I - Não podendo concluir-se da análise dos articulados (e/ou dos termos da causa) que as partes estavam cientes do (ou despertas e acauteladas para o) enquadramento do caso à luz de um qualquer instituto jurídico – seja por nunca sequer aludirem ao seu nomen iuris, seja por não aludirem aos seus pressupostos e requisitos, ainda que possa ter sido alegado o facto que permite equacionar a aplicação de tal instituto na decisão –, tem de entender-se que a sua apreciação na decisão constitui uma decisão-surpresa, traduzindo apreciação de questão nova (no sentido de não discutida no processo).
II - Ocorre violação do contraditório (art. 3º, nº 3 do CPC) quando a questão apreciada e decidida pelo tribunal, ainda que decorrendo de matéria trazida aos autos por uma das partes, não foi por estas tratada e discutida de modo efectivo, cientes de que poderia vir a assumir o relevo e importância que lhe é dado na decisão tomada pelo tribunal.
III - O vício referido (violação do contraditório) é gerador de nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, d) do CPC), a invocar no recurso dela interposto.
Apelante: AA (co-ré).
Apeados: BB e mulher CC (autores)
Juízo local cível da Póvoa de Varzim (lugar de provimento de Juiz 2) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
Contestou a ré AA, alegando, no que releva, que o contrato de arrendamento, celebrado pelo prazo de dois anos, como início em Outubro de 2013 e omisso quanto ao prazo de renovação, foi renovado em Outubro de 2015 por dois anos (art. 1096º do CC, na redacção então vigente), tendo a segunda renovação ocorrido em Outubro de 2017 até Setembro de 2019, sendo que em Outubro de 2019 (face à nova redacção do art. 1096º, nº 1 do CC, introduzida pela Lei 13/2019, de 12/02) se renovou por três anos, até Setembro de 2022, sendo que em Outubro de 2022 se renovou até Setembro de 2025, pois a comunicação dos autores dando conta da oposição à renovação do contrato (carta de 6/06/2022) não observou o prazo para tanto estipulado na lei.
Tendo no final dos articulados (por se entender possível o conhecimento imediato do mérito da causa) sido julgada (em decisão que fixou à causa o valor de 11.250,00€) parcialmente procedente a acção, reconhecendo-se que o contrato de arrendamento celebrado em 01/10/2013 e identificado pelos autores na petição inicial caducou em 30 de Setembro de 2023 (partiu-se, para tanto, da consideração de que se verifica a autoridade de caso julgado a propósito dos termos inicial e final da terceira renovação do contrato - início em 1/10/2020 e final em 30/09/2023 - em atenção à sentença proferida no processo nº 1059/21.2T8PVZ que correra termos entre as partes), por os autores se terem oposto à sua renovação, condenada a primeira ré a entregar aos autores as fracções objecto do contrato, livres e desocupadas de pessoas e bens, nas condições em que as recebeu e condenadas ambas as rés no pagamento de indemnização mensal de 750€ (setecentos e cinquenta euros), equivalente ao dobro da renda acordada, desde 30 de Setembro de 2023 até efectiva entrega das fracções, apresentou-se a primeira ré, AA, a apelar, pretendendo a alteração da sentença (saneador-sentença) e absolvição das rés dos pedidos, terminado as alegações formulando as seguintes conclusões:
1ª. Vem o presente recurso de apelação vem interposto do saneador-sentença proferido pelo Tribunal a quo nos autos supra identificados, com a referência Citius n.º 458240310, que julgou a ação totalmente procedente, e ordenou a entrega do imóvel livre de pessoas e bens e o pagamento de valor no dobro da renda por via da caducidade do contrato de arrendamento em 30-09-2023, com a qual a ora recorrente não se pode conformar,
2ª. Da fundamentação de direito da sentença extrai-se em suma como alicerce da decisão proferida a pag. 13 e ss: que apesar de a subscritora da decisão não ter o mesmo entendimento, a sentença proferida em processo anterior que correu termos no mesmo tribunal sob o nº 1059/21.2T8PVZ fez caso julgado, ficou a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele (art.º 619 nº 1 do CPC). Embora no caso vertente não haja a tríplice identidade (sujeitos, pedido e causa de pedir) que levam a verificação da exceção de caso julgado, não pode negar-se a autoridade de caso julgado à sentença proferida no processo nº 1059/21.2T8PVZ. e que (…) versou sobre a eficácia da comunicação de oposição à renovação, fundamentou a decisão com o juízo de que a 2ª renovação do contrato havia vigorado entre 1/10/2017 e 30/09/2020 e que a 3ª renovação vigoraria entre 01/10/2020 e 30/09/2023, cremos que tal fundamentação, por constituir o antecedente lógico e necessário da decisão, se impõe neste processo.
