DECISÃO QUE NÃO ADMITE O RECURSO
EXTRATOS BANCÁRIOS
PROVA DOCUMENTAL
RESERVA DA VIDA PRIVADA
Sumário

I - O conhecimento do teor de extractos bancários de contas bancárias do réu, para prova de uma doação deste, ulterior à data de um negócio determinado, só se justifica, enquanto limitação ao direito à reserva da vida privada, para o período ulterior a essa data e não, e sem qualquer justificação, também, para os seis anos anteriores.
II - O anúncio da hipótese de aplicação de uma sanção processual não é ainda uma decisão de que possa recorrer-se.

Texto Integral

Proc. nº 542/24.2T8AVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 2


REL. N.º 914
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juiz Desembargador Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria da Luz Teles Meneses de Seabra




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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


1 – RELATÓRIO
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AA instaurou a presente acção de processo comum contra BB e CC, pedindo que seja declarada nula a doação da quantia de €260.000,00, do 1º Réu à 2ª Ré, ordenando-se a restituição desta quantia ao 2º Réu, através de transferência bancária para a conta bancária de que este seja titular.
Alegou ser filho do réu e que este, depois de enviuvar, anunciou que casaria com a ré, tendo esta tratado de o afastar do contacto com os filhos, vendido património da herança por partilhar e feito a referida doação, que deve ter-se por nula.
Após contestação, foi realizada audiência prévia, onde foi fixado o objecto do litigio e enunciados temas de prova, nos seguintes termos:
“Constitui objeto do litígio:
Apurar se depois da venda dos prédios, urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...96 da Freguesia ..., e rústico descrito na mesma CRP com o n.º ...47 da mesma freguesia, o 2.º Réu, por transferência bancária, doou à 1.ª Ré a quantia de € 260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros).
Constitui tema da prova:
Para a questão única do objeto do litígio, importa apurar, para prova, a veracidade dos enunciados de facto constantes nos artigos 28, 31 e 32 da petição inicial; e, para prova do contrário, apurar a veracidade dos enunciados de facto alegados nos artigos 105 a 118 e 124 da contestação.”
Nesses artigos, consta o seguinte:
Da petição:
28º - O Autor tomou ainda conhecimento que, dias depois da referida venda dos prédios, o 2º Réu, uma vez mais sem nada dizer ou sequer comentar aos filhos, doou à 1º Ré a quantia de €260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros), correspondente a mais de metade do preço da venda dos aludidos imóveis!!!
31.º - O 2º Réu, para além de ter ficado sem o património imobiliário que ao longo da sua vida quis preservar para si e para os seus, ficou também desempossado da quantia de €260.000,00!!
32.º - E, já após o Requerente e as suas irmãs terem tomado conhecimento da aludida venda, uma vizinha da irmã DD contactou-a para lhe referir que a Sra. D. BB (1º Ré) lhe tinha dito que o marido (pai do A. e aqui 2º Réu) tinha feito bem em vender pois o dinheiro assim não fala!!!!
Da contestação:
105. O certo é que também investiu muito dinheiro em património imobiliário que doou aos seus filhos, sendo a única pessoa que trabalhava no casal formado com a 1º esposa e mãe dos seus 3 filhos.
106. Foi, de facto, um pai dedicado e muito generoso, gastando dezenas de milhares de euros com o casamento das filhas, com a compra em nome dos seus filhos de património imobiliário, bem como com a doação de imóveis à sua filha DD.
107. O R. nunca disse aos seus filhos que não iria vender património; simplesmente não tinha que lhes dar satisfação do que foi adquirido com o seu suor e lágrimas.
