TORNAS
CRÉDITO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DA PARTILHA
TÍTULO EXECUTIVO
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
NULIDADE
EFEITOS
Sumário

I – O credor de tornas devidas no âmbito de processo de inventário, em que a respetiva partilha foi homologada por sentença transitada em julgado, pode instaurar execução, com base nessa sentença, para obter do devedor – que não efetuou o pagamento das tornas – o cumprimento coercivo de tal obrigação.
II – Se uma dação em cumprimento, efetuada pelo devedor para extinção da sua obrigação de pagamento de tornas, invocada como fundamento para a dedução de embargos, é declarada nula, não se pode ter como extinta tal obrigação, uma vez que, face ao efeito retroativo da declaração de nulidade, tudo se deverá passar como se tal dação em cumprimento não existisse.
III – Ou seja, haverá lugar à repristinação das coisas no estado anterior ao negócio, o que significa o ressurgimento da obrigação de pagamento de tornas.

Texto Integral

Proc. 9030/22.0 T8PRT-A.P2

Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 7

Apelação

Recorrente: AA

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Anabela Dias da Silva e Alberto Taveira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

BB deduziu execução para pagamento de quantia certa contra CC e AA, peticionando o pagamento da quantia global de 204.420,50€, acrescida de juros de mora e juros compulsórios desde a data do trânsito em julgado da sentença exequenda (proferida em sede de processo de inventário), ou seja, desde 31.1.2013, perfazendo aqueles juros vencidos as quantias de 86.559,29€ e de 91.989,22€, respetivamente.

No total peticionou 382.969,01€, por referência à data da execução (13.4.2022).

A executada AA veio deduzir embargos de executado, requerendo a extinção da execução.

Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte:

1º - O valor por si devido que resulta da sentença exequenda é de apenas 168.189,35€, acrescido de juros sobre essa quantia, e não sobre o valor global peticionado às duas executadas;

2º - A quantia devida pela executada foi paga, mediante dação em cumprimento outorgada por escritura pública de 2.8.2013.

O exequente apresentou contestação, na qual sustentou que a dação em cumprimento alegada pela embargante foi declarada nula, com trânsito em julgado, no âmbito do processo com o nº 261/14.8TBVCD.

Peticionou ainda a condenação da embargante como litigante de má-fé, por a mesma ser conhecedora da declaração de nulidade referida.

Na sequência da apresentação da contestação, o Mmº Juiz “a quo”, em 16.2.2023, proferiu o seguinte despacho:

“Ao abrigo do dever de gestão processual previsto no art. 6.º do NCPC e na perspetiva de dispensa da audiência prévia e eventual decisão imediata da causa, concede-se às embargantes o prazo de 10 dias para, querendo, exercerem o contraditório quanto ao alegado na contestação.”

As embargantes, em 2.3.2023, exerceram o contraditório relativamente à contestação apresentada pelo embargado, tendo alegado o seguinte:

“1º Na verdade, no processo 261/14.8TBVCD, de que o exequente juntou certidão, foi declarada a nulidade da dação.

2º Porém, nessa ação, o exequente não deduziu qualquer pedido contra as aqui executadas, prevendo a situação da nulidade da dação, não fazendo também qualquer pedido reconvencional.

3º E, como se pode ver da decisão final do processo, o aqui exequente, réu naquela ação, foi condenado a indemnizar a ali autora Santa Casa, por ter sido considerado o instigador das executadas, ali rés também, no não cumprimento do contrato.

4º Não pode agora vir requerer o pagamento das tornas, uma vez que foi ele quem deu causa ao incumprimento e à nulidade da dação.

5º Por outro lado, e assim não se considerando, o direito a juros só se vence a partir do momento em que foi requerido o pagamento de tornas, no caso com a instauração da presente execução.

6º E assim não se entendendo, a partir do trânsito em julgado da decisão que declarou nula a dação.

7º Sob pena de o exequente beneficiar com a nulidade de um negócio do qual fez parte e que foi considerado nulo devido à sua atuação.