3ª. Entendeu a MMª Juiz a quo que In casu, desconsiderando a primeira comunicação expedida à 1ª Ré em que se solicita a desocupação do locado até 30/09/2022, não restam dúvidas de que os senhorios comunicaram por mais 3 vezes a sua oposição à renovação contrato…. Solicitando a entrega do locado nesta data (factos provados 7 e 9). Mercê do exposto impõe-se reconhecer que o contrato de arrendamento celebrado entre as partes caducou em 30/09/2023, por os Autores se terem oposto validamente à sua renovação.(…)
4ª. É com esta fundamentação que não se conforma a Ré Recorrente!
5ª. Pois entende a Ré que muito andou mal o tribunal a quo ao decidir de mérito de imediato no saneador e bem assim ao decidir de mérito pela forma como decidiu na sentença recorrida, porquanto a sentença posta em crise padece das nulidades previstas nas alíneas d) e c), segunda parte, do nº 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil; constitui decisão surpresa, impõe-se ademais alteração do facto provado 3, e incorreu em erro de julgamento de direito, pois são imperativas as normas referentes a denúncia oposição à renovação dos contratos de arrendamento – artº 1096 CCivil; não foi válida nem eficaz a comunicação da oposição à renovação feita pelos Autores e inexiste ou não é aplicável o instituto de autoridade de caso julgado, sendo que ademais, não existe por parte da Ré mora na entrega do locado.
6ª. Analisado o saneador-sentença proferido pelo tribunal a quo, vislumbramos quer os Autores quer a Ré ora Recorrente alegaram que foi enviada uma carta pelos senhorios proprietários datada de 1/6/2022, em 6/6/2022, a comunicar a oposição à renovação do contrato de arrendamento com efeitos a partir de 30/09/2022, carta que a mesma recebeu e à qual reagiu comunicando que não foi então observada a antecedência legalmente exigida e como tal na data apontada de 30/9/2022 não caducaria e o contrato renovar-se-ia por 3 anos entre 1/10/2022 e 30/9/2025 - realidade que foi até dada como provada nos factos assentes 3, 4, 5 e 6. E foi alegada pelos Autores nesta ação.
7ª. Todavia, de forma ambígua ou obscura, é decidido no saneador-sentença desconsiderar essa missiva submetida à apreciação do tribunal – v. pg 16 1º§:
8ª. Tal assunção feita pela Mmª Juiz a quo - de desconsiderar sem qualquer fundamento uma comunicação expressa feita pelos senhorios por carta registada com aviso de receção em que os mesmos se opõem à renovação e solicitam a entrega do imóvel em 30/9/2022 – que não se concebe nem aceita e é ilegal constituindo nulidade.
9ª. É que, da mesma forma, dificilmente se compreende que, não tendo os cidadãos (queremos referir-nos aos aqui Autores) acatado a vigência do contrato definida pelo tribunal, e tendo os mesmos exercido o seu direito de se oporem à renovação e definido de forma inequívoca e expressa a data para qual remetiam a produção de efeitos, venham depois de 9 meses de silêncio absoluto (5 meses dos quais após a comunicação em questão), opôr-se à renovação, com efeitos para outra data a que agora lhe convinha mais já que a inquilina a quem criou a convicção de que em Setembro de 2022 o contrato de renovou por mais 3 anos!!!!! - Por isso é que era mister que o Mmº Julgador a quo apreciasse esta questão suscitada pelas partes – já que foi alegada pelas partes e foi dada com provada – o que constitui omissão de pronúncia.
10ª. Acresce que, deu como provados os factos 10, 11 e 12 que em nossa modesta opinião não podiam aqui nestes autos ser dados como provados, pois que nunca tal foi pedido e ademais não tem a eficácia que se lhe pretendeu atribuir na sentença em crise – o que estava vedado ao tribunal ao quo e constitui nulidade que desde já se invoca para os devidos e legais efeitos.
