EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
FUNDAMENTOS
FACTOS IMPEDITIVOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Sumário

I - Ao devedor basta formular o pedido de exoneração do passivo restante, declarar expressamente que preenche os requisitos que permitem essa exoneração e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos arts.237º ss do CIRE.
II - Consubstanciando os fundamentos de indeferimento liminar contidos no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, por força do art. 342.º do CC a respetiva alegação e prova compete aos credores ou ao Administrador da Insolvência que a ele se oponham.
III - Para efeitos da verificação do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo previsto no art. 238º al. d) do CIRE, a eventual apresentação tardia à insolvência não constitui presunção de prejuízo para os credores, sendo de exigir uma concreta conduta de agravamento do passivo, designadamente com injustificado extravio ou dissipação de património por forma a reduzir de forma significativa a garantia patrimonial dos credores.
IV - Mesmo na hipótese mencionada na alínea e) do art. 238º do CIRE incumbirá a quem se oponha à admissão liminar do pedido de exoneração a prova do fundamento previsto naquela alínea, isto é, a prova de elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.

Texto Integral

Processo n.º 8024/23.3T8VNG.P1- Apelação Autónoma

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO

1. AA e BB apresentaram-se à Insolvência, por requerimento de 20.10.2023, declarando pretender a exoneração do passivo restante.

2. Por sentença proferida em 24.10.2023, transitada em julgado, foi decretada a Insolvência de AA e BB, e relegado para momento processual oportuno a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante.

3. Apresentado em 27.11.2023 o Relatório a que alude o art. 155º do CIRE pela Administradora de Insolvência, esta não se opôs à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos devedores.

4. Por requerimento de 28.11.2023, a Administradora de Insolvência deu conhecimento que os insolventes tinham informado que haviam alienado o veículo de matrícula ..-FO-.. por €1.800,00, que alegaram estar em mau estado de conservação, e que tinham destinado aquele valor a despesas do agregado familiar.
Mais informou que entende que não há interesse da massa insolvente no veículo.

5. Dada vista ao Magistrado do Ministério Público, por promoção de 6.02.2024 foi requerido que os insolventes informassem se com o valor recebido pela venda do veículo procederam ao pagamento de algum valor em dívida aos credores que reclamaram créditos (AT…).
6. Notificados para o efeito, os insolventes responderam em 22.02.2024 que o veículo havia sido vendido entre Setembro e Outubro do ano anterior e que o preço se destinou integralmente ao orçamento anual da família, nomeadamente despesas de alimentação.

7. Por promoção de 21.03.2024 o Magistrado do MP deu parecer no sentido do indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, com o seguinte teor:
“Face à venda dos veículos identificados nos autos, sem que o produto da venda tenha sequer sido usado para pagamento das dividas aos credores, entende o MP que o pedido de exoneração do passivo deve se indeferido.”

8. Foi proferida decisão em 11.04.2024, Ref. Citius 458870283, com o seguinte teor (transcrição).
“Pelo exposto, indefere-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes AA e BB
Custas do procedimento de exoneração do passivo a cargo dos devedores, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s (art. 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, art. 7.º, n.1, do RCP e Tabela III), sem prejuízo do eventual apoio judiciário de que beneficiem.
Notifique, registe, publique e comunique nos termos dos artigos 38º, 230.º, n.º 2, 247.º do C.I.R.E.”