108. Se é certo que o R. e os seus filhos acabaram por chegar a um entendimento quanto partilha dos bens da Herança da D. EE,
109. O certo é que aos filhos do R. foram adjudicados bens de valor muito superior ao quinhão hereditário que os mesmos eram titulares,
110. Não tendo o R. recebido qualquer valor de tornas de qualquer um dos seus filhos.
111. Sucede que o R. foi operado a um joelho, com colocação de prótese no ano de 2018, tendo tido uma recuperação demorada, o que o levou a passar cada vez menos tempo na casa de ....
112. A casa necessitava de manutenção, bem como a piscina, que orçava a vários milhares de euros, sendo certo que os filhos do R. também não desfrutavam daquela casa já que não passavam férias, nem fins de semana nessa habitação.
113. E porque sentia cada vez menos vontade de se deslocar a ..., e encontrando-se totalmente confortável na sua casa de ... (casa essa que lhe foi doada pelos seus pais e onde sempre viveu) decidiu colocar à venda o imóvel por não desfrutar do mesmo, nem sentir que os seus filhos tivessem qualquer ligação emocional com aquele local.
114. A casa esteve à venda cerca de 2 anos, tendo sido vendida em novembro de 2022, pelo valor constante da escritura, isto é €380.000,00.
115. Se é certo que, quando o prédio foi colocado à venda no ano de 2020 numa imobiliária de ..., o valor da venda era mais elevado, o certo é que, como não apareceram quaisquer interessados na aquisição, o R. baixou ligeiramente o valor do preço para a quantia acima referida.
116. Quer o A., como as suas irmãs tiveram conhecimento que o R. iria vender o imóvel porque o R. assim lhes comunicou e porque no imóvel estavam colocadas placas que publicitavam a venda do mesmo, o que ocorreu durante cerca de 2 anos.
117. Com o dinheiro que tinha amealhado ao longo da sua vida e com o que restou da venda do imóvel (após o pagamento do imposto de mais valias que foi de cerca de €59.000,00) o R. não precisa de quaisquer outros rendimentos para fazer face às suas despesas,
118. E caso assim pensasse nunca teria permitido que aos seus 3 filhos fosse adjudicado o imóvel de ... e a nua propriedade da casa de ..., porque ambos os imóveis valiam, à data da partilha, mais 2 milhões de euros!
124. Também não corresponde à verdade que o R. aufira uma pensão de €3.000,00 líquidos, pois a sua reforma é de cerca de €2.300,00 mensais.
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Sucessivamente, decidindo sobre o requerimento instrutório do autor, o tribunal proferiu o seguinte despacho:
“Por não se mostrar desnecessário nem impertinente, admito a prova documental requerida pelo Autor nos itens 2, 3 e 4 do requerimento probatório constante da petição inicial, devendo a secretaria oficiar nos termos aí referidos. Quanto ao período temporal a que se referem os extratos bancários que constam do item 3 do mesmo requerimento probatório, o Tribunal limita o início desse período à data do casamento em que os Réus contraíram casamento entre si, ou seja, a partir de 05/03/2016, sendo que não existem elementos que justifiquem a limitação do direito de prova do Autor a um período anterior àquele em que terá ocorrido a alegada doação (ou seja, 07/11/2022).
Os Réus ficam notificados para prestar, por escrito, consentimento para que as entidades bancárias informem nos autos nos termos requeridos pelo Autor, consentimento esse que deve ser prestado no prazo de 10 dias, advertindo-se os Réus de que, na falta de prestação desse consentimento, e após audição das partes, o Tribunal pode ponderar a inversão do ónus da prova nos termos do disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPC e no artigo 344º n.º 2 do CC.”
Naqueles itens 3 e 4 era requerida a obtenção dos extratos da(s) conta(s) de que o 2º Réu fosse titular, no Banco 1..., S.A, e na Banco 2..., S.A, desde janeiro de 2015 até à presente data, bem como para indicar quem deu ordens de transferência da quantia de €260.000,00, de forma fracionada ou unitária, e para que conta(s) bancária(s) e a titularidade da(s) conta(s) que recebeu(ram) a(s) aludida(s) transferência(s).
