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ARRENDAMENTO
MORTE DO ARRENDATÁRIO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
FILHO DO ARRENDATÁRIO
REGIME TRANSITÓRIO DO NRAU
Sumário
I - Não padece do vício da nulidade a que alude o artº 615, nº 1, al. b) do CPC, a sentença que enuncia os factos que entendeu dever dar como assentes e aquele que considerou como não provado. Explica, em sede de fundamentação de facto, os motivos pelo qual decidiu daquele modo, fazendo o correspondente juízo crítico das provas produzidas. Após, aplica o direito nos moldes em que entendeu correctos, à factualidade assente e explicou os motivos pelos quais considerou verificada a caducidade do contrato de arrendamento e devida, a indemnização fixada. II – Desconhecendo-se o regime de casamento do primitivo arrendatário, não é possível afirmar que o contrato de arrendamento já fazia parte da esfera jurídica do cônjuge sobrevivo. III - Tendo o contrato de arrendamento sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, aplica-se à transmissão por morte o regime transitório previsto no artigo 57º do NRAU. IV – Não tendo o filho da arrendatária alegado e comprovado que convivia no locado com ela há mais de um ano e que padecia de deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, não beneficia do direito à transmissão do contrato de arrendamento a que alude o artº 57, nº 1, alínea e) do NRAU. V – A equidade deve ser balizada com factos concretos que permitam concluir pela justeza da decisão, sob pena da mesma se tornar arbitrária. Não deve ser usada para colmatar falhas na produção de prova. Se a prova documental e testemunhal não foi suficiente para descortinar o valor locatício do imóvel, haveria sempre a possibilidade de recorrer à prova pericial que poderia ter sido pedida por qualquer uma das partes ou, oficiosamente determinada pelo juiz (cfr. artsº 467 e 477 do CPC).
Texto Integral
Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
……………….. intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra ………………… peticionando a condenação deste a restituir-lhe o ………….do prédio sito ………….., em Lisboa, livre e devoluto de pessoas e bens bem como a condenar o Réu no pagamento de uma indemnização no montante de €7.168,48.
Alegou, para tanto e em síntese, que, por contrato outorgado pelo falecido marido da Autora, foi dado de arrendamento a …………….. o imóvel suprarreferido em 1 de Fevereiro de 1968 e que, com o falecimento do primitivo arrendatário a viúva ………………….. assumiu a sua posição contratual. Alega, ainda, que é usufrutuária do referido imóvel desde 28 de Dezembro de 2015, o qual é propriedade do seu filho. Mais alega que a viúva do primitivo arrendatário faleceu em janeiro de 2022, mas que o Réu, filho daquela, se recusa a entregar o imóvel, não obstante para tanto ter sido interpelado.
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Contestou o Réu defendendo-se por exceção e impugnando a factualidade alegada pela Autora, concluindo pela improcedência da ação.
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Foi proferido despacho saneador no qual se identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
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Realizou-se a audiência de julgamento, na sequência da qual a Mmª Juiz “a quo” proferiu sentença que julgou a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
“a) Declarou que a Autora é usufrutuária do prédio urbano sito …………………;
b) Condenou o Réu a reconhecer que a Autora é usufrutuária do supra referido imóvel e, consequentemente, a restituí-lo à Autora livre de pessoas bens;
c) Condenou o Réu a pagar à Autora uma indemnização no valor de €250,00 (duzentos e cinquenta euros mensais) desde 23 julho de 2022 até efetiva entrega do imóvel, descontado do montante mensal de €103,94 entretanto pago pelo Réu;
d) Absolveu o Réu do demais peticionado.”
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Inconformado com tal decisão de mérito, veio o réu dela interpor o presente recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
“a) O contrato de arrendamento foi celebrado em 01 de Fevereiro de 1968 pelo pai do Recorrente que havia casado com a sua mãe no dia ………….de 1967, no regime de comunhão de adquiridos, sendo esta uma co arrendatária;
b) O arrendado já integrava a situação patrimonial conjugal na altura da outorga do aludido contrato de arrendamento, vinculando ambos os cônjuges;
c) Estamos, assim, perante um contrato de arrendamento em que ambos os cônjuges eram arrendatários (não por aplicação retroactiva do artº 1086º do Código Civil, mas sim porque o contrato de arrendamento e o casamento foram celebrados no domínio da lei que previa a comunicabilidade do direito ao arrendamento), não tendo havido à data da morte do arrendatário ……….., em 27 de Janeiro de 2001, uma transmissão do direito ao arrendamento, mas sim uma concentração do arrendamento no cônjuge, a também arrendatária ……………….;
d) Com a morte do seu marido, a mãe do Recorrente passa a arrendatária visível, posição que tinha adquirido com o seu casamento e por direito próprio e o arrendamento plural passa a ser um arrendamento singular, sendo esta a primitiva arrendatária;