9. Inconformados com a decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, os Insolventes interpuseram recurso de apelação da decisão, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
A- Entendeu o Tribunal a quo, da douta sentença proferido aos 15/04/2024 com referência 459144673, indeferir a Exoneração do Passivo.
B- As situações conducentes ao indeferimento liminar encontram-se elencadas no art. 238º, de forma taxativa, ou seja, só as situações aí designadas, e não quaisquer outras, podem justificar que o pedido de exoneração do passivo restante seja indeferido liminarmente.
C- É entendimento maioritário da jurisprudência que os fundamentos de indeferimento liminar elencados nas alíneas do art. 238º, nº 1, constituem factos impeditivos do direito à exoneração do passivo, constituindo matéria de exceção.
D- Por isso, o ónus de alegação e prova de tais factos recai sobre os credores do insolvente e o administrador da insolvência. (negrito e sublinhado nosso)
E- Ou seja, e dito de outro modo, os factos mencionados nas alíneas do nº 1, do art. 238º, não são constitutivos do direito do devedor insolvente a ser-lhe concedido o benefício da exoneração e, por isso, não impende sobre ele o ónus de alegação e prova da sua não verificação, antes é sobre o administrador de insolvência ou sobre os credores, interessados no indeferimento liminar desse benefício, que recai o ónus da alegação e da prova dos factos conducentes ao indeferimento liminar posto que os mesmos configuram factos impeditivos da sua concessão, tratando-se, portanto, de matéria de exceção, a qual, de acordo com a regra geral do nº 2, do art. 342º, do CC, tem de ser alegada e provada pelo administrador de insolvência ou pelos credores.
F- Restringe-se a decisão à al. d) e) do nº 1, do art. 238º, como causa de indeferimento liminar.
Alínea d) do nº 1 do art. 238º:
G- Dispõe a al. d) do nº 1, do art. 238º, que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
H- Dispõe o art. 18º:
1 - O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.
2 - Excetuam-se do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.
3 - Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º
I- Por seu turno, dispõe o art. 3º, nº 1, para o qual remete o art. 18º, nº 1, que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
J- Portanto, da leitura conjugada destes normativos, resulta que o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, ou dentro dos 30 dias seguintes à data em que devesse conhecer essa impossibilidade de cumprimento.
K- Por força do nº 2, do art. 18º, não estão sujeitos ao dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.
L- Como tal, o dever de apresentação à insolvência “não é extensivo às pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa - na aceção do art. 5º- na data em que incorrem em situação de insolvência, ainda que, acrescentamos, o tenham sido anteriormente”.
M- No caso dos autos, estando em causa uma pessoa singular - não titular de uma empresa - logo não sujeita ao dever de apresentação à insolvência (artigo 18.º n.º 2 do CIRE), o indeferimento do pedido obriga a que sejam cumulativamente verificados os seguintes requisitos:
a. ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência;
b. ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; (negrito nosso)
c. sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
N- Para que a norma se aplique será preciso, por um lado, que entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores se verifique um nexo de causalidade; o conhecimento ou desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica será, por sua vez, a circunstância que faz que os outros dois factos assumam relevância qualificada.
O- O comportamento dos insolventes não agravou a posição dos credores,
P- Pressupondo o prosseguimento do pedido de exoneração uma lisura e rectidão do comportamento anterior dos insolventes no que respeita à sua situação económica, a preservação ou não do dito veículo automóvel, face ao seu valor económico não agravaria nem melhoria a posição dos credores.
Acrescentar,
Q- Alega o douto despacho que os Insolventes estão em incumprimento perante o credor A... GMBH desde outubro de 2011, perante o credor B... SARL desde novembro de 2017, perante a Autoridade Tributária de IRS desde 2011, de IMI desde 2013 e perante a segurança social desde 2012.
R- Não se apurou que o não acatamento de tal prazo haja causado prejuízo aos credores, para além daqueles que decorrem do normal vencimento de juros sobre as obrigações contratuais.
