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RECLAMAÇÃO
FORO
DIREITO REAL
IMPUGNAÇÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
USUCAPIÃO
Sumário
I. No artigo 70.º, n.º 1, do CPC consagra-se o critério especial do denominado “forum rei sitae”, pelo qual se estabelece que “devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as ações referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, a ação de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas”. II. Os direitos reais sobre imóveis só podem ser aqueles direitos que, como tal, o direito substantivo consagra e trata no Direito das Coisas – Livro III do Código Civil: o direito de propriedade, o usufruto, o uso e habitação, o direito de superfície, as servidões prediais. III. Os direitos reais têm várias fontes e a propriedade pode ser originária ou derivada. No caso da aquisição derivada a sua fonte é um negócio jurídico, um contrato, uma doação ou a lei (como sucede na sucessão legítima), e a sua causa a anterior propriedade de outrem. IV. A ação só é real quando o seu objeto é imediatamente o próprio direito real e não a sua fonte. V. Visando a presente ação impugnar escritura de justificação notarial de aquisição por usucapião pela 1ª ré, do direito de propriedade de prédio sito em Vila Verde, Braga e a declaração de nulidade e o cancelamento dos registos efetuados com tal suporte, não estamos perante um pedido formulado no âmbito dos direitos reais, mas perante a apreciação da legalidade da escritura de justificação notarial. VI. Assim, não estando em causa, imediatamente, o direito real sobre o imóvel, não tem aplicação o disposto no n.º 1 do artigo 70.º do CPC, que se reporta ao foro da situação do bem, havendo antes que recorrer ao foro pessoal, no caso, à regra geral constante do artigo 80.º, n.º 1, do CPC, que estipula que, “em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a ação o tribunal do domicílio do réu”, determinando a afirmação da competência territorial do Tribunal reclamado.
Texto Integral
I.
1. Em 10-12-2021, o Ministério Público instaurou, junto do Juízo Local Cível de Lisboa, a presente ação declarativa de condenação sob a forma comum contra A e B, pedindo o seguinte: “1. Declarada a falsidade das declarações prestadas na escritura pública de justificação outorgada no dia 04 de Abril de 2017, no Cartório Notarial de Loures a cargo da Licenciada (…), pelo que não poderão as mesmas produzir ou ser fonte de quaisquer efeitos jurídicos. 2. Declarado impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura pública de justificação outorgada pela primeira Ré no dia 04 de Abril de 2017, no Cartório Notarial de Loures a cargo da Licenciada (…) de aquisição, por usucapião, pela primeira Ré, do direito de propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º (…)/2017/05/15 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…). 3. Declarada a nulidade do registo de aquisição, por usucapião, a favor da primeira Ré As, do direito de propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º (…)/2017/05/15 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…), e concretizado em 15/05/2017, pela apresentação n.º (…), bem como do registo subsequente concretizado em 01/02/2018 pela apresentação n.º (…) e, por via disso, determinar-se o cancelamento dessas inscrições”.