e) Tendo a sua mãe falecido em 23 de Janeiro de 2022, aplica-se o regime transitório da transmissão por morte previsto no NRAU (artº 59º, nº 1 e artºs 36º a 58º da Lei nº 6/2006, designadamente o artº 57º, por força do disposto nos artºs 28º e 26º do NRAU) e quanto aos contratos de arrendamento celebrados antes de 27 de Junho de 2006, mas que subsistam nesta data, o NRAU só se aplica quanto aos efeitos jurídicos produzidos após a sua entrada em vigor, respeitando os efeitos produzidos no domínio da lei anterior;
f) A mãe do Recorrente é a primitiva arrendatária em virtude de ser co arrendatária no contrato de arrendamento, uma vez que lhe foi comunicado o direito ao arrendamento e depois concentrado em si com o falecimento do marido, pelo que o Réu tem o direito ao arrendamento com a morte da mãe ocorrido em 23 de Janeiro de 2021;
g) O cônjuge em que se concentrou o direito ao arrendamento ou posição de arrendatário por força do regime de bens, é primitivo arrendatário, para efeitos do disposto no artº 57º do NRAU, na medida em que o primitivo arrendatário é tanto o arrendatário que celebrou o contrato de arrendamento como o cônjuge a quem o direito se comunicou por força do regime de bens;
h) Não se verifica, assim, uma dupla transmissão uma vez que a mãe do Recorrente era co arrendatária, ou seja, arrendatária primitiva para efeitos destes regime (desde 22 de Outubro de 1967, data em que contraiu matrimónio com o arrendatário) e a qualidade de arrendatária da mãe do Recorrente leva a que a posição de transmissária por morte no contrato de arrendamento convertido seja encabeçado, pela primeira vez pelo Réu;
i) O tribunal a "quo" conclui infundadamente pela inadmissibilidade da comunicabilidade do arrendamento ao Recorrente sem ter atentado na data da celebração de o casamento ter sido celebrado em data anterior a 27 de Junho de 2006, e portanto sem ter analisado a comunicabilidade do direito ao arrendamento no caso concreto;
l) Mas mesmo que se entendesse que pudesse ter havido uma transmissão para o cônjuge do arrendatário (não separada judicialmente de pessoas e bens ou de facto), ainda assim, era permitida pela redacção inicial do artº 54º, nº 4 do NRAU uma segunda transmissão a favor do filho;
m) Esse direito do Recorrente a suceder na posição de arrendatário, por se verificarem os requisitos previstos no artº 85º do RAU, quer os previstos no artº 57º, nº 1, alínea e) do NRAU;
n) E, quanto à indemnização que foi fixada pelo tribunal "a quo", não foi dado como provado qualquer facto que possa sustentar a condenação do Réu no pagamento da indemnização nos termos que constam da sentença recorrida;
o) O valor da renda mensal tem sido pago pelo Recorrente e é uma contrapartida adequada para retribuir a ocupação do imóvel , atendendo à sua idade, tipo de construção, o sítio onde está implementado, estado de conservação e o seu valor patrimonial, concluindo-se desajustado o valor mensal de € 250,00 e que foi atribuído por alusão à equidade;
p) A "equidade" do tribunal "a quo" em fixar tal valor foi a de não atender ao salário do Réu (mais do que baixo), ao facto de ter sempre residido no imóvel há 56 anos e há mais de 54 anos com a mãe quando esta morreu.
q) Verifica-se, que existiu uma falta de fundamentação da sentença que se baseou num erro de raciocínio lógico e que é contrária aos factos apurados, à prova que foi junta e ao direito a que o Exmo. Senhor Doutor Juiz estava obrigada para poder proferir uma sentença conforme a realidade, tratando-se, assim, de uma sentença sem qualquer fundamento e que implica a sua nulidade conforme previsto no art.º 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.”
Pugna pela revogação da sentença e substituição da mesma por outra que se reconheça a transmissão do direito do primitivo arrendatário ao ora réu/recorrente.
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A autora apresentou contra alegações, concluindo que:
“1.º A douta decisão em recurso deve ser confirmada e mantida.
2.º O ora Apelante não tem título que lhe permita deter/ocupar o 1º andar direito do prédio id. a a fls. dos autos, impondo-se que o devolva à Apelada.
3.º O regime da caducidade encontra-se regulado nos art.ºs 1051.º a 1056.º, 1105.º a 1107.º e 1131.º todos do CC, tendo-se limitado a Apelada a invocar e a exercer o direito de ver reconhecida a cessação do contrato de arrendamento do imóvel.
4.º Para tanto, a Apelada alicerçou-se na dita caducidade do contrato de arrendamento, verificada pela morte da locatária, mãe do Apelante, cfr. art.º 1051.º alínea d) do CC, que já havia sido beneficiária de uma transmissão de posição locatícia.
5.º Estipulam os art.ºs 1051.º alínea d) e 1053.º ambos do CC, a Apelada tem o direito de exigir que o Apelante desocupe o local passados seis meses do decesso da arrendatária, conforme lhe transmitiu nas missivas que lhe remeteu.
6.º No que concerne à pretendida transmissão pelo Apelante, o art.º 1106.º do CC, foi introduzido pelo NRAU, que estabeleceu, também, no seu art.º 57.º, um regime transitório, quanto à transmissão por morte no arrendamento para habitação, aplicável aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro (art.º 27.º do NRAU) e um regime transitório semelhante foi também fixado para os contratos celebrados na vigência do RAU (art.º 26.º n.º s 1 e 2, do NRAU).