11ª. Entende a Recorrente que o saneador-sentença constitui uma decisão surpresa, na medida em que o tribunal a quo não se pronunciou antes sobre as questões suscitadas pelas partes, não procedeu à realização de audiência prévia na qual tentasse a conciliação das partes (a espelhar ou não as posições vertidas nos articulados), não facultou aos Ilustres Mandatários das partes a discussão das respetivas posições com vista à delimitação dos termos do litígio, tendo-se o tribunal limitado a proferir despacho, notificando-o às partes, no sentido de que “não existindo matéria controvertida de factos essenciais à boa decisão da causa, contendo os autos todos os elementos” o Tribunal já se encontrava em condições de proferir decisão, ordenando a conclusão dos autos para prolação de saneador sentença.
12ª Impõe-se a impugnação da matéria de facto dada como provada pois lavra em erro a matéria de facto máxime facto 3. que “Por carta registada com aviso de recepção enviada para a morada do locado, em 01 de Junho de 2022, os autores comunicaram a sua oposição à renovação do contrato à arrendatária 1ª ré, conforme documento junto a fls. 15 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, em que solicitam a entrega do locado até 30/09/2022.” (negrito e sublinhado nosso) pois não podia o tribunal a quo dar como provado que a referida carta registada foi enviada a 01/06/2022 quando do teor dos documentos juntos pelo Autor como Doc nº 3 verso e Doc. Nº 4 verso avisos de recepção - demonstram que as cartas foram expedidas pelos Autores a 6/6/2022. Pelo que terá que ser alterado o ponto 3 dos factos provados para: “Por carta registada com aviso de recepção, datada de 01/06/2022, enviada para a morada do locado, em 01 de Junho de 2022, os autores comunicaram a sua oposição à renovação do contrato à arrendatária 1ª ré, conforme documento junto a fls. 15 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, em que solicitam a entrega do locado até 30/09/2022.” 26
13ª. Incorreu também a sentença posta em crise em erro de julgamento porquanto:
14ª. sendo imperativas as normas referentes a denúncia oposição á renovação dos contratos de arrendamento – artº 1096 C. Civil e se o contrato de arrendamento em discussão nos presentes autos foi celebrado no dia 3 de abril de 2013, por força do disposto no n.º 3 deste artigo 26º “[O]s contratos de duração limitada renovam-se automaticamente, quando não sejam denunciados por qualquer das partes, no fim do prazo pelo qual foram celebrados, pelo período de três anos, se outro superior não tiver sido previsto, sendo a primeira renovação pelo período de cinco anos no caso de arrendamento para fim não habitacional”. - Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto.
O decidido pelo tribunal que julgou o processo 1059/21.2T8PVZ, porque apenas consta da fundamentação da sentença que julgou a acção totalmente procedente e porque foi postergado pelo próprio ali Réu não pode ir contra as leis imperativas.
15ª. A sentença posta em crise desconsiderando pura e simplesmente a missiva datada de 1/6/2022 que os Autores dirigiram às Rés em 6/6/2022 e a resposta das Rés, valorizou apenas as missivas em que os Autores que depois de um longo silêncio, por três vezes entre Fevereiro e Março de 2023, expressaram a oposição à renovação indicando como caducidade do contrato 30/9/2023 e data de produção de efeitos 01/10/2023 e assim considerou esta válida e eficaz.
16ª. Todavia, somos de entendimento que, a oposição à renovação levada a efeito pelos Autores em 2023 e que constitui objecto dos presentes autos não pode ser considerada válida nem eficaz pois, como já tivemos ocasião de expressar, não se podia simplesmente obviar a comunicação anterior referida no inicio do parágrafo anterior – neste sentido vasta jurisprudência (Acórdão da Relação de Lisboa de 24/05/2022 (Processo n.º 7855/20.0T8LRS.L1-7, Relatora Desembargadora Micaela da Silva Sousa, também disponível em www.dgsi.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no referido processo n.º 1426/19.1T8VCT e Acórdão da relação de Guimarães de 23/3/2023 em que foi Relatora Raquel Baptista Tavares.
