.33) Aí, o arguido gritou para a EE e a FF, que continuavam fechadas dentro do quarto, dizendo que se queria despedir, porque já tinha “mandado um” e que agora a polícia o ia matar.
a.34) A detenção do arguido apenas foi possível com intervenção de uma Equipa de intervenção Rápida da PSP.
a.35) A faca com a qual o arguido desferiu o golpe no corpo de BB tem as seguintes características:
- é uma faca própria para utilização nas actividades domésticas,
- é da marca JRD,
- tem o comprimento total de 32,4 centímetros,
- é composta por cabo em material sintético amarelo e branco e
- tem lâmina metálica com superfície cortante e perfurante, com 19,8 centímetros de comprimento com ricasso e gume cortante em 18,8 cm na parte inferior.
a.36) Em consequência da conduta do arguido, o Agente principal BB sofreu ferimentos na perna atingida, abundantemente sangrante, tendo sido transportado no carro patrulha para o Hospital ..., em ..., local onde deu entrada pelas 23h38 do dia 31 de Março de 2023.
a.37) À chegada ao Hospital, o agente principal BB apresentava trauma perfurante por arma branca na região inguinal direita, e ferida inguinal direita com hemorragia activa.
a.38) O agente principal BB foi encaminhado para o Hospital de Coimbra, local onde deu entrada no dia 1 de Abril de 2023, pelas 4h36 tendo sido sujeito a sutura da pele em ferida com cerca de 2 centímetros, e regressado ao domicílio no dia 3 de Abril de 2023.
a.39) No dia 18 de Abril de 2023, BB deu entrada no serviço de urgência do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra por quadro de tromboembolia pulmonar periférica com enfarte pulmonar associado com etiologia em lesão da veia grande safena direita por arma branca, permanecendo internado até ao dia 27 de Abril de 2023.
a.40) Em virtude da actuação do arguido, o agente principal BB sofreu dor e mau estar físico, bem como:
- perda de substancia cutânea e subcutânea na região inguinal direita, com aerocelos em topografia intermuscular na vertente interna do terço superior da coxa;
- no membro inferior direito: cicatriz nacarada, linear, infero-medial, na região inguinal, com 2 cm de comprimento, adjacente e inferiormente à qual apresenta duas cicatrizes nacaradas, a maior e mais lateral medindo 0,3 cm de comprimento;
- amiotrofia da coxa de 2 cm; sinal de Gaveta com ligeira aparente laxidez.
a.41) Desde a data da prática dos factos, e em virtude da sua ocorrência, que BB manifesta: dificuldade em subir escadas, gonalgia direita, mais acentuada na face anterior do joelho lateral e postero-medial do joelho; queixas álgicas na região inguinal, com irradiação para a região inguinal homolateral, amitrofia da coxa direita de 1 cm comparativamente com o membro contralateral; aumento do perímetro da perna direta de 1 cm relativamente ao membro contralateral; dor à palpação da interlinha articular do joelho direito, mais acentuada a nível medial; acentuada crepitação durante a mobilização; dor nos últimos graus de flexão.
a.42) BB é, desde o dia 31.03.2023, seguido em consultas de medicina interna, de cirurgia geral e de hematologia no CHUC, de ortopedia no Centro Cirúrgico de Coimbra e de fisiatria e fisioterapia no Hospital da Luz em Coimbra.
a.43) À data da observação médica – 22.09.2023 – as queixas álgicas ao nível da região inguinal, coxa e joelho direitos que BB apresentava conferem limitação funcional do membro inferior direito.
a.44) Desde o dia 31.03.2023 até ao dia 22.09.2023, as lesões supra descritas determinaram um período de doença fixável em 175 dias, todos com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.
a.45) A este período acresce o período necessário remanescente para a estabilização e consolidação do quadro clínico, que não foi atingida, até data não concretamente apurada de Março / Abril de 2024.
a.46) De tais lesões, com potencial de letalidade, apenas não resultou perigo concreto para a vida do agente principal BB devido à pronta assistência médica de que beneficiou.
a.47) O arguido agiu da forma descrita, munindo-se da faca que usou, atingindo o agente principal BB na região inguinal direita, local onde está alojada a artéria femoral, que é a principal fonte de irrigação sanguínea dos músculos extensores, flexores e adutores da coxa e que direciona ao coração todo o sangue que sai da perna sendo que se o sangue não for estancado, a morte pode ocorrer em 20 minutos.
a.48) O arguido sabia que a sua conduta, o instrumento usado e a zona atingida e que pudesse atingir eram adequados a produzir a morte do agente principal BB, cuja qualidade de polícia conhecia, sabendo que o mesmo se encontrava em exercício de funções.
a.49) Não obstante, procurou atingir e atingiu o agente BB, com intenção de lhe tirar a vida, vontade que lhe manifestou diretamente antes de desferir o golpe, ciente da letalidade da zona qua atingia e querendo atingir especificamente essa área, para assim conseguir a morte daquele, o que apenas não logrou por motivos alheios à sua vontade, dada a pronta assistência médica a BB.
a.50) O arguido utilizou a faca, surpreendendo BB, assim dificultando a sua defesa, como bem sabia e queria.
a.51) Em virtude da conduta do arguido, FF sofreu dor e mau estar físico, vergonha e humilhação.
a.52) Em virtude da conduta do arguido, EE sofreu dor e mau estar físico, vergonha e humilhação e, no membro inferior distal esquerdo, uma equimose com 2 cm por 3 cm na face anterior do terço distal da perna, que foi causa directa e necessária de oito dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho profissional e geral.
a.53) O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas.
a.54) E bem sabendo que a FF é sua companheira e que EE é sua filha.
Mais se provou:
a.55) No circunstancialismo de tempo supra descrito, BB exercia as funções de Agente principal ...15, por conta do Estado Português – Ministério da Administração Interna – Polícia de Segurança Pública.
a.56) Em consequência da actuação do arguido, o agente BB sangrou abundantemente e foi transportado de urgência, imediatamente após a ocorrência dos factos, para o Centro Hospitalar ..., em viatura policial adstrita à esquadra da PSP ..., em consequência do que o interior daquele veículo ficou manchado de sangue.
a.57) O que determinou a necessidade de proceder à sua limpeza e desinfeção, em consequência do que o Estado Português (Ministério da Administração Interna – Polícia de Segurança Pública) despendeu a quantia de 43,05 euros a título de custo de “lavagem de estofos” do veículo.
a.58) Os cuidados médicos e hospitalares prestados pelo demandante Centro Hospitalar de ..., EPE, ao BB em consequência das lesões físicas causadas pela conduta do arguido tiveram o custo de € 486,16.
Mais se provou, ainda:
a.59) Em consequência da conduta do arguido, e das lesões físicas daí decorrentes, o BB teve medo que das mesmas adviesse a sua morte, sentiu dores, angústia, tristeza e ansiedade, e viu-se ofendido na sua integridade física e na sua saúde,
a.60) No dia 18 de Abril de 2023, na sequência de dores intensas e grande dificuldade em respirar, o BB é levado pela esposa ao Centro de Saúde, onde, na presença dos seus dois filhos menores, ao ser examinado pelo médico, e perante o agravamento do seu estado de saúde, é accionada de imediato uma ambulância para fazer o transporte do mesmo ao serviço de urgência do CHUC, por quadro de tromboflebite periférica com enfarte pulmonar associado com etiologia em lesão da veia grande safena direita por arma branca.
a.61) Após a alta hospitalar em 27/04/2023, o BB regressou a casa, onde permaneceu deitado, por indicação médica, durante mais 3 semanas.
a.62) Nesse período, o BB necessitou de ajuda da esposa para a satisfação de todas as suas necessidades básicas fisiológicas, alimentares e de higiene pessoal.
a.63) Em consequência da conduta do arguido, e das lesões físicas e sequelas daí resultantes, o BB esteve em situação de baixa médica desde então até data não concretamente apurada de Março / Abril de 2024, encontrando-se ainda por avaliar e definir as concretas sequelas que apresenta após a estabilização e consolidação do seu estado clínico.
a.64) Antes da ocorrência dos factos BB era uma pessoa saudável, alegre, extrovertida, bem disposta, que gostava de sair e frequentar eventos sociais e festas.
a.65) Em consequência da conduta do arguido, e das lesões físicas e sequelas daí resultantes, o BB passou a apresentar-se sério, apreensivo, cabisbaixo, triste, esmorecido, nervoso, revoltado e indignado, e experienciou sentimento de impotência perante o risco de vida e o sofrimento causado pelo arguido, medo de frequentar locais muito movimentados ou populosos, e tristeza perante a impossibilidade de acompanhar os filhos e a esposa e de caminhar e passear com eles.
a.66) Em consequência da conduta do arguido, e das lesões físicas e sequelas daí resultantes, o BB é acometido por dores intensas no membro inferior direito, e cansa-se com dificuldade, continuando a apresentar dificuldades de respiração, tem medo de ser de novo atingido na sua integridade física, e sente receio em voltar ao trabalho, temendo a sua reacção ao deparar-se com outras situações perigosas em serviço, e revelando inquietude e intranquilidade.
a.67) Em consequência da conduta do arguido, e das lesões físicas e sequelas daí resultantes, em deslocações às Consultas de especialidades no HUC, a consultas de fisioterapia em Coimbra, e duas deslocações ao Gabinete Médico-Legal, o arguido percorreu em viatura própria um total de 1.700 kms.
Mais se provou, do teor do relatório social e do CRC actualizado do arguido:
a.68) À data dos factos em apreço nos autos o arguido residia em agregado familiar composto pela companheira, a filha comum e um sobrinho da companheira.
a.69) A companheira do arguido trabalha como operária fabril, e aufere o Salário Mínimo Nacional. A filha do casal, de 17 anos de idade, está a estudar no 10º ano de escolaridade, o sobrinho trabalha como operário fabril, por temporadas, conforme é solicitado para tal.
a.70) O arguido é natural do Brasil e reside há cerca de 15 anos em Portugal. A companheira e a filha vieram juntar-se a este há cerca de 13 anos.
a.71) Até à sua prisão o arguido estava integrado no referido agregado familiar, e residia em casa própria, com boas condições de habitabilidade, adquirida através de empréstimo bancário, que se encontra a ser liquidado mensalmente, no montante de cerca de 500 €.
a.72) À data da prática dos factos o arguido trabalhava como serralheiro civil, com contrato de trabalho, e auferia um salário base de 1.150 €, ao qual acresciam os respetivos subsídios.
a.73) O arguido é reputado pelo ex-patrão como sendo um bom trabalhador, cumpridor e respeitador, sem qualquer registo de problemas a nível de excesso de consumo de álcool durante a jornada laboral, encontrando-se o ex-patrão disponível para reintegrar o arguido como trabalhador da sua firma, quando o mesmo for restituído à liberdade.
a.74) O arguido é o 9º de uma fratria de 11 filhos, de um casal de origem humilde e que desde sempre viveram na “roça”, onde possuíam parcas condições de sobrevivência, nomeadamente a nível habitacional e de subsistência. O pai era madeireiro e a mãe, doméstica, realizava trabalhos na agricultura para apoiar a subsistência do agregado familiar.
a.75) O arguido reprovou “muitas vezes” (sic) na escola, não sabendo quantificar quantas. Como residia na “roça”, as suas deslocações para escola estavam comprometidas pela dificuldade de transportes. Encontra-se habilitado com o 6º ano de escolaridade. Abandonou a escola com 14/15 anos de idade para ir ajudar a mãe no setor da agricultura, onde se manteve até aos 19 anos de idade.
a.76) Após o que se mudou para a cidade de Belo Horizonte, onde começou a trabalhar como aprendiz de soldador e, mais tarde, como serralheiro. Aos 25 anos de idade, através de um cunhado que aqui se encontrava, veio para Portugal, com o intuito de obter uma melhor qualidade de vida.
a.77) Em Portugal, trabalhou inicialmente na Figueira da Foz como madeireiro durante cerca de 1 ano. Como não possuía contrato de trabalho, nem beneficiava de seguro ou outras regalias, foi trabalhar para a zona de Pombal, para a área agrícola, numas estufas, onde permaneceu durante 4/6 meses, após o que foi trabalhar como operário fabril numa empresa de embalamento na zona de Cantanhede, onde permaneceu durante um ano. Abandonou aquela atividade para auferir um melhor salário na área da construção civil.
a.78) Posteriormente esteve a trabalhar numa fábrica de embalamento de carvão na zona de Fátima, regressando mais tarde ao Brasil para tentar fixar-se no seu país. Contudo, como a companheira e a filha não se readaptaram àquele contexto, regressaram a Portugal, tendo-se fixado na zona de ..., onde se mantém.
a.79) AA não assume que seja dependente ou que possua problemática a nível dos consumos de álcool, mas aceita ser avaliado e acompanhado clinicamente. A companheira revela que este é um bom marido e excelente pessoa desde que não ingira bebidas alcoólicas.
a.80) A relação do arguido com a filha é conflituosa.
a.81) Em contexto prisional, o arguido apresenta um comportamento consentâneo com as regras e normas institucionais. Tem executado tarefas de faxina e é considerado como sendo um recluso respeitador e cumpridor. É acompanhado nas consultas de Psicologia com frequência mensal, mas a sua adesão aos conteúdos abordados fica muito aquém do proposto.
a.82) Recebe visitas semanais da companheira/ofendida, mas ainda não recebeu a visita da filha. A companheira referiu estar disponível para apoiar e aceitar o arguido em casa, assumindo que esta seria uma forma de aliviá-la a nível financeiro, assim como das dívidas existentes, pois ficou com a responsabilidade de todas as despesas do casal, tendo como única fonte de rendimento o seu vencimento. A mesma beneficiou do apoio social de ajuda no pagamento do empréstimo da casa, apoio que já teve o seu termo, não beneficiando atualmente de qualquer ajuda/apoio, com exceção de amigos.
a.83) Do certificado de registo criminal do arguido nada consta».

            2.2. Deram-se como não provados os seguintes factos (transcrição):
«Para além dos que ficaram descritos, não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente não se provou que:
- A tromboembolia pulmonar periférica com enfarte pulmonar associado, sofrida pelo BB não tenha sido causa directa e necessária das lesões físicas e sequelas sofridas pelo mesmo em consequência do golpe com a faca desferido pelo arguido no corpo daquele;
- O arguido é uma pessoa de relações boas e fáceis no seu seio familiar, e tenha muito respeito pela autoridade policial, nunca desafiando as ordens ou solicitações policiais;
- O arguido é pessoa de trato humilde, respeitador, muito educado e muito paciente para a filha».