7.º O art.º 57.º n.º 1 do NRAU foi alterado, decorrente da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, nomeadamente no sentido de que a transmissão por morte no arrendamento para a habitação pode ser feita a “pessoa que com ele (“primitivo arrendatário”) vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano” e que o regime transitório, fixado no NRAU, continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do RAU, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art.º 1106.º do CC, consagrado pelo NRAU.
8.º Não sendo já a falecida a primitiva arrendatária, não pode transmitir-se ao Apelante o contrato de arrendamento para a habitação.
9.º O contrato de arrendamento caducou, nos termos da alínea d) do art.º 1051.º do CC, não se transmitindo ao Apelante.
10.º Não deve o recurso de fls. ser admitido nos termos em que foi proposto, sendo apenas merecedor da devida improcedência.”
Pugna pela confirmação da decisão recorrida.
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A Relatora proferiu despacho ao abrigo do disposto no art. 617º, nº 5 do CPC, determinando que os autos baixassem à primeira instância, a fim de o Mmº Juiz que proferiu a sentença recorrida se pronunciar fundamentadamente acerca da nulidade da sentença invocada na presente apelação, conforme disposto no arts. 617º, nº 1 e 641º, nº 1 do mesmo Código.
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Em conformidade com o ordenado, a Mmª Juiz “a quo” proferiu o seguinte despacho:
“Veio o réu nos presentes autos interpor recurso de apelação e arguir a nulidade da decisão impugnada com o seguinte fundamento:
“Existe uma falta de fundamentação da sentença que se baseia num erro de raciocínio lógico e que é contrária aos factos apurados, à prova que foi junta e ao direito a que o Exmo. Senhor Doutor Juiz estava obrigada para poder proferir uma sentença conforme à realidade, tratando-se, assim, de uma sentença sem qualquer fundamento e que implica a sua nulidade conforme previsto no art.º 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil (CPC).”.
Desde já consigna-se que este tribunal a quo não se pronunciou sobre a nulidade por mero lapso, importando fazê-lo agora, de acordo com o disposto no artigo 641º, n.º 1 do Código de Processo Civil, tal como determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Porém, entende-se não se verificar a nulidade invocada nem qualquer outra prevista no artigo 615º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
A sentença impugnada contém o elenco dos factos provados e não provados de acordo com aqueles que foram alegados pelas partes e que resultaram da instrução da causa, foi também aposta na sentença em causa a motivação do julgador que levou a que tais factos se considerassem provados ou não provados, com apreciação crítica dos meios de prova, e por fim foram analisados os fundamentos jurídicos plausíveis e decidida a causa de acordo com o direito aplicável.
Nas suas alegações de recurso, entende o recorrente que a questão a decidir prende-se com a caducidade ou não do contrato de arrendamento celebrado em 01/02/1968 e que a sentença não esclarece esta questão. Pois bem, a sentença pronunciou-se, na alínea b) da fundamentação de direito sobre a caducidade do contrato de arrendamento, aplicando as regras jurídicas ao caso concreto.
Mais alega o recorrente que o pai havia casado com a sua mãe no dia 22 de outubro de 1967, no regime de comunhão de adquiridos, sendo esta uma co arrendatária, por o contrato de arrendamento ser posterior. E que tal situação não foi tida em consideração pelo tribunal a quo. Tais factos são, porém, questão nova, nunca tendo sido alegados nem suscitados pelo réu no processo até às alegações de recurso.
Todavia, julga-se ser a questão nova agora suscitada irrelevante, atendendo à data do óbito da mãe do réu, falecida em 23-01-2022, ou seja, já na vigência do NRAU.
Pois bem, considerando a data da celebração do arrendamento, a sua transmissão por morte rege-se pelas disposições transitórias conjugadas dos artigos 26.º, n.º 2, 27.º, 28.º e 57.º, n.ºs 1 a 4, do NRAU. Exatamente como se decidiu na sentença em crise. Ou seja, a nova questão suscitada em nada altera a decisão proferida.
Tal como referido naquela decisão: “A este conspecto, sufraga-se a posição expendida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-02-2023, quando refere que [o] art.º 1106º do CC, na redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 6/2006 de 23-03, e posteriormente alterado pela Lei n.º 31/2012 de 14-08 e pela Lei n.º 13/2019, de 12-02 aplica-se aos contratos de arrendamento mais recentes, os quais foram outorgados num momento em que o arrendamento urbano já não se achava limitado pela rigidez do regime anterior, à luz do qual os contratos de arrendamento urbano, especialmente os destinados para habitação constituíam vínculos rígidos de duração multigeracional.
Nessa medida, a evolução legislativa foi claramente no sentido de aligeirar o rigor e rigidez do regime do arrendamento vinculístico. É por isso à luz destas considerações que devemos encarar as regras consagradas no art.º 57º do NRAU, as quais visam obviar a uma excessiva prorrogação da vigência dos contratos outorgados antes da entrada em vigor do RAU e do NRAU, reduzindo os casos de transmissão do arrendamento a situações justificadas por especiais razões assistenciais.