S- Como é sabido a nossa Jurisprudência tem decidido, maioritariamente, (cfr. Acórdão de 10.05.2021, do Tribunal da Relação do Porto, Relator: Carlos Gil ou de 22.02.2022 do mesmo Tribunal Relator: João Ramos Lopes), que não integra o conceito normativo de “prejuízo”, pressuposto da alínea d) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, o simples aumento global dos débitos do devedor causados pelo simples acumular de juros.
T- Também não consta dos presentes autos um agravamento assinalável da posição creditícia de terceiros.
U- Consta apenas o seguinte: “Na verdade, para os credores advieram prejuízos que não se consubstanciam no mero não pagamento das dívidas já existentes.
V- O prejuízo para os credores corresponde, no caso em apreço, ao valor da venda do veículo automóvel que os insolventes venderam.”
W- Não se encontra assim verificado o fundamento de indeferimento liminar previsto na 1ª parte, da al. d), do nº 1, do art. 238º. (negrito nosso).
Alínea e) do nº 1 do art. 238º:
X- Se os insolventes se tivessem apresentado à insolvência sendo proprietários desse veículo o mesmo nunca seria apreendido para a massa, e como tal nunca existira produto da sua liquidação, nem qualquer entrega aos credores para pagamento, dos seus créditos.
Y- O artigo 232 do CIRE estabelece que, verificando o Administrador da Insolvência que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, dá conhecimento desse facto ao juiz.
Z- Recorde-se, que quando o património da massa seja inferior a cinco mil euros – n.º 7 do art. 232º CIRE.
AA- O juiz, ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, declara encerrado o processo, salvo se algum interessado depositar à ordem do tribunal o montante determinado pelo juiz segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente.
BB- Nos presentes autos, está em causa um veículo automóvel, o único bem que detinham, e terem beneficiado da quantia de €1800.00 (valor real de venda que num processo de insolvência teria um redução de cerca de 40% ), em virtude do recebimento do preço de tal venda, comportamento que agravou o seu estado insolvencial, locupletando-se com tal valor, e retirando-o da égide dos credores da massa insolvente. Por força da alienação do veículo em causa, ocorreu um agravamento da situação de insolvência. Só assim não seria se os insolventes tivessem alegado e provado nos autos que o produto da venda do veículo tinha sido utilizado para pagamento de créditos.
CC-Na eventualidade de os insolventes não terem vendido tal veículo, o mesmo também nunca seria apreendido e vendido pela massa insolvente, nos termos do alegado e exposto nos artigos supra.
DD- Neste seguimento, não pode o douto despacho alegar que o prejuízo para os credores corresponde, ao valor da venda do veículo automóvel que os insolventes venderam.
EE- E mais, os insolventes justificaram esta venda como uma necessidade, pois têm 4 filhos em comum e vivem no limiar da pobreza, justificando a este tribunal que tal montante foi gasto em prol das necessidades básicas e elementares deste agregado familiar.
FF- Não pode o tribunal deixar de adequar o regime legal às particularidades de cada caso concreto, tendo como critério orientador o desiderato legal e constitucional de assegurar/salvaguardar o sustento minimamente condigno do devedor e do respetivo agregado familiar.
GG- Por isso, o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos tem que ser comprimido na medida do que seja necessário, adequado e proporcional à salvaguardada do sustento minimamente digno do devedor e respetivo agregado familiar visto que assim o impõe o respeito pela dignidade da pessoa humana.
HH- No caso em apreço, pode se dizer, no tocante às concretas condições económicas e padrão de vida adoptados, que os Insolventes usaram tal montante para salvaguardada do sustento minimamente digno do respetivo agregado familiar, associado ao facto de tal veículo pelo seu valor económica nunca seria apreendido para a massa insolvente, este comportamento não agravou o seu estado insolvencial, nem retirou da égide dos credores da massa insolvente.
II- Pode afirmar-se face ao ora exposto, que na eventualidade de os insolventes se tivesse apresentado atempadamente á insolvência, sem que tivessem vendido o veículo em causa, não alteraria em nada as atuais circunstâncias dos presentes autos.
JJ- Não se encontra verificado o fundamento de indeferimento liminar previsto na 1ª parte, da al. e), do nº 1, do art. 238º.
KK-Neste seguimento deverá a douta sentença proferida pelo tribunal a quo ser revogada.