8º É que ele também teve a disponibilidade do bem que recebeu na dação.”

Por despacho de 24.3.2023 determinou-se a realização de audiência prévia, nos termos e para os efeitos do art. 591º, nº 1, als. a) a g), do Cód. de Proc. Civil, a qual se viria a efetuar em 11.5.2023.

Nesta, as partes celebraram transação que foi homologada por sentença proferida nesse mesmo ato.

Porém, em 23.5.2023 a embargante AA veio aos autos dizer que não ratifica o ato praticado pelo seu mandatário, conforme declaração assinada por si.

Em 6.10.2023, o Mmº Juiz “a quo”, face ao teor desta declaração, julgou a transação efetuada sem efeito relativamente à embargante AA.

Manteve, contudo, a sua homologação quanto à embargante CC.

Seguidamente escreveu o seguinte:

“O tribunal entende que, em face dos factos alegados e comprovados nos autos, o estado do processo permite, sem necessidade de mais provas ou exercício do contraditório, a apreciação total do mérito dos presentes embargos, sem necessidade de (continuação) de audiência prévia para o efeito, tal como havia sido previamente anunciado às partes, sem oposição, tendo sido mesmo concedido o contraditório relativamente à contestação.

Assim sendo, profere-se, de imediato, despacho saneador-sentença, dispensando-se a continuação de audiência prévia, nos termos dos arts. 591.º, n.º 1, al. d), 593.º, n.º 2, al. a), e 595.º do NCPC.”

Neste despacho saneador-sentença, julgaram-se parcialmente procedentes os embargos de executado e, em conformidade:

a) Determinou-se a redução da quantia exequenda à medida da responsabilidade individual da embargante AA, ou seja, à quantia de capital de 168.189,35€, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 %, e acrescida de juros compulsórios, à taxa de 5%, desde 31.01.2013, até efetivo e integral pagamento,

b) Julgaram-se improcedentes os embargos da embargante AA quanto ao remanescente peticionado;

c) Julgou-se improcedente o pedido de condenação da embargante como litigante de má-fé.

Inconformada com o decidido, interpôs recurso a embargante AA, sendo que, por acórdão deste Tribunal da Relação do Porto proferido em 5.3.2024, foi decidido anular a decisão recorrida e os ulteriores termos do processo, mais se determinando a sanação da nulidade cometida em 1ª Instância através da marcação de data para a continuação da audiência prévia e sua realização.

Em 9.5.2024 realizou-se a continuação da audiência prévia e depois, em 13.5.2024, foi proferido despacho saneador-sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos de executado e, em conformidade:

a) Determinou a redução da quantia exequenda à medida da responsabilidade individual da embargante AA, ou seja, à quantia de capital de 168.189,35€, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 %, e acrescida de juros compulsórios, à taxa de 5%, desde 31.1.2013, até efetivo e integral pagamento;

b) Julgou improcedentes os embargos quanto ao remanescente peticionado;

c) Julgou improcedente o pedido de condenação da embargante como litigante de má fé.

Novamente inconformada com o decidido, em 17.6.2024, a embargante AA interpôs recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1- No caso de nulidade de Escritura de Dação em cumprimento, em que o credor se considera pago da obrigação, pelo devedor, não renasce a sua garantia, uma vez que na sentença de declaração de nulidade da dação, o credor, foi considerado o INSTIGADOR do incumprimento do devedor, perante terceiro.

2- Por outro lado, tendo sido citado para essa ação de nulidade, veio confirmar a validade da dação, pugnando pela sua veracidade e confirmando o pagamento pelo devedor de tornas, dando-lhe quitação.

3- Não tendo reclamado, caso fosse procedente a nulidade da dação, a restituição do que lhe era devido.

4- Tanto mais que essa nulidade não provem da atitude ou ação do titular do direito a tornas, no caso, o recorrido.