Alegou, em suma, que:
- No dia 04 de Abril de 2017, no referido Cartório Notarial foi outorgada escritura pública de justificação, na qual a ré declarou “que, com exclusão de outrem, é dona e legítima possuidora do prédio urbano, que é uma casa em ruínas, de tipologia T Um, com a área de quarenta metros quadrados, que correspondem à área total do terreno e à área de implantação do edifício, que confronta do norte com (…), do sul com (…), do nascente com (…) e do poente com (…), sito em (…), na freguesia de (…), concelho de Vila Verde, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (…) sob o artigo (…), que corresponde ao anterior artigo (…) da aludida freguesia, com o valor patrimonial tributário actual de € 8.200,00, o mesmo que lhe atribui para efeitos desta escritura. Que o aludido prédio não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde”;
- A ré declarou ainda em tal escritura pública “que o identificado prédio foi adquirido por ela outorgante em mês que não pode precisar no ano de mil novecentos e noventa e cinco, por venda meramente verbal que lhe foi feita por (…), viúvo, residente em (…).”, que, desde 1995 passou a “exercer o poder de facto sobre o prédio urbano, posse que desde então tem vindo a exercer em nome próprio, sendo tida como sua única dona por toda a gente, deslocando-se ao mesmo com frequência, limpando, cortando silvas e ervas, podando as árvores, apanhando lenha e pinhas, tendo inclusive realizado obras no telhado e efectuado pinturas” e “que a posse foi e é assim exercida de boa-fé, de forma contínua, pacífica e pública, há mais de vinte anos, o que conduziu à aquisição do direito de propriedade sobre o identificado prédio por usucapião!;
- C, D e E, na qualidade de segundas outorgantes, declararam na identificada escritura pública de justificação “que são do seu conhecimento os actos jurídicos e materiais acima referidos e praticados pela primeira outorgante sobre os referidos imóveis e, por serem inteiramente verdadeiras, confirmam as declarações prestadas pela mesma.”;
- Em 15/05/2017, pela apresentação n.º (…), foi registada a favor da primeira ré, a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade do referido prédio;
- Em 01/02/2018, pela apresentação n.º (…), foi registada a favor do segundo Réu C, a aquisição, por compra, de ½ (metade) do direito de propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º (…)/2017/05/15 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…) – documentos n.ºs 2, 3 e 5;
- O registo lavrado pela apresentação n.º (…) é nulo, porque falso, em virtude de inscrever um facto (aquisição do direito de propriedade do imóvel a favor da primeira Ré por usucapião) que nunca se verificou, não correspondendo à verdade que a ré tenha adquirido o prédio identificado a (…) por compra verbal ocorrida em mês não concretamente identificado do ano de 1995 porquanto o mesmo já havia falecido em data anterior a essa;
- Após a morte de (…), ocorrida em 23 de Agosto de 1991, a sua filha (…) continuou a viver no prédio em apreço, de forma ininterrupta, até à sua integração na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas do Centro Social da Paróquia da (…), o que apenas veio a ocorrer no dia 03 de Abril de 2008;
- Em data não concretamente apurada, mas seguramente localizada após o decesso de (…) e anterior a 03 de Abril de 2008, (…), filho de (…), passou igualmente a residir e até 01-04-2011, de forma ininterrupta, no prédio em apreço, tendo aí residido juntamente com a sua mãe (…) até à integração desta em ERPI; e
- As declarações constantes na escritura pública de justificação outorgada não são verdadeiras.
2. Os réus contestaram e deduziram reconvenção.
3. O autor replicou.
4. No desenvolvimento dos autos, em 15-01-2024, o Juízo Local de Lisboa – Juiz (…) proferiu o seguinte despacho: “O Ministério Público intentou ação de impugnação de justificação notarial contra B e C, tendo por objeto o prédio urbano sito em (…), na freguesia de (…), concelho de Vila Verde. Considerando o foro da situação do bem em causa, ao abrigo do princípio do contraditório, notifique o Autor e os Réus para se pronunciarem sobre a in(competência) deste Tribunal, o que se determina ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, n.º 3; e 547.º do Código de Processo Civil.”.
5. Na sequência, os réus vieram requerer a remessa dos autos ao tribunal competente “nomeadamente ao Juízo Local Cível de Vila Verde – Comarca de Braga, tribunal competente nos termos do artigo 70.º do CPC”.
6. O autor pronunciou-se sobre a questão da competência, concluindo, nomeadamente, que, o que está em causa não é o reconhecimento da propriedade, mas da legalidade da escritura de justificação notarial, pelo que, não é de aplicar o critério especial fixado no artigo 70.º, n.º 1, do CPC, mas o geral estabelecido no artigo 80.º, n.º 1, do CPC, o do domicílio do réu.