17ª. porque os Autores comunicaram às Rés a caducidade para 30/9/2022, conforme carta expedida no dia 6/6/2022 tem que se considerar que este é um direito do senhorio postestativo e que tem que ser expresso e inequívoco sendo que a data da renovação é um elemento necessário da comunicação a efetuar ao arrendatário, porque se trata também para o referido arrendatário, de um elemento essencial para garantir a salvaguarda dos direitos deste, de maneira a estabelecer, com segurança, a sua obrigação de restituir o locado, não podendo esta ficar, bem como o respetivo cumprimento ou as consequências da recusa, dependente de qualquer facto de aleatoriedade derivado da comunicação emitida, da interpretação do recetor ou das divergências interpretativas do quadro legal.
18ª. Assim, tendo os Autores comunicado à Ré em 06/06/2022, via postal registada com aviso de recepção (já em resposta a carta da Ré de 26/6/2020), de forma expressa clara e inequívoca, que o contrato devia cessar em 30/09/2022, é essa a data que tem que ser atendida, por mais cartas a desdizer isto que posteriormente enviem os AA., pois a Ré não podia ter considerado por qualquer modo, outra data para a sua cessação.
19ª. Doutra forma ou se trata de expediente ardiloso dos aqui AA Recorridos para seja com que fundamento obterem o locado o mais rápido possível OU então, se não foi essa intenção ardil, a carta de 6/6/2022 apenas reflecte que também os RR naquela ação perante a procedência total da acção também eles assumiram que foi dada razão à mesma que naquela acção propugnou que o contrato se renovou em 30/09/2019 por mais 3 anos ou seja até 30/09/2022.
20ª. O comportamento dos próprios AA posterior à sentença proferida no processo 1059/21.21.2T8PVZ é que comprometeu o resultado e a atitude posterior é a nosso ver completamente contrária aos ditames da boa fé.
21ª. propugna a Recorrente que não podia a sentença recorrida fazer apelo à autoridade de caso julgado uma vez que pese embora a mesma haja transitado em julgado a verdade é que no referido processo 1059/21.2T8PVZ se tratou de uma ação intentada pela aqui Ré contra os AA para ser declarado que o contrato estava plenamente em vigor até 30/09/2022, não existindo quaisquer rendas em dívida (sustentando que não se operara em 30/09/2020 a caducidade por oposição à renovação efetuada por carta pelos senhorios por falta de cumprimento do aviso prévio) e pese embora a ação foi julgada totalmente procedente por provada e
22ª. na perspetiva da posição da ali autora vencedora (a ora aqui Recorrente), a procedência do seu pedido, determinou a preclusão de alegabilidade futura tanto da causa de pedir deduzida em razão da exceção de caso julgado, como das causas de pedir que poderia ter deduzido em razão da falta de interesse processual a simples procedência é suficiente para o sistema condicionar a repetição do direito de ação.
23ª. Exceptuando-se os fundamentos de defesa que sejam supervenientes, que podem ser deduzidos tanto a título de exceção como a título de ação, a verdade é que in casu, o facto é que, posteriormente, os mesmos Réus aqui Autores trouxeram uma nova situação fáctica, fazendo tábua rasa da fundamentação da sentença, em 6/6/2022 enviaram uma carta a opor-se à renovação do contrato com efeitos a partir de 30/9/2022 – Doc. 3 e 4 junto com a Petição Inicial nestes autos, ao que as Rés reagiram inconformadas por cartas resposta dos. 5 e 6.
24ª. Após a resposta das aqui Rés, em que as mesmas reagiram à oposição à renovação com efeitos a partir de 1/10/2022 os aqui Autores nada disseram até Fevereiro de 2023 – tudo o que levou a aqui Ré a conformar a sua vida com a renovação do contrato de arrendamento no triénio 2022 a 2025, tendo após setembro de 2022 continuado no locado e sem procurar outras alternativas, pagando a renda normalmente, certa de que o contrato vigoraria até 30/9/2025.
25ª. a missiva enviada pelo senhorio proprietário em 6/6/2022 alterou todo o quadro e não pode ser pura e simplesmente ignorada pelo tribunal como o fez o tribunal a quo – pois o caso julgado e a autoridade de caso julgado vinculam sim fora do processo, mas só vincula rebus sic stantibus.