Assim, não estando o Réu em nenhuma das situações previstas no artigo 57.º, do NRAU, e em face da supressão de um duplo grau de transmissibilidade do direito ao arrendamento, é mister concluir que o contrato de arrendamento caducou ope legis com a morte da arrendatária ………………., ou seja, no dia 23-01-2022, nos termos do disposto no artigo 1051.º, alínea d), do CC.
Conclui-se, assim, que o contrato de arrendamento dos autos não se transmitiu para o Réu nem este alguma vez ocupou a posição de arrendatário.”
Diga-se, aliás, que a decisão já considerou a mãe do réu como arrendatária, ao contrário do que refere agora o recorrente.
A diferença de entendimentos prende-se não com alguma falta de indagação ou de fundamentação pelo tribunal mas sim com a divergência de opinião sobre o mérito da questão.
O recorrente alega ainda que não foi dado como provado qualquer facto que possa sustentar a condenação do réu no pagamento da indemnização nos termos que constam da sentença recorrida.
Sobre esta questão pronunciou-se o tribunal a quo na alínea c) da fundamentação de direito da sentença recorrida: Termina fixando a indemnização pela inobservância da obrigação de restituir o locado com base na área bruta privativa, tipologia, valor patrimonial do imóvel, bem como no valor que o réu deposita como “renda”. Factos esses que ficaram provados nos pontos 9 e 10 da matéria de facto em virtude do acordo das partes e da certidão predial permanente do imóvel junta aos autos, tal como referido na motivação de facto da sentença recorrida.
Não se julga, portanto que se verifique a falta de fundamentação invocada, nem alguma contradição, ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Também não foi deixada por conhecer alguma questão suscitada. Nem se condenou em quantidade superior nem em objeto diverso do pedido.
Assim, por se entender que não se verifica a nulidade invocada mantenho a decisão recorrida, remetendo, no mais, para os fundamentos que constam da dessa mesma decisão.
V. ªs Ex. ªs, porém melhor decidirão.”
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Recebidos os autos neste Tribunal, foram colhidos os vistos.
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2. Objeto do recurso
Admitido o recurso, e remetido o mesmo a este Tribunal, nada obstando ao conhecimento do seu mérito.
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3. Questões a decidir
São as conclusões formuladas pelo recorrente que delimitam o objeto do recurso, no tocante ao desiderato almejado por aquele, bem como no que concerne às questões de facto e de Direito suscitadas, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC.
Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC)[1].
Por outro lado, não pode o Tribunal de recurso, conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
No caso em análise, importa decidir se:
- A sentença recorrida padece da alegada nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil;
- Assiste ao réu o direito à transmissão da posição de que a sua mãe detinha no contrato objecto dos autos (arrendatária);
- É devida a indemnização fixada.
3. Fundamentação
Na sentença recorrida, consideraram-se provados os seguintes factos, com interesse relevante para a decisão da causa:
“1 – Por acordo celebrado entre o falecido marido da Autora e ……………………, foi proporcionado, por aquele a este, em 01-02-1968, o gozo temporário, mediante retribuição, do imóvel sito na Rua …………………………;
2 – A aquisição do direito real de propriedade por doação e sucessão hereditária sobre o citado imóvel encontra-se inscrita pela apresentação de 28-12-2015 a favor de ………………….;
3 – Encontra-se inscrita por apresentação 3109 de 28-12-2015, a constituição de usufruto sobre o imóvel a favor da Autora;
4 – ……………………. faleceu em 28-01-2002 no estado de casado com ……………… com quem vivia no locado referido em 1;
5 – A viúva ………………. faleceu em 23-01-2022;
6 – Por cartas de 16 de fevereiro de 2022, o Réu informou a Autora e ………………….. da morte da sua mãe ………………………..;
7 – Por cartas de 25-02-2022 e 23-03-2022, a Autora solicitou ao Réu a restituição do imóvel;
8 – O Réu continua a ocupar o arrendado;
9 – O Réu deposita mensalmente a favor de …………………… o montante de €103,94;
10 – Consta da respetiva caderneta predial urbana do locado que o mesmo tem um valor patrimonial tributário de €30.987,95 determinado no ano de 2021, 64 m2 de área privativa bruta e tipologia/divisões: 6.
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Não se logrou provar:
a) Que o valor locativo do imóvel é de €1.000,00 mensais.”
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1 – Da invocada nulidade da sentença recorrida prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil:
Alega o recorrente que se “verifica, que existiu uma falta de fundamentação da sentença que se baseou num erro de raciocínio lógico e que é contrária aos factos apurados, à prova que foi junta e ao direito a que o Exmo. Senhor Doutor Juiz estava obrigada para poder proferir uma sentença conforme a realidade, tratando-se, assim, de uma sentença sem qualquer fundamento e que implica a sua nulidade conforme previsto no art.º 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.”
De acordo com o artº 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, “é nula a sentença que não especifique os fundamentos e facto e de direito que justificam a decisão”.
Na sentença em crise, o Mmº Juiz “a quo” começou por enunciar os factos que entendeu dever dar como assentes e aquele que considerou como não provado.