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É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pelos RR., que o terminam formulando as seguintes conclusões:
1. Nos termos do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa é garantido a todos a reserva da sua vida privada, sendo a lei do sigilo bancário mero corolário desse comando constitucional.
2. Constitui objecto do litigio apurar se depois da venda dos prédios, urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...96 da Freguesia ..., e rústico descrito na mesma CRP com o n.º ...47 da mesma freguesia, o 2.º Réu, por transferência bancária, doou à 1.ª Ré a quantia de €260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros).
3. Constituindo os temas da prova apurar, para prova, a veracidade dos enunciados de facto constantes nos artigos 28, 31 e 32 da petição inicial; e, para prova do contrário, apurar a veracidade dos enunciados de facto alegados nos artigos 105 a 118 e 124 da contestação.
4. Nos termos da legislação processual civil o objecto do processo é o objecto do litígio, no sentido que é este que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum.
5. A actividade do tribunal, consubstanciada na investigação e prova de determinados factos não pode sair fora dos limites traçados pelo pedido efectuado pelo A. na pi, sob pena de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 609º, nº 1 e 615º, nº 1, alíneas d) e e) do CPC.
6. A actividade decisória do tribunal também tem de se confinar ao objecto do litigio.
7. Não se pode aceitar, nem tal é justificado no despacho objecto deste recurso que sendo o objecto do litígio saber-se se, depois de 07/11/2022 (data da venda dos dois imóveis situados em ...) houve doações de dinheiro do Recorrente marido à Recorrente mulher, se imponha aos aqui Recorrentes que juntem aos autos os extratos bancários de todas as contas bancárias identificadas no ponto 3. e 4. desde a data em que os Réus contraíram casamento entre si, ou seja, a partir de 05/03/2016, isto é, mais de 06 anos e meio antes da realização da escritura!
8. Tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, o direito ao sigilo bancário pode-se ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
9. A dispensa do sigilo bancário é, desde logo, uma situação excepcional e por consequência sujeita a apreciação casuística e segundo critérios restritivos.
10. Ela apenas se justifica se for necessária, ou seja, por ser de utilidade manifesta para o apuramento dos factos, e também proporcional, quer relativamente à relevância do litígio, quer relativamente ao sacrifício imposto aos valores protegidos pelo segredo.
11. No juízo formulado a propósito da ponderação dos interesses em jogo, entendem os Recorrentes que a almejada informação bancária requerida pelo Autor jamais deverá ser prestada, porquanto o acesso a todos os extratos bancários dos Recorrentes desde 05/03/2016 fornece informações confidenciais de toda e qualquer movimentação bancária efectuada durante os 78 meses antes da escritura, designadamente quanto à chamada biografia dos Recorrentes, nada contribuindo para a decisão quanto ao objecto do litígio e aos temas da prova, tal como estes foram definidos na audiência prévia, sendo violador do direito à reserva da intimidade da vida privada dos Recorrentes consagrado no artigo 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
12. Levando em consideração os critérios da necessidade e da proporcionalidade e da adequação que devem presidir à quebra do sigilo, e tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como ónus e regras de prova, entendem os Recorrentes que a informação solicitada atinente à disponibilização ou acesso todos os seus extratos bancários desde 05/03/2016 não se mostra necessária para o apuramento da verdade e da justa composição do litígio.
13. Parece-nos evidente que a situação em concreto e tendo também em consideração o concreto objecto do litígio, não reveste as características mínimas que tornam exigível, necessária ou justificada a gravosa aplicação da cominação processual sancionatória em referência.
14. O despacho recorrido violou, entre outros, os artigos 26º e 18º da CRP, bem como os artigos 417º, nº 2 do CPC e o artigo 344º, nº 2 do CC.