26ª. para que o caso julgado tenha por objeto os fundamentos, de facto ou de direito, do despacho ou sentença a parte terá de o pedir – o que não sucedeu in casu. E ademais sobrevieram alterações e por força das mesmas é que a sentença transitada em julgado se tornou supervenientemente ineficaz enquanto título de efeitos materiais (negrito e sublinhado nosso): O Réu naquele processo aqui Recorrido 1059/21.9T8PVZ, já depois da sentença, enviou missiva a denunciar o contrato para 30/09/2022 e tal comportamento evidencia que não acatou a decisão judicial ao enviar a missiva com oposição à renovação e indicação expressa da data da caducidade do contrato de arrendamento e exigência de tal entrega do imóvel.
27ª. é legítima a posição da arrendatária inquilina ali Autora e aqui Ré que assumiu tal convicção, tanto mais que obtivera a procedência total da acção em que pedia o reconhecimento de que a nova renovação do contrato ocorreria em 1/10/2022, não sendo por isso aplicável in casu o instituto de caso julgado ou de autoridade de caso julgado - o que desde já se invoca para os devidos e legais efeitos.
28ª. A Recorrente entende que se trata apenas de caso julgado formal, isto é, a decisão nele proferida apenas vale dentro do processo em que aquela decisão foi proferida, inexistindo qualquer despacho sobre tal, sendo a sentença omissa, pelo que o seu acolhimento nunca poderia constituir um facto provado.
29ª. Considera ainda a Recorrente que não andou bem a sentença recorrida, ao considerar que a 1ª Ré se encontra em mora desde 01 de Outubro de 2023, uma vez que em causa está uma questão controvertida, e que não foi provocada pela arrendatária, pois os senhorios (recorridos) e a arrendatária (Recorrente) (e bem assim a fiadora), têm entendimentos distintos quanto à cessação do contrato de arrendamento, fundando-se as suas convicções em correspondência nos dois sentidos.
30ª. Ora, tendo sido feita pelos senhorios uma determinada a interpretação do artigo 1096.º n.º 1 do C.C. - questão jurídica – diversa do plasmado de uma sentença, e tendo os mesmos senhorios enviado uma missiva a comunicar uma oposição à renovação do contrato de arrendamento por carta registada com aviso de receção onde definiram de forma expressa a data de operação dos efeitos da cessação – é óbvio e mais do que evidente que existe uma para cada qual uma interpretação que afasta as partes e tal divergência de entendimento e posição não permite considerar como imputável à inquilina arrendatária a falta de entrega do imóvel, na data da cessação do contrato.
31ª. De resto neste sentido se tem pronunciado vasta jurisprudência: - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/03/2023, Processo n.º 3966/21.3T8GDM.P1, relatora Isabel Ferreira); Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 25/01/2024, Processo n.º 357/23.9T8PRT.P1, relator Paulo Dias da Silva)
32ª. Pelo que, porque é ainda controvertida a data do prazo da renovação do contrato e consequentemente o momento da cessação do arrendamento e porque não é esta situação provocada pela aqui recorrente / arrendatária, não existe mora da mesma e como tal o que está a acontecer é apenas e só uma simples não restituição, que perdurará até que por sentença transitada em julgado se decida definitivamente esta controvérsia, apenas tendo a recorrida a pagar, caso se concluísse pela cessação do contrato por caducidade na sequência de válida oposição à renovação, a título de indemnização, o valor correspondente à renda que pagava até à cessação do contrato.
Contra-alegaram os autores em defesa da sentença apelada e pela improcedência do recurso.
Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações, identificam-se (enunciando-as pela ordem de precedência lógico-jurídica[1], em atenção ao caso concreto e à eficiência[2]) como questões colocadas à apreciação deste tribunal:
- a nulidade da decisão – decisão surpresa/omissão de realização da audiência prévia,
- as nulidades da decisão – alíneas d) e c) do nº 1 do art. 615º do CPC e, ainda, a consideração de factualidade que ao tribunal estava vedado julgar,
- a modificação da decisão de facto (alteração do facto provado 3)
- os erros de julgamento - inexistência de autoridade de caso julgado, invalidade e ineficácia da comunicação da oposição à renovação do contrato feita pelas autores apelados e inexistência de mora na entrega do locado.