2.3. Motivou-se a matéria dada como provada da seguinte forma (transcrição, com sistematização e sublinhados nossos):
«Para a delimitação positiva e negativa do quadro factual “supra” traçado foi decisivo o conjunto da prova produzida, analisada individualmente, e ponderada no seu conjunto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, e balizada pelas regras da experiência comum e pelos limites legais de proibição de prova.
Assim, desde logo, para a descoberta da verdade material foram consideradas as declarações do arguido prestadas em audiência, nas quais o arguido, no geral, negou os factos que lhe são imputados,  ter atingido a sua esposa na cabeça com o arranca-pregos, quando a mesma se encontrava de costas para si, declarando que nunca teve intenção de agredir ou atingir fisicamente a companheira ou a filha de ambos, que não tentou entrar à força no quarto do LL, onde as mesmas se encontravam, que não sabia que os agentes da polícia se encontravam dentro da garagem da sua residência, e mais negou a intenção de atingir fisicamente os mesmos com as facas que empunhou e, por maioria de razão, mais negou intenção de matar o agente BB, referindo que apenas se muniu das facas porque pretendia suicidar-se (cortando os pulsos) na garagem da sua casa, e que não sabe de que modo o agente BB foi atingido, admitindo que o possa ter sido quando foi atingido pelo gás pimenta nos olhos, mas não explicitando como. Admitiu ter-se munido, num primeiro momento, de um ferro, mas negou ter manifestado verbalmente intenção de agredir com ele a companheira ou a filha. Nas suas declarações finais complementares, o arguido referiu que naquele dia havia ingerido cerveja, whisky e vinho, e que tinha as facas para usar nele próprio (se cortar nos pulsos), e que não chegou a enfrentar os polícias, que estes é que vieram na sua direcção, e lhe desferiram pancadas na cabeça com os cassetetes e o atingiram com o gás pimenta, mas que “não sei como é que fiz com a faca, não me lembro de mais nada” (sic).
Ora, a versão dos factos relatada pelo arguido carece de verosimilhança, e não mereceu credibilidade por parte deste Tribunal Colectivo, porquanto está em oposição com a generalidade da demais prova produzida em audiência, desde logo com o teor das declarações para memória futura prestadas pela menor EE, reproduzidas em sede de audiência de julgamento, e com os depoimentos das testemunhas de acusação GG ( sobrinho do arguido, que, segundo o relato da menor EE, fez um “mata-leão” ao arguido de modo a permitir que a companheira e filha deste fugissem do local onde se encontravam e se refugiassem no interior do quarto do LL, mantendo-se o GG do lado de fora da porta do quarto, a impedir o arguido de entrar, enquanto o LL empurrava a porta do lado interior do quarto, com o mesmo fito), e, em especial, de KK e JJ (os dois agentes da PSP que conjuntamente com o ofendido BB se deslocaram a tomar conta da ocorrência – sendo que o JJ já se havia deslocado anteriormente ao local por duas vezes, na sequência de denúncias por violência doméstica do arguido sobre a companheira -, os quais relataram de forma isenta e credível os factos, reforçando que quando chegaram ao local a ofendida, que se encontrava a uma janela do 1º andar, lhes abriu o portão da garagem e lhes deu autorização para entrarem, dizendo que o arguido a estaria a ameaçar com um ferro; e que, no interior da garagem, os agentes gritaram por diversas vezes a identificar-se como “polícia, polícia”, tendo nessa sequência o arguido retorquido que o primeiro que entrasse em casa era o primeiro a “cair”; e mais tendo descido à garagem empunhando duas facas, com uma das quais desferiu um golpe na virilha do BB, após o que fugiu para o 1º andar da residência, tendo o KK levado de imediato o BB, que sangrava abundantemente e, perceptivelmente, corria risco de vida por esgotamento, para o hospital ... no carro patrulha, enquanto o agente LL permaneceu junto ao arguido, a aguardar a chegada de reforços que procederam à detenção do arguido), e, bem assim, com o depoimento de LL (sobrinho da assistente FF, e padrinho da menor EE, no quarto de quem estas se refugiaram em fuga do arguido, tendo o depoente emprestado o seu telemóvel à primeira a fim de a mesma chamar a polícia, enquanto o depoente se mantinha a empurrar a porta do quarto, de modo a evitar que o arguido nele entrasse), em especial na parte em que, confrontado com o depoimento prestado pelo mesmo perante Magistrada do MºPº em sede de inquérito a fls. 460-462, o qual foi lido em audiência, ao abrigo do artº 356º do CPP, confirmou o seu teor; sendo que todas as supra indicadas testemunhas tinham conhecimento directo e pessoal acerca dos factos sobre os quais depuseram e efectuaram, no essencial, relatos claros e credíveis, que, concatenados entre si, e a demais prova documental e pericial produzida, mereceram credibilidade por parte deste Tribunal Colectivo.
Diversamente, as declarações prestadas em sede de audiência pela assistente FF não mereceram credibilidade por parte deste Tribunal Colectivo, porquanto se afastaram clara e deliberadamente da verdade, assumiram contornos tendenciosos e parciais, apostadas em aligeirar a gravidade das responsabilidades do arguido, negando que o arguido a tivesse ameaçado com mal futuro, ou a tivesse atingido na sua integridade físicas, apenas admitindo que foi ela quem abriu o portão da garagem a fim de os agentes da polícia entrarem em casa; mas falhando uma explicação credível, a ser assim, do motivo porque a mesma havia ( mais uma vez) chamado a PSP à sua residência, e se havia mantido “barricada” no quarto do seu sobrinho LL, não obstante este e o GG ( dois homens adultos e possantes, de família, e a quem o arguido, supostamente, escutaria e acataria ) se encontrassem em casa.
Pelo contrário, as declarações do assistente e demandante BB, não obstante as limitações decorrentes da falta de memória resultante das circunstâncias traumáticas em que ocorreram os factos, afiguraram-se a este Tribunal Colectivo credíveis e verosímeis, e mereceram credibilidade, em especial no que respeita às consequências dos factos praticados pelo arguido, e a gravidade das lesões físicas e limitações físicas e de gestão quotidiana para o ofendido daí resultantes, tudo concatenado com o resultado da prova pericial , prova documental, e os depoimentos das diversas testemunhas arroladas no pedido cível, em especial da testemunha MM (esposa do assistente BB, que prestou apoio ao mesmo no período de doença e relatou as limitações, danos físicos e psíquicos e emocionais pelo mesmo sofridos em consequência do arguido, tendo o seu depoimento merecido inteira credibilidade, não obstante a relação familiar próxima com aquele).
Os depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa, II e NN (vizinhos do arguido, que viram a FF na janela, a qual chegou a pedir ao NN ajuda, para o mesmo “acalmar o arguido, que estaria muito nervoso” (sic), ao que o depoente não acedeu, e viram o agente da PSP sair da residência daquele ferido e, posteriormente, o arguido ser levado para o carro da PSP), OO, PP, QQ (respectivamente, o antigo patrão do arguido, um conhecido deste, e o irmão da ofendida FF), foram relevados em sede abonatória, dado que, em rigor, os mesmos não tinham conhecimento directo acerca dos factos descritos na acusação imputados ao arguido.
No que concerne aos depoimentos das duas testemunhas agentes da PSP arroladas pela defesa ao abrigo do disposto no artº 358º nº 1 “in fine” do Cod. Proc. Penal, a saber:
- CC: já anteriormente aos factos se tinha deslocado a uma ocorrência de violência doméstica à residência do arguido e da FF, mas na noite dos factos não se deslocou lá, pelo que não tem qualquer conhecimento directo e pessoal dos factos, apenas se tendo deslocado, na manhã seguinte, ao Hospital, a fim de se inteirar do estado de saúde do seu colega BB, tendo sido na sequência dessa deslocação que elaborou o aditamento nº 2, constante de fls. 104 (no qual, relativamente à descrição dos factos que terão ocorrido, se reporta a testemunhos de ouvir dizer” a diversos outros colegas, pelo que, nessa medida, por não se tratar de conhecimento directo, tal relato não merece credibilidade nem é susceptível de constituir meio de prova válido);
- RR: deslocou-se à residência do arguido naquela noite, já após as 24 horas, e após o mesmo ter sido detido, tendo elaborado a reportagem fotográfica de fls. 177-191 dos autos, tendo-se limitado a tirar fotografias ao espaço e objecto nos termos e locais em que os encontrou, não sabendo dizer e desconhecendo quem terá posicionado as facas e cabo de faca, e lâmina de faca (sem cabo) nos locais e posições em que as fotografou.
Como resulta evidente da sinopse de tais depoimentos, a inquirição destas duas identificadas testemunhas não carreou para os autos prova infirmatória da demais prova anteriormente já carreada para os autos, e produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
Com efeito, para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa assumiram particular relevância, pelas razões supra referidas, as declarações para memória futura da ..., concatenadas com os depoimentos das testemunhas Agentes SS e JJ, GG e LL,  em particular, quanto à dinâmica dos factos, o golpe com a faca desferido na zona do virilha do ofendido, à zona do corpo atingida (que tem veias e artérias importantes – designadamente a artéria femural, cuja lesão/secção pode causar a morte da vítima em poucos minutos, sem possibilidade de efectivo socorro hospitalar), e lesões físicas provocadas, estas corroboradas pelos relatórios da perícia de avaliação de dano corporal em direito penal, constantes de fls. 149-150, 488-491 e 651-654 dos autos.
Com efeito, considerando a potencialidade lesiva da acção do arguido, que previamente ao golpe desferido, anunciou que “quem entrar vai abaixo” (portanto, anunciou a intenção de matar), atenta a zona do corpo atingida (virilha, próxima da artéria femural, que não foi atingida, e da veia safena, esta sim atingida e lesada in casu), as características do instrumento utilizado pelo arguido (uma faca de cozinha, com uma extremidade aguçada, com claras características contundentes e perfurantes), o “elemento surpresa” inerente à sua acção, com a correspondente dificuldade de defesa, a versão dos factos apresentada pelo arguido, de que não pretendia atingir fisicamente o ofendido, nem tirar-lhe a vida, não mereceu credibilidade por parte deste Tribunal Colectivo.
No que se reporta ao agravamento/recidiva sofrido pelo assistente BB no dia 18/04/2023 (portanto, 17 dias após a agressão física perpetrada pelo arguido), contrariamente ao sustentado pela defesa, que carece de qualquer suporte fáctico, não se verificou qualquer interrupção do nexo causal.
Ao invés, da prova pericial junta aos autos, supra identificada (relatórios da perícia de avaliação de dano corporal em direito penal), resulta inequívoca a manutenção do nexo causal entre a tromboembolia pulmonar e trombose pulmonar sofridos pelos arguido no dia 18/04/2023 e a lesão da veia safena decorrente do golpe com a faca desferido pelo arguido na virilha do ofendido no dia 01/04/2023, da qual resultou abundante perda hemática, e consequente acumulação do sangue derramado nos pulmões do ofendido, com o consequente “encortiçamento” do pulmão, e subsequente tromboembolia e enfarte pulmonar, o que quase causou a morte por sufocamento do ofendido (não fosse a sua pronta assistência hospitalar) e causa ainda à presente data sequelas permanentes de falta de ar e insuficiência respiratória.
Para a formação da sua convicção quanto à matéria de facto o Tribunal Colectivo teve ainda em consideração o teor dos relatórios de exame pericial de fls. 323-324 e 656-658 dos autos.
Em sede de prova documental, foi considerado o resultado da análise crítica dos diversos documentos juntos aos autos, designadamente o auto de notícia por detenção de fls. 42, auto de apreensão de fls. 53, reportagem fotográfica de fls. 76-78, elementos clínicos de fls. 155 a 159 e 215 a 217; 221 a 227; 535 a 538, 562 a 570, o relatório de inspeção judiciária de fls. 174 e 175, os fotogramas de fls. 177 a 191, o assento de nascimento de EE a fls. 315, auto de exame directo de fls. 344 a 346, auto de exame directo de fls. 347 e 348, documento comprovativo do pagamento da despesa e quantia suportada e paga pelo Estado Português – Ministério da Administração Interna – Polícia de Segurança Pública – de fls. 152 e 153 ( e 719); documentação vária hospitalar de fls. 770-790 , certidão de dívida hospitalar de fls. 793, informação do INML de fls. 796, e, bem assim, o teor do relatório social e o teor do CRC actualizado do arguido, juntos aos autos na fase de julgamento.
Tudo meios de prova que, ponderados em conjunto, e analisados criticamente, permitiram a este Tribunal Colectivo formular o juízo global da factualidade supra descrito.
Com efeito, se é certo que o dolo, pela sua própria natureza subjectiva, é um fenómeno da vida interior do indivíduo e, por isso, insusceptível de apreensão directa, só sendo possível captar a sua existência pela confissão ou através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir; no caso concreto em apreço, atentas as circunstâncias de facto, designadamente a zona do corpo visada (zona da virilha, que contém artéria vital), a perigosidade do instrumento utilizado (faca de cozinha, com inerentes características contundentes e perfurantes), e a imprevisibilidade da conduta do arguido, consideram os juízes que integram este Tribunal Colectivo que a prova produzida em audiência, nos termos, com os esclarecimentos e precisão com que o foi, supra descritos, e, por reporte às regras da experiência, e às circunstâncias verificadas em concreto aquando da ocorrência dos factos, supra descriminadas e escalpelizadas, foi segura, no sentido de o arguido ter previsto e querido que da sua conduta pudessem resultar lesões físicas de gravidade tal que delas sobreviria de forma necessária e causal directa a morte do assistente BB, o que só não aconteceu porque esta foi prontamente socorrido e levado em emergência pelo seu colega ao Hospital, permitindo a este Tribunal Colectivo concluir com segurança, e “para além de qualquer dúvida razoável”, pela formulação de um juízo positivo acerca da intenção de matar por parte do arguido , nos termos em que o foi  – a título de dolo directo - , o que apenas pode conduzir, de acordo com as regras da experiência e o princípio da livre apreciação da prova, à cristalização factual nos termos em que “supra” foi julgada provada.
Quanto aos factos não provados:
Os factos julgados não provados resultaram da circunstância de da discussão da causa não se ter produzido prova bastante e directa acerca dos mesmos; e, ao invés, quanto à alegada interrupção do nexo causal, de da discussão da causa se terem provado os factos contrários, opostos e incompatíveis, como é manifesto da prova pericial produzida nos autos».