Deve, pois, conceder-se provimento ao recurso e, em consequência, revogar-se, in totum, o despacho do M. Juiz a quo proferido na audiência prévia datada de 3 de setembro de 2024 porque o mesmo viola o direito constitucional à reserva da intimidade da vida privada dos Recorrentes consagrada no artigo 26º da CRP, como também viola os princípios da proibição do excesso ou da proporcionalidade previsto no artigo 18º da Lei fundamental.
Assim se fazendo, Justiça
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O A. ofereceu resposta ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da decisão recorrida.

O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.

Cumpre decidi-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, a pretensão dos recorrentes acaba por não ser absolutamente clara, quando terminam pedindo que se revogue “…in totum, o despacho do M. Juiz a quo proferido na audiência prévia datada de 3 de setembro de 2024…”.
É óbvio, todavia, que nas conclusões desse recurso, a sua impugnação é dirigida apenas em relação a dois pontos:
- que a recolha de informação sobre os movimentos nas contas bancárias em questão, junto do Banco 1... e da Banco 2..., abranja também o período anterior à data da venda dos imóveis situados em ... – 7/11/2022 – desde a data de casamento dos réus, i. é, desde 5/3/2016;
- à imposição, aos réus, da cominação de inversão do ónus da prova, no caso de não autorizarem aos dois bancos referidos a prestação dessa informação ao processo.
É certo que os apelantes não deixam absolutamente claro, no pedido com que terminam o seu recurso, que apenas rejeitam a recolha de informação relativamente ao período entre 5/3/2016 e 7/11/2022, pois que acabam por pedir a revogação integral do despacho que deferiu o requerimento instrutório do A.
Porém, atentando-se no teor da conclusão 7ª, na sustentação da sua tese no facto de o objecto do litígio se referir apenas a um período temporal ulterior à data da venda (7/11/2022) e no apelo a princípios de necessidade e proporcionalidade, o que se interpreta do seu articulado é que eles se conformam com a recolha da informação bancária em questão (extractos dos movimentos nas duas contas) a partir de 7/11/2022.
Por outro lado, no seu articulado recursivo, os apelantes chegam a afirmar que deveria bastar ao tribunal obter a informação “… a existência de eventuais transferências bancárias efectuadas da conta do recorrente marido para a conta da recorrente mulher a partir de 7/11/2022 e não toda e qualquer movimentação bancária que viole do direito à intimidade da vida privada dos recorrentes.”
Porém, nas conclusões do seu recurso, onde – como se referiu supra – se define o objecto do recurso e se sediam as únicas questões que o tribunal ad quem deve apreciar, nada é referido a este propósito. Por conseguinte, à luz do disposto no nº 3 do art. 635º do CPC, só pode concluir-se que os apelantes desistiram tacitamente da sujeição dessa questão à apreciação deste tribunal de recurso.
Atentemos, então, na 1ª questão colocada: saber se deve manter-se a decisão que tem por objecto a obtenção dos extractos bancários das contas do réu junto do Banco 1... e da Banco 2..., relativos ao período entre 5/3/2016 e 7/11/2022.
Decidiu o tribunal, referindo-se ao requerimento probatório do autor: “Quanto ao período temporal a que se referem os extractos bancários que constam do item 3 do mesmo requerimento probatório, o Tribunal limita o início desse período à data do casamento em que os Réus contraíram casamento entre si, ou seja, a partir de 05/03/2016, sendo que não existem elementos que justifiquem a limitação do direito de prova do Autor a um período anterior àquele em que terá ocorrido a alegada doação (ou seja, 07/11/2022).”
Antes de mais, afigura-se-nos que a aparente limitação de parte do despacho aos extractos bancários que constam do item 3, isto é, relativos ao A... procede de mero lapso, pois que o requerimento, sob o item 4, em relação aos extractos das contas junto da Banco 2..., é precisamente igual ao referido à conta no Banco 1..., a que respeita o item 3. E a decisão do tribunal começa por abranger os extractos das contas em ambos os bancos. Será, pois, nesse pressuposto que haverá de se decidir a questão.