FUNDAMENTAÇÃO
*
A decisão apelada considerou provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. Por escrito particular intitulado ‘Contrato de Arrendamento de Duração Limitada’, datado de 01 de Outubro de 2013, celebrado entre os autores, na qualidade de senhorios, AA, na qualidade de inquilina, e DD, na qualidade de fiadora, os primeiros deram de arrendamento um andar, sito na Rua ..., ..., 4.º B, Póvoa de Varzim, T-3, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, designada pelas letras AZ e garagem com a letra G, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ....
2. Do referido contrato, além do mais, constam as seguintes cláusulas:
‘PRIMEIRA: Este arrendamento é pelo prazo de 2 anos a começar no dia 1 de OUTUBRO de 2013 e a terminar no dia 30 de SETEMBRO DE 2015 (…)
SEGUNDA: a) A renda anual acordada é de Euros 4.500€ (Quatro mil e Quinhentos Euros), durante o 1.º Ano deste contrato.
b) A renda dos anos subsequentes será aquela que resultará da actualização legal.
c) A renda em duodécimos de EUROS é de 375,00 € (trezentos e setenta e cinco Euros) cada, será paga pelo INQUILINO, no primeiro dia útil de cada mês anterior àquele a que respeitar, e na residência do SENHORIO.
(…)
DÉCIMA-SEGUNDA: Os terceiros outorgantes, renunciando ao benefício da excussão prévia, assumem solidariamente com o segundo outorgante o cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos e renovações até restituição do arrendado, livre de pessoas e bens.
3. Por carta registada com aviso de recepção enviada para a morada do locado, em 01 de Junho de 2022, os autores comunicaram a sua oposição à renovação do contrato à arrendatária 1.ª ré, conforme documento junto a fls. 15 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, em que solicitam a entrega do locado até 30/09/2022.
4. Na mesma data e igualmente por carta registada com aviso de recepção, comunicaram à 2.ª ré a oposição à renovação do contrato de arrendamento.
5. Por carta datada de 17 de Junho de 2022, a 1.ª ré respondeu à carta referida em 3, nos seguintes termos:
‘Uma vez que não foi por vós denunciado com a antecedência legalmente exigida, operou-se, de forma automática, a renovação por mais 3 anos do referido contrato de arrendamento e como tal vigorará nova renovação em 30/09/2022, por mais 3 anos, pelo que serei vossa inquilina no triénio [de] 1 de Outubro 2022 a 30 de Setembro de 2025’.
6. Com a mesma fundamentação, respondeu a 2.ª ré, por carta datada de 17 de Junho de 2022.
7. Em 02 de Fevereiro de 2023, os autores voltaram a endereçar a ambas as rés missivas a comunicar a intenção de oposição à renovação do contrato, conforme documento junto a fls. 30 verso e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, solicitando a entrega do locado até 30/09/2023.
8. Após receberem a carta das rés referida em 7., em 15 de Fevereiro de 2023, obtiveram da 1.ª ré a seguinte resposta:
‘Ora cumpre reiterar o que já vos informei anteriormente na missiva que enviei em 6/7/2022:
Não tendo sido por V. Exªs respeitado a antecedência de 120 dias que impõe o art.º 1097.º do Código Civil a comunicação da oposição à renovação para o final do prazo em curso que V. Exªs me dirigiram em 6/6/2022 por mim recepcionada a 13/6/2022, operou-se, de forma automática, a renovação por mais anos do referido contrato de arrendamento.
Em 30/9/2022, passou a vigorar nova renovação por mais 3 anos
Assim, e como já vos informei, sou vossa inquilina no triénio 1 de Outubro 2022 a 30 de Setembro de 2025. (…)’.
9. Em 27/02/2023 e 28/03/2023, os autores remeteram mais duas missivas a reafirmar a sua posição, solicitando a entrega do locado em 30/09/2023.
10. No processo n.º 1059/21.2T8PVZ, que correu termos neste Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 2, as ora rés demandaram os ora autores pedindo, além do mais, que se declarasse o contrato se encontrava plenamente válido e a última renovação terminava em 30 de Setembro de 2022, e, por seu turno, os réus demandaram as rés pedindo que se declarasse que o contrato havia cessado em 30/09/2020.