5- Mas sim de ato de terceiro, que propôs ação de nulidade contra a aqui recorrente e o aqui recorrido, e tendo este, na contestação dessa ação, confirmado a validade da DAÇÃO.

6- Sem prejuízo de tudo o que se disse anteriormente, a serem devidos juros, só os mesmos deverão ser contados a partir do trânsito em julgado da sentença de nulidade da dação.

7- Porque antes do trânsito, não havia mora.

8- Pelo que a douta sentença, ao decidir como decidiu, violou, entre outros, os artigos 289º e 837º do Código Civil.

Pretende assim que a decisão proferida seja substituída por outra que a desonere da obrigação do pagamento das tornas e dos juros peticionados, declarando-se extinta a execução.

Não foi apresentada resposta ao recurso.

Este mostra-se admitido, por despacho de 23.9.2024, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos de apenso e efeito devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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A questão a decidir é a seguinte:

Apurar se ocorre fundamento para declarar extinta a execução quanto à embargante AA e, em caso afirmativo, determinar o momento a partir do qual serão devidos juros.


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OS FACTOS

É a seguinte a factualidade dada como assente na sentença recorrida resultante de acordo e de documentos com força probatória plena:

1. O exequente apresentou à execução a sentença homologatória de partilha cuja certidão se mostra junta com o requerimento executivo, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a qual foi proferida em 04.07.2011, com trânsito em julgado em 31.01.2013, no âmbito do processo n.º 710/06.9TBVCD, do então 3º juízo cível de Vila do Conde,

2. Por referência ao constante do mapa de partilha junto com a certidão, com o teor que aqui se dá por reproduzido, constando do mesmo, além do mais, o seguinte:

(…)

MAPA DE PARTILHA



(…)

PAGAMENTOS




(…)





(…)

3. As executadas, enquanto primeira e segunda outorgantes, e o exequente, enquanto terceiro outorgante, outorgaram a escritura pública de “Dação em Cumprimento” junta com a petição de embargos, datada de 02.08.2013, com o teor que aqui se dá por reproduzido, constando da mesma, além do mais, o seguinte:

“(…)




(…)



(…)”

4. A “dação em cumprimento” acima referida foi declarada nula, por acórdão do STJ datado de 30.04.2019, transitado em julgado em 10.09.2019, conforme acórdão junto com a contestação, com o teor que aqui se dá por reproduzido, acórdão esse proferido no processo n.º 261/14.8TBVCD, do juízo central cível da Póvoa de Varzim – 5, no qual eram partes as ora executadas e o ora exequente.

O DIREITO

1. No âmbito do processo de inventário nº 710/06.9 TBVCD, que correu termos no 3º Juízo Cível de Vila do Conde, foi proferida em 4.7.2011 e transitou em julgado em 31.1.2013, sentença homologatória da partilha, tendo ficado consignado nesta, por referência ao mapa de partilha, que a ora embargante/recorrente deve de tornas ao aqui exequente BB a importância de 168.189,35€.

A sentença homologatória de partilha, que condenou a interessada/executada AA no pagamento de um determinado montante de tornas ao interessado/exequente BB constitui título executivo, porquanto contém uma ordem de prestação e impõe a este o cumprimento de uma obrigação de pagamento de quantia certa.

Reveste, por isso, natureza de sentença condenatória, podendo servir de base a execução, conforme o prevê o art. 703º, nº 1, al. a) do atual Cód. de Proc. Civil.

Deste modo, como aqui sucede, o credor de tornas poderá instaurar execução para obter do devedor – que não efetuou o pagamento de tornas – o cumprimento coercivo dessa obrigação, devendo as tornas vencer juros desde a data da sentença.[1]

A quantia exequenda, no que concerne à embargante/recorrente AA, ascende, pois, no que toca a capital a 168.189,35€.

2. Há, no entanto, a ter em conta que em 2.8.2013 foi outorgada escritura pública, na qual a embargante AA, tal como CC também embargante, em cumprimento da obrigação de pagamento de tornas, deram ao aqui exequente BB seis oitavos do prédio urbano descrito sob o artigo ....