10. Não foram apresentadas contra-alegações.

11. O Magistrado do MP apresentou resposta, pugnando pela manutenção do julgado.

12. Foram observados os vistos legais.

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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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A questão a decidir é a seguinte:
- Se o pedido de exoneração do passivo restante deve ser liminarmente admitido.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Pelo tribunal de 1ª Instância foi considerada assente a seguinte factualidade:
a) AA e BB apresentaram-se à insolvência em 20/10/2023.
b) Os mesmos têm 4 filhos a seu cargo.
c) O insolvente AA está desempregado e no ano de 2023 auferiu a quantia de €1.100,85.
d) A insolvente BB explora um alojamento local dos seus pais, tendo auferido no ano de 2023 a quantia de €3.351,07.
e) No ano de 2022 os insolventes tiveram um rendimento global de 2.350,00 euros.
f) Os insolventes venderam em setembro de 2022 o veículo com a matrícula “..-FO-..” pelo preço de €1.800,00.
g) Quanto ao valor recebido por essa alienação os insolventes alegaram que o mesmo terá sido afetado à satisfação das necessidades associadas à sua subsistência, designadamente, para pagamento de despesas de alimentação.
h) Os insolventes estão em incumprimento perante o credor A... GMBH desde outubro de 2011, perante o credor B... SARL desde novembro de 2017, perante a Autoridade Tributária de IRS desde 2011, de IMI desde 2013 e perante a segurança social desde 2012.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Se o pedido de exoneração do passivo restante deve ser liminarmente admitido.
Compulsada a decisão recorrida, o tribunal a quo proferiu decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante que havia sido formulado pelos devedores aquando da apresentação à insolvência, em consonância com a promoção apresentada pelo Magistrado do Ministério Público, sem que tenha nela deixado exarada em qual das hipóteses consagradas no art. 238º do CIRE fundamentava juridicamente a sua decisão.
Sendo certo que fez alusão ao longo da decisão recorrida ao art. 238º do CIRE, não enquadrou especificamente o indeferimento liminar em nenhuma das hipóteses consagradas nas várias alíneas do referido preceito legal, quando o elenco das causas de indeferimento liminar estão nele contempladas em termos taxativos.
Os Apelantes centraram os seus argumentos nas alíneas d) e e) do art. 238º nº 1 do CIRE e embora a decisão recorrida não as mencione expressamente certo é que não foram dados como provados factos que possam contender com as demais alíneas do referido preceito legal, para além de que do seu texto se extrai a utilização do conteúdo vertido nas alíneas apontadas pelos recorrentes, mormente o recurso ao circunstancialismo previsto no art. 186º do CIRE, artigo para o qual remete a aludida alínea e) do art. 238º nº 1 do CIRE.
Deste modo, centraremos a análise do objecto do recurso, tal como os Apelantes o fizeram, na apreciação da verificação ou não no caso em apreço dos fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante consagrados nas alíneas d) e e) do art. 238º do CPC.
Segundo o supra citado preceito legal o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
d) o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.
O regime da exoneração do passivo restante, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, tributário do direito americano (e recebido no direito alemão) e da ideia de fresh start, ou novo arranque, que tem o propósito de libertar o devedor das suas obrigações, conferindo-lhe a oportunidade de (re) começar do zero.
A exoneração do passivo restante constitui, para o devedor insolvente, uma libertação definitiva dos débitos não integralmente satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento, nas condições previstas no incidente a que aludem os referidos arts. 235º e ss do C.I.R.E.[1]
Assim o passivo restante não é mais do que o conjunto dos créditos sobre a insolvência não integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento (neste sentido, Carvalho Fernandes, João Labareda, C.I.R.E. Anotado, Quid Iuris, 2008, pág. 778, anotação 3 e Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 559).
Aos devedores basta formular o pedido de exoneração do passivo restante e declarar expressamente que preenchem os requisitos que permitem essa exoneração e se dispõem a observar todas as condições exigidas nos arts.237º ss do CIRE, como o fizeram os aqui insolventes.
Tal como perfilha a maioria da Doutrina e Jurisprudência[2], consubstanciando os fundamentos de indeferimento liminar contidos no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, por força do art. 342.º do CC a respetiva alegação e prova compete aos credores ou ao Administrador da Insolvência que a ele se oponham.