7. Em 10-05-2024 foi proferido o seguinte despacho: “Da incompetência territorial do Juízo Local Cível de Lisboa para a tramitação dos presentes autos O Ministério Público instaurou contra B e C, a presente acção de impugnação de escritura de justificação notarial, sob a forma comum, tendo por objecto a escritura pública de justificação outorgada pela primeira Ré no dia 04 de Abril de 2017, no Cartório Notarial de Loures a cargo da Licenciada (…) de aquisição, por usucapião, pela primeira Ré, do direito de propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o n.º (…)/2017/05/15 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…). (…) Por despacho de 15 de Janeiro de 2024 foram as partes convidadas a pronunciar-se sobre a ocorrência da excepção dilatória de incompetência relativa deste Tribunal, por infracção das regras de competência fundadas na divisão judicial do território, convite ao qual corresponderam, pugnando o Autor pela competência deste Tribunal e requerendo os Réus a remessa do processo para o Tribunal do foro da situação do prédio objecto da escritura de justificação notarial ora impugnada (Juízo Local Cível de Vila Verde – Comarca de Braga). (…) Dispõe o artigo 70.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que “Devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, a acção de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas.”. A questão que se coloca é se a presente acção se encontra contemplada pela previsão do citado preceito, isto é, se a competência para a tramitação e julgamento da causa pertence ao foro da situação do bem ou, ao invés, ao tribunal do domicílio dos Réus. Neste circunspecto, acompanha-se a posição vertida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/03/2011 (processo n.º 333/10.8TBAGN-A.C1, acessível em www.dgsi.pt), que ponderou a questão nos seguintes termos: “(…) numa acção de impugnação de uma escritura de justificação notarial, para efeitos de registo predial, o que se alega e impugna são precisamente os factos possessórios que são referidos nesse tipo de escritura, como justificadores de uma aquisição originária de imóveis (por usucapião) por parte de quem pretende justificar tal posse/aquisição (o Réu na acção). Daí que neste tipo de acções o Autor tenha de alegar que são falsas as ditas declarações/factos possessórios alegados, dos quais é efectuada divulgação pública através de anúncios em jornais com divulgação na área da localização dos prédios, pedindo que seja tal escritura declarada de nenhum efeito e que os registos prediais de propriedade obtidos por tal meio sejam cancelados. É exactamente o que se passa na presente acção, sendo certo que cabe sempre ao justificante/Réu o ónus da prova desses factos invocados na escritura, sob pena de a acção de impugnação proceder. Logo, o que é objecto de discussão neste tipo de acções são precisamente os actos possessórios constantes da escritura de justificação e a aquisição de direitos através desses actos (por usucapião). Como bem refere o Autor/Recorrente nas suas alegações de recurso, até o STJ já fez publicar um acórdão uniformizador de jurisprudência, com o nº 1/2008, publicado no DR Iª série, de 31/03/2008, no qual se defende que “na acção de impugnação de escritura de justificação notarial, prevista nos artºs 116º, nº 1, do CRP, 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artº 7º do CRP”. Donde que o que se discute neste tipo de acções é apenas e tão somente a alegada e justificada aquisição, por usucapião, de imóveis, com base nos factos constantes da escritura de justificação, cujo ónus de prova cabe sempre ao Réu/justificante. Donde resulta, afigura-se-nos, que tal tipo/espécie de acções, devem ser propostas no tribunal da situação dos bens justificados, nos termos do artº 73º do CPC (foro da situação dos bens).”. Apesar de proferido na vigência do Código de Processo Civil de 1961, a solução apontada pelo citado aresto total actualidade, sendo certo que nesta matéria o regime legal se manteve, na sua essência, inalterado. Ou seja, as razões subjacentes à atribuição da competência ao foro da situação dos bens nas hipóteses expressamente previstas no artigo 70.º, n.