A dação em cumprimento assim efetuada extinguiria a obrigação da executada AA nos termos dos arts. 837º e segs. do Cód. Civil.

Acontece, porém, que essa dação viria a ser declarada nula, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 30.4.2019, transitado em julgado em 10.9.2019, no processo n.º 261/14.8TBVCD, do Juízo Central Cível de Póvoa de Varzim – 5, no qual eram partes as ora executadas e também o exequente.

A nulidade, conforme decorre do art. 289º, nº 1 do Cód. Civil, tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

Ou seja, se a dação em cumprimento foi declarada nula, tudo se passará como se esta não tivesse ocorrido, sem prejuízo do regime da restituição de frutos e de garantias prestadas por terceiros, nos termos dos arts. 289º, nº 3, 766º, 839º e 1269º e segs. do Cód. Civil.

Como tal, face à nulidade da dação em cumprimento, invocada como fundamento dos embargos deduzidos e não ocorrendo qualquer outro facto extintivo da obrigação de pagamento de tornas, não se pode ter esta obrigação por extinta.

Com efeito, de acordo com o disposto no já referido art. 289º do Cód. Civil, no âmbito da declaração de nulidade e da anulabilidade do negócio jurídico rege um importante princípio geral que é o do seu efeito retroativo. Tal significa que tudo se deve passar como se o ato declarado nulo ou anulado não existisse, daí decorrendo que, em regra, são destruídos ab initio, isto é, desde o momento da sua celebração todos os efeitos que entretanto se hajam produzido. Assim, tudo o que haja sido prestado por qualquer das partes deve ser restituído, devendo a restituição fazer-se pelo valor correspondente, se a restituição em espécie já não for possível.[2]

Este princípio encontra-se em coerência com a ideia de que a invalidade resulta de um vício intrínseco do negócio e, por isso, contemporâneo da sua formação. Não se produzem, assim, os efeitos jurídicos a que o negócio tendia.

Em consonância com a retroatividade, haverá pois lugar à repristinação das coisas no estado anterior ao negócio[3]. Ou seja, se o negócio foi cumprido (no todo ou em parte), uma vez anulado, as coisas devem ser repostas in pristinum – no statu quo ante.[4]

Por isso, acertadamente se escreveu na decisão recorrida que, uma vez declarado nulo o negócio, a produção dos seus efeitos é excluída desde o início, ex tunc, a partir do momento de formação do negócio, e não ex nunc, a contar da declaração de nulidade.[5]

3. Reportando-se ao regime legal da dação em cumprimento, JOSÉ BRANDÃO PROENÇA (in “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral”, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 1257)[6], em anotação ao art. 838º, afirma que se se pode dizer que a dação é válida e eficaz enquanto não for invalidada ou resolvida, também é certo que, em rigor, sendo o aliud alheio ou defeituoso, a obrigação primitiva não podia ser considerada extinta por falta de satisfação do credor, ou seja, não havia necessidade de uma destruição retroativa do acordo. Como quer que seja, o credor terá de restituir a prestação, tendo, contudo, direito a ser indemnizado pelos danos ligados ao cumprimento tardio da obrigação primitiva ou, não podendo esta ser cumprida, aos danos resultantes desse incumprimento definitivo.

Por seu turno, MENEZES LEITÃO (in “Direito das Obrigações”, vol. II, 6ª ed., pág. 185) escreve que verificando-se a invalidade da dação em cumprimento a relação obrigacional primitiva continua a subsistir, com todas as suas garantias, salvo se entretanto se tiver verificado um facto extintivo autónomo (por ex., prescrição do crédito; restituição da coisa empenhada).

Deste modo, a declaração de nulidade da dação resultante do acórdão do STJ de 30.4.2019, transitado em julgado em 10.9.2019, impõe que se recoloque a situação como se tal dação nunca tivesse existido, o que implica atender ao primitivo direito de crédito do exequente que decorre da sentença exequenda homologatória da partilha no âmbito do processo n.º 710/06.9TBVCD, a qual foi proferida em 4.7.2011 e transitou em 31.1.2013.