11. No processo supra, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: ‘declaro que o contrato de arrendamento, pelas suas sucessivas renovações, se encontra plenamente válido e, ainda, que as rendas se encontram pagas até à presente data, sem qualquer valor em atraso.’
12. Da fundamentação da sentença supra consta, além do mais, que ‘Os Réus [aqui autores], porém, não observaram o prazo de 120 dias para oposição á renovação pelo que a mesma é ineficaz tendo-se o contrato renovado em 30.09.2020, por mais 3 anos.’
A. Das nulidades da sentença – decisão surpresa/omissão de realização da audiência prévia.
Invoca a apelante a nulidade da sentença apelada por conhecer do mérito da causa sem ter convocado audiência prévia e/ou facultado às partes a discussão dos termos do litígio.
É nosso entendimento que a decisão que julgue pretensão e aprecie ou conheça questão relativamente à qual à parte interessada não foi facultada pronúncia é nula, por excesso de pronúncia, a invocar no recurso dela interposto[3] - o direito de defesa e o cumprimento do contraditório, regras genericamente plasmadas nos nº 1, 2 e 3 do art. 3º do CPC (onde se prescreve que o tribunal não pode dirimir a pretensão deduzida sem que a parte seja chamada para deduzir oposição, salvo os casos excepcionais em que a lei prevê possam ser tomadas providências contra determinada pessoa sem que a mesma seja previamente ouvida e, bem assim, não poder o tribunal decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem) apresentam-se como pressuposto ou condição necessária para que o tribunal possa conhecer e dirimir qualquer pretensão que lhe seja suscitada e decidir qualquer questão que lhe tenha sido colocada ou que, sendo de conhecimento oficioso, entenda relevar à decisão de mérito (e assim que ao decidir pretensão sem que a parte interessada seja chamada a defender-se e/ou conhecer questão sem prévia pronúncia da parte requerida estará o tribunal a decidir pretensão e a apreciar questão que não podia, nessas condições, decidir/conhecer – excesso de pronúncia).
O princípio do contraditório, exigência postulada pelo princípio do processo justo e equitativo (art. 20º da CRP), possui conteúdo multifacetado: traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado desses provas[4], tem ínsito o reconhecimento do direito da parte à sua audição antes de ser tomada qualquer decisão[5]; o seu âmbito não está tanto (tal como era tradicionalmente entendido) na garantia de uma discussão dialéctica entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo[6], antes em garantir à parte a possibilidade de influenciar decisão concernente aos seus interesses (o seu escopo principal e enformador deixou ser a ‘defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo’[7]) – entendimento amplo do contraditório sufragado pela jurisprudência constitucional, que o reconhece ‘«como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão»’[8].
A densificação do direito de acesso ao direito e aos tribunais (direito à jurisdição) revela que as partes têm um efectivo direito a uma jurisdição equitativa e que conduza a resultados individual e socialmente justos, estendendo-se o contraditório (o seu direito a influenciar a decisão) às questões de direito relevantes – no ‘plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie’, tendo a proibição da ‘chamada decisão-surpresa’ interesse, sobretudo, para as questões de direito material ou até processual de que o tribunal pode conhecer oficiosamente e, assim, não tendo sido suscitadas pelas partes, deve o juiz, quando nelas entenda dever basear a decisão (seja quanto ao mérito, seja no âmbito meramente processual), convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta necessidade (art. 3º, nº 3 do CPC)[9].
Violação do contraditório – por não se facultar às partes a discussão de questões de direito que se têm por relevantes à decisão –, geradora de nulidade da decisão, que ocorre quando a questão apreciada e decidida pelo tribunal, decorrendo de matéria trazida aos autos por uma das partes, não foi por estas tratada e discutida de modo efectivo, cientes de que poderia vir a assumir o relevo e importância que lhe é dado na decisão tomada pelo tribunal.
Quando da análise dos articulados (e/ou dos termos da causa) não pode concluir-se que as partes estavam cientes do (ou despertas e acauteladas para o) enquadramento do caso à luz de um qualquer instituto jurídico – seja por nunca sequer aludirem ao seu nomen iuris, seja por não aludirem aos seus pressupostos e requisitos, ainda que possa ter sido alegado o facto que permite equacionar a aplicação de tal instituto na decisão –, tem de entender-se que a sua apreciação na decisão constitui uma decisão-surpresa, traduzindo apreciação de questão nova (no sentido de não discutida no processo).