De seguida, explicou, em sede de fundamentação de facto, os motivos pelo qual decidiu daquele modo, fazendo o correspondente juízo crítico das provas produzidas. Fundamentação essa que não foi objecto de crítica nem impugnação.
Após, aplicou o direito nos moldes em que entendeu correctos, à factualidade assente e, ao contrário do que alega o recorrente, explicou os motivos pelos quais considerou verificada a caducidade do contrato de arrendamento e devida a indemnização fixada.
Conforme decidiu o STJ, em Acórdão proferido em 03.03.2021, relatado pela Srª Conselheira Maria do Rosário Morgado, disponível em www.dgsi.pt.:
“I - A arguição de nulidades destina-se apenas a sanar vícios de ordem formal que eventualmente inquinem a decisão, não podendo servir para as partes manifestarem discordâncias e pugnarem pela alteração do sentido decisório a seu favor.
II – Só se verifica a nulidade prevista no artº 615, nº 1, al. b) do CPC, quando a sentença não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Ora, no caso dos autos, o recorrente discorda do enquadramento jurídico levado a efeito na decisão recorrida e pretende que esta seja alterada, decidindo a seu favor.
Isto nada tem que ver com a ausência de fundamentos de facto e de direito que motivam a decisão.
Tal como salienta a Mmª Juiz “a quo” no despacho em que se pronuncia sobre a arguida nulidade: “a sentença impugnada contém o elenco dos factos provados e não provados de acordo com aqueles que foram alegados pelas partes e que resultaram da instrução da causa, foi também aposta na sentença em causa a motivação do julgador que levou a que tais factos se considerassem provados ou não provados, com apreciação crítica dos meios de prova, e por fim foram analisados os fundamentos jurídicos plausíveis e decidida a causa de acordo com o direito (que se considerou) aplicável”.
Pelo exposto, não procede a argumentação expendida nesta sede e, em consequência, concluímos que a sentença recorrida não padece do vício da nulidade a que alude o artº 615, nº 1, al. b) do CPC.
2 - Apurar se o réu tem direito à transmissão da posição de que a sua mãe detinha no contrato objecto dos autos (arrendatária):
A causa de pedir da presente acção funda-se num contrato de arrendamento tendo por objecto o imóvel sito na Rua ……………………………, para fins habitacionais, entre o falecido marido da autora, que assumiu a posição de senhorio, e ………………………, que assumiu a posição de arrendatário.
O contrato em análise caracteriza-se por uma das partes se obrigar a proporcionar à outra, o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição.
Actualmente o imóvel em questão pertence ao filho da autora, ………………………, mas aquela é usufrutuária do mesmo, desde 28-12-2015.
À data da celebração do acordo em análises, estava em vigor o Código Civil de 1867, que não consagrava qualquer exigência de forma para o contrato de arrendamento para habitação celebrado entre dois particulares. Estamos, pois, perante um contrato não formal, pese embora o mesmo tivesse sido reduzido à forma escrita.
Nos termos do artigo 59º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
Entre estas normas transitórias inclui-se o artigo 57º do referido diploma legal, aplicável aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, por força do disposto no art. 26º “ex vi” arts. 27º e 28º, todos do NRAU.
Resulta provado que o contrato de arrendamento foi celebrado pelo pai do Réu.
Alega o Réu que o direito do arrendatário se comunicou, por via do casamento, ao seu cônjuge (mãe).
Refere que o contrato de arrendamento foi celebrado em 01 de Fevereiro de 1968 pelo seu pai que havia casado com a sua mãe no dia 22 de Outubro de 1967, no regime de comunhão de adquiridos, sendo esta uma co arrendatária. Acrescenta que o arrendado já integrava a situação patrimonial conjugal na altura da outorga do aludido contrato de arrendamento, vinculando ambos os cônjuges e conclui que estamos, assim, perante um contrato de arrendamento em que ambos os cônjuges eram arrendatários (não por aplicação retroactiva do artº 1086º do Código Civil, mas sim porque o contrato de arrendamento e o casamento foram celebrados no domínio da lei que previa a comunicabilidade do direito ao arrendamento), não tendo havido à data da morte do arrendatário …………, em 27 de Janeiro de 2001, uma transmissão do direito ao arrendamento, mas sim uma concentração do arrendamento no cônjuge, a também arrendatária ……………... Sendo que, com a morte do seu marido, a mãe do Recorrente passa a arrendatária visível, posição que tinha adquirido com o seu casamento e por direito próprio e o arrendamento plural passa a ser um arrendamento singular, sendo esta a primitiva arrendatária.
Vejamos, se assim se pode considerar.
Por força do artigo 3º do NRAU, foi aditada ao CC, no artigo 1068º, a seguinte disposição «O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente».
Ora, a jurisprudência dos tribunais superiores divide-se relativamente à comunicabilidade do direito ao arrendamento quando estejam em causa contratos celebrados antes da vigência do RAU. Essa divergência assenta em entendimentos diversos sobre a aplicação da lei no tempo, a saber dos artigos 12º, n.º 2 do CC e 59º, n.º 1 do NRAU.