º 1 do Código de Processo Civil são integralmente transponíveis para o caso vertente. No caso, o prédio cuja posse foi justificada por via da escritura ora em crise situa-se em (…), freguesia de (…), concelho de Vila Verde, encontrando-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Laje sob o artigo (…), que corresponde ao anterior artigo (…) da aludida freguesia – cfr. artigo 3.º da petição inicial. Deste modo, não se situando o prédio em apreço no município de Lisboa, área de competência deste Juízo Local Cível, este é territorialmente incompetente para apreciar e decidir a presente acção. Competente para a apreciação e decisão da presente causa, em conformidade com o disposto no citado artigo 70.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, será o Juízo Local Cível de Vila Verde, que corresponde ao Tribunal da situação do imóvel. Verifica-se, assim, a infracção da regra contida no artigo 70.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que determina a incompetência em razão do território, excepção dilatória de conhecimento oficioso (artigos 104.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 e 577.º alínea a) do Código de Processo Civil) e importa a remessa dos autos ao Tribunal competente. Pelo exposto, declara-se a incompetência em razão do território deste Juízo Local Cível de Lisboa e, em conformidade, determina-se, transitada em julgado esta decisão, a remessa dos presentes autos ao Juízo Local Cível de Vila Verde – Tribunal Judicial da Comarca de Braga (artigos 102.º e 105.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Custas do incidente pelo Autor, sem prejuízo da isenção de que beneficia – cfr. artigo 4.º, n.º 1, al. a) do Regulamento das Custas Processuais. Notifique (…)”.
8. Inconformado, reclama o autor, nos termos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, do CPC, sustentando, em síntese, que:
- Está em causa a escritura pública de justificação notarial realizada, em 04.04.2017, em Cartório Notarial de Loures;
- Trata-se de uma escritura de justificação de aquisição por usucapião pela Ré do direito de propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o nº (…)/2017.05.15 e inscrito na matriz sob o art. (…), da freguesia de (…), concelho de Vila Verde;
- O Tribunal Reclamado entendeu que o critério aferidor de competência territorial é o do foro da situação do prédio, estabelecido no art. 70º, nº1 do CPC e não o do domicílio dos Réus que, na situação concreta, residem no estrangeiro, devendo, nessa medida atender-se ao estatuído no art. 80º, nºs 1 e 3 do CPC (instauração da demanda no domicílio do Autor);
- Pese embora essa escritura se reporte a um imóvel o que importa ao Autor é o conteúdo da referida escritura, ou seja, o que nela se declara, pretendendo-se que a mesma seja declarada nula e de nenhum efeito;
- O que está em causa é não o reconhecimento da propriedade ou a titularidade do prédio, mas sim a legalidade da mencionada escritura, pretendendo o autor que com as declarações de nulidade os Réus não logrem alcançar nenhum efeito a partir das mesmas;
- Na perspetiva do autor não é de aplicar ao caso concreto o critério especial de atribuição de competência territorial fixado no art. 70º, nº1 do CPC (Foro da situação dos bens), mas antes o critério geral estabelecido no art. 80º, nº1 do CPC (Regra Geral), isto é, o do domicílio do réu, atendendo-se à circunstância específica de os Réus residirem no estrangeiro.
9. Por despacho de 12-09-2024, a reclamação apresentada foi mandada prosseguir.
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II. O autor reclama – ao abrigo do disposto no artigo 105.º, n.º 4, do CPC - da decisão que julgou procedente a exceção de incompetência territorial, acolhendo a competência do será o Juízo Local Cível de Vila Verde, que corresponde ao Tribunal da situação do imóvel, para conhecer da presente ação.
A infração das regras de competência fundadas na divisão judicial do território determina a incompetência relativa do tribunal.
Os critérios territoriais de determinação da competência determinam em que circunscrição territorial deve a ação ser instaurada.
O critério geral nesta matéria – vertido no artigo 80.º do CPC - é o de que o autor deve demandar, em regra, no tribunal do domicílio do réu (regra semelhante consta, relativamente a pessoas coletivas e sociedades, do artigo 81.º do CPC).
Contudo, a lei prevê casos em que esse critério geral é afastado por regras especiais.