Sobre o início do período temporal relativamente ao qual deve ser recolhidos os extractos bancários, a essência da fundamentação do tribunal é não haver elementos que justifiquem a limitação do direito de prova do autor ao período anterior à data da venda.
Todavia, a questão deve colocar-se precisamente ao contrário: o que o tribunal deve justificar é se, na ponderação conjunta dos interesses de realização da justiça, a que se reconduz a pretensão probatória formulada pelo autor, e de reserva da vida privada, a que se reconduz a oposição do réu marido, se justifica ou não privilegiar aquele e até que ponto.
Na identificação dos interesses em presença, é de grande utilidade o teor do Ac. do T. Constitucional nº 442/2007, de 14-08-2007, publicado em www.tribunalconstitucional.pt.
Daí se retiraram os seguintes excertos: “Das três manifestações em que se fracciona o conteúdo do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar – direito à solidão, direito ao anonimato, e autodeterminação informativa – é esta última a sua expressão cimeira e mais relevante, e aquela que particularmente nos interessa quando está em causa o estatuto constitucional do sigilo bancário. (…) Por autodeterminação informativa poderá entender-se o direito de subtrair ao conhecimento público factos e comportamentos reveladores do modo de ser do sujeito na condução da sua vida privada. (…) Indicativamente poderá dizer-se que o conceito cobre a esfera de vida de cada um que deve ser resguardada do “público”, como condição de plena realização da identidade própria e de salvaguarda da integridade e da dignidade pessoais. (…) É sobretudo como instrumento de garantia de dados referentes à vida pessoal, de natureza não patrimonial, que, de outra forma, seriam indirectamente revelados, que o sigilo bancário deve ser constitucionalmente tutelado. (…) o segredo bancário localiza-se no âmbito da vida de relação, à partida fora da esfera mais estrita da vida pessoal, a que requer maior intensidade de tutela. Ainda que compreendido no âmbito de protecção, ocupa uma zona de periferia, mais complacente com restrições advindas da necessidade de acolhimento de princípios e valores contrastantes”.
Em plena concordância com o que acaba de se transcrever, afirma-se que não constituindo o segredo bancário um valor absoluto, nem sequer estando no que pode considerar-se ser o núcleo do valor constitucional a que é elevada a reserva da intimidade da vida privada, o mesmo haverá de ceder sempre que isso seja necessário para acautelar outros valores de hierarquia mais elevada, em consonância com o princípio da prevalência do interesse preponderante.
Não temos dúvidas em situar num tal plano mais elevado o valor inerente à boa administração da justiça, de onde emana o dever de cooperação estabelecido no art. 417º, nº 1 do CPCl. Com efeito, é função do Estado, que a desenvolve através do poder judicial, isto é dos tribunais, assegurar aos cidadãos que a causa em que são partes é objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, de modo a que se apure a verdade e se consiga uma justa composição do litígio - art. 20º, 1 e 4, da CRP, 2º, 7º, 411º e 417º do Código de Processo Civil (cfr. Ac. do TRC de 10-03-2009, em dgsi.pt)
Assim, perante um conflito entre o direito à reserva da vida privada subjacente ao segredo bancário, e o interesse de realização da justiça, deverá o mesmo ser dirimido no sentido da superação daquele direito.
E tal afirma-se, não em abstracto, mas perante os interesses em concreto que, no caso em apreço, se identificam com a justa efectivação do direito à declaração de nulidade de um negócio eventualmente prejudicial para o autor. Isso constitui, in casu, condição necessária ao apuramento dos factos necessários à realização de um direito em discussão.