Assim defende Luís Menezes Leitão, “a decisão de indeferimento liminar pelo Tribunal deve ser tomada após audição dos credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa desta, no prazo de 10 dias após o decurso do prazo de 60 dias após a prolação da sentença que declara a insolvência, a menos que o pedido seja apresentado fora de prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos que constituem fundamento de indeferimento (art. 238º, nº 2). Não ocorrendo nenhuma dessas situações, compete a quem pretenda que não seja concedida a exoneração do passivo restante efectuar a prova dos fundamentos de indeferimento liminar, atenta a sua natureza de factos impeditivos da pretensão do devedor (art. 342º, nº 2, CC).”[3]
No mesmo sentido, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, fazendo alusão a jurisprudência abundante no sentido de considerar os factos constantes das várias alíneas do nº 1 do art. 238º do CIRE como matéria de excepção, cujo ónus de prova recai sobre os credores e o administrador da insolvência.[4]
Neste caso, a Administradora de Insolvência quando apresentou o Relatório previsto no art. 155º do CIRE não se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos devedores na petição inicial, nem o fez qualquer dos credores reclamantes, com excepção do Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer no sentido do indeferimento liminar desse pedido mas sem que o tenha fundamentado em qualquer preceito legal, fazendo alusão genérica ao simples facto de ter havido “venda dos veículos identificados nos autos, sem que o produto da venda tenha sequer sido usado para pagamento das dividas aos credores”.
Desde logo cumpre realçar que dos factos provados não consta a venda de veículos, mas a venda de um único veículo de matrícula ..-FO-.., venda realizada no ano de 2022 pelo preço de €1.800,00.
E, como acima mencionamos, quem se opõe ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante deve alegar e provar todos os factos constitutivos de um dos fundamentos taxativamente previstos no art. 238º do CIRE, não tendo o Magistrado do MP alegado quaisquer factos para além da menção à venda do veículo pelos devedores sem que o produto da mesma tenha sido usado para pagamento das dívidas aos credores, quanto a nós manifestamente insuficiente para sustentar um pedido de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.
Senão vejamos.
Para a verificação do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto na alínea d) do art. 238º do CIRE, necessário se tornaria a demonstração nestes autos do seguinte:
1. que os devedores se tivessem apresentado à insolvência para lá dos seis meses em que se verificou a sua situação de insolvência;
2. que, a ter ocorrido a apresentação para lá desse prazo, isso tenha causado prejuízo efectivo para os credores (não prejuízo presumido);
3. que, os devedores soubessem ou não pudessem ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua condição económica.
Sendo aqueles requisitos cumulativos[5], não bastará que os devedores tenham vendido um veículo automóvel e com o produto da venda (€1800,00) não tenham satisfeito qualquer credor, quando alegaram que o destinaram a suprir necessidades do agregado familiar mormente de alimentação, e essa alegação veio a ser dada como provada.
Apesar de estar dado como provado que os insolventes estão em incumprimento perante o credor A... GMBH desde outubro de 2011, perante o credor B... SARL desde novembro de 2017, perante a Autoridade Tributária de IRS desde 2011, de IMI desde 2013 e perante a segurança social desde 2012 não constam quaisquer factos que nos digam que os devedores estariam em situação de insolvência entre 2011 e 2012 como se fez menção na decisão recorrida, pois que na ausência de elementos de facto sobre o valor global dessas dívidas e sobre os rendimentos ou património pertencente aos devedores durante esse longo período de tempo não se poderá concluir com suficiente segurança que nessa altura os devedores estivessem impossibilitados de cumprir as obrigações vencidas- art. 3º nº 1 do CIRE.
Embora esteja dado como provado que no ano de 2022 os insolventes tiveram um rendimento global de €2.350,00, também ficou provado que no ano de 2023 o rendimento terá sido superior dado que a insolvente BB auferiu a quantia de €3.351,07 e o insolvente AA a quantia de €1.100,85.
Isto para concluir que se afigura demasiado parca a matéria de facto apurada para se poder afirmar que os devedores se apresentaram à insolvência para lá dos seis meses em que se verificou a sua situação de insolvência.