                                                           *




            3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

            3.1. RECURSO Nº 1

            3.1.1. Depois de notificada pelo tribunal do despacho exarado na acta de julgamento de 28 de Maio de 2024 (comunicação de alteração não substancial de factos), a defesa veio requerer prova nos seguintes termos:
1) A sua audição para melhor e mais completa explicação dos indícios impulsionadores desta alteração;
2) A inquirição da testemunha CC, agente da polícia, com o número ...92, e domicílio profissional na esquadra da PSP ...;
3) A inquirição da testemunha DD, agente principal da PJ com o n.º ...52, e domicílio profissional na sede da PJ de ...
4) A acareação dos dois agentes da polícia (JJ e KK) com a testemunha GG (já identificado nos autos) e os vizinhos do arguido: II e NN (também já identificados nos autos).
5) A inquirição da testemunha EE, menor de 17 anos, com domicílio na Rua ..., ... ...».
O Colectivo, em decisão colegial, decidiu deferir ao requerido em 1, 2 e 3, indeferindo as diligências nºs 4 e 5.
Assim o fez:
· “Indeferem-se as requeridas acareações entre as cinco indicadas testemunhas, todas já inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento, e por se considerar que tal diligência não se afigura útil à descoberta da verdade (artº 146º nº 1 parte final, “a contrario”, do CPP).
· Igualmente se indefere a (re)inquirição em audiência da menor ofendida EE, porquanto a mesma foi ouvida em declarações para memória futura, cuja gravação foi reproduzida em audiência, afigurando-se desnecessário à descoberta da verdade material a reinquirição presencial da mesma em audiência, que no fundo se reconduziria a uma dupla vitimização da mesma, frustrando desse modo os objectivos que o legislador pretendeu lograr com a inquirição por declarações para memória futura (artº 271º nº 8 parte final, “a contrario” do CPP)”.
A defesa recorre, entendendo que estamos perante uma nulidade relativa à luz do artigo 120º, nº 2, alínea d) do CPP.
Vejamos.
3.1.2. O indeferimento da diligência requerida sob o ponto 4. convoca-nos a figura da acareação[2] em julgamento, prevista no artigo 146º, do CPP.
Como bem aduz o MP de 1ª instância:
«O artigo 340.º do Código de Processo Penal, que regula os princípios gerais de produção e admissão de prova em julgamento, é efectivamente um direito constitucionalmente consagrado, porquanto é uma das componentes do direito de acesso ao tribunal, de intervenção do ofendido no processo penal e das garantias de defesa (cfr. artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.os 1 e 7, da Constituição da República Portuguesa).
Todavia, o citado artigo 340.º não tem por finalidade permitir aos sujeitos processuais produzir novas provas, não arroladas no momento oportuno ou para suprir a inconcludência das que o tenham sido (vide, neste sentido, entre outros, os ainda actuais arestos da Relação de Coimbra, de 16-11-2005, ou da Relação de Lisboa, de 15-09-2011, acessíveis in www.dgsi.pt).
Daí que, muito embora o Ministério Público, o assistente, o arguido e as partes civis possam requerer a produção de meios de prova durante a audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, nos termos do artigo 340.º, n.os 1 e 2, devem fazê-lo excepcionalmente.
Não obstante, é pacífico que o tribunal pode ordenar a produção de prova requerida por qualquer sujeito processual, mesmo que não seja alegada e provada a impossibilidade de a requerer no momento processual próprio, quando o seu conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. De resto – sem prejuízo de, no caso de não ter sido alegada e provada aquela impossibilidade, o requerimento de prova constituir um incidente anómalo tributável – o Tribunal Constitucional tem posto a tónica no carácter oficioso da investigação probatória (cfr. acórdão do T.C. n.º 137/2002).
Parafraseando o citado aresto da Relação de Coimbra, significa isto que o preceito normativo em análise visa essencialmente permitir ao tribunal, quando emerge da discussão da causa, a existência de provas relevantes para a decisão a tomar, que determine, oficiosamente ou a requerimento dos sujeitos processuais, a produção de tais provas que não puderam ser requeridas no momento oportuno mas agora se revelem necessárias e adequadas para permitir, de forma relevante, um criterioso esclarecimento do caso ou do “recorte de vida” submetido à sua apreciação.
Neste sentido aponta o próprio n.º 4 do artigo 340º do Código de Processo Penal, onde se estatui que os requerimentos de prova devem ainda ser indeferidos se for notório, além do mais, as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas (alínea b).
Acresce que “o juízo de necessidade ou desnecessidade de produção de prova cabe ao tribunal, ou seja, aos juízos que o compõem, ou seja, ao juiz, aos juízos ou aos juízes de jurados, consoante o tribunal que julga a causa” (vide a anotação ao artigo 340.º, por Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal comentado, 2014, Almedina Editora, p. 1090)».
Aqui chegados, diremos que a acareação tem pressupostos definidos na lei.
O Título II do Livro III do CPP, que tem como epígrafe «Dos meios de prova», nos seus sete capítulos, trata sucessivamente: da prova testemunhal; das declarações do arguido, do assistente e das partes civis; da prova por acareação; da prova por reconhecimento; da reconstituição do facto; da prova pericial e da prova documental.
Dispõe o n.º 1 do artigo 146.º do C.P. Penal:
«É admissível acareação entre co-arguidos, entre o arguido e o assistente, entre testemunhas ou entre estas, o arguido e o assistente, sempre que houver contradição entre as suas declarações e a diligência se afigurar útil à descoberta da verdade».
Em face de tal normativo, conclui-se que a acareação é um meio de prova admissível que depende de duas condições:
1- Haver contradição entre as declarações;
2- A diligência afigurar-se útil à descoberta da verdade.
Este meio de prova é subsidiário dos meios de prova declaratórios e o seu valor probatório é de apreciação livre pelo tribunal.
Como refere Marques Ferreira, «Raramente se extraem resultados directos da acareação quanto à indagação da verdade relevando esta mais pelas indicações que pode fornecer no âmbito da razão de ciência dos acareados e da forma mais ou menos desapaixonada com que depõem e pela importância que, futuramente, poderá revestir na fundamentação da convicção do tribunal» (“Meios de Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 251).
Germano Marques da Silva realça que a acareação tem por finalidade o esclarecimento de depoimentos divergentes sobre o mesmo facto.
Com efeito, a divergência de depoimentos pode resultar de naturais divergências na apreensão das sensações, retenção na memória e sua transmissão pelo depoimento. Sendo as divergências, muitas vezes, tão-só aparentes, resultando de omissões involuntárias ou de deficiências de expressão nos depoimentos, a acareação poderá, eventualmente, permitir o seu esclarecimento (cfr. a este propósito, o referido autor, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 4.ª edição, pp. 209 a 211).
Não bastando, para que se lance mão a este meio de prova subsidiário, a mera verificação da existência de contradições entre declarações ou depoimentos, o juízo sobre a utilidade desta diligência probatória compete ao julgador.
No caso concreto, o requerimento indeferido refere que está convencido de que os factos não se passaram como foram descritos pelos dois agentes policiais, JJ e KK (no que tange à factualidade referente à abordagem da polícia até à detenção do arguido, aos ferimentos e aos crimes de violência doméstica contra a FF e a EE, e, por isso, requeria a acareação, sem muito mais especificar.
Para a defesa:
· não houve intenção do arguido em ferir ou matar o guarda BB,
· foi só o álcool a guiar o seu comportamento naquele dia,
· não há prova do nexo causa-efeito entre as lesões do BB e algum acto do arguido,
· não há prova de que ele tenha agido livre voluntaria e conscientemente,
· não praticou o arguido violência sobre a FF e a EE.
E, para tal provar, requer a acareação entre os dois guardas JJ  e KK e as testemunhas GG, HH e II, mas não especifica devidamente que contradições existem nos depoimentos dos primeiros, eventualmente em confronto com as declarações das outras três testemunhas.
Afigura-se-nos, pois, que ao tribunal de 1ª instância, a quem incumbe apreciar e valorar a prova no quadro do princípio da livre apreciação, cabia ajuizar sobre a relevância da realização das acareações em causa, em ordem à descoberta da verdade, de acordo com um juízo de utilidade, o que não envolve qualquer preterição dos direitos de defesa, ao contrário do que é invocado pelo recorrente.
Aliás, o recorrente parece partir do pressuposto, equivocado, de que a existência de contradição entre depoimentos determina, obrigatória e necessariamente, a realização de acareação, olvidando a necessidade da mediação de um juízo sobre a utilidade dessa diligência probatória.
Quanto á utilidade da diligência, diremos que, em situações como a dos autos, em que se contrapõem versões totalmente opostas e inconciliáveis, não se visando, por conseguinte, esclarecer possíveis divergências aparentes, normalmente os acareados mantêm a sua versão dos factos, revestindo-se a acareação de muito escassa utilidade.
Como bem assinala o MP:
«Com efeito, todas as testemunhas mencionadas no requerimento apresentado pelo arguido já haviam sido ampla e detalhadamente inquiridas, quanto ao objecto do processo, e sujeitas ao contraditório pleno, por todos os intervenientes processuais.
Ademais, atentas as características de tais depoimentos e o procedimento deste meio de prova, tudo aponta no sentido de que nenhuma das testemunhas a acarear iriam alterar os depoimentos anteriores.
Donde, era notoriamente inútil este meio de prova.
Em remate, sublinhe-se ainda a jurisprudência constitucional tem apontado no sentido de que não viola o princípio das garantias de defesa a circunstância de a lei processual penal outorgar ao juiz, no exercício de um poder de direcção e controlo do processo, a faculdade de rejeitar diligências probatórias requeridas pelo arguido, mas tidas por manifestamente inúteis, irrelevantes, inadequadas ou dilatórias (cfr. acórdão n.º 171/05 do Tribunal Constitucional, publicado no DR, II, de 6-05-05)».
Como bem assinala o assistente BB:
«(…) nenhum dos pontos invocados pelo Arguido é, atendendo à matéria que se apresenta por manifestamente verosímil das declarações das testemunhas (os depoimentos de KK, JJ, BB, a confirmação das declarações prestadas por LL e por este confirmadas em sede de audiência e julgamento e, por fim, as declarações para memória futura prestadas pela própria filha do Arguido, enquanto menor) efetivamente matéria controvertida que careça de qualquer acareação, na medida em que os factos efetivamente substanciais aos autos e à descoberta da verdade material se encontram suficientemente provados sem demais contradições que se apresentem de tal modo patentes ou, melhor dizendo, imprescindíveis em ponto tal que a não realização de acareação implique, ou potencie, uma concreta omissão de diligências tidas por úteis à descoberta da verdade».
Também nós, ainda que se admita a sindicabilidade desse juízo de utilidade, entendemos que, no caso vertente, não existem razões SUFICIENTES que impusessem a realização das pretendias acareações, não decorrendo do despacho recorrido, como consequência, qualquer preterição dos direitos de defesa do recorrente.

3.1.3. E que dizer do indeferimento da reinquirição da jovem EE, já previamente ouvida em sede de declarações para memória futura?
É verdade que a EE, na altura com 16 anos, foi ouvida em declarações para memória futura em 15/5/2023 (fls 257-259), à luz do artigo 33º da Lei nº 112/2009, de 16/9, conjugado com o artigo 14º desse diploma, levando-se ainda em conta os artigos 67º-A, nºs 1, alínea b) e 3 e 1º, alínea j) do CPP, bem como o 20º da Lei nº 130/15, de 4/9.
Também o é que tais declarações foram ouvidas em julgamento no dia 14/5/2024.
A previsão legal geral destas «declarações» encontra assento do artigo 271º do CPP mas tem concretização singularizada no artigo 33º do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e à assistência das suas vítimas, e no artigo 24º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro.
O n.º 2 do artigo 271º, sempre que haja vítimas menores de idade, obriga mesmo que haja sempre esta diligência de prova antecipada.
Desejável seria que a vítima, depois de ser ouvida nesta sede, não tivesse de ser de novo «incomodada» com uma nova inquirição mais tarde, em inquérito, instrução ou julgamento, sob pena de ser o sistema judiciário a provocar-lhe dano acrescido pois todos sabemos como cruel é obrigar uma criança a repetir, vezes sem conta, o que de mal lhe aconteceu no corpo e na alma.
Contudo, a realidade desmente esse desejo.
Como bem escreveu Ana Teresa Leal, no Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, 2020:
«No particular aspeto da repetição da audição da vítima em julgamento, depois de a mesma ter prestado declarações para memória futura, por norma deve ser evitada, já que esta é a melhor forma de a proteger de um sofrimento desnecessário, resultante de um novo relato que implica o reviver situações traumáticas.
De notar que, segundo o art.º 24º, nº 6, do EV, prestadas que tenham sido declarações para memória futura, tão só nas situações em que tal seja indispensável à descoberta da verdade, deve ser repetido o depoimento em audiência de julgamento. Esta norma apresenta-se muito mais restritiva no leque de possibilidades de tal acontecer, por comparação com o que dispõem os arts. 271º, nº 8, do CPP e 33º, nº 7, do RJPVVD, onde a possibilidade de repetição da audição na audiência de julgamento acontece sempre que tal seja possível e desde que não coloque em causa a saúde física ou psíquica de que deva prestar o depoimento.
Esta diferença de terminologia parece não ter sido completamente assimilada pelos magistrados, demostrando a prática judiciária que, as mais das vezes, as vítimas são chamadas a prestar depoimento na fase de julgamento, depois da prestação de declarações para memória futura, sem que se mostre verificada a atual exigência legal da sua indispensabilidade para a descoberta da verdade.
O termo “possibilidade” importa uma latitude de aplicação completamente diversa e muitíssimo mais lata da que decorre do termo “indispensabilidade”, pelo que não podem os tribunais continuar a atuar neste campo como se nada tivesse mudado».
Mas a verdade é que continuam muitas vezes a assim agir.
A EE, mesmo com 16 anos, em Fevereiro de 2024, já com 17 anos, não deixa de ser CRIANÇA para este efeito.
A repetição das declarações prestadas no contexto de julgamento apenas deve ser efectivada, caso se mostre absolutamente essencial ao apuramento da verdade.
Está em causa, de facto, o interesse da protecção de uma criança (e é-se criança, ao abrigo da Convenção sobre os Direitos da Criança, até aos 18 anos de idade) que, no caso em concreto, prevalece, sobre qualquer outro interesse.
O artigo 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, estabelece também que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal».
Dispõe o artigo 271º, n.º 8 do CPP que:
«A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar».
Diremos nós, sempre que ela for possível e absolutamente necessária.
Tem sido seguida esta orientação por parte do Ministério Público:
Nos casos de crimes nos quais seja ofendido menor de idade, tendo presente a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos actos de que foi alvo, deverá o Ministério Público, sempre que possível e salvo a existência de especiais e ponderosas razões que o desaconselhem, providenciar pela tomada de declarações para memória futura ao ofendido, nos termos prevenidos no artigo 271º do CPP, assegurando também que, tendo presente o estatuído na parte final do seu nº 3, no decurso dessa diligência, esteja obrigatoriamente presente defensor do arguido constituído ou a constituir, assim se assegurando o princípio do contraditório que vigora em processo penal.
Também se sabe que, por exigência do princípio do contraditório, as provas devem, em princípio, ser produzidas perante o arguido, em audiência pública.
Este princípio, porém, comporta excepções, pois verificada a impossibilidade de reiterar as declarações prestadas no inquérito ou na instrução, seja por ausência ou morte do declarante, seja por circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa, podem essas declarações ser valoradas na audiência de julgamento.
É que o princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo ou em cross-examination.
Por isso, se tem decidido que o modo de prestar declarações por memória futura respeita no essencial o princípio do contraditório.
Veja-se até que, de acordo com o artº 271º do CPP, na redacção conferida pela Lei nº 48/2007, de 29/8, as declarações para memória futura de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual em inquérito constituem acto obrigatório e a documentar através de registo áudio ou audiovisual, valendo como prova de julgamento independentemente da criança vir a ser novamente ouvida durante a audiência.
E note-se até que, segundo jurisprudência superiormente firmada, com força obrigatória (cfr. Ac. STJ n.º 8/2017, de 21/11): «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código».
O que se diz sobre os crimes  sexuais, deve reiterar-se quanto a vítimas de violência doméstica.
No nosso caso, o Colectivo não viu necessidade de repetir a audição da jovem e decidiu na sua motivação de facto em sede sentencial o valor probatório que atribuiu àquele depoimento.
Na nossa situação, nas declarações da EE para memória futura, foram proporcionadas ao arguido todas as garantias de defesa (foi representado por defensora, tal como o seria em audiência de julgamento realizada na sua ausência, com os direitos estabelecidos no artigo 271º, nºs 3 e 5, do CPP, equivalentes àqueles previstos no artigo 349º do mesmo diploma).
Diremos ainda que os circunstancialimos fácticos que a defesa pretendia ver confirmadas pela requerida reinquirição – cfr. artigo 25º da sua motivação de recurso - poderiam e deveriam ter sido resolvidas na diligência de prestação de declarações para memória futura (onde são asseguradas as garantias de defesa, na interpretação adequada do artigo 32º, nº 2, da CRP), sendo nessa fase que poderia e deveria o arguido, com a amplitude legal conferida, formular as questões que apenas neste recurso acaba por colocar.
Temos como certo que  a prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima, em julgamento, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos essenciais.
Ora, não é para isso que o arguido quer ouvir de novo a EE.
Dá vontade de dizer que a quer ouvir até dela ouvir o que lhe agrada.
Na realidade, afigura-se-nos que o recorrente do que discorda é da convicção do Tribunal no que à valoração da prova concerne, designadamente no se reporta aos depoimentos prestados pela EE (em versão contrária à de sua própria mãe), tecendo a esse propósito considerações sem que as mesmas tenham qualquer fundamento, querendo apenas impor aquilo que seria a sua própria convicção sobre os factos[3].
A doutrina é peremptória – a possibilidade de prestar novamente depoimento na audiência de julgamento deve ser usada com alguma cautela, nomeadamente, quando estão em causa vítimas especialmente vulneráveis, como são as crianças.
A não ser assim, transforma-se em regra o que deve ser uma excepção, sob pena de se desvirtuar todo o sistema de protecção de uma vítima que é vulnerável por ser criança e que vai reviver o seu passado de horror de forma impune e desnecessária, e apenas por razões que se prendem com o mero jogo processual de «partes» interessadas em forçar o tribunal a inverter alguma ideia pré-concebida que tenha sido criada após as declarações iniciais e desejavelmente únicas daquela.
Deve antes sublinhar-se a razão de ser do depoimento para memória futura, concretamente a necessidade de proteger a integridade física e psíquica da vítima e sobretudo evitar revitimações, notando-se que vítima tem um direito de protecção (ao abrigo do n.º 4 do artigo 67º-A do CPP), devendo ser evitada a repetição de depoimentos pata prevenir a vitimação secundária (cfr. artigo 17º, n.º 2 do Estatuto da Vítima).
«Em síntese, para que a vítima preste depoimento em julgamento, quando anteriormente já prestou declarações para memória futura, nos termos da lei, impõe-se que esse novo depoimento seja necessário à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa (artigo 340º, n.º 1 do CPP), com o limite inultrapassável de não ser prejudicial à sua integridade física e psíquica» (Mouraz Lopes e Tiago Milheiro, obra já citada, p. 449).
Portanto, não só para evitar a sua dupla vitimização, mas também por evidente desnecessidade, atenta a clareza, coerência e credibilidade das declarações já colhidas, não vislumbramos que o tribunal recorrido tenha incorrido em qualquer nulidade relativa [artigo 120º, nº 1, alínea d) do CPP], acompanhando aqui integralmente o juízo vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 658/22.0T9LRS-A.L1-5, datado de 7/03/2023, ao referir que “A prestação antecipada de declarações pela menor, que tenderá a esquecer o que vivenciou, tendo em conta a sua tenra idade, e que continua a viver com a alegada agressora e, portanto, sob a sua influência, pode evitar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos que a mesma vivenciou, com a precisão e rigor necessários à investigação e, sobretudo, à descoberta da verdade material (…)”
No nosso caso, ainda mais perniciosa seria tal reinquirição, assente a posição assumida pela (estranhamente constituída como) assistente agora – FF (negando que tenha sido alguma vez agredida pelo arguido) -, convivente que é com a dita jovem EE, sua filha, podendo ter havido contaminação desse «novo estado de espírito” para uma criança que, em 15 de Maio de 2023, depôs de forma corajosa e clara, contando o que viu, convincente também para nós.
Só tem este Tribunal que validar a decisão colegial do Colectivo de Leiria em não permitir a 2ª audição – agora em julgamento - perante um juiz de uma jovem que, um ano antes, prestou as suas declarações para memória futura, confiando legitimamente que não mais seria «incomodada» pelo sistema judiciário que não pode contribuir para a vitimação secundária desta jovem.

