ESCUSA
Sumário

I. O reconhecimento da escusa deferida a respeito de um determinado processo acarreta a dispensa de intervenção em todos os apensos de tal processo, quer já existentes à data da decisão sobre a escusa, quer daqueles que só, ulteriormente, venham a ter existência.
II. A verificação de que, a pretensão de escusa sobre o mesmo objeto processual já foi objeto de deferimento, por decisão definitiva, leva à conclusão da impossibilidade do proferimento de nova decisão que conheça do mérito da pretensão de escusa (ou que, simplesmente, se pronuncie sobre a “reiteração” de uma tal decisão).
III. A pretensão deduzida pela Senhora Juíza ora requerente, nos presentes autos, não pode ser atendida (sendo certo que, no incidente de escusa em apreço, não está em apreciação qualquer efeito ou valia sobre as decisões ou sobre a intervenção tida pela Sra. Juíza requerente, posteriormente ao deferimento da escusa que já lhe tinha sido deferida).

Texto Integral

I.
1. Por requerimento apresentado em juízo em 09-09-2024, a Sra. Juíza de Direito A, a exercer funções no Juízo de Família e Menores da Amadora – Juiz (…), veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC, lhe seja concedida escusa de intervenção “nos processos acima identificados ou simplesmente a reiteração da decisão do pedido de escusa já anteriormente apresentado e decidido”.
Para tanto, invocou, em suma, que:
- No dia 08 de Fevereiro de 2022 foi apresentada contra si queixa no Conselho Superior da Magistratura, tendo aposto o nome de B, a qual, “Não elenca nenhuma situação concreta mas é altamente difamatória tanto a nível pessoal como profissional” e que, após a sua resposta, foi imediatamente arquivada por tal entidade;
- Por decisão datada de 11-05-2022 foi deferido o pedido de escusa apresentado (proferida no processo (…)/22.4YRLSB do Tribunal da Relação de Lisboa);
- Na sequência de tal decisão o processo passou a ser despachado Juiz (…), sua legal substituta;
- Em 16-05-2023 a Juiz (…) despachou no sentido de o processo ser remetido ao Juiz (…) por considerar que a causa que motivou o pedido de escusa já não se verificava;
- Por serem imensos os processos e serem todos despachados eletronicamente, só posteriormente viu o que se tinha passado;
- A Juiz (…) mandou oficiar ao Tribunal da Relação de Lisboa que fosse enviado para o processo não só o pedido de escusa como a decisão que sobre ele recaiu, o que ficou no processo e, aproveitando-se dessa situação e existindo um grande conflito entre os progenitores da criança, a Mandatária do progenitor que sucessivamente pedia adiamentos das diligências marcadas ou faltando no próprio dia apresentando um atestado médico, deu inicio a um incidente de suspeição;
- Alega entre outras coisas que a requerente não é imparcial uma vez que já tinha pedido escusa a qual lhe foi concedida, não percebendo por que razão o processo foi remetido para o Juiz (…);
- Entende que o pedido de escusa é para o processo e não dirigido a alguém em particular.
Conclui que, “uma vez que, a intervenção da requerente como Juiz de Direito nos termos supra referidos autos está a originar suspeições existe motivo fundado e adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade e independência”.
2. Em 10-09-2024 foi proferido despacho no sentido de ser notificada a requerente para fornecer nos autos a identificação do processo relativamente ao qual pretende a escusa.
3. Na sequência, a Sra. Juíza requerente veio informar que o processo relativamente ao qual formula novo pedido é o processo n.º (…)/21.0T8AMD.
4. No âmbito do referido processo n.º (…)/22.4YRLSB deste Tribunal da Relação, a Sra. Juíza ora requerente tinha formulado pedido de escusa, apresentado em juízo em 09-05-2022, relativamente ao referido processo n.º (…)/21.0T8AMD, vindo, em 11-05-2022, a ser proferida decisão de deferimento da escusa requerida, reconhecendo-se que o motivo aí explanado “indicia desde logo, a existência de alguma animosidade contra a Srª. Juíza, o que em termos objectivos é susceptível de colocar em causa, a imparcialidade e a independência do julgador, criando-lhe desconforto no desempenho da sua função de administração da justiça e podendo levantar suspeitas quanto à sua imparcialidade.
Mas não é só a imparcialidade da Srª. Juíza que poderia ser colocada em causa, mas também a desconfiança sobre si, por banda das partes envolvidas nos processos, ou seja, o poder gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões.
Ora, nos termos da al. g) do nº. 1 do art. 120º do CPC., a existência de uma queixa é sem dúvida a materialização de uma inimizade, conducente a um pedido de escusa.
Os pedidos de escusa pressupõem situações excepcionais, o que é o caso (…)”.
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II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efectivamente, não se discute se o juiz mantém, ou não, a sua imparcialidade, mas visa-se, preventivamente, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a decisão do julgador recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, de uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