A situação dos autos constitui exemplo paradigmático de tal violação do contraditório – baseou-se a decisão apelada, para concluir sobre os termos inicial e final da terceira renovação do contrato de arrendamento celebrado entre as partes (início em 1/10/2020 e final em 30/09/2023), pressuposto necessário para aferir da eficácia da oposição à renovação do contrato por parte dos autores senhorios e, como consequência, para decidir do mérito da causa, na autoridade de caso julgado resultante da sentença proferida no processo nº 1059/21.2T8PVZ que correra entre as partes, sendo que não se observa, dos respectivos articulados, que as partes tivessem enquadrado a solução do litígio à luz de tal instituto, discutindo (quanto mais estando cientes da aplicabilidade e/ou alertadas que deveriam ponderar a aplicabilidade de tal instituto) a verificação, no caso concreto, dos respectivos pressupostos.
Assim, a questão da autoridade do caso julgado quanto aos termos inicial e final da última renovação do contrato – e sendo certo que, à semelhança da excepção de caso julgado, a autoridade do caso julgado é de oficioso conhecimento[10] – apresentava-se como questão nova (por não ter sido anteriormente discutida no processo – não foi abordada pelas partes, mormente pela ré contestante, cientes de que tal questão se colocava), impondo-se por isso ao tribunal, em vista de a conhecer, cumprir quanto a ela o contraditório (art. 3º, nº 3 do CPC), não valendo no caso (para tonar lícito o seu conhecimento) a excepção à regra, qual seja a da dispensa do contraditório por manifesta desnecessidade (tal dispensa está prevista a título excepcional, só se justificando ‘quando a questão tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final’[11]).
Ocorre, pois – e sendo certo que no caso dos autos a audiência prévia não é formalmente obrigatória (isto é, não está tal acto incluído na legal tramitação da causa – nas causas, como a presente[12], de valor não superior a metade da alçada do tribunal da Relação, face ao disposto no art. 597º do CPC, compete ao juiz decidir sobre a prática de certos actos que a lei insere na tramitação do processo comum, como a convocação/realização da audiência prévia tratando-se, em princípio, de um poder discricionário[13]; assim, ainda que ‘tenha sido abolida a diversidade de formas de processo em função do valor da causa, este não é de todo irrelevante’, pois nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação ‘é ao juiz que cabe definir quais os trâmites processuais que devem ser seguidos, tendo em conta a natureza e a complexidade da ação e a necessidade de adequação dos atos ao seu julgamento’[14]) – violação do contraditório, por se não ter facultado às partes (mormente à ré apelante) a possibilidade de se pronunciarem sobre questão que se conheceu e apreciou e que se constatou relevante na decisão proferida (a referida questão da autoridade do caso julgado).
Porque conheceu de questão que não lhe era lícito conhecer sem cumprimento prévio do contraditório (sem que a agora apelante fosse chamada a pronunciar-se sobre ela), a decisão apelada é nula - conheceu e apreciou questão sem que, atentas as circunstâncias, o pudesse fazer, incorrendo em excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, d) do CPC).
Ponderando que importa decretar a nulidade da decisão e determinar seja facultado às partes (art. 3º, nº 3 do CPC) o contraditório quanto à questão da autoridade do caso julgado material quanto aos termos inicial e final da terceira renovação do contrato de arrendamento objecto do litígio, decorrente da sentença proferida no processo nº 1059/21.2T8PVZ que correu entre as partes, não tem aplicação a regra da substituição ao tribunal recorrido (art. 665º do CPC), ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas na apelação.
B. Síntese.
Face ao exposto, procede a apelação, impondo-se decretar a nulidade da decisão apelada (atento o excesso de pronúncia) e determinar seja facultado às partes (mormente à apelante) o contraditório quanto à enunciada questão da autoridade do caso julgado, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (em jeito de sumário – art. 663º, nº 7 do CPC) nas seguintes proposições:
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DECISÃO
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Custas da apelação pelos apelados.