De resto, e em paralelo com o que se ponderou no Ac. do TRC de 10-03-2009, em dgsi.pt, que se citou anteriormente, “Essa solução está conforme a uma certa hierarquização dos direitos garantidos constitucionalmente e em consonância com as normas atinentes à colisão de direitos, insertas no art. 335º do Código Civil, aplicáveis, porque, in casu, a quebra do sigilo afecta interesses privados e visa a realização da justiça num caso em que também se discutem interesses dessa ordem, se bem que, aqui, a ênfase tenha de ser posta no interesse público dos tribunais disporem de todos os elementos para decidirem de acordo com a verdade das coisas (…)”.
Todavia, do que vem de dizer-se não resulta que o direito à reserva da vida privada ou, no caso especificamente, o direito à reserva sobre as transacções financeiras deva ceder ilimitadamente à pretensão do seu conhecimento pelo autor, a fim de garantir a realização de um seu alegado direito. Porém foi isso que foi afirmado pelo tribunal, ao justificar a sua decisão com a circunstância de “não haver elementos que justifiquem a limitação do direito de prova do autor ao período anterior à data da venda.
Pelo contrário, a limitação ao direito à reserva da vida privada, no caso na dimensão da reserva ao conhecimento de movimentos financeiros em determinadas contas bancárias dos RR. é que tem de ser justificada. E só se justifica na medida em que esse conhecimento for essencial à decisão do litígio instalado nos autos. Em suma, não carece de procurar-se a justificação para limitar o direito de prova do autor; tem, isso sim, buscar-se a justificação limitação para o direito de reserva da vida privada dos RR. e só na medida em que tal se justifique é que se pode limitar esse direito.
Ora, no caso, a pretensão de conhecimento das transacções financeiras dirigidas do réu marido à ré mulher será destinado apenas a um fim: o de saber se, depois da data da venda dos prédios do 1º réu, em ..., que ocorreu em 7/11/2022, este fez uma doação de 260.000,00€, à ré mulher, por transferência bancária.
Foi isso, precisamente, que foi fixado no objecto do litígio. Subsequentemente, em consonância com esse objecto, os temas de prova enunciados a partir dos factos alegados pelo autor (pontos 28º, 31º e 32º da petição, como referido no despacho que os destacou) referem-se também a factos ulteriores à data da venda. Sem que seja oportuno pronunciarmo-nos sobre os termos em que foram enunciados tais temas de prova, o que é certo é que é quanto a eles, no âmbito do objecto do litígio anteriormente fixado, que haverá de se desenvolver a actividade instrutória a cargo do autor. Ao que acresce que, mesmo em atenção aos temas de prova selecionados por referência à matéria da contestação, o conhecimento de movimentos financeiros ocorridos nas contas dos RR. não é tido como necessário, nem aí é sediada a decisão do tribunal.
Temos, então, de concluir que, para a decisão do objecto do litígio e para a instrução probatória dos temas de prova fixados pelo tribunal e que lhe correspondem, apenas poderá ser útil a informação financeira constante dos extractos bancários ulteriores à data da venda. Nenhuma utilidade terá o conhecimento do teor dos extractos bancários referentes ao período anterior à data da venda, designadamente desde a data do casamento dos RR, em 5/3/2016, e a data da venda, em 7/11/2022, para se apurar se ocorreu a doação em questão, alegadamente executada por uma ou mais transferências bancárias, depois de 7/11/2022.
Por consequência, nenhuma justificação existe – nem sequer foi alegada - para que se imponha aos RR. a obrigação de permitirem o acesso a tais informações bancárias, quanto ao período anterior a 7/11/2022. Ou, o mesmo é dizer-se, nenhuma justificação existe para que se limite o seu direito à reserva quanto a tal informação, em relação a tal período.
Haverá, pois, de proceder a apelação quanto a esta matéria.
Pelo exposto, a decisão recorrida será revogada na parte em que determinou a recolha de informação bancária constante dos extractos de contas do 1º réu junto dos bancos Banco 1... e Banco 2..., entre 5/3/2016 e essa data.