“O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão. Além disso há que ter presente que, no âmbito do pedido de escusa, não se pode sindicar a actividade jurisdicional da Juíza peticionante, ou seja, não interessa apurar se as decisões deste são ou não são justas, equilibradas e conformes ao direito, actividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objectiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça. O pedido de escusa de juiz tem de respeitar unicamente a processos concretos e não a todos os processos em que intervenham os advogados com os quais a Meritíssima Juíza mantém um litígio judicial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-12-2007, Pº 2222/07-1, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO).
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. No caso em apreço, a situação verificada não segue a norma usualmente verificada, em que, perante uma pretensão de escusa, formulada pelo julgador, a mesma é, sem mais considerações, objeto de apreciação, no sentido do seu deferimento ou do seu indeferimento.
Com efeito, no caso em apreço, verifica-se que, a Sra. Juíza requerente formulou, precedentemente (relativamente ao mesmo processo sobre o qual requer, agora, a escusa – o processo n.º (…)/21.0T8AMD) anterior requerimento de escusa, o qual, em 2022, obteve decisão de deferimento.
Sucede que, ulteriormente, passando o referido processo a ser tramitado pela sua substituta (Juiz (…) do mesmo juízo), foi entendido que a causa de escusa havia cessado e o processo voltou a ser tramitado pela Sra. Juíza, ora requerente (que apenas ulteriormente refere ter constatado tal situação).
Visa, agora, a Sra. Juíza requerente a concessão da escusa ou a reiteração da decisão já proferida.
Conforme se evidenciou na decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora de 11-12-2007 (Pº 2222/07-1, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO), “[o) pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão. Além disso há que ter presente que, no âmbito do pedido de escusa, não se pode sindicar a actividade jurisdicional da Juíza peticionante, ou seja, não interessa apurar se as decisões deste são ou não são justas, equilibradas e conformes ao direito, actividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objectiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça. O pedido de escusa de juiz tem de respeitar unicamente a processos concretos e não a todos os processos em que intervenham os advogados com os quais a Meritíssima Juíza mantém um litígio judicial”.
Conforme resulta destas referências e, bem assim, da circunstância de o pedido de escusa ter sempre por referência um concreto processo, verifica-se líquido que o efeito da decisão que venha a ser proferida sobre a pretensão de escusa, tenha influência sobre o processo a que tal incidente respeita.
No artigo 125.º do CPC procurou o legislador regular qual a influência do incidente na marcha do processo a que respeita. Estabelece o n.º 1 deste artigo que, enquanto se encontra pendente de decisão o incidente, “a causa principal segue os seus termos, intervindo nela o juiz substituto”.
Por seu turno, julgada que seja procedente a escusa (ou a suspeição), o n.º 1 do artigo 126.º do CPC estabelece que “continua a intervir no processo o juiz que fora chamado em substituição, nos termos do artigo anterior”.
Já se a escusa (ou a suspeição) for desatendida, “intervém na decisão da causa o juiz que se escusou ou que foi averbado de suspeito, ainda que o processo tenha já os vistos necessários para o julgamento” (cfr. artigo 126.º, n.º 2, do CPC).
Conforme evidenciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018m o, 151), [o] deferimento da escusa ou da suspeição determina a substituição definitiva do juiz”.
Compreende-se que assim seja, pois, a relação do juiz, direta ou indireta, atual ou pretérita, com os interesses dirimidos na causa, com o resultado do pleito ou com algum dos sujeitos processuais, à qual seja reconhecido que constitui motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, não deixará de constituir causa que exima a tramitação do processo pelo juiz a quem foi reconhecida tal relação.
E, nessa medida, o reconhecimento da escusa deferida a respeito de um determinado processo, acarretará, logicamente, a dispensa de intervenção em todos os apensos de tal processo, quer já existentes à data da decisão sobre a escusa, quer daqueles que só, ulteriormente, venham a ter existência.
Assim, tendo já sido proferida decisão de deferimento de escusa antes requerida, não poderá ser proferida nova decisão que aprecie tal pretensão.
Também, a verificação de que, a pretensão de escusa sobre o mesmo objeto processual já foi objeto de deferimento, por decisão definitiva, leva à conclusão da impossibilidade do proferimento de nova decisão que conheça do mérito da pretensão de escusa (ou que, simplesmente, se pronuncie sobre a “reiteração” de uma tal decisão).
Tecidas estas considerações vê-se, inelutavelmente, que a pretensão deduzida pela Senhora Juíza ora requerente, nos presentes autos, não pode ser atendida (sendo certo que, no incidente de escusa em apreço, não está em apreciação qualquer efeito ou valia sobre as decisões ou sobre a intervenção tida pela Sra. Juíza requerente, posteriormente ao deferimento da escusa que já lhe tinha sido deferida).
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IV. Face ao exposto, uma vez que já foi proferida decisão definitiva de deferimento da escusa da intervenção da Sra. Juíza de Direito A, relativamente ao processo n.º (…)/21.0T8AMD, mostra-se de desatender a nova pretensão de escusa formulada no presente processo.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 25-09-2024,
Carlos Castelo Branco
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).