Para uma corrente jurisprudencial, o artigo 1068º do CC não é de aplicação automática, uma vez que, ainda que disponha sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento, não o faz abstraindo-se dos factos que lhe deram origem, como refere o n.º 2 do artigo 12º do CC, mas sim tendo-os em consideração.
Assim, aquela norma não abrange as relações já constituídas, pelo que a posição de arrendatário não se comunica por efeito do casamento[3].
Já para outra linha, a partir da entrada em vigor da norma constante do artigo 1068º do CC, o arrendamento passa a comunicar-se automaticamente ao cônjuge, pois esta disposição incide diretamente sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento constituída antes da entrada em vigor do RAU, mas que subsiste aquando da entrada em vigor do NRAU.
Nesse sentido, a remissão final do artigo 1068º do CC para o regime de bens vigente implica, atendendo às normas que regulam esta matéria, que na comunhão geral de bens haja comunicabilidade da posição jurídica de arrendatário para o cônjuge não signatário do contrato (artigo 1732º do CC).
O artigo 1068º do CC incide sobre o estatuto jurídico dos cônjuges dos arrendatários, do qual pode fazer parte, consoante o regime de bens vigente, a comunicação da qualidade de arrendatário.
Esta disposição legal atinge essas pessoas, não enquanto contraentes, mas enquanto pessoas ligadas, por intermédio do seu cônjuge, ao vínculo de arrendamento, sem, no entanto, considerar os factos que lhe deram origem.
Nesse sentido, julga-se que a segunda tese concretiza o disposto nos artigos 12º, n.º 2, 2ª parte do CC e 59º, n.º 1 do NRAU, pelo que já se acolheu no acórdão proferido, nesta mesma data, no âmbito do processo nº. 621/23.3T8AMD.L1 (relatado pela mesma relatora), onde se entendeu que: “I – O contrato de arrendamento celebrado por um dos cônjuges, em data anterior à entrada em vigor do NRAU, comunica-se ao cônjuge que lhe sobreviveu e com quem era casado sob o regime da comunhão geral de bens, com efeitos desde a data de entrada em vigor do NRAU. II - Com a morte do pai do autor em 2014, não se operou nenhuma transmissão da posição de arrendatário, nos termos e para os efeitos previstos no art. 57º do NRAU, mas mera “consolidação” da posição de arrendatário na pessoa da mãe do autor. III - Tendo o contrato de arrendamento sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, aplica-se à transmissão por morte o regime transitório previsto no artigo 57º do NRAU. E, por força do disposto na al. e) do seu n.º 1, o contrato de arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva filho que com ele convivia há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%”.
Mas, no caso dos autos não foi alegada matéria de facto que permita balizar tal entendimento jurídico. Efectivamente, dos articulados apresentados pelas partes não consta, o regime de casamento dos pais do Réu. Como refere a Mmª Juiz “a quo” no despacho que proferiu sobre a questão da nulidade suscitada nos termos do disposto no artº 617, nº1 e 5 do CPC, a circunstância dos pais do réu terem sido casados no regime da comunhão geral de adquiridos, apenas foi suscitada por este, em sede de alegações de recurso.
Sem este elemento, não é possível enquadrar juridicamente a situação em análise.
Assim sendo, não há nada que permita concluir, como conclui o recorrente que, aquando do falecimento do seu pai, o contrato de arrendamento não se transmitiu para o cônjuge sobrevivo (sua mãe), uma vez que já fazia parte da sua esfera jurídica.
Argumenta o recorrente que, mesmo que se considerasse que o contrato de arrendamento não fazia parte da esfera jurídica da sua mãe e foi transmito para esta, aquando da morte de seu pai, ainda assim, era permitida uma segunda transmissão a seu favor, por se verificarem os requisitos previstos no artº 85º do RAU, quer os previstos no artº 57º, nº 1, alínea e) do NRAU;
Efectivamente, ainda que a factualidade “supra” alegada pelo recorrente tivesse correspondência com a realidade, não teriam a virtualidade de conferir ao Recorrente o direito de transmissão do contrato de arrendamento em causa.
Considerando que o contrato de arrendamento em causa (para habitação) foi celebrado em 1 de Fevereiro de 1968, terá de se atentar ao preceituado no artigo 1051.°, alínea d) do Código Civil (versão actual e em vigor desde 2006), que o contrato de locação, tendo natureza “intuitu personae”, caduca por morte do locatário, salvo convenção escrita em contrário, bem como ao disposto no artigo 1059.° n.° 1 do Código Civil, nos termos do qual “a posição contratual do locatário é transmissível por morte dele ou, tratando-se de pessoa colectiva, pela extinção desta, se assim tiver sido convencionado por escrito.”.
Porém, no caso dos contratos de arrendamento para habitação, a regra da caducidade do arrendamento por morte do arrendatário pode, no entanto, sofrer um regime de excepção, constante dos artigos 1106.° e 1107.° do Código Civil.
De acordo com o art. 1106.º, n.º 1, na redacção actualmente em vigor, “O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de um ano;
c) Pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano.”.
Não obstante, à situação dos presentes autos não é aplicável tal preceito legal.