Mas mesmo que se admita que o tenham feito para lá dos seis meses em que se verificou a sua situação de insolvência, não nos parece que estejam demonstrados os demais requisitos exigidos pela alínea d) do art. 238º do CIRE.
Resulta pacífico na maioria da Doutrina e Jurisprudência que se debruçou sobre este tema, que não basta o mero decurso do prazo dos seis meses para que se possa afirmar que essa inobservância do prazo causou prejuízos aos credores, não podendo a eventual apresentação tardia à insolvência constituir presunção de prejuízo para os credores, não sendo a mera contabilização de juros de mora associados ao atraso no pagamento das dívidas suficiente para o efeito, uma vez que se assim fosse, haveria sempre prejuízo, o que acabaria por reconduzir aquela exigência legal a uma mera redundância inconsequente e inútil.
Será, pelo contrário, de exigir uma concreta conduta de agravamento do passivo, designadamente com contração injustificada de novas dívidas ou injustificado extravio ou dissipação de património por forma a reduzir de forma significativa a garantia patrimonial dos credores.
Neste sentido, citamos, entre outros: Ac RP de 22/2/2022, Proc. Nº 3219/14.3TBMTS.P1; Ac STJ de 14/2/2013, Proc. Nº 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1; Ac STJ de 21/3/2013, Proc. Nº 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1 e Ac STJ de 27/3/2014, Proc. Nº 331/13.0T2STC.E1.S1, todos in www.dgsi.pt; Luís Menezes Leitão, A Recuperação Económica dos Devedores, 2ª edição, pág. 139;Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pág. 566/567 e Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, pág. 535/536.
Este último Autor (Alexandre de Soveral Martins), esclareceu que (…) “deve entender-se que o prejuízo para os credores tem que ser provado, não bastando o mero decurso do tempo. A lei exige uma relação causal entre o comportamento do devedor e o prejuízo para os credores. Para que se possa concluir pela existência desse prejuízo, será necessário comparar com o que seria a sua previsível situação se o devedor tivesse cumprido o dever de apresentação ou, não existindo esse dever, se tivesse apresentado nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.”
Tal como referem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[6], “No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Janeiro de 2012 (processo nº 152/10.1TBBRG-E.G1.S1), relator Fonseca Ramos, pode ler-se que “a ratio legis do instituto da exoneração é evitar o colapso financeiro do insolvente pessoa singular, implicando uma moderada transigência com a apresentação intempestiva, ligando-a, apenas reflexamente, ao facto dessa omissão poder ser causadora de prejuízo para os credores”, que “o conceito de prejuízo deve ser interpretado como patente agravamento da situação dos credores que assim ficariam mais onerados pela atitude culposa do insolvente” e que “a apresentação tardia do insolvente/requerente da exoneração do passivo restante, não constitui, por si só, presunção de prejuízo para os credores […] pelo facto de, entretanto, se terem acumulado juros de mora-competindo aos credores do insolvente e ao administrador da insolvência o ónus de prova desse efectivo prejuízo, que se não presume.” No mesmo sentido, v. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de março de 2011 (processo nº 570/10.5TBMGR-B.C1.S1), relator Martins de Sousa, e de 21 de outubro de 2010 (processo nº 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1)relator Oliveira Vasconcelos, havendo ainda numerosíssima jurisprudência das relações no mesmo sentido.
No acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de janeiro de 2010 (processo nº 135/09.4TBSJM.P1), relator Pedro Lima Costa, decidiu-se que “o prejuízo para os credores de que trata[…] [esta alínea] é o que resulta do capital de dívidas contraídas pelo devedor em período posterior ao momento em que a sua insolvência está consolidada e/ou que resulta de dissipação de património pelo devedor nesse mesmo período, reduzindo a garantia patrimonial de todos os credores, ou a garantia patrimonial de alguns credores que não está autorizado a preterir nessa dissipação”.
Com a factualidade apurada nos autos afigura-se-nos que também não podemos afirmar que houve injustificado extravio ou dissipação de património por parte dos devedores por forma a reduzir de forma significativa a garantia patrimonial dos credores, não constando do elenco dos factos provados qual era o património dos devedores para se aferir se a venda daquele veículo automóvel reduziu de forma significativa a garantia dos credores, não sendo suficiente que os devedores o tenham vendido e não tenham destinado os €1800,00 para pagar a qualquer um dos credores para se considerar suficientemente demonstrado o requisito do prejuízo efectivo e concreto dos credores (não basta um prejuízo presumido).
