ESCUSA
GRANDE INTIMIDADE
JUIZ
ADVOGADO
Sumário

Vivendo a Sra. Juíza em condições análogas às dos cônjuges com um sobrinho do mandatário da progenitora nos autos em questão e que, por via disso, se estabeleceu relação de seguimento dos filhos da Sra. Juíza na especialidade médica da esposa do advogado e inúmeros contactos que se traduzem em convívios familiares próximos, ao longo de quase 20 anos, considerando tais circunstâncias e a longevidade da relação estabelecida, bem como, a respetiva proximidade relacional, é de concluir que a relação ultrapassou os foros da mera relação social entre o julgador e um advogado, permitindo concluir que se verifica circunstância justificativa da escusa, em conformidade com o disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 120.º do CPC.

Texto Integral

I. A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções no Juízo de Família e Menores do Funchal – Juiz “X” veio, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.ºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil, apresentar pedido de escusa de intervenção no processo n.º (…)/19.9T8FNC-A, invocando, em suma, que:
- Vive em condições análogas às dos cônjuges com um sobrinho do mandatário da progenitora;
- A relação espelha-se em inúmeros convívios de cariz familiar próximo, ao longo de quase 20 anos;
- Os filhos da Sra. Juíza (e do dito sobrinho) são seguidos na especialidade pela esposa do mandatário;
- Não sendo motivo de impedimento é de suspeição, nos termos do artigo 120.º, n.º 1, al. g), parte final, do CPC; e
- O circunstancialismo poderá ser causa de se suspeitar da imparcialidade da Sra. Juíza, por parte dos sujeitos processuais e da comunidade jurídica e social.
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II. Visa a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.
Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. Assim se consagra, como uma das garantias do processo, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e justa.
Num Estado de Direito, a decisão jurídica de conflitos deve sempre fazer-se com observância de regras de independência e de imparcialidade, o que é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, consignado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
De todo o modo, podendo ocorrer situações desvirtuosas da observância de tais princípios, o legislador previu instrumentos ou mecanismos que garantem a imparcialidade e a isenção do juiz, também tutelados pela Constituição (cfr. artigos 203.º e 216.º), como pressuposto objetivo da sua perceção externa pela comunidade, onde se incluem os impedimentos, as suspeições, as recusas e as escusas.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
Tal é sublinhado em inúmeros textos internacionais.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
Nesta linha, a Comissão para os Direitos Humanos das Nações Unidas, em abril de 2003, adotou a resolução 2003/43, com vista à observância pelos Estados-Membros dos Princípios de Bangalore para a Conduta Judicial.
Entre esses Princípios conta-se o da Imparcialidade, aí enunciado do seguinte modo: “A imparcialidade é essencial para o bom desempenho da função judicial. Aplica-se não apenas à própria decisão, mas também ao processo de decisão.”.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. No caso em apreço, a Sra. Juíza vem referir que, no processo em questão, vive em condições análogas às dos cônjuges com um sobrinho do mandatário da progenitora e que a relação se espelha em inúmeros convívios de cariz familiar próximo, ao longo de quase 20 anos, sendo os filhos da Sra. Juíza seguidos medicamente pela esposa do mandatário.
O artigo 120.º do CPC  - aplicável às situações de escusa – por remissão do artigo 119.º do CPC – salvaguarda diversas situações – tipificadas nas várias alíneas do n.º 1 – em que existe circunstância ponderosa relacional que determina que possa suspeitar-se da imparcialidade do julgador.
A Sra. Juíza invoca a alínea g) do n.º 1 do artigo 120.º do CPC, preceito legal que permite induzir que há motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
No caso, a Sra. Juíza salienta que mantém vive em condições análogas às dos cônjuges com um sobrinho do mandatário da progenitora nos autos em questão, referindo que, por via disso, se estabeleceu relação de seguimento dos filhos da Sra. Juíza na especialidade médica da esposa do advogado e inúmeros contactos que se traduzem em convívios familiares próximos ao longo de quase 20 anos.
Perante tais circunstâncias e considerando não só a longevidade da relação estabelecida, bem como, a respetiva proximidade relacional, é de concluir que a relação ultrapassou os foros da mera relação social entre o julgador e um advogado, permitindo concluir que se verifica circunstância justificativa da escusa, em conformidade com o disposto na mencionada alínea g).
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo quer objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza seja dispensada de intervir no processo.
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IV - Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção da Sra. Juíza de Direito “A”, no âmbito do processo n.º (…)/19.9T8FNC-A.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 17-09-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).