Isto porque, o contrato foi celebrado em 1968, pelo que se lhe aplicam as normas transitórias do NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro), nomeadamente os seus artigos 26.º (por remissão do art. 28.º), 27.º, 28.º e 57.º, que aqui se transcrevem:
“Contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU:
SECÇÃO I
Disposições gerais
Artigo 26.º
Regime
1 - Os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.
2 - À transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57.º e 58.º
3 - Quando não sejam denunciados por qualquer das partes, os contratos de duração limitada renovam-se automaticamente no fim do prazo pelo qual foram celebrados, pelo período de dois anos ou, quando se trate de arrendamento não habitacional, pelo período de três anos, e, em ambos os casos, se outro prazo superior não tiver sido previsto.
4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades:
a) Continua a aplicar-se o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU;
b) Para efeitos das indemnizações previstas no n.º 1 do artigo 1102.º e na alínea a) do n.º 6 e no n.º 9 do artigo 1103.º do Código Civil, a renda é calculada de acordo com os critérios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 35.º da presente lei;
c) O disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct..
5 - Em relação aos arrendamentos para habitação, cessa o disposto na alínea a) do número anterior após transmissão por morte para filho ou enteado ocorrida depois da entrada em vigor da presente lei.
6 - (Revogado.)
7 - Os direitos conferidos nos números anteriores ao arrendatário podem ser invocados pelo subarrendatário quando se trate de subarrendamento autorizado ou ratificado nos termos da lei.
Artigo 27.º
Âmbito
As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro.
Artigo 28.º
Regime
1 - Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26.º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30.º a 37.º e 50.º a 54.º
(...)
Artigo 57.º
Transmissão por morte no arrendamento para habitação
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct..
(…)
Ou seja, no que tange à transmissão por morte, ao contrato de arrendamento em causa nos presentes autos, uma vez que celebrado antes da entrada em vigor do RAU, ter-se-á de se aplicar o disposto no supra transcrito art. 57.º, por força do art. 28.º, que expressamente remete para o art. 26.º, n.º 2, todos do NRAU.
E, como resulta do teor das referidas normas, a transmissão do contrato de arrendamento apenas poderia ocorrer se sobrevivesse à mãe do aqui Recorrente qualquer das pessoas indicadas no n.º 1 do art. 57.º:
- Cônjuge com residência no locado;
- Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
- Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
- Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
- Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.
Não foi alegado, nem resulta da matéria de facto provada, qualquer elemento que permita dizer que o réu vivia há mais de um ano com a mãe, a respectiva idade, ou que padecesse de algum grau de deficiência.
Afigura-se, pois, evidente que o Recorrente, por não se incluir na previsão de qualquer das cinco alíneas do “supra” transcrito artigo 57.º, n.º 1, não poderá beneficiar da transmissão do contrato de arrendamento.
De igual modo, nunca teria cabimento a aplicação do artº 85 do RAU (versão do D.L. 321-B/90, de 15.10.1990), que admite a transmissão do direito ao arrendamento ao descendente que convivesse com o arrendatário há mais de um ano, uma vez que, não consta da matéria de facto provada o período da convivência alegada.
Como, de resto bem se concluiu, na sentença recorrida.
*
3. Da indemnização fixada:
Na sentença recorrida, o Mmº Juiz “a quo” fixou com recurso a juízos de equidade uma indemnização devida pela ocupação do locado, pelo Réu no valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros mensais) desde 23 julho de 2022 até efetiva entrega do imóvel, descontado do montante mensal de € 103,94 entretanto pago pelo Réu.
Insurgiu-se o Réu contra tal decisão, referindo que “quanto à indemnização que foi fixada pelo tribunal "a quo", não foi dado como provado qualquer facto que possa sustentar a condenação do Réu no pagamento da indemnização nos termos que constam da sentença recorrida; O valor da renda mensal tem sido pago pelo Recorrente e é uma contrapartida adequada para retribuir a ocupação do imóvel , atendendo à sua idade, tipo de construção, o sítio onde está implementado, estado de conservação e o seu valor patrimonial, concluindo-se desajustado o valor mensal de € 250,00 e que foi atribuído por alusão à equidade; A "equidade" do tribunal "a quo" em fixar tal valor foi a de não atender ao salário do Réu (mais do que baixo), ao facto de ter sempre residido no imóvel há 56 anos e há mais de 54 anos com a mãe quando esta morreu.”
Cumpre apreciar:
Com relevo para esta questão, da factualidade assente consta apenas que:
“O Réu continua a ocupar o arrendado, sito na Rua ………………….. (nºs 1 e 8);
O Réu deposita mensalmente a favor de ……………….. o montante de €103,94 (nº 9);
Consta da respetiva caderneta predial urbana do locado que o mesmo tem um valor patrimonial tributário de €30.987,95 determinado no ano de 2021, 64 m2 de área privativa bruta e tipologia/divisões: 6.”
Não se logrou provar “que o valor locativo do imóvel é de €1.000,00 mensais.”
Conforme resulta da sentença em crise, resulta da aplicação do artigo 1045.º, n.ºs 1 e 2, do CC a possibilidade de fixar uma indemnização legal na situação em que a finda o contrato de arrendamento e o locado não é devolvido ao proprietário ou, no caso concreto, à usufrutuária.