Crédito relativo a tornas que, no contexto exposto, ascende à importância de 168.189,35€, a qual deverá ser acrescida dos juros respetivos, colocando-se agora a questão de saber se esses juros serão devidos desde a data do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha ou apenas a partir do trânsito em julgado do acórdão anulatório da dação.

4. Na sentença recorrida entendeu-se que seriam devidos desde o trânsito da sentença homologatória da partilha, ou seja, desde 31.1.2013, solução que, a nosso ver, não se nos afigura a mais correta.

É que não podemos ignorar que a escritura pública de dação em cumprimento, datada de 2.8.2013, foi celebrada por um lado pelas executadas CC e AA, aqui recorrente, como devedoras de tornas e, por outro, pelo exequente BB, como seu credor.

Com a sua celebração ficava solucionada, a contento de todos os intervenientes, que naturalmente reputavam de válida tal dação, a questão do pagamento das tornas.

Contudo, vários anos depois, a dação em cumprimento viria a ser declarada nula, sendo certo que o aqui exequente sempre se considerou bem pago e sempre a teve, até então, como válida.

É certo que, como atrás se expôs, a declaração de nulidade da dação tem eficácia retroativa, o que implica a repristinação da situação anterior ao negócio, daí decorrendo o ressurgimento da obrigação do pagamento de tornas por parte da aqui embargante/recorrente no já referido montante de 168.189,35€.

Mas será que no tocante aos juros estes serão devidos pela recorrente desde o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, em 31.1.2013, como entende o Mmº Juiz “a quo”?

Ora, haverá a ter em conta que durante cerca de seis anos tanto o exequente como as executadas entenderam que a questão do pagamento de tornas estava resolvida através da referida dação em cumprimento.

Na verdade, ao longo desse período, entendida como válida a dação em cumprimento, não havia para a embargante/recorrente obrigação de proceder ao pagamento de tornas, obrigação que só renasce, e na íntegra, com a sua declaração de nulidade.

Assim sendo, se até à data em que foi declarada, com trânsito, a nulidade da dação – 10.9.2019 - inexistia mora da embargante quanto a esse pagamento, não pode esta ser condenada no pagamento de juros a partir do anterior trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.

Aliás, se seguíssemos a posição adotada, quanto a juros, pela 1ª Instância, que assentou na circunstância de o repristinado crédito de tornas do exequente não ter sido cumprido tempestivamente, estaríamos a cair, inclusive, numa situação de abuso do direito, uma vez que da parte do exequente haveria, neste segmento, um excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé (art. 334º do Cód. Civil), na sua relação com a embargante/recorrente.[7]

Com efeito, da leitura do acórdão que foi proferido pelo STJ no processo com o nº 261/14.8TBVCD, em 30.4.2019[8], logo se constata que os motivos que levaram à declaração de nulidade da dação em cumprimento, por ter sido considerada contrária aos bons costumes, envolvem tanto o exequente, como as executadas.

Diga-se, aliás, que até envolvem mais seriamente o próprio exequente, porque este é que surge como o mentor da referida dação em cumprimento, depois declarada nula.

Basta transcrever o seguinte trecho desse acórdão:

“Os factos provados são suficientes para que se conclua três coisas: para que se conclua, em primeiro lugar, que o 3.º Réu[9] conhecia o direito de crédito da Autora[10], constituído através do contrato-promessa (n.ºs 41.º e 50.º); para que se conclua, em segundo lugar, que o 3.º Réu conhecia a intenção de a Autora actuar ou exercer o direito de crédito, constituído através do contrato-promessa (n.º 42); para que se conclua, em terceiro lugar, que o 3.º Réu tinha a consciência de que a conclusão do contrato de dação em cumprimento causava danos à Autora — ou, pelo menos, de que a conclusão do contrato de dação em cumprimento podia causar-lhe danos. O 3.º Réu, conhecendo o contrato-promessa, tentou que o prédio lhe fosse transmitido (factos dados como provados sob o n.ºs 50.º e 52.º); como não o conseguiu, “aliciou” a 1.ª e a 2.ª Rés[11] “para a prática daquele acto de dação em cumprimento” (facto dado como provado sob o n.º 62.º).
Como o 3.º Réu tivesse a intenção de induzir a 1.ª Ré a um comportamento ilícito e a intenção ou, em todo o caso, a consciência de, através da indução da 1.ª Ré a um comportamento ilícito, determinar a causação de um dano à Autora, a conclusão do contrato de dação em cumprimento entre os 1.º, 2.º e 3.º Réus deverá considerar-se contrária aos bons costumes."

Neste contexto, se é certo que a nulidade da dação em cumprimento importará inevitavelmente, em virtude do efeito retroativo previsto no art. 289º, nº 1 do Cód. Civil, a repristinação da obrigação da embargante proceder ao pagamento de tornas no montante de 168.189,35€, já os juros moratórios e compulsórios, a cargo da embargante, só poderão ser contados a partir da data do trânsito em julgado do acórdão anulatório ocorrido em 10.9.2019.

Até essa data, não questionando nem o exequente nem as executadas a validade da dação em cumprimento não se poderia considerar que a embargante, ora recorrente, estivesse em mora e se agora atribuíssemos ao exequente os juros moratórios e compulsórios desde o trânsito em julgado da sentença homologatória de partilha em 31.1.2013 estaríamos a premiá-lo injustificadamente, face à embargante, tendo em atenção o papel que desempenhou em todo o processo que levou à dação em cumprimento, posteriormente declarada nula.

Assim, o recurso interposto pela embargante merecerá parcial procedência no tocante ao momento a partir do qual serão contados os juros por ela devidos, o que importará a alteração da sentença recorrida nessa parte.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela embargante AA e, em consequência, altera-se o decidido, determinando-se que sobre a quantia de capital de 168.189,35€ acresçam juros de mora, à taxa legal de 4 % e juros compulsórios à taxa de 5%, desde 10.9.2019 até efetivo e integral pagamento.

Custas em ambas as instâncias na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à embargante.


Porto, 5.11.2024
Eduardo Rodrigues Pires
Anabela Dias da Silva
Alberto Taveira
______________
[1] Cfr., por ex., Acs. Rel. Porto de 23.5.2024, p. 9293/23.4T8PRT-A.P1 (Ana Luísa Loureiro), de 4.5.2022, p. 137/21.2T8MAI-A.P1 (Eugénia Cunha) e de 10.10.2019, p. 3797/16.2 T8PRT-A.P1 (Carlos Portela), disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. CARVALHO FERNANDES, “Teoria Geral do Direito Civil”, vol. II, 4ª ed., págs. 501/502.
[3] Cfr. MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pág. 625.
[4] Cfr. MANUEL DOMINGUES DE ANDRADE, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, reimpressão 2003, pág. 425.
[5] A decisão recorrida, neste ponto, apoiou-se em DIOGO LEITE DE CAMPOS, "A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento", 1974, p. 196, citado no Ac. STJ de 15.2.2000, p. 01A809 (Ferreira Ramos), disponível in www.dgsi.pt.
[6] Citado na decisão recorrida.
[7] Embora o abuso do direito não tenha sido invocado nos autos, sempre importa referir que este se trata de instituto de conhecimento oficioso – cfr., por ex., Acórdãos STJ de 10.12.2012, p. 116/07.2TBMCN.P1.S1, relator FERNANDES DO VALE e de 20.12.2022, p. 8281/17.4T8LSB.L1.S1, relator AGUIAR PEREIRA, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[8] Que se encontra publicado na base de dados do IGFEJ.
[9] Aqui o exequente.
[10] Um terceiro, mais concretamente a Santa Casa da Misericórdia ....
[11] Aqui as executadas.