3.1.4. Por estas razões, só pode improceder este RECURSO A, o que se declara.

3.2. RECURSO Nº 2
3.2.1. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

3.2.1.1. Vem o arguido impugnar a matéria de facto dada como provada sob os nºs a.5, a.6., a.7, a.12, a.15, a.16, a.20, a.23, a.24-a), a.30, a.31, a.32, a.33, a.34, a.48, a.49, a.50, a.51, a.52 e a.53.
O recorrente impugna tal MATÉRIA DE FACTO, tendo sido cumprido – mesmo que deficientemente quanto à formulação das conclusões - o determinado nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
Não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada – o depoimento da assistente FF e das testemunhas EE, GG, HH e II (as únicas[4] relativas às quais foi cumprido o ónus de impugnação especificada previsto no normativo acima identificado, com referências a partes concretas dos seus depoimentos)  - quanto ao RECURSO Nº 2.

3.2.1.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas:
· o  da impugnação ampla, se tiver sido suscitada (O NOSSO CASO);
· e dos vícios do nº 2 do art. 410º do C.P.Penal.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, nº 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.
Comecemos pela que primeiro[5] deve ser analisada pois a sua procedência pode levar ao reenvio do processo para a 1ª instância, ao abrigo do artigo 426º do CPP, se este tribunal não tiver condições para decidir a causa.

3.2.1.3. Na realidade, estabelece o artigo 410º, nº 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.
Este último, numa tese inicialmente defendida, permitiria uma maior amplitude do recurso, pela também possibilidade de análise da prova registada, mas uma tal solução poria em causa o princípio da imediação com que havia sido apreciada a prova na primeira instância, princípio cujo cumprimento seria de muito difícil alcance pelo tribunal de recurso.
Daí a solução intermédia, chamada de revista alargada.
Tal sindicância não deixa de ser, em bom rigor, uma actividade puramente jurídica, pois basear-se-á apenas no texto da decisão recorrida e não em qualquer prova que exista fora dele, seja ela documental ou outra.

3.2.1.4. Quais os vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do CPP?
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[6].
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[7].
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97).
O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[8].
Os conceitos podem confundir-se à primeira vista mas têm palco próprio e distinto entre si.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;
c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida (cfr. Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740) ou quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

3.2.1.5. Há no acórdão recorrido algum vício do artigo 410º/2 do CPP?
O recurso de forma algo imprópria confunde estes vícios com o erro de julgamento.
Apenas alude expressamente ao vício da alínea b).
Na verdade, haverá aqui um erro de redacção pois não estão aqui em causa «arranca-pregos» mas apenas um soco e pancadas com fios eléctricos (cfr. factos a.5 e a.16).
Esta “aparente incompatibilidade” entre a fundamentação e a decisão é facilmente ultrapassada através da leitura da própria decisão recorrida, sendo evidente que se trata de um mero e inóquo lapso de escrita (eventualmente potenciado pelo recurso a ferramentas informáticas de formatação de texto) que tem um nulo impacto na compreensão da decisão de facto, da sua fundamentação e do raciocínio do julgador para dar como “provados” ou “não provados” os factos vertidos no acórdão recorrido, não tendo qualquer virtualidade de consubstanciar o invocado vício decisório.
Os factos aqui em lapso não serviram propriamente para fundamentar a condenação do arguido, limitando-se apenas a enunciar quais os factos que este negara, não conduzindo a um efectivo erro de julgamento por parte do Tribunal nem constituindo qualquer motivação para a severidade da pena aplicada.
Na realidade, não configura tal discrepância qualquer contradição prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do CPP, mas um erro material a corrigir ao abrigo do artigo 380º, nº 1, alínea b) do mesmo diploma por este tribunal de recurso (nº 2 de tal preceito), o que ora se faz, substituindo a expressão «ter atingido a sua esposa na cabeça com o arranca-pregos», por «ter atingido a sua companheira com um soco na face ou com fios eléctricos no seu corpo».
Contudo, vislumbramos nós um vício da alínea b) do nº 2 (insuficiência para a decisão de condenação pelo crime de detenção de arma proibida da matéria de facto provada).
Denotamos que os seguintes factos da acusação não vieram a ser dados como provados:
«O arguido sabia que a faca que usou nos termos anteditos é própria para uso doméstico, transportando-ao para fora do seu lugar normal de utilização, sendo a posse injustificada da mesma naquele local».
Contudo, pode este tribunal suprir esta insuficiência, nos termos do artigo 426º, nº 1 do CPP, resultando evidente tal circunstancialismo que tem de se dar como notoriamente provado, face às regras da experiência de vida e ao facto de se saber que ele usou a faca longe da cozinha e em circunstancialismo não normalizado.
Deste modo, haverá que acrescentar como novo facto a.50-a) o seguinte:
«O arguido sabia que a faca que usou nos termos anteditos é própria para uso doméstico, transportando-a para fora do seu lugar normal de utilização», não se acrescentando a parte final usada na acusação por a rotularmos conclusiva e de Direito.
Inexiste qualquer outro vício dos previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP.

3.2.1.6. E haverá o alegado erro de julgamento quanto aos factos em causa?
Este erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 do CPP - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua o Juiz Desembargador Jorge Gonçalves nos seus acórdãos, quer em Coimbra, quer em Lisboa, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do STJ, de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412º, nº 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
           
3.2.1.7. Falemos de PROVA e de CONVICÇÃO.
O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
– os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
– A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
– Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
– A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
– Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto;
– De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária[9] ou indirecta;
– Como é evidente, e socorrendo-me das palavras sábias do STJ – [cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção], «tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos».
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência e, sobretudo, pela dimensão ética do acto de julgar.
Convém nesse jaez lembrar o que exemplarmente escreve Hermengarda do Valle-Frias, no artigo «A motivação ética da decisão judiciária - o (re)encontro entre o direito e a justiça», publicado na Revista do CEJ nº 2016-II:
«A motivação da decisão judicial, sobretudo fundamental no processo penal, firmada sobre os princípios da independência do juiz e livre convicção, constitui a legitimação do judiciário em sentido próprio – o juiz recebe os factos, analisa-os, valora-os de acordo com cada um dos instrumentos de que dispôs (meios de prova) e subsume-os ao direito.
Apreciação da prova e a valoração da prova, no entanto, não se equivalem.
A primeira, implica a actividade intelectual de escrutínio e validação dos pressupostos, conteúdos e resultado combinado dos meios de obtenção de prova; a segunda, implica a actividade intelectual de determinar o valor concreto de cada meio de prova, do conjunto da prova e das suas consequências em termos de convencerem, ou não, sobre a culpabilidade do arguido.
Num sistema de prova assente na livre convicção, a motivação constitui a persuasão racional do julgador no convencimento da culpabilidade, ou não, do arguido ou, quando da prova se extraia a necessidade de aplicar o princípio da presunção de inocência, a argumentação essencial à justificação dessa aplicação.
Para conseguir persuadir os destinatários da justeza da sua decisão, o juiz envolve-se num processo técnico de aplicação de conhecimentos jurídicos, não podendo descartar-se dos sentidos humano e social que resultam da sua própria formação pessoal, da forma como aceita os comportamentos humanos no contexto social em que se integra e na forma como se auto-impõe os limites decorrentes da sua própria condição profissional. Querendo com isto dizer-se que, em última instância, deve procurar superar-se a si mesmo para atingir a máxima perfeição de que é capaz enquanto decide, aí sim, não em seu nome, mas em nome da Sociedade e do bem social que constitui, em última instância, o limite dos seus próprios poderes decisórios.
Este, que não é um circuito fechado em rotação constante sobre si mesmo, tem de ser um percurso com uma dinâmica evolutiva.
O juiz é e deve ser um homem do seu tempo, atento aos humores sociais, culturais, políticos e económicos, porque é neste conjunto que se justifica o fundamento do acto decisório. Aplicando a lei ou criando a norma (com a devida ressalva do direito penal substantivo), o decisor está sempre vinculado ao compromisso ético inerente à sua função.
Decidir, nesta perspectiva, é determinar a forma de resolução de um litígio com vista a atingir a pacificação social, a reposição do tempo do homem no tempo social de que se destacou. Ao condenar no processo penal, a decisão restaura tendencialmente a ordem comportamental que é assegurada pela Lei em cada momento histórico, implicando isto entender a sanção como censura social, mas também como investimento no Futuro.
Por isso, a pena tem também um fundamento ético importante – vincular o infractor às responsabilidades inerentes à quebra dos laços afectivos com o todo social e, ao mesmo tempo, vincular a sociedade à responsabilidade de recuperação do infractor para que volte a integrar-se nela. Ou, melhor, para que não chegue a desintegrar-se dela.
Cabe ao juiz, pois, garantir o equilíbrio entre estes dois interesses. E esse desiderato, consegue-o através de uma motivação tecnicamente adequada, humanamente ponderada e culturalmente aceitável».