Mas esta norma só tem aplicação quando esteja em causa a falta de restituição da coisa locada, por quem no respetivo contrato, já findo, assumia a posição de locatário.
O réu não é, nem foi locatário do imóvel.
Logo, não tem aqui aplicação o critério indemnizatório contratual previsto na norma do artigo 1045.º, do CC.
A responsabilidade do Réu perante a Autora tem natureza extracontratual, devendo achar-se o critério determinador do quantum indemnizatório nas regras previstas no artigo 483.º, e ss., do CC.
Dispõe o artigo 483, nº 1 do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
De igual modo, à luz dos artigos 562.º, 564.º e 566.º, todos do CC, pretende-se “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, aí se compreendendo, “não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”, sendo a indemnização “fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”, tendo “como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”, devendo o tribunal julgar “equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos.
É certo que a ocupação do imóvel fruído pela Autora, face à caducidade do contrato de arrendamento após o decesso da mãe do Réu, constitui um acto ilícito imputável ao réu.
Está aqui em causa um eventual dano da privação do uso relacionado com a frustração do direito da Autora de fruir o citado bem, dele retirando as vantagens e benefícios inerentes, nomeadamente, as rendas advenientes da sua colocação no mercado de arrendamento.
Mas, para aferir da real existência deste dano e computar o mesmo, incumbia à autora comprovar em julgamento o valor locatício do imóvel, para que o tribunal pudesse concluir que ocorreu um dano na sua esfera jurídica e apreciasse como lhe convinha, a indemnização pela ocupação do mesmo.
Essa prova não foi feita.
Pelo contrário, resultou claramente não provado que o valor locatício do imóvel era de € 1000/mês.
Salvo o devido respeito, não vemos como rigoroso o uso de critérios de equidade[4], numa situação como a que está em causa, na medida em que apenas se apurou a localização do imóvel, dimensão do mesmo e respectivo valor patrimonial.
Nenhum dado sobre o estado de conservação do imóvel resulta provado nos autos, nem o tipo de construção. E, conforme refere o recorrente, nada sabemos sobre a capacidade económica do réu, nem sobre as condições económicas da própria autora, que peticiona a indemnização.
Esses factos não foram nem alegados, nem, consequentemente, provados.
A equidade deve ser balizada com factos concretos que permitam concluir pela justeza da decisão, sob pena da mesma se tornar arbitrária.
E, não deve, na nossa perspectiva ser usada para colmatar falhas na produção de prova.
Se a prova documental e testemunhal não foi suficiente para descortinar o valor locatício do imóvel, haveria sempre a possibilidade de recorrer à prova pericial que poderia ter sido pedida por qualquer uma das partes ou, oficiosamente determinada pelo juiz (cfr. artsº 467 e 477 do CPC).
Esta sim, seria a forma de fazer uma avaliação rigorosa do valor locatício do imóvel.
A isto acresce que, a renda estipulada pelos titulares do contrato de arrendamento sempre foi paga e, nada há no processo que permita dizer que havia desacordo quanto ao montante fixado, nem que esta não era a contrapartida adequada ao uso do imóvel.
O que é justo é que a autora faça suas as quantias pagas pelo réu, mas não receba qualquer indemnização adicional, porque, efectivamente, o uso do locado pelo réu foi compensado com o pagamento da renda convencionada pelos pais do réu.
Pelo exposto, procede nesta parte, o recurso interposto, concluindo-se pela improcedência do pedido de indemnização formulado pela autora, na medida em que já recebeu o valor da renda anteriormente acordada.
*
Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou o Réu a pagar à Autora uma indemnização no valor de €250,00 (duzentos e cinquenta euros mensais) desde 23 julho de 2022 até efectiva entrega do imóvel, absolvendo-se o mesmo do pedido quanto a essa parte, considerando-se o montante mensal de €103,94 entretanto pago pelo Réu, devido como compensação pelo uso do imóvel locado até à sua efectiva restituição e, mantendo-se no mais a referida sentença.
Custas por ambas as partes na proporção do decaimento (artº 527, nº 1 do CPC).
*
Lisboa,7/11/2024
Marília dos Reis Fontes
Maria Teresa Lopes Catrola
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira
_______________________________________________________ [1] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, págs. 114 a 116. [2] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Opus Cit.”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pág. 116. [3] 2 Nesse sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.05.2020 (processo n.º 5958/18.0T8FNC.L1-2) e de 23.03.2017 (processo n.º 5042/14.6TCLRS.L1-2), disponíveis em www.dgsi.pt.
3 Nesse sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2023 (processo n.º 4184/21.6T8FNC.L1.S1), de 15-05-2023 (processo 1309/20.2T8OER.L1.S1), de 13.04.2021 (processo n.º 5958/18.0T8FNC.L1.S1), de 13-04-2021 (processo 5958/18.0T8FNC.L1.S1) e de 01.03.2018 (processo n.º 4685/14.2T8FNC.L1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt. [4] Tal como citado na sentença recorrida, solução diferente foi preconizada no acórdão de 2019-07-02 (Processo nº 21543/17.1T8LSB.L1-7), de 2 de julho do TRL, relatado pelo Sr. Desembargador Diogo Ravara