A própria Administradora de insolvência no relatório apresentado afirmou que “não há interesse da massa insolvente no veículo”.
Exige-se ainda a verificação de um elemento subjectivo- a culpa dos devedores, traduzida no facto de saberem ou não puderem ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, não existindo factualidade que revele este requisito cumulativo do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Quanto à verificação do circunstancialismo previsto no art. 238º al. e) do CIRE, convém precisar que não estamos no âmbito da utilização das presunções de culpa estabelecidas no art. 186º nº 2 do CIRE, as quais são de aplicar no âmbito do incidente da qualificação da insolvência como culposa, porquanto no âmbito do indeferimento liminar do passivo, mesmo na hipótese mencionada na alínea e) funcionam as mesmas premissas das demais, incumbindo a quem se oponha à admissão liminar do pedido de exoneração a prova do fundamento previsto naquela alínea, isto é, a prova de elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.
Entendemos que a remissão feita para o art. 186º do CIRE restringe-se ao seu nº1, sendo comum na alínea e) do art. 238º e no art 186º nº 1 a menção à “situação de insolvência ter sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
É inegável que a venda do veículo pelos devedores ocorreu no ano anterior ao processo de insolvência, mas tal não bastará, sendo necessário que esteja indiciada com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Consta como facto dado como provado que quanto ao valor recebido pela alienação do veículo de matrícula ..-FO-..- €1800,00-, “os insolventes alegaram que o mesmo terá sido afetado à satisfação das necessidades associadas à sua subsistência, designadamente, para pagamento de despesas de alimentação”, facto esse que não foi impugnado e que é compatível com a composição do agregado familiar dos insolventes e com os exíguos rendimentos auferidos no ano de 2022, estando a esse propósito vertido nos factos provados que têm 4 filhos a seu cargo, e que no ano de 2022 (ano em que venderam o referido veículo) os insolventes tiveram um rendimento global de 2.350,00 euros, manifestamente insuficiente para fazer face às necessidades básicas de um agregado familiar de 6 pessoas, pelo que, perante este circunstancialismo de facto, também não nos parece sustentável afirmar que os aqui Apelantes hajam retirado um benefício injustificado ou censurável da venda do referido veículo e com isso tenham agravado a situação de insolvência.
Deste modo, da factualidade apurada não consideramos indiciada com toda a probabilidade a existência de culpa dos devedores, na modalidade de dolo ou culpa grave, na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º, conforme exigido pela alínea e) do art. 238º do CIRE.
E tanto assim é que ninguém requereu a abertura do incidente da qualificação da insolvência, a qual veio a ser declarada pelo tribunal a quo como insolvência fortuita em despacho proferido na mesma ocasião.
Em suma, consideramos que não se mostram suficientemente provados factos que permitam dar por verificados os fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante consagrados no art. 238º nº 1 al. d) ou e) do CIRE.
Deste modo, em função da procedência dos fundamentos recursivos, revoga-se a decisão recorrida, devendo ser proferida nova decisão que defira liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante aos devedores/Apelantes, contendo as determinações exigidas pelo art. 239º do CIRE.

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V. DECISÃO:

Em razão do antes exposto, julga-se procedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes/Insolventes, revogando-se a decisão recorrida, devendo ser substituída por decisão de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante contendo as determinações exigidas pelo art. 239º do CIRE.

Custas a cargo da massa insolvente- arts. 303º e 304º do CIRE.

Notifique.




Porto, 5.11.2024

Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
(Relatora)
Ramos Lopes
(1º Adjunto)
Artur Dionísio Oliveira
(2º Adjunto)

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)

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[1] O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, pág. 102 e 103.
[2] Entre outros, Ac RP de 10.07.2024, Proc. Nº 5341/23.6T8VNG.P1, www.dgsi.pt
[3] A Recuperação Económica dos Devedores, 2ª edição, pág. 140
[4] CIRE Anotado, 2013, pág. 661
[5] Neste sentido, entre outros, Ac RP de 21.05.2024, Proc. Nº 3185/22.1T8AVR.P1, www.dgsi.pt
[6] CIRE Anotado, 2013, pág. 658