3.2.1.8. Vejamos, então, se houve ou não erro de julgamento nestes autos.
Invoca o recorrente que foi erroneamente dada como provada a factualidade constante dos pontos a.5, a.6. a.7, a.12, a.15, a.16, a.20, a.23, a.24-a), a.30 – haverá lapso na não transcrição no ponto 29 da motivação deste facto -, a.31, a.32, a.33, a.34, a.48, a.49, a.50, a.51, a.52 e a.53.
São estes os pontos com os quais o arguido não se conforma:
· Que alguma vez tenha querido ferir ou matar o assistente BB;
· Que tenha praticado os crimes de violência doméstica na pessoa da sua companheira, FF, e da sua filha EE;
· Que tenha usado a faca de cozinha como arma branca, com a intenção de ferir os polícias;
· Os actos praticados tenham sido praticados de forma livre e consciente.
Comecemos pelos crimes praticados contra a companheira FF (factos a.5, a.6, a.16, a.53[10] e a.54) e a filha EE (factos a.7, a.15, a.52, a.53 e a.54).
Baseou-se sobretudo o tribunal no depoimento sofrido da filha EE.
Ouvido o seu depoimento – conduzido exemplarmente pela Mª JIC - quanto a tal factualidade anterior ao dia 31.3.2024, temos que ela disse:
«Episódios destes já tinham acontecido, já tinha havido queixas, sempre por causa da bebida do pai; o pai diz que a mãe o traiu e que vai pagar por isso, diz que a vai matar e chama-a de «puta» e de «vagabunda»; já viu o pai agredir fisicamente a mãe, alguns meses antes da data em que prestou este depoimento, mas já no ano de 2023, a mãe e o pai estavam a discutir no quarto do casal, por causa da dita traição, e o pai atingiu a mãe, com o cabo de uma extensão eléctrica, num braço e ao fundo das costas, deixando-a marcada; esta insistência do pai na traição da mãe começou depois da última ida ao Brasil, ainda antes da pandemia; a depoente também tem sido agredida pelo pai com pancadas, a última delas, foi na noite do mesmo dia em que o pai bateu na mãe com a extensão eléctrica, quando, falava com o pai em defesa da mãe, ele lhe deu uma bofetada; várias vezes aconteceu em que, porque o pai se encontra alterado, a depoente e a mãe têm que sair de casa».
Não foram trazidos pelo recurso quaisquer novos factos (do extracto referido pela defesa no ponto 48 apenas se retira que o pai não atingiu a filha com o fio eléctrico) que infirmem a versão desta jovem que viveu, vezes demais, o terror em sua casa, provocado pelo próprio pai.
Como é que a defesa entende que esta agressão a.5 não pode ter acontecido?
Como é que a defesa pode concluir que a jovem nunca se disse agredida pelo pai com palmadas?
Basta-nos aqui, também a nós, o depoimento veemente da EE, mesmo que desacompanhado pelo da sua mãe, dizendo esta agora que nunca foi agredida pelo companheiro, quer verbal, quer fisicamente…
Comprovados ficam assim os factos a.5, a.6 e a.7.
Entremos agora na factualidade referente ao dia 31 de Março de 2023.
Temos dois momentos nesta factualidade – antes da entrada da PSP (factos a.8 a a. 21) e depois da sua chegada (factos a.22 em diante).
No que tange aos factos nºs 12, 15, 16, 20, 23, 24-a), 30, 31, 32, 33 e 34, baseou-se o tribunal nos depoimentos da EE e do assistente BB.
Ouvimos a EE de novo.
Disse ela:
«Chegou a casa com a mãe e o primo, e já lá estavam o pai e o padrinho; quando chegou a casa o pai estava a beber; a mãe estava no quarto da depoente, depois de a mãe a ter chamado, quando chegou ao quarto, viu-a deitada e o pai ajoelhado ao lado e a mãe disse que o pai tinha dito que a queria matar; a depoente mandou o pai embora, ele disse que não ia e então, a depoente empurrou-o, o pai veio para cima de si e da mãe e a depoente pôs-se entre o pai e a mãe e é então que o pai atinge a mãe, não viu tudo, dada a posição entre ambos, mas viu o pai fazer um movimento de quem vai dar um soco, e é claro que acertou na mãe porque ela ficou marcada na cara; foi então que o primo segurou no pai e a depoente e a mãe puderam sair do quarto e foram para o quarto do padrinho onde todos [a depoente, a mãe e o padrinho] seguravam na porta, para que o pai não entrasse; a depoente ouvia o pai a dizer que lhe queria bater e partir as pernas e que a depoente e a mãe tinham que sair do quarto para se acertarem com ele; foi a mãe quem chamou a PSP, com o telemóvel do padrinho, aperceberam-se da chegada da PSP porque estavam ao pé de uma janela, a mãe disse aos agentes da PSP que o pai estava armado que tinha uma coisa na mão; quando estava no quarto ouviu os agentes da PSP a dizerem que iam entrar, a mãe disse que sim, o pai disse que não, percebeu que um dos agentes tinha sido atingido porque o pai dizia que já tinha dado num; saíram do quarto, a mãe e o padrinho primeiro, quando o pai já tinha ido embora, na casa, para além da depoente, da mãe do padrinho e do primo, ficaram agentes da PSP, foi então que viu o ferro, que era o que o pai usava na pesca para segurar a cana».
Alega a defesa que o tribunal errou ao referir na sua fundamentação de Direito – p. 29 - que o arguido tinha na garagem 4 facas de cozinha.
Contudo, o tribunal apenas dá como provado no local onde deve ser registo o acervo probatório de uma causa o que consta do facto a.24-a) (duas facas).
Pode ter havido lapso na Fundamentação de Direito mas isso não configura qualquer erro de julgamento.
Como bem afere o assistente na sua reposta:
«Francamente, quanto ao presente ponto (não obstante se discordar quanto à alegada inexistência de quatro facas), entende o assistente que não é inteiramente relevante de onde foram todas as quatro facas recolhidas, quem as recolheu e quem as colocou para serem fotografadas, sendo, em boa verdade, relevante somente uma, sendo que quanto às demais sempre se demonstrou encontrarem-se fora do seu local de normal emprego sem que o seu portador tenha justificado a sua posse: releva, em bom rigor, a que ficou alojada na perna do agente BB, assistente nos autos e ora respondente, e que se encontra propriamente identificada no ponto a.35) dos factos provados, ponto que pelo recorrente arguido não vem contestado»..
Quanto ao facto a.12, a prova vem do depoimento da EE que refere que a mãe lhe disse aquilo que dali consta – não está no facto que o arguido ameaçou a FF mas que a EE ouviu da boca da mãe que isso tinha acontecido.
É verdade que a FF nega que o tenha dito.
Mas também nós descredibilizamos por completo a sua versão, completamente em contradição com a demais prova apurada, concordando-se com o tribunal quando escreve:
«Diversamente, as declarações prestadas em sede de audiência pela assistente FF não mereceram credibilidade por parte deste Tribunal Colectivo, porquanto se afastaram clara e deliberadamente da verdade, assumiram contornos tendenciosos e parciais, apostadas em aligeirar a gravidade das responsabilidades do arguido, negando que o arguido a tivesse ameaçado com mal futuro, ou a tivesse atingido na sua integridade físicas, apenas admitindo que foi ela quem abriu o portão da garagem a fim de os agentes da polícia entrarem em casa; mas falhando uma explicação credível, a ser assim, do motivo porque a mesma havia ( mais uma vez) chamado a PSP à sua residência, e se havia mantido “barricada” no quarto do seu sobrinho LL, não obstante este e o GG (dois homens adultos e possantes, de família, e a quem o arguido, supostamente, escutaria e acataria) se encontrassem em casa».
Basta isso para nos convencer do manifesto descrédito desta versão simplista e desculpatória do comportamento do pai de sua filha, dizendo agora que nunca foi batida e que é a filha que mente, não se vendo quaisquer razões para esta dolosa mentira de uma filha contra um pai.
A sua versão é esta: ela, nesse dia 31, chamou a PSP só pelo facto de a filha TT (EE) se ter virado ao pai, ficando ele alterado (e nunca por ter sido ameçada ou agredida pelo AA).
Alguém acredita nisto?
Nós não.
A assistente[11] FF (que vai dizendo, qual escudo, que prefere não responder relativamente a muitos assuntos por não ter a certeza), que, afinal de contas, não se considera «ofendida» [estranho para quem se quis «assistente» nos autos – cfr. artigo 68º, nº 1, alínea a) do CPP] por actos do companheiro, sempre vai desculpabilizando no álcool alguma turbulência no seu comportamento, só se lembrando da «pancada» que a Polícia deu ao AA. 
Os extractos referenciados pela defesa no seu recurso não são minimamente suficientes para que este tribunal inverta o juízo de descredibilidade[12] que foi feito na 1ª instância que tudo viu e ouviu, com uma imediação que nós não temos.
Quanto aos factos a.15, a.16, a.20 e a.23, acreditamos mais na versão da EE[13] do que na da testemunha GG, diga-se em abono da verdade, sendo como é sobrinho de sangue do arguido.
E acreditou o tribunal ainda no depoimento do LL, sobrinho da FF, cujo depoimento em inquérito foi lido em audiência no dia 23/4/2024 [artigo 356º, nº 3, alínea a) do CPP], dando ele uma versão muito paralela à da EE.
E o dano na face da FF é também comprovado pelas fotografias de fls 76-77.
E estamos falados quanto aos momentos anteriores à chegada da PSP.
Quanto ao momento depois da chegada da PSP, foram apenas apontados excertos de depoimentos da EE, GG, HH e UU, para contra-prova dos factos impugnados a.23, a.24-a, a.31, a.32, a.33 e a.34.
Fomos ouvir tal prova nas partes indicadas..
Pretende a defesa provar que o arguido foi à cozinha buscar as facas antes da chegada da PSP, mas para se matar.
Inverosímil.
Para quê duas facas para esse efeito? Se só estava a conversar com a filha e companheira, porquê pensar em suicídio?
Não será razoável pensar que, perante o sobressalto já ali formado, o arguido intuiu que a PSP seria fatalmente chamada ao local, precavendo-se com armas para se defender?
Quanto aos factos a.30 a a.34, eles resultam provados pelo depoimento escorreito e sentido do assistente BB que fomos ouvir, não sendo obrigado este Tribunal a isso pois o recurso não indica este depoimento como reavaliável.
O assistente nunca terá perdido a consciência mas apresentou lapsos de memória  relativamente àquilo que se passou com ele naquele dia, esfaqueado que foi pelo arguido, sem margem para dúvidas.
E fomos também, afinal, ouvir o guarda JJ[14] e o guarda KK[15].
Estes também foram claros, reiterando-se a leitura que o tribunal fez desses dois depoimentos:
«Os dois agentes da PSP que conjuntamente com o ofendido BB se deslocaram a tomar conta da ocorrência – sendo que o JJ já se havia deslocado anteriormente ao local por duas vezes, na sequência de denúncias por violência doméstica do arguido sobre a companheira -, os quais relataram de forma isenta e credível os factos, reforçando que quando chegaram ao local a ofendida, que se encontrava a uma janela do 1º andar, lhes abriu o portão da garagem e lhes deu autorização para entrarem, dizendo que o arguido a estaria a ameaçar com um ferro; e que, no interior da garagem, os agentes gritaram por diversas vezes a identificar-se como “polícia, polícia”, tendo nessa sequência o arguido retorquido que o primeiro que entrasse em casa era o primeiro a “cair”; e mais tendo descido à garagem empunhando duas facas, com uma das quais desferiu um golpe na virilha do BB, após o que fugiu para o 1º andar da residência, tendo o KK levado de imediato o BB, que sangrava abundantemente e, perceptivelmente, corria risco de vida por esgotamento, para o hospital ... no carro patrul  ha, enquanto o agente LL permaneceu junto ao arguido, a aguardar a chegada de reforços que procederam à detenção do arguido».
A mirabolante história narrada nos pontos 94 a 99 não faz sentido nenhum, NÃO trazendo aos autos os depoimentos do UU e da HH qualquer fundamento que infirme a tese que foi dada como provada (a questão dos segundos entre a entrada da PSP e a facada ao agente BB é, para nós, irrelevante, assente que a corrida no interior da casa poder, de facto, ter sido vertiginosa, não servindo para provar que o arguido não teve, afinal, intenção de matar o BB), parecendo-nos, também neste jaez, algo inconsistente a versão do GG.
Note-se ainda que o tribunal entendeu o depoimento da testemunha CC, autor do aditamento nº 2, constante de fls 104, como não atendível face ao facto de ser «um testemunho de ouvir dizer» (o recurso refere-se a ele para também atestar a sua tese).
E não se venha dizer que o ferimento na perna do BB foi «uma mera infelicidade!
Os ferimentos falam por si.
Quanto aos factos a.48, a.49, a.50 e a.53 retirou-os o tribunal das regras de experiência comum, não estando minimamente apurado que o seu comportamento violento enha sido espoletado pelo excesso de álcool e por alguma imputabilidade diminuída.
Já sabemos que:
· Quanto à atitude interior do arguido o tribunal tem de socorrer-se das máximas da experiência comum.
· Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infração são, em regra, objecto de prova indireta, isto é, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objetivos, analisados à luz das regras da experiência comum (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 21/2/2019, e proferido no Pº 4 06/08.7JDLSB.L1-9);
· A prova do dolo faz-se, de facto e normalmente, de forma indirecta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência, pelo que, na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime e ter consciência do seu carácter ilícito, a prova terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente (cfr. Acórdão da mesma Relação, datado de 15/12/2025 e proferido no Pº 200/15.9PBOER.L1-5).
Quanto à intenção de matar, diremos:
No nosso caso, há intenção de matar[16] e dolo directo (resulta da factualidade provada, não que o arguido tenha representado como possível que da sua actuação pudesse resultar a morte da vítima, o que poderia vir a configurar uma situação de dolo eventual, mas que o arguido quis causar a morte do BB, o que não conseguiu alcançar por razões alheias à sua vontade - o elemento volitivo do dolo configura, portanto, uma situação de dolo directo, tal como considerou o tribunal colectivo), não havendo qualquer desistência válida mas apenas uma não consumação por factos estranhos ao agente.
Ora, desde logo, a zona atingida pelo recorrente retratada nos factos provados em a.47 – elemento a conjugar com o dolo -, é manifestamente de natureza vital, na perspectiva do cidadão médio, não necessitando este de uma qualquer formação técnica para percepcioná-lo, além de que foram provocadas por um objecto cortante (faca de razoáveis dimensões), o que, inevitavelmente conflui para a idoneidade para desencadear as lesões, realidades que o recorrente não desconhecia.
É certoqueno relatório pericial da avaliaçãododanocorporal se deixa escrito que «do evento não resultou em concreto perigo para a vida , embora para isso tenha contribuído o facto de ter tido uma célere e atempada assistência médica» (fls 654).
No entanto, não podemos confundir a falta de perigo para vida com a falta de prova da intenção de tirar a vida ao ofendido.
De facto, o arguido actuou com a intenção de matar o ofendido, o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, sendo que nenhuma relevância tem para o preenchimento do tipo de ilícito em apreço a circunstância de não ter resultado da sua actuação perigo concreto para a vida do BB[17].
Finalmente, no que tange ao facto a.51, tem razão o arguido – o facto a.51 não pode, em rigor, dar-se como provado, assente o teor do próprio depoimento da FF, não tendo havido qualquer outra prova acusatória nesse sentido (a EE pode assegurar que a mãe foi batida – o que também é confirmado pelas conclusões no auto de exame directo de fls 146-148 - mas não pode assegurar que ela sentiu vergonha, humilhação, mal estar ou dor).
O facto a.52 resulta provado do teor do depoimento da EE e do auto de exame directo de fls 149-150.
A dinâmica da acção naquele dia 31.3.2023 ficou clara para o tribunal de Leiria e para nós.
E em lado algum do recurso são avançadas leituras diversas possíveis (e minimamente plausíveis e verosímeis) do que ali aconteceu.
Ou seja, não foi carreada para os autos qualquer prova relevante de que os acontecimentos se passaram de forma diversa do dado como provado, nem sequer através dos invocados depoimentos das testemunhas visadas no recurso de facto, não provando tais depoimentos algo de diferente relativamente ao constante do acórdão recorrido e à versão acusatória.
Como tal, nada do que é trazido pela defesa em sede de recurso infirma a convicção de culpabilidade do arguido - com base no elenco de factos que deu como provados - que o tribunal de Leiria criou, criando este tribunal de recurso a mesma convicção de forma fundada e seriamente fundamentada.
Razão pela qual não há que alterar a matéria de facto quanto aos pontos sindicados no recurso, não se vislumbrado qualquer erro de julgamento [só havendo que dar como NÃO provado o facto nº a.51, aditando-se um novo facto PROVADO como a.50-a)].

3.2.1.9. Uma palavra sobre o princípio do «in dubio pro reo».           
No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo, que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação do Porto de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o artº 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Quer isto significar que não vemos que deva ser alterada a decisão de facto.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal de Leiria em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo.

3.2.1.10. Em CONCLUSÃO, da análise da prova produzida, pela audição dos depoimentos gravados, tudo confrontado com a motivação da decisão de facto, sem esquecer que o recurso é um remédio e não um segundo julgamento, conclui-se que inexistem quaisquer razões para alterar o juízo probatório constante do acórdão recorrido [com a excepção da não prova do facto a.51 e do aditamento à matéria provada do novo facto a.50-a)] mantendo-se, em consequência, toda a matéria de facto dada como provada e não provada na decisão «a quo».  
Como tal, só pode improceder a argumentação deste recurso, em sede factual, tendo-se por assentes, em consequência, todo o acervo factual constante do acórdão de Leiria, apenas se aditando o facto a.50-a) e dando-se como não provado o a.51.

3.2.2. DO DIREITO

3.2.2.1. Houve errada qualificação jurídica dos factos?
Entende o recorrente que jamais poderia ter sido condenado pela prática dos crimes de homicídio tentado e de violência doméstica nas pessoas da FF e da filha.
Face aos factos provados a.4, a.5, a.6, a.12, a.16, a.19, a.20, a.23, a.33, a.53 e a.54, só podemos dar como perfectibilizado, nos seus elementos objectivos e subjectivos, o crime de violência doméstica agravado do artigo 152º, nº 1, alínea b) – e não a) pois não são casados o arguido e a FF – e nº 2, alínea a) do CP, assente que os factos praticados contra a companheira FF, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitem indiscutivelmente  este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
Face aos factos provados a.7, a.15 (a EE magoou-se mesmo como se infere do facto a.52, provado pelo exame directo de fls 149-150), a.52, a.53 e a.54, só podemos dar como perfectibilizado, nos seus elementos objectivos e subjectivos, o crime de violência doméstica do artigo 152º, nº 1, alínea e), não se ponderando a agravação da  alínea a) do nº 2, muito dirigida à vítima conjugal ou marital.
Face aos factos provados a.24-a), a.25, a.26, a.27, a.28, a.29, a.32, a.36 a a.50, e a.53, está perfectibilizado o crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22ºs 1 e 2 a) e b), nºs 1 e 2, 73º, n 1, alíneas a) e b), 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea l) – e não j) como por lapso surge no acórdão - do CP
Entende a defesa que não está perfectibilizado o crime de detenção de arma proibida.
Vejamos.
Perante este quadro factual, não tem esta Relação qualquer dúvida que a faca em causa  descrita em a.35, não obstante poder ser usado para fins lícitos, foi encontrado fora do local do seu normal emprego, não tendo sido feito qualquer legítima justificação, por parte do arguido, para a sua posse – antes pelo contrário, ficou provado que, naquele dia concreto, o arguido foi buscá-la á cozinha  [facto a.24-a), empunhando-a, junto até com outra noutra mão, com o único intuito de o usar para atacar quem quer que entrasse no local onde se encontrava (factos a.47 a a.49).
O instrumento em causa é uma arma branca para os efeitos do artigo 2º, nº 1, alínea m) da Lei nº 5/2006 - «Arma branca» é todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões (cfr. exame directo de fls 71-72).
Depois o artigo 3º, nº 2, alínea ab) cataloga tal instrumento na classe A das armas.
Finalmente, o artigo 86º, nº 1, alínea d) refere que:
«1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo:
(…)
d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do nº 2 do artigo 3º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do nº 7 do artigo 3º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do nº 7 do artigo 3º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6º e 7º do Decreto-Lei nº 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do nº 2 do artigo 3º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias».
No nosso caso, o arguido detinha e tinha consigo uma arma branca usada habitualmente para práticas lícitas mas fora do seu normal emprego, não justificando ele a sua posse para tais fins lícitos (provando-se até os seus fins ilícitos).
Se assim é, estão perfectibilizados os elementos objectivos do tipo de crime em causa[18].
E subjectivamente também o está [cfr. também novo facto provado a.50-a)].
Face ao que foi dado como provado nos factos a.47 a a.49, vamos entender que, face a tais factos apurados no acórdão recorrido, exige a normalidade da vida e o saber da experiência que se conclua que o arguido, agindo sempre, livre, deliberada e conscientemente, só podia concluir que ele conhecia as características da faca de cozinha que tinha consigo, sabendo que a sua detenção, nas circunstâncias descritas, era proibida, que não estava autorizado a detê-lo e, não obstante, não se absteve da sua conduta, mantendo-o na sua posse e utilizando-o com o intuito de agredir BB, querendo praticar os factos que lhe são imputados [cfr. novo facto a.50-a) que nos parece suficiente].
Ora, aplicando estes parâmetros legais ao caso em apreço, verificamos que estão preenchidos os pressupostos típicos para que o arguido seja condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida, pelo qual vinha acusado.
Com efeito, consignou-se como provado que o arguido se muniu das facas de cozinha e dirigiu-se à garagem para enfrentar os agentes policiais que ali chegaram – local onde empunhou tais facas/armas brancas na direcção dos polícias, para os atingir, depois de anunciar “quem entrar vai abaixo! Não entrem”.
Mais se consignou que a faca (com a qual o arguido desferiu o golpe que atingiu o assistente na coxa direita, na zona da virilha) tem o comprimento total de 32,4 cm, sendo composta por cabo de material sintético e lâmina com superfície cortante e perfurante, com 19,8 cm de comprimento e ricasso e gume cortante em 18,8 cm na parte inferior.
Como tal, exigia-se a condenação do arguido pelo uso indevido de tal arma branca.