Assim, sempre que alguma das regras especiais for aplicável à situação em causa, o critério geral não terá aplicação, sendo antes aplicável a regra especial.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (A competência declarativa dos tribunais comuns; 1994, Lex, p. 83) “os critérios especiais determinam a competência territorial em função de um nexo entre o tribunal e o objecto da causa ou as partes da acção”.
A divergência entre o decidido pelo Tribunal reclamado e a posição do autor assenta no facto de o primeiro considerar que, no caso, é de aplicar o critério especial de competência vertido no artigo 70.º, n.º 1, do CPC, enquanto que, o segundo, entender que rege o critério geral consignado no artigo 80.º do CPC.
No artigo 70.º, n.º 1, do CPC consagra-se o critério especial do denominado “forum rei sitae”, pelo qual se estabelece que “devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as ações referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, a ação de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas”.
Esta regra não poderá ser afastada por vontade das partes, nos termos do nº. 1 do artigo 95.º do CPC e a sua preterição é de conhecimento oficioso (cfr. artigo 104.º, n.º 1, al. a) do CPC).
Conforme salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 100), “[a]s ações reais (em cuja base esteja o domínio ou a titularidade de um direito real, sem que haja qualquer vínculo pessoal entre o autor e o réu que a ação se proponha efetivar) ou as ações de natureza semelhante que versem sobre direitos pessoais de gozo são instauradas no tribunal da situação dos bens sobre que incidem. Aqui se inscrevem designadamente as ações de reivindicação da propriedade e outras ações que visem a tutela de direitos reais de gozo, como o usufruto ou a servidão predial. Em contrapartida, as ações pessoais são aquelas em que entre o autor e o réu existe um vínculo de natureza obrigacional (v.g. a ação de declaração de nulidade de um contrato de compra e venda ou ação de cumprimento de um contrato de compra e venda para obtenção da entrega da coisa)”.
Os direitos reais sobre imóveis só podem ser aqueles direitos que, como tal, o direito substantivo consagra e trata no Direito das Coisas – Livro III do Código Civil: o direito de propriedade, o usufruto, o uso e habitação, o direito de superfície, as servidões prediais.
Entre os direitos pessoais de gozo sobre imóveis contam-se a locação, o comodato, a tradição da coisa objeto do contrato prometido, o direito real de habitação periódica, etc..
Os direitos reais têm várias fontes e a propriedade pode ser originária ou derivada. No caso da aquisição derivada a sua fonte é um negócio jurídico, um contrato, uma doação ou a lei (como sucede na sucessão legítima), e a sua causa a anterior propriedade de outrem.
Ora, “a acção só é real quando o seu objecto é imediatamente o próprio direito real e não a sua fonte. A acção de reivindicação é uma acção real porque visa reconhecer o próprio direito real sobre um imóvel, imediatamente, e a sua restituição pelo possuidor. Outros casos há em que o objecto da acção é o próprio facto jurídico que é fonte de transferência do direito real, pelo que, só mediatamente se visa o direito real sobre o imóvel” (assim, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-02-2007, Pº 0730387, rel. AMARAL FERREIRA).
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III. Vejamos:
No presente caso, conforme decorre da petição inicial, a presente ação destina-se a impugnar a escritura de justificação notarial outorgada no Cartório Notarial de Loures, em 04-04-2017, considerando-se impugnado o facto justificado em tal escritura (a aquisição por usucapião pela 1ª ré, do direito de propriedade do prédio supra identificado, sito em Vila Verde, Braga) e visando-se, igualmente, a declaração de nulidade de tal registo de aquisição de propriedade, por usucapião e o cancelamento dos registos efetuados com tal suporte.
No Título VI – intitulado “Do suprimento, da retificação e da reconstituição do registo” – do Código do Registo Predial regulam-se diversos meios de suprimento do registo e de recomposição do princípio do trato sucessivo, segundo o qual, o direito do adquirente tem de se basear no do transmitente (cfr. artigo 34.º do Código do Registo Predial).