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A segunda questão refere-se à parte do despacho em que o tribunal refere: “Os Réus ficam notificados para prestar, por escrito, consentimento para que as entidades bancárias informem nos autos nos termos requeridos pelo Autor, consentimento esse que deve ser prestado no prazo de 10 dias, advertindo-se os Réus de que, na falta de prestação desse consentimento, e após audição das partes, o Tribunal pode ponderar a inversão do ónus da prova nos termos do disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPC e no artigo 344º n.º 2 do CC.”
Os apelantes impugnam a cominação que lhes foi anunciada, nos termos da qual a falta de tal consentimento lhes irá determinar a inversão do ónus da prova, invocando que isso não se justifica. Dizem na sua conclusão 13ª: “…a situação em concreto e tendo também em consideração o concreto objecto do litígio, não reveste as características mínimas que tornam exigível, necessária ou justificada a gravosa aplicação da cominação processual sancionatória em referência.”
Este segmento das conclusões recursivas é absolutamente coerente com o sustentado no corpo das alegações, onde os apelantes se insurgem contra a cominação da inversão do ónus da prova, alegando não se verificarem os respectivos pressupostos, que concretizam: “a) a impossibilidade de realização da prova – com a inviabilidade prática da demonstração de determinado facto em juízo- pela parte onerada com o respectivo ónus; b) resultando causalmente tal impossibilidade da actuação da parte contrária; c) que esta última actuação possa considerar-se como culposa.”
Constata-se, assim, que os apelantes não impugnam o comando que lhes foi dirigido, para prestarem o seu consentimento à prestação das informações bancárias referidas supra, pelos bancos Banco 1... e Banco 2..., alegando, por exemplo, não deverem ser sujeitos a essa obrigação ou haver outros expedientes disponíveis para a obtenção da informação bancária pretendida. Insurgem-se, isso sim, quanto à imposição da cominação constituída pela inversão do ónus da prova.
Assim, não pode aqui decidir-se da bondade daquele comando, ou se o mesmo é inadequado, por exemplo, em face da disponibilidade do expediente de levantamento do sigilo bancário, de que o tribunal poderia lançar mão em caso de ausência do consentimento do R. marido para a obtenção da informação bancária em causa. Por isso, isso não haverá de ser aqui apreciado.
Porém, apesar de isso, sim, ser pretendido, também não cabe decidir se, nas circunstâncias do caso, é legítimo, ou não, o decretamento da inversão do ónus da prova pois.
É que, na realidade, o tribunal não o decretou. Limitou-se a afirmar que poderia vir a ponderar a aplicação dessa cominação, no futuro e após audição das partes.
Isso significa, em suma, que inexiste uma efectiva decisão apta a prejudicar processualmente os recorrentes, onerando-os com a prova da ausência de transferências bancárias concretizadoras da doação de 260.000,00€. Isso não foi decidido. Não passou do anúncio de uma hipótese futura.
Portanto, não pode este tribunal revogar uma tal decisão, pois que decisão nenhuma existe. Só no futuro, se se verificarem circunstâncias que venham a motivar o tribunal recorrido a decretar uma tal decisão é que ela poderá ser objecto de impugnação. Não pode ser sindicada a enunciação de uma mera hipótese.
Pelo exposto, nesta parte, não procederá a apelação.
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Resta, por isso, conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida na parte em que determinou a recolha de informação bancária constante dos extractos de contas do 1º réu junto dos bancos Banco 1... e Banco 2..., entre 5/3/2016 e 7/11/2022.
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Sumário:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte em que determinou a recolha de informação bancária constante dos extractos de contas do 1º réu junto dos bancos Banco 1... e Banco 2..., entre 5/3/2016 e 7/11/2022, confirmando-a no mais.

Custas por apelante e apelados, em partes iguais.

Registe e notifique.
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Porto, 5 de Novembro de 2024
Rui Moreira
Artur Dionísio Oliveira
Maria da Luz Seabra