3.2.2.2.. E que dizer da alegada imputabilidade diminuída do arguido, devido ao seu alcoolismo?
Está provado a este propósito apenas que:
«a.3) Desde há cerca de quatro anos que o arguido passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso.
a.73) O arguido é reputado pelo ex-patrão como sendo um bom trabalhador, cumpridor e respeitador, sem qualquer registo de problemas a nível de excesso de consumo de álcool durante a jornada laboral, encontrando-se o ex-patrão disponível para reintegrar o arguido como trabalhador da sua firma, quando o mesmo for restituído à liberdade.
a.79) AA não assume que seja dependente ou que possua problemática a nível dos consumos de álcool, mas aceita ser avaliado e acompanhado clinicamente. A companheira revela que este é um bom marido e excelente pessoa desde que não ingira bebidas alcoólicas».
Ora, não resultou apurado que tenha sido o álcool que naquele específico dia 31/3 tenha sido o espoletador do seu comportamento quase homicida.
Estamos a falar de alguém que nem se considera dependente do álcool, percebendo-se mal esta invocação do «vício» para se justificar perante os tribunais.
Não está posta em causa a sua imputabilidade criminal, não sendo sequer caso de se lançar mão do preceituado no artigo 20º do CP, no que tange a uma possível imputabilidade diminuída pela constante ingestão de álcool, nada tendo sido eficazmente impugnado a esse nível.

3.2.2.3. Também só poderá improceder a tese da defesa que foi interrompido o nexo causal entre as lesões do assistente BB e a prática do crime pelo arguido, face à prova dos factos nº a.36 a a.50, corroborados por este Tribunal, e à não prova do facto nº 1 (não ficou provado que «a tromboembolia pulmonar periférica com enfarte pulmonar associado, sofrida pelo BB não tenha sido causa directa e necessária das lesões físicas e sequelas sofridas pelo mesmo em consequência do golpe com a faca desferido pelo arguido no corpo daquele»).
A 1ª instância concluiu assim:
«No que se reporta ao agravamento/recidiva sofrido pelo assistente BB no dia 18/04/2023 (portanto, 17 dias após a agressão física perpetrada pelo arguido), contrariamente ao sustentado pela defesa, que carece de qualquer suporte fáctico, não se verificou qualquer interrupção do nexo causal. Ao invés, da prova pericial junta aos autos, supra identificada (relatórios da perícia de avaliação de dano corporal em direito penal), resulta inequívoca a manutenção do nexo causal entre a tromboembolia pulmonar e trombose pulmonar sofridos pelos arguido no dia 18/04/2023 e a lesão da veia safena decorrente do golpe com a faca desferido pelo arguido na virilha do ofendido no dia 01/04/2023, da qual resultou abundante perda hemática, e consequente acumulação do sangue derramado nos pulmões do ofendido, com o consequente “encortiçamento” do pulmão, e subsequente tromboembolia e enfarte pulmonar, o que quase causou a morte por sufocamento do ofendido (não fosse a sua pronta assistência hospitalar)  e causa ainda à presente data sequelas permanentes de falta de ar e insuficiência respiratória».
E a defesa não veio contrariar, com fundamento sério, esta conclusão factual, como atrás se viu.
Ao invés do que pretende o arguido fazer crer, não se trata de ter sido precipitada a alta médica ou mal diagnosticada a enfermidade, ou sequer de uma comparticipação negativa do assistente, assente que ambos os momentos determinantes para a verificação e aplicação da teoria da causalidade adequada se encontram verificados.
No que concerne ao primeiro momento, temos o dano físico causado ao assistente – fruto da laceração provocada pelo arguido.
No que concerne ao segundo momento temos a adequação de tal dano às posteriores complicações sofridas pelo assistente, sendo o dano em si provocado um resultado adequado e apropriado ao dano que veio a motivar o segundo internamento do assistente.
Razão pela qual se conclui não existir qualquer interrupção do nexo causal, do mesmo modo que não considerou o Tribunal a quo mediante fundamentação que, igualmente, integralmente se acompanha.


3.2.2.4. Os crimes são os correctos, pois, julgando-se improcedente a alegação de que houve uma errada qualificação jurídica dos factos provados.

3.2.2.5. Que dizer das penas?
Praticou, assim, o arguido os seguintes CRIMES:
· CRIME 1 - um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 22º nºs 1 e 2 als. a) e b), 23º nºs 1 e 2, 73º nº 1 als. a) e b), 131º e 132º nºs 1 e 2 al. l), todos do CP;
· CRIME 2 - um crime de violência doméstica agravada, na forma consumada, p. e p. no artº 152º nº 1 al. b) e nº 2 al. b) do CP;
· CRIME 3 -  um crime de violência doméstica, na forma consumada, p. e p. no artº 152º nº 1 al. e) do CP;
· CRIME 4 - um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23/02, por refª. ao artº 3º nº 2 al. ab) do mesmo diploma.
As penas foram estas:
· CRIME 1 – 6 anos de prisão;
· CRIME 2 - 2 anos e 6 meses de prisão;
· CRIME 3 – 1 ano e 3 meses de prisão;
· CRIME 4 – 9 meses de prisão.
· CÚMULO JURÍDICO DAS PENAS DOS CRIMES 1, 2, 3 e 4  - 7 (sete) anos de prisão.
Entende o arguido no recurso nº 2 que as penas deveriam ser reduzidas, sem especificar montantes.
Assim se justificou o tribunal recorrido neste particular:
«O crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 22, 23º, 73º, 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j) , todos do Cod. Penal, é punível com pena de prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e oito meses de prisão.
O crime de violência doméstica agravada na forma consumada, p. e p no artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Cod. Penal, é punível com pena de prisão de 2 até 5 anos.
O crime de violência doméstica na forma consumada, p. e p no artº 152º nº 1 al. e) Cod. Penal, é punível com pena de prisão de 1 até 5 anos.
O crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. d) da Lei das Armas, é punível com pena de prisão de 1 mês até 4 anos ou multa de 10 a 480 dias.
No que concerne ao critério da escolha da pena a aplicar, com a sua génese na ideia de reacção contra as penas institucionalizadas ou detentivas, por sua própria natureza lesivas do sentido ressocializador que deve presidir à execução das reacções penais ( cfr. Robalo Cordeiro in Jornadas Direito Criminal, CEJ, pag. 238 ), estabelece o artº 70º do Cod. Penal: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Temos, pois, que, nesta fase, as “pedras de toque” determinantes da opção entre uma pena privativa e uma não privativa da liberdade residem nas necessidades de prevenção geral e especial que o caso revele.
No caso dos autos, não obstante a primodelinquência do arguido, ponderado o respectivo grau de culpa do mesmo (elevado), ponderadas as exigências de prevenção -  existindo importantes exigências a nível da prevenção geral, e , bem assim, a nível da prevenção especial - o circunstancialismo que esteve subjacente à prática dos factos, a idade, a intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo, a natureza dos bens jurídicos violados, e a intensidade de tal violação, consideramos que o grau elevado de ilicitude ( e a gravidade do quadro geral fáctico ) e a culpa manifestada por este arguido, não nos permite a formulação de um juízo favorável ao mesmo, no tocante à prevenção de futuras delinquências, razão pela qual optamos pela aplicação de uma pena privativa da liberdade relativamente ao crime de detenção de arma proibida, por considerarmos que ser a única que, in casu, satisfaz com suficiência as relevantes exigências de prevenção geral e especial que no caso se verificam.
Importa agora determinar a medida concreta da pena parcelar a aplicar ao arguido por cada um dos crimes praticados, operação para a qual se terão em conta, nos termos do artº 71º do Cod. Penal, e dentro dos limites abstractos das respectivas molduras penais supra descriminadas, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do respectivo tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente as referidas no nº 2 do artº 71º, fixando-se o limite máximo da respectiva pena concreta a aplicar de acordo com a culpa manifestada pelo arguido, o limite mínimo de acordo com as exigências de prevenção geral, e a pena efectiva, dentro da moldura penal assim fixada, de acordo com as exigências de prevenção especial.
Assim, tendo em atenção os assinalados critérios dosimétricos, ponderado o grau de culpa do arguido (elevado), ponderadas as exigências de prevenção - existindo importantes exigências a nível da prevenção geral, e , bem assim, a nível da prevenção especial -, bem como as circunstâncias que depõem contra o arguido -  circunstancialismo que subjaz à pratica dos factos, idade/condição sócio-económica, rudimentar grau de escolaridade, o grau (elevado) de ilicitude, o grau (importante) de gravidade das consequências dos factos praticados, a intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo - afigura-se-nos adequado aos factos e à personalidade do agente a aplicação ao arguido das seguintes penas parcelares:
· Crime de homicídio qualificado na forma tentada: pena de 6 anos de prisão;
· Crime de violência doméstica agravada na forma consumada: pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
· Crime de violência doméstica “simples” na forma consumada: pena de 1 ano e 3 meses de prisão.
· Crime de detenção de arma proibida na forma consumada: 9 meses de prisão.
Impõe-se, agora, proceder ao cúmulo jurídico das penas, para o que se lançarão mãos dos critérios dosimétricos constantes do artº 77º nº 1 e 2 do CP; no âmbito dos quais o Tribunal entende que no caso sub judice se deverão considerar todas as circunstâncias apuradas, sendo particularmente de destacar:
· a idade do arguido;
· o grau, modo e circunstâncias das condutas do arguido;
· o número de crimes praticados e a elevadíssima ilicitude das condutas perpetradas;
· as consequências para os diversos ofendidos e o alarme social que provocam;
· a gravidade das consequências de tais condutas;
· a indiferença manifestada pelo arguido e falta de arrependimento sincero;
· as concretas e particulares condições pessoais do arguido e a sua personalidade, com traços de indiferença de valores e o défice de espírito crítico perante a consequências das suas condutas.
Assim, temos que a moldura abstracta do cúmulo jurídico é de 6 anos de prisão  (pena parcelar mais elevada) ao máximo de 10 anos e 6 meses (somatório das diversas penas parcelares).
Tudo considerado, condenam o arguido na pena única de 7 anos de prisão».
Vejamos.
O artigo 71º, nº 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele.
            Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artigo 71º, nº 1 do CP que ela é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do nº 2, da mesma norma legal.
A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada.
O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do DIREITO e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, “mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações” (SIMAS SANTOS).
Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.
            Sublinhe-se que estes constituem os princípios regulativos que deverão estar subjacentes à determinação de qualquer pena, funcionando a culpa como fundamento da punição em obediência ao princípio “nulla poena sine culpa” e limite máximo inultrapassável da pena, atendendo à dignidade da pessoa humana.
A prevenção, na sua vertente positiva ou de integração, mostra-se ligada às necessidades comunitárias da punição do caso concreto, e irá fixar os limites dentro dos quais a prevenção especial de socialização irá determinar, em última instância, a medida concreta da pena.
Na verdade, só se justificará a aplicação de uma pena se ela for necessária e na exacta medida da sua necessidade, ainda que sempre subordinada a uma incondicionável proibição de excesso, conquanto, ainda que necessária, a pena que ultrapasse o juízo de censura que o agente mereça é injusta e dessa forma inadmissível.
            Ora, aqui chegados, e com este pano de fundo, há que considerar que as penas aplicadas ao arguido não foram excessivas.
            São, na realidade, prementes as exigências de prevenção geral.
Assim, em concreto, atender-se-á:
· à culpa, sendo certo que o arguido actuou com dolo directo, dando um especial envolvimento à sua actuação, desculpabilizante e nunca arrependida, preferindo arranjar desculpas infundamentadas e inverosímeis;
· às exigências de prevenção geral, as quais se nos afiguram particularmente acentuadas dada a frequência destes tipos de crimes e alarme que provocam na comunidade, uma vez que os crimes – de sangue - praticados contra as autoridades públicas, traduzindo uma notória degradação das mesmas que gera sentimentos de intranquilidade e de impotência que importa apaziguar[19], e contra a tranquilidade das vítimas conjugais, maritais e  filiais são uma constante no nosso País;
· às exigências de prevenção especial, as quais revertem a seu favor, na medida em que inexistem antecedentes quanto a condenações criminais (note-se que resultaram como não provados os seguintes factos: «- O arguido é uma pessoa de relações boas e fáceis no seu seio familiar, e tenha muito respeito pela autoridade policial, nunca desafiando as ordens ou solicitações policiais; - O arguido é pessoa de trato humilde, respeitador, muito educado e muito paciente para a filha», não havendo ainda qualquer prova das circunstâncias aludidas pelo arguido nos pontos 2) a 5) do artigo 180 da sua motivação).
Assim sendo, partindo das molduras penais abstractas indicadas correctamente pelo tribunal, temos as 4 penas parcelares como correctas e proporcionais (a pena pelo crime mais grave, que poderia ter tirado a vida do agente policial, é abaixo da metade da moldura, sendo já essa uma benesse para quem não confessou os factos), adiantando que damos o nosso aval, no que tange à pena do 4º crime, ao afastamento da pena de multa ao abrigo do artigo 70º do CP, por considerarmos que a mera pena pecuniária não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidade da punição.
Aqui chegados, haverá apenas que determinar a concreta medida da pena de cúmulo, considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º/1 do CP).
O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente».
A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado.
Tal decisão não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».
Artur Rodrigues da Costa dissertou brilhantemente sobre esta operação nos seguintes termos (artigo «O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ», que serviu de base a uma exposição oral no âmbito de uma acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011):
«A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77º, nº 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.
À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.
Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/058. Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique».
Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização».
Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita.
E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta.
Normalmente, como veremos infra, as decisões das instâncias, principalmente da 1.ª instância, são deficientemente fundamentadas quando se trata da pena única, sobretudo porque se limitam a reproduzir o texto legal, sem fazerem uma avaliação concreta dos específicos factores a que a lei manda atender, o que tem dado origem a numerosas anulações dessas decisões por parte do STJ.
(…)
Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no art. 71º do CP, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais factores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.
(…)
Como se vê de todo o exposto, o nosso sistema caracteriza-se por ser um sistema de pena única ou conjunta, e não de pena unitária.
Por duas razões fundamentais:
· É um sistema que não prescinde da determinação da medida concreta das penas parcelares, sendo a partir delas que se constrói a moldura penal do concurso;
· A medida da pena do concurso no caso concreto é determinada dentro da moldura penal abstracta, entre um mínimo e um máximo, com a mesma liberdade com que se determina a unicidade de pena – culpa e prevenção, relacionadas com a gravidade do ilícito global em conjugação com a personalidade unitária revelada pelo agente, e não por adição das penas parcelares (ou de uma dada porção ou fracção delas), só sendo de agravar a pena no caso de se concluir pela radicação da multiplicidade delituosa na personalidade daquele, em termos de constituir uma tendência ou carreira criminosa.
Nisto se distingue do modelo de pena unitária, caracterizado por:
· Não relevância da autonomia dos crimes concorrentes
· A moldura do concurso não passa pela determinação das penas singulares.
· Tudo se passa como se fosse um crime único, referido a um determinado agente, pois o que interessa é a personalidade deste (direito penal do agente).
Sendo um sistema de pena conjunta ou pena única, não se confunde, todavia, com um princípio de absorção, em que a pena do concurso corresponde à pena concretamente determinada do crime mais grave; nem com o princípio da exasperação ou agravação em que a pena do concurso é determinada em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas agravada em função da pluralidade de crimes, sem poder ultrapassar o somatório das penas concretamente aplicadas
Apenas há a notar que a moldura penal abstracta apoia o limite mínimo na pena parcelar mais alta, o que apresenta alguma analogia, só neste aspecto, com o princípio da absorção e que o limite máximo é constituído pelo somatório de toda as penas (com o limite absoluto de 25 anos de prisão), o que também se relaciona de alguma forma com o princípio da exasperação ou agravação e até com o da cumulação material, mas também só para o efeito de determinar o limite máximo da moldura penal abstracta.
De resto, nada impede que, num dado caso concreto, a pena aplicada seja correspondente ao mínimo da moldura penal abstracta, ou seja, o equivalente à pena parcelar mais alta, tal como sucede com a determinação da medida da pena no caso de unicidade de crime».
Nem sequer o seu bom comportamento social anterior nos comove – sabemos que um erro na vida não significa uma vida de erros, mas não temos dúvida que, por vezes, um erro pode ser decisivo na vida de uma pessoa, conhecendo nós, nos tribunais, muitos cidadãos impolutos que acabam a praticar actos inesperados e pouco previsíveis.
E o possível consumo em excesso de álcool só pode pesar contra si.
É o argumento de que «quando bebe fica bruto».
O álcool é sempre uma «faca de dois gumes».
Pune-se quem conduz etilizado, mas muitas vezes atenua-se a responsabilidade do agente de crimes graves e violentos quando se comprova que é o álcool que os move.
Quantas vezes na violência doméstica ou nos maus tratos a crianças.
Insurgimo-nos contra esse estado da arte.
O alcoolismo habitual de alguém, que não procura ajuda para essa doença, por si provocada, tem de deixar de ser considerada uma gratuita justificação para a violação do dever-ser social e da lei.
«Não é ele que assim agiu mas o álcool a agir por ele», ouve-se tanto por aí.
Não!
No nosso caso, essa perturbação etílica nem sequer é dada como provada nem justificou qualquer juízo pericial médico de imputabilidade diminuída (nem sequer, como é óbvio, de inimputabilidade penal)
Este homem, bem sabendo que apunhalar alguém numa zona vital o pode matar, mesmo que estivesse algo etilizado (o que não se provou), nunca teria perdido a percepção da anti-juridicidade da sua atitude.
Quis matar alguém e isso não podemos deixar passar em claro.
Estamos, além disso, muito longe de o considerar arrependido, tal como muito bem acentuou a decisão recorrida, sendo ainda irrelevante para este jaez o seu bom comportamento prisional ou o aval que a ele vieram dar as «suas» testemunhas abonatórias.
São inegavelmente graves e censuráveis os factos praticados pelo arguido.
As necessidades de prevenção geral igualmente reclamam uma actuação firme e pesada por parte do Estado.
Não nos esqueçamos que foi (tentada) tirar a vida a um ser humano, valor supremo num país que se quer civilizado e onde, infelizmente, tantas vezes, se pune mais gravemente o delito contra a propriedade do que contra as pessoas[20].
Por isso, e atenta a moldura penal abstracta do cúmulo da pena de prisão (LIMITE MÍNIMO: 6 anos; LIMITE MÁXIMO: 10 anos e 6 meses – cfr. artigo 77º/2 do CP), aplicamos ao arguido a MESMA pena de prisão em cúmulo de 7 (sete) anos, TÃO MAS TÃO PRÓXIMA DO MÍNIMO LEGAL, sem possibilidade legal, claro, de suspensão da sua execução (cfr. artigo 50º, nº 1  CP).
Assim aproveite ele este momento na sua vida para, enfim, se redimir e expiar dignamente o seu supremo erro.