Conforme refere Blandina Soares (“Processo de Justificação no Registo Predial”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 79, Lisboa, Jan.Jun. 2019, p. 58): “Para que este princípio possa ser cumprido é essencial que os interessados disponham dos documentos necessários. Ora, historicamente, sempre os interessados encontraram dificuldades para a obtenção de documentos, quer para o registo prévio, quer para os registos intermédios a partir do último titular inscrito, designadamente quando se instituiu a regra da obrigatoriedade da prévia inscrição de aquisição, pelo n.º 1 do art. 13.º dos Códigos do registo Predial de 1959 e 1967, e, anteriormente, com o estabelecimento do regime do registo obrigatório, nos concelhos onde vigorava o cadastro geométrico. O legislador procurou, assim, através das justificações, remediar o problema da falta de documentos (…). Portanto, a justificação, através de processo ou de escritura pública, surgiu como um meio fácil e expedito para que qualquer interessado que real e indiscutivelmente tivesse o direito, mas que não possuísse os documentos necessários para registo (o título ou títulos), pudesse por esta via suprir o título para o registo de aquisição a seu favor. no caso de se demonstrar que existe um título formal para o registo, não há nada que suprir, pelo que o registo deverá ser efetuado com base nesse título e não na justificação”.
De entre os meios de suprimento do trato sucessivo, encontra-se o meio da “justificação relativa ao trato sucessivo”, a que se reporta o artigo 116.º do Código do Registo Predial.
Dispõe este normativo o seguinte: “1 - O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 2 - Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respetivo titular, exigida pela regra do n.º 2 do artigo 34.º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 3 - Na hipótese prevista no número anterior, a usucapião implica novo trato sucessivo a partir do titular do direito assim justificado”.
No artigo 117.º e ss. do Código do Registo Predial regulam-se os termos do processo de justificação.
A “(…) justificação notarial constitui um mero instrumento jurídico através do qual, por via da invocação de razões de ciência, se obtém um título justificativo da aquisição do direito real por usucapião” (assim, o Acórdão do STJ de 08-11-2018, Pº 6000/16.1T8STB.E1.S1, rel. ABRANTES GERALDES).
A escritura de justificação notarial tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que, ou não possam ser provados pela forma original, ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão.
Certo é que a justificação notarial não constitui ato translativo, nem constitutivo de direitos (Cfr. Oliveira Ascensão, “Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa”, Separata da ROA, 1974, Ano 34, pp. 43-46).
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 117.º-I do Código do Registo Predial, o Ministério Público e qualquer interessado podem recorrer da decisão do conservador para o tribunal de 1.ª instância competente na área da circunscrição a que pertence a conservatória onde pende o processo.
A ação de impugnação de justificação notarial constitui, nos termos do artigo 101.º do Código de Notariado, o meio adequado a impugnar em juízo o facto justificado e, assim, as declarações prestadas na escritura e perante o Notário relativas ao direito invocado pelo réu justificante ou de que ele se arroga titular. “Do que se trata é antes da ineficácia [não da nulidade] de tal escritura, declarando-se que não produz efeitos, por os réus não terem adquirido o prédio por usucapião” (assim, o Acórdão Uniformizador do STJ nº 1/2008, de 04-12-2007, publicado no DR, 1ª, nº 63, de 31-03-2008).
Impugnada judicialmente a escritura de justificação notarial “impende sobre o justificante, na qualidade de réu, o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito, nos termos do art. 343.º, n.º 1, do CC, sem que possa beneficiar da presunção registal emergente do art. 7.º do CRgP” (cfr. Acórdão do STJ, de 09-07-2015, Pº 448/09.5TCFUN.L1.S1, rel. MARTINS DE SOUSA).
O pedido nestas ações de simples apreciação negativa “é exclusivamente a apreciação da existência ou inexistência da situação subjectiva ou do facto, pois esse é o efeito que se pretende obter através da acção”, ou seja, “factos juridicamente relevantes em abstracto e concretamente susceptíveis de constituir uma situação legalmente tutelada para um dos sujeitos jurídicos”, motivo por que “não pode o pedido destas acções comportar questões jurídicas, mas apenas determinadas e concretas relacionações entre pessoas ou entre pessoas e objectos ou consequências jurídicas”. Por seu turno, a causa de pedir consiste na específica fundamentação fáctica aduzida pelo autor como fundamento da impugnação e pode incluir factos extintivos, modificativos ou impeditivos do direito de que o réu se arrogou titular(assim, Miguel Teixeira de Sousa; “Acções de Simples Apreciação (objecto; conceito; ónus da prova; legitimidade)”, in RDES, XXV (1978), pp 142-143).
A pretensão deduzida pelo autor traduz, pois, o pedido de que se declare impugnado o facto justificado referente à invocada aquisição originária (por usucapião) do direito dos réus e, assim, ineficaz e de nenhum efeito a dita escritura de justificação.
De facto, na ação de impugnação de justificação notarial, a que se refere o artigo 101.º do Código do Notariado pretende-se “a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-09-2021, Pº 230/20.9T8VPA.G1, rel. ROSÁLIA CUNHA).
Ora, conforme se teve ocasião de referir em situação semelhante à dos autos – cfr. processo de reclamação n.º 10903/21.3T8LSB.L1 (decisão de 08-06-2021, da então Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa), no caso em apreço, de impugnação da escritura de justificação notarial, “(…) não estamos perante um pedido formulado no âmbito dos direitos reais. O que está em apreço será a pretendida nulidade de uma escritura de justificação notarial, ou seja, a apreciação da sua legalidade. Assim, o nº. 1 do art. 70º. do CPC., não será o aplicável. E não havendo preceito imperativo a determinar qual o tribunal competente, seguir-se-á a regra geral contida no nº. 1 do art. 80º do CPC. De acordo com tal preceito, em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu. Trata-se de uma regra de natureza supletiva aplicável nos casos em que não existe uma regulação específica. Assim sendo, sem necessidade de maiores considerandos, o tribunal competente será o do domicílio do réu, localizado em Lisboa”.
Com efeito, a pretensão que subjaz à ação de impugnação de escritura notarial assenta não traduz a atuação de qualquer ação referente a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis (ao contrário do decidido no Acórdão do TRC de 22-03-2011, Pº 333/10.8TBAGN-A.C1, rel. JAIME CARLOS FERREIRA, cuja jurisprudência não se acompanha), mas sim, o reconhecimento da nulidade ou ineficácia do facto justificado e que foi objeto de declarações insertas na escritura de justificação notarial impugnanda.
Não está, de facto, em causa na ação de impugnação de escritura de justificação notarial a consideração de algum facto possessório ou a atuação, em si mesma, de um direito real sobre imóvel, mas sim, apenas a aferição da legalidade das declarações que determinaram a verificação do facto justificado.
O objeto da causa centra-se na impugnação do facto jurídico que foi fonte ou causa do reconhecimento do direito real – a escritura pública de justificação notarial - pelo que, só mediatamente se coloca em causa o direito real sobre o imóvel, como consequência ou efeito da declaração da respetiva invalidade/ineficácia.
Conforme se referiu no Acórdão do STJ de 10-12-2009 (Pº 210/04.1TBSRE.C1.S1, rel. MÁRIO CRUZ), “numa escritura de impugnação notarial e do consequente registo dela decorrente, o que se pretende é atacar a própria escritura e os dizeres nela insertos que levaram ao registo e à presunção da titularidade do direito”.
Assim, não estando em causa, imediatamente, o direito real sobre o imóvel, não tem aplicação o disposto no n.º 1 do artigo 70.º do CPC, que se reporta ao foro da situação do bem, havendo antes que recorrer ao foro pessoal, no caso, à regra geral constante do artigo 80.º, n.º 1, do CPC, que estipula que, “em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a ação o tribunal do domicílio do réu