3.2.2.6. Finalmente, o valor da indemnização civil, presumindo-se que a defesa conteste apenas o valor dos danos não patrimoniais, assente que há prova documental dos restantes.
O tribunal fixou a indemnização em € 30.000.
A defesa tem tal montante como exorbitante e até chocante, quando estão em causa 2 cm de ferimento, «sem lesão objetivável de grandes vasos».
O tribunal raciocinou assim:
«No que concerne ao pedido deduzido pelo assistente BB:
Atentando no caso em apreço, designadamente nos factos provados, constata-se que todos os pressupostos estão reunidos, pelo que o demandado terá que responder pelos danos causados e peticionados e cuja existência resultou provada da discussão da causa.
No caso dos autos, atenta a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua capacidade económico-financeira, e o grau de gravidade da lesão dos direitos e interesses do mesmo legalmente tutelados, conclui-se pelo arbitramento a favor do assistente BB de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos até à data da dedução do pedido (18/10/2023) no montante peticionado de € 30.000,00, que se julga adequada, justa e proporcional, a que acresce a quantia peticionada a título de danos patrimoniais, relativa ao custo das deslocações para consultas e tratamentos, que se fixa em € 612 (1700 km x € 0,36).
Sobre as quantias fixadas acrescem, conforme peticionados, juros de mora peticionados, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento, contados à taxa anual de 4% (Portaria 291/2003, in DR - I B, de 08/04/2003).
De referir ainda que à data da dedução do pedido não estavam ainda consolidadas medico-legalmente as lesões e sequelas sofridas pelo demandante em consequência da conduta do arguido (porquanto ainda não havia sido concedida ao mesmo alta médica), razão pelo qual não era ainda possível determinar, quantificar nem avaliar os concretos danos patrimoniais e não patrimoniais entretanto sofridos até à consolidação das lesões e sequelas, e que se venham a verificar, em consequência de eventual recidiva, impõe-se , conforme peticionado, relegar a liquidação de tais quantias para incidente de liquidação de sentença.
Termos em que, pelos fundamentos expostos, é de proceder “in tottum” o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante».
E, POR ISSO, os Juízes do JCC de Leiria:
«Julgam o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante BB totalmente procedente e provado e, consequentemente, condenam o demandado AA a pagar ao demandante BB:
1 - A quantia de € 612,00, acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4%, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos com despesas de deslocação durante a baixa médica.
2 - A quantia de € 30.000,00, acrescida de juros de mora, contados à taxa anual de 4%, vencidos desde a notificação, e vincendos, até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por este até 18/10/2023 em consequência da conduta do demandado.
3 - As quantias que se vierem a liquidar em incidente de liquidação de sentença, acrescidas de juros de mora, contados à taxa anual de 4%, vencidos desde a liquidação, e vincendos até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos desde 19/10/2023 até à consolidação médico-legal das lesões e sequelas, e danos patrimoniais e não patrimoniais que se venham a verificar posteriormente a tal data da consolidação médico-legal, decorrentes de recidivas, em consequência da conduta do demandado».
No que concerne aos danos não patrimoniais, os únicos aparentemente em causa pelo recurso, avançaremos que:
De acordo com o estatuído pelo artigo 496º, nº 1 do CC, «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito», gravidade que «há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em consideração as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos.
Por seu lado, a gravidade tem de ser apreciada em função da tutela do direito.
O dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
Anote-se ainda o teor do artigo 496º, nº 3, 1.ª parte - «O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º; (…)».
O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser apurado, sempre, segundo critérios de equidade, «atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, à flutuação do valor da moeda, etc».
Daqui resultará que, no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista.
É que, não obstante visar reparar, «de algum modo, mais do que indemnizar», também se não alheia da ideia de reprovar ou castigar, «no plano civilístico e com os meios do direito privado, a conduta do agente».
Como bem saliente o Acórdão desta Relação, datado de 6/10/2010 – Pº 426/06.GAALB.C1:
A dificuldade de «quantificar» os danos não patrimoniais não pode servir de entrave à fixação de uma indemnização que procura ser justa, correndo o risco, embora de ser algo aleatória, tanto mais que, neste campo, repete-se, assume particular relevância a vertente equidade.
Na verdade, aqui, mais do que nunca, encontramo-nos na incerteza inerente a um imprescindível juízo de equidade.
Nos danos não patrimoniais, a «grandeza do dano» é insusceptível de medida exacta. Só pode ser alvo de «determinação indiciária fundada em critérios de normalidade», uma vez que o seu padrão é «constituído por algo de qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação».
Mais do que o reconhecimento dos direitos aludidos, impera aqui, assim, a dificuldade no cálculo da indemnização a arbitrar, em concreto.
E, o apelo à equidade, só encontra justificação pela busca da solução justa no caso a decidir; a equidade estará, então, limitada sempre pelos imperativos de justiça real (a justiça adequada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal”.
Ora, aqui chegados, somos levados a concordar com a mais recente Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que tem vindo a lembrar a necessidade de, neste tipo de indemnizações, serem abandonadas as indemnizações miserabilistas, devendo antes assumir um alcance significativo e não meramente simbólico.
QUID IURIS, IN CASU?
Entende o arguido/demandado ser exorbitante a quantia de € 30.000, a título de tais danos.
Ora, não há dúvidas de que os danos provocados ao BB (e constantes dos factos nºs a.40, a.41, a.42, a.43, a.44, a.45, a.46 (poderia ter morrido se não fosse logo socorrido), a.56, a.59, a.60, a.61, a.62, a.63, a.64., a.65, a.66 e a.67 são sérios, graves e merecem uma cabal reparação pela ordem jurídica.
E que está comprovada a existência de uma acção ilícita, culposa e geradora de danos voluntariamente causada pelo arguido.
Note-se, contudo, que a mesma terá de ser fixada tendo em conta a equidade, e a uniformidade na aplicação do direito por forma a concretizar o princípio da igualdade de todos os cidadãos.
No âmbito dos danos não patrimoniais, a ressarcibilidade visa proporcionar ao lesado os meios económicos que de alguma maneira o compensem da "lesão" sofrida, tratando-se assim de uma reparação indirecta.
Os danos não patrimoniais só indirectamente são computados através do cálculo da soma de dinheiro, susceptíveis de proporcionar à vítima satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados (Cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição, pp. 375-385).
É assim entendimento praticamente unânime, que a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de "compensação", não se compadecendo com atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios.
A este propósito, ainda vigora entre nós a Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, que fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de proposta que o diploma designa “razoável” para indemnização do dano corporal.
Esta tabela, contudo, não garante uma indemnização adequada, podendo, porém, ser utilizada como forma de auxílio à quantificação dos danos, em igualdade de circunstâncias com outros instrumentos financeiros e matemáticos, entre muitos outros (cfr., entre outros, Acórdão desta Relação de 3/3/2015, Pº 332/11.2TBMGL.C1, da Relação de Lisboa de 13.12.2012, Pº 1319/11.0YXLSB.L1.7, da Relação de Évora de 9.7.2015, Pº 1989/12.2TBABF.E1, da Relação de Guimarães de 29.10.2015, Pº 726/12.6TBMDL.G1 e da Relação do Porto de 30.9.2014, Pº 3654/07.3TJVFN.P1).
Fazendo um cotejo jurisprudencial (STJ) quanto a tais danos, verifica-se que em casos raros o valor indemnizatório pela perda da vida ultrapassa os €50.000, não ultrapassando os 80.000 euros.
É notória uma tendência progressiva, de actualização jurisprudencial dos valores indemnizatórios de certos danos e designadamente sobre a indemnização dos danos de natureza moral ou não patrimonial - sobre esta evolução, confronte-se a compilação da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre a indemnização do danos não patrimoniais em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-tematica/cadernodanosnaopatrimoniais-2004-2012.pdf.
Neste caso, os danos causados ao BB são relacionados com as dores sofridas, o perigo de vida em que esteve e as sequelas – físicas e psíquicas - para a vida que ficaram deste evento doloso…
Em segundo lugar, teremos de atender, nos termos do artigo 496º do CC, à situação patrimonial do lesante (cfr. factos nºs a.71 e a.72).
Neste jaez, são tidos em conta os danos que afectam profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objectivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas afastando-se os factores subjectivos, susceptíveis de sensibilidade exacerbada, particularmente embotada ou especialmente requintada, e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pp. 576; Vaz Serra, RLJ, ano 109º, pág. 115; e os Acs. do STJ de 26/6/1991, BMJ 408, pp. 538; de 9/12/2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 137; de 11/7/2007, processo nº 1583/07 - 3.a; de 26/6/2008, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 131; de 22/10/2008, proc. Nº 3265/08 - 3.a, e de 29/10/2008, processo n.° 3380/08 - 5.a.).
Ora, nos autos, atento os danos «morais» sofridos, de acentuada angústia e reconhecida tristeza, que merece, de forma indiscutível, a tutela do direito e de uma forma que se afaste de quaisquer considerações miserabilistas ou que transforme o valor indemnizatório em algo meramente simbólico, só há que fixar uma quantia adequada.
As consequências que dos factos em causa resultaram para a vítima, os quais, alguns deles, ainda hoje persistem, devem ser mitigados, tanto quanto possível, com a atribuição de um valor indemnizatório, a título de danos não patrimoniais, equitativo e adequado à sua dimensão e natureza.
Não se podem medir os danos pelo tamanho da cicatriz mas por muito mais que está evidenciado nos factos provados.

Sendo um dano com cobertura legal – artigo 496º, nº 3 do CC - e devendo a respectiva indemnização ser fixada tendo ainda em conta a situação patrimonial da lesante, entende-se que o valor fixado pela instância recorrida é minimamente adequado.
Por isso, parece-nos razoável e adequado confirmar a fixar tal valor indemnizatório nos € 30.000 (trinta mil euros), com a consequente liquidação de sentença para ressarcimento por danos futuros.

3.3. Resta concluir pela improcedência de ambos os recursos, sem prejuízo de correcções formais que urge fazer à decisão colegial de Leiria e das mudanças factuais que se operarão, não se tendo por violados quaisquer das normas legais ou constitucionais aduzidas pelos recursos.

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 
I. Julgar improcedente o recurso interlocutório intentado pelo arguido AA (RECURSO Nº 1)
II. Quanto ao RECURSO nº 2:
A. CORRECÇÃO DO ACÓRDÃO
Procedemos à correcção do Dispositivo da sentença recorrida, ao abrigo do artigo 380º, nº 1, alínea b) e nº 2 do CPP.Assim, onde se lê:
«b.1) um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 22º nºs 1 e 2 als. a) e b), 23º nºs 1 e 2, 73º nº 1 als. a) e b), 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j), todos do Cod. Penal (…)»;
E
«b.2) um crime de violência doméstica agravada, na forma consumada, p. e p. no artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do Cod. Penal (…);
Dever-se-á ler (a sublinhado as devidas correcções):
««b.1) um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 22º nºs 1 e 2 als. a) e b), 23º nºs 1 e 2, 73º nº 1 als. a) e b), 131º e 132º nºs 1 e 2 al. l), todos do Cod. Penal (…);
E
«b.2) um crime de violência doméstica agravada, na forma consumada, p. e p. no artº 152º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do Cod. Penal (…);

B. ALTERAÇÕES NA MATÉRIA DE FACTO
· Reconhece-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410º, nº 2, al. a), do CPP, sendo o mesmo sanado com a modificação da matéria de facto, ao abrigo do artigo 431º, al. a), do mesmo diploma legal;
· Passará a constar do facto nº a.50-a) do rol de factos provados a seguinte factualidade: «FACTO a.50-a): «O arguido sabia que a faca que usou nos termos anteditos é própria para uso doméstico, transportando-a para fora do seu lugar normal de utilização»;
· Declara-se que o facto provado a.51 passa a não provado.

C. VEREDICTO FINAL SOBRE O RECURSO
· julgamos parcialmente procedente o recurso intentado pelo arguido AA (apenas mercê da não prova do facto a.51, tal como vinha defendido pela defesa em causa), MANTENDO todo o teor do acórdão recorrido (factos – com a salvaguarda do anterior ponto B -, Direito e penas).

Custas do recurso nº 1 pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
Sem custas o recurso nº 2 mercê do parcial provimento.

Comunique de imediato ao tribunal de 1ª instância, com nota de não trânsito em julgado (cfr. artigo 215º, nº 6 do CPP).


Coimbra, 6 de Novembro de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Maria da Conceição Miranda
Adjunto: Sara Reis Marques



[1] Foram aqui reproduzidas as Conclusões do Recurso nº 1, ABSTENDO-SE ESTE TRIBUNAL DE AQUI AS REPETIR.
[2] Note-se que no CPP não se prevê a contradita do CPC mas a acareação, não sendo admissível a primeira no âmbito do processo penal.
Recorde-se que a contradita não é um ataque ao depoimento em si, ou seja, ao seu conteúdo, sendo antes um ataque à própria pessoa da testemunha e às suas qualidades, não podendo, de facto, ser utilizada em processo penal.
[3] Como recentemente sentenciou esta Relação no Pº 1153/18.7PBVIS.C1, em aresto datado de 16/6/2021: «Não se aceita ainda a argumentação do recorrente, no sentido de que o indeferimento da prestação de depoimento em julgamento pela ofendida, impediu o esclarecimento das incongruências entre as declarações daquela e o depoimento da testemunha S.. Desde logo, porque o tribunal assinalou essas incongruências e decidiu em sede de motivação dos factos provados, no sentido de se considerar o depoimento da testemunha S. como credível no campo em que colidia com as declarações da ofendida. E assim sendo, não se percebe o que iria a nova inquirição da ofendida adiantar nesse aspeto; ou mantinha a versão já apresentada nas declarações de memória futura – e então a repetição da sua inquirição nada adiantaria – ou alteraria a versão no sentido do conteúdo do depoimento da testemunha S., o que apenas reforçaria a conclusão do tribunal a quo».
[4] O recurso apenas alude às declarações em inquérito da testemunha JJ, não cabendo pois no elenco dos depoimentos a revisitar por este Tribunal de recurso (apenas relevaria o seu depoimento em audiência).
[5] Podendo, em alguns casos, ser preferível começar pela impugnação ampla se for previsível que a sua análise e decisão sobre ela acabar por suprir algum vício existente do artigo 410º, nº 2 do CPP.
[6] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[7] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


[8] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
[9] Conforme refere Germano Marques da Silva, «é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável.
Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos a inferência feita maior ou menor eficácia probatória».
[10] A ausência na matéria de facto dada como provada do dolo de culpa, traduzida em não ter o tribunal “a quo” deliberadamente feito constar o excerto da acusação a ele respeitante («querendo afectá-las, como afectou, no seu bem estar físico e psíquico, na sua tranquilidade, honra e dignidade pessoais, resultado que representou, quis e logrou»), não constitui no específico caso dos autos, em que o crime em causa é a de todos bem conhecida violência doméstica, impedimento a que se mostrem preenchidos todos os elementos desse crime e à condenação do seu autor pelo mesmo. A fórmula usada pode não ter sido exemplar mas, a nosso ver, é suficiente para  a perfectibilização do elemento subjectivo do tipo em causa.
Sobretudo neste caso em que o elemento emocional ou volitivo do dolo, o qual se traduz em o agente agir com vontade, sabendo que estava a agredir uma companheira e uma filha sua está perfectibilizado (factos a.53 e a.54).
Acompanhamos aqui de muito perto as doutas explanações exaradas nos acórdãos da Relação de Évora de 22.9.2020 (Pº 3/19.1GDSTC.E1) e de 28.2.2023 (Pº308/22.0T8STR-A.E1).
[11] E é-o desde 9 de Janeiro de 2024 (fls 849).
[12] E algum do conteúdo do relatório da DGRSP, a fls  870-872, podem tornar mais clara a postura desta mulher endividada e carente do apoio do companheiro (cfr. facto a.82, 2ª parte).
[13] Já este Tribunal da Relação, ao decidir sobre o recurso da decisão que manteve o arguido em prisão preventiva, foi exemplarmente eloquente e taxativo: «Finalmente, a ofendida EE foi muito clara, como resulta da síntese das suas declarações, supra feita, na narrativa que fez das ameaças físicas que o pai lhe fez, bem como fez à ofendida FF, acrescendo a descrição que fez da agressão a que a mãe foi, então, sujeita. É certo que o recorrente invoca a invalidade das declarações na parte relativa à esta agressão, por se tratar de depoimento indirecto, mas, não o é. Com efeito, o recorrente limitou-se a transcrever um pequeno segmento das declarações da ofendida no qual esta, efectivamente, disse ter sido a mãe quem disse que o pai lhe tinha acertado com um soco na cara, ignorando o esclarecimento que a mesma ofendida, mais adiante, fez, no sentido de que, porque estava entre a mãe e o pai e de frente para este, não viu a mão do pai a atingir a cara da mãe, apenas viu o gesto do pai no sentido de ir dar um soco na mãe e depois viu e depois viu que a mãe estava marcada no rosto, ou seja, a testemunha/ofendida descreveu o juízo indutido aplicável à prova indiciária, indirecta ou por presunção. Vale isto dizer que, nesta parte, as declarações da ofendida não são subsumíveis á figura do depoimento indirecto».
[14] Ouve-se aos minutos 00:19:38 a 00:20:00: Testemunha JJ (em testemunho veemente, sólido e emotivo, capaz de nos merecer total credibilidade) :
«Ele estava a tentar fechar as portas, a gente disse-lhe quando ele tinha as duas facas “larga as facas que é uma ameaça para nós” e ele notava-se que ele estava notoriamente a tentar atingir ou seja, se eu lá deixasse o braço, o braço era atingido, ou seja, eu tinha que retirar o braço para o meu braço não ser atingido. Por isso é que eu digo, a intenção dele era mesmo atingir, não era uma pessoa que mostra duas facas e diz assim “tenho aqui duas facas” e se eu vou à frente ele um passo atrás e diz assim, continuo a ter duas facas, eu dou mais um passo à frente e ele foge, ou seja, ele não, ele enfrentou-nos. Ele tentou espetar as facas a nós, a gente é que se recuava para não ser atingido, ele tentava fechar a porta, uma coisa que a gente não podia permitir porque a gente sabia que estava uma vítima».



[15] Ao minuto 11:50, referiu ele, sem sombra de qualquer dúvida: «O intuito dele foi de atingir mesmo quem quer que lhe aparecesse à frente. Ele tinha referido que o primeiro que entrasse iria cair – ele referiu isso e concretizou
[16] Recorramos ao Acórdão da Relação de Lisboa de 5.11.2013 (Pº 563/12.8PBEVR.E1):
«A intenção de matar pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa, só a ele normalmente se chegando através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indirecta (indiciária).
Com efeito, os aspectos versados nesses factos provados, por se reconduzirem àquele âmbito da consciência e da vontade de decisão do ora recorrente, assumem a particularidade de não terem resultado de prova directa, tal como acontece na grande maioria das situações, porque comportam factores psíquicos, relacionados com a representação e fixação dos fins do crime, com a selecção dos meios e com a aceitação dos resultados da acção.
Como tal, a sua prova assentou em inferências extraídas dos factos materiais, analisados à luz da globalidade da que foi produzida e das regras de experiência comum, já que, estando-se no domínio de factos atinentes a uma realidade que escapa a uma directa observação, ela pode ser detectada através de ilação ou injunção, indirectamente do conjunto dos factos restantes e, neste sentido, é uma prova indirecta, que é reconhecida e aceite ao nível do processo penal, não contendendo com o previsto nos arts. 124º a 126º do CPP, nem com os limites definidos pela livre apreciação consagrada no art. 127º do CPP.
Entre os factos exteriorizadores dessa intenção, avultarão, no essencial, as zonas corporais atingidas, sobretudo quando nelas se alojam órgãos imprescindíveis à vida humana, o número de lesões, o instrumento de agressão e a sua forma de utilização.
Pode dizer-se que, a quem atinge zonas nobres do corpo humano, seja pelo número de vezes que o faz, seja pela idoneidade letal do instrumento usado a causar lesões graves, não verá facilitada a exclusão da intenção homicida».
Ora, o acórdão recorrido tudo isto bem explica.
[17] Note-se que só poderíamos concluir pela não verificação do aludido crime se a conduta do arguido estivesse abrangida pelo nº 3, do artigo 23º, do CP, que determina que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime, o que, in casu, é inaplicável, conforme decorre da factualidade apurada.
[18] Veja-se o aresto da Relação de Lisboa, datado de 15/3/2022 (Pº 63/20.2PFBRR.L1-5), que muito eloquentemente decidiu:
«(…) Que estamos perante uma arma, e mais concretamente, de uma arma branca, não haverá dúvidas.
Trata-se, com efeito, de um “objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm” – cfr. art. 2º, nº1, al. m), da Lei das Armas.
No domínio das redacções anteriores à Lei nº 50/2019, de 24 de Julho, é verdade que por relação às “facas de cozinha”, se formou entendimento Jurisprudencial no sentido de que as mesmas “tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas), não se transformando numa arma branca proibida pelo simples facto de ser desviada dessa sua aplicação/afectação” (por todos, o acórdão desta Secção de 20/12/2011 - que está por nós assinado como adjunto -, no processo nº 1246/08.9TASNT.L1-5, disponível em
www.dgsi.pj/jtrl).
Ou seja, “a caracterização de um objecto como arma proibida tem a ver com as suas características (grau de perigosidade) e com a utilização ou afectação normal delas, com a idoneidade dessa utilização ou afectação normal como meio de agressão. O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.
Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraída ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizado como tal.
Sendo indubitavelmente uma arma branca, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma branca proibida”.
III – 3.2.) Ora se no que toca a sua classificação como arma da Classe A por via do art. 3º, nº 2, al. d) (classificação operada em função do seu grau de perigosidade, fim a que se destinam e sua utilização), não parece ter havido grandes alterações em relação à redacção que se mostrava contemplada na anterior redacção da Lei das Armas [embora a actual al e), especifique na categoria das facas de abertura automática, as de ponta e mola, e acrescente as “cardsharps “e as equiparadas às estrelas de lançar], o mesmo não se diga em relação ao aditamento agora operado pela Lei nº 50/2019, de 24/07, ao referido preceito, de uma alínea designada por ab), a sustentar:

“ab) As armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse;”
Esta referência à não justificação da posse, era um conceito já anteriormente conhecido, por referência ao normativado no art. 86º, nº 1, al. d), da RJAM, em termos de incriminação pela detenção de arma proibida, mormente das armas brancas:
“… arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, (…).
Mas a actual al. d) de tal preceito, para além da actualização operada no respectivo elenco, em correspondência com a mencionada al. e) “Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”, veio também a acrescentar expressamente a essa incriminação “as armas brancas constantes na alínea ab) do nº 2 do artigo 3º”.
Ou seja, as armas brancas de utilização definida, rectius, as armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, passam a ser consideradas como proibidas, à semelhança das acima indicadas, “quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse”.

Tal como pertinentemente o assinala o Digno Recorrente, com a entrada em vigor da mencionada Lei, “o legislador passou a englobar na incriminação” do art. 86º “a posse de objectos com idêntica potencialidade lesiva aos que já se mostravam incluídos na norma incriminatória, nomeadamente as armas brancas com aplicação definida, quando encontradas fora dos locais destinados à sua utilização e cuja posse não seja justificada”, seguramente por ter entendido, serem “igualmente susceptíveis de provocar lesão ou perigo de lesão dos bens jurídicos tutelados” por aquela norma.
É precisamente a situação dos autos: o Arguido foi alegadamente surpreendido com a faca em causa, não na sua cozinha, mas na rua, e não justificou a respectiva posse».
É o caso da nossa faca.
Veja-se também, por ser relevante, o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Pº 648/22.2PHAMD.L1.S1, de 21/03/2024, do qual se retira que “O arguido que na sequência de uma discussão entra na cozinha da residência da vítima, pega numa faca de cozinha, com 20 cm de comprimento de lâmina e, de seguida, no exterior da mesma residência, com ela desfere dois golpes incisos, corto-perfurantes, na zona anterior do tórax, vindo com esta conduta a causar a morte da vítima, bem sabendo que a detenção e uso da faca do modo descrito, era penalmente censurável, preenche todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. d), do RJAM, por referência aos arts. 2º, nº 1, al. m) e 3º, n.os 1 e 2, al. ab), do mesmo diploma”.

[19] Vejamos as impressivas conclusões do estudo levado a cabo por Catarina Monteiro no Anuário de Ciências Policiais 2019 | 2020, sobre «Crise de Autoridade? Estudo das ocorrências de resistência e coação sobre funcionário»:
“Em função dos resultados obtidos, principalmente na análise macroscópica, podemos verificar que a evolução do crime de RCSF em Portugal acompanha, embora apenas parcialmente, a evolução da criminalidade geral.
Como vimos, ambas as variáveis apresentam dois ciclos opostos, um primeiro tendencialmente crescente e um segundo tendencialmente decrescente; contudo, esse comportamento idêntico apresenta um desfasamento temporal, na medida em que o ciclo decrescente do total de crimes de RCSF reportados ocorreu posteriormente e não variou negativamente tanto quanto a criminalidade geral.
A análise da evolução temporal e regional do crime de RCSF permite perceber a existência de uma continuidade ou descontinuidade de um modelo socializador. Isto conduz a entender, por exemplo, os dois ciclos encontrados como regularidades sociais que poderão indiciar transformações sociais ainda não consolidadas.
Foi, igualmente, observável a existência de diversidade regional do crime de RCSF pelo território nacional, sendo que a comparação do ano de 1998 com o de 2018 permitiu concluir que a prevalência criminal do ilícito aumentou consideravelmente, na mesma medida em que diminuiu acentuadamente a sua heterogeneidade. Isto significa que, na atualidade, mais regiões conhecem casos registados de RCSF, face ao panorama vivido há duas décadas atrás. Os crimes de RCSF têm alastrado como uma mancha de óleo, poupando neste momento alguns Municípios (mas cada vez menos).
A caracterização estatística bivariada (realizada ao nível macroscópico), que traduz a relação entre os crimes contra a autoridade pública, onde se inclui a RCSF, e outras variáveis criminais, demográficas e económico-sociais, permitiu a desconstrução de falsas evidências a propósito deste tipo de criminalidade, comummente associado a quadros sociais disruptivos, fortemente urbanizados e socialmente desfavorecidos. De forma resumida, apurou-se que essas características, embora parcialmente presentes, não são generalizáveis.
Para além disso, também a análise de âmbito mesoscópico permitiu identificar características predominantes, quer nos suspeitos, quer nas ocorrências, o que revela que o crime de RCSF não é uma conduta idiopática. Pelo contrário, e apesar de se tornar evidente a existência de padrões de comportamento social distintos, os mesmos encontram associação com a maioria das variáveis consideradas na investigação. Retém-se a ideia-chave de que as ocorrências de RCSF não apresentam um padrão uniforme de distribuição pelo território nacional, estando este facto (no presente estudo) associado às variáveis consideradas.
A análise macroscópica constituiu-se como um prenúncio no que concerne à revelação da existência de associação estatisticamente significativa entre o ilícito contra a autoridade pública e outras condutas penalmente sancionadas. Este cenário indicia que a ocorrência de crimes contra a autoridade pública tem lugar em atmosferas sociais suscetíveis a alguma desregulação social. Contudo, foi no decorrer da abordagem microssocial que se tornou viável a análise dos comportamentos que antecedem o crime de RCSF e, nesse sentido, verificamos que o mesmo comporta um leque de condutas antissociais, criminais ou não, evidenciadoras da quebra do sistema de valores e, consequentemente, do controlo social formal, neste caso materializado no ilícito em estudo. Por outro lado, quando procedemos à análise da criminalidade conexa com o crime de RCSF, verificamos que muitas ocorrências estão associadas a outras tipificações penais, com grande destaque para os crimes de injúria agravada e de ameaça
agravada.
Embora o tipo objetivo do ilícito apenas seja preenchido quando sucedem atos de violência (OIF e/ou ameaça grave) contra vítimas específicas, a análise das condutas que antecederam o crime em estudo, bem como a averiguação da existência de criminalidade conexa revela que a esmagadora maioria as ocorrências de RCSF está associada a outro tipo de comportamentos antissociais, sejam eles praticados antes, durante ou após o crime de RCSF propriamente dito. Estes resultados, decorrentes da investigação, comprovam que o ilícito ocorre, muitas vezes, associado a outros crimes ou condutas que não se coadunam com os valores e normas sociais estabelecidas.
(…)
Parece-nos óbvio que os resultados obtidos, apoiados pela revisão teórica previamente realizada, permitem afirmar que a evolução dos crimes contra a autoridade pública, e em particular a RCSF, pode ser entendida como um proxy da desregulação social observada na contemporaneidade».
[20] Fazendo nossas as ilustres palavras da Professora Conceição Cunha que defende que “quanto mais importantes forem os bens jurídicos, mais abrangente deverá ser a sua tutela penal pois em bens jurídicos ligados ao núcleo essencial da dignidade humana (tais como a vida, a integridade física e psíquica, a liberdade, incluindo a liberdade sexual), a tutela penal deve ser tão extensa e primordial quanto possível” (cfr. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, “Do dissentimento à falta de capacidade para consentir”, “Combate à Violência do Género – Da Convenção de Istambul à nova legislação penal”, Universidade Católica Editora, 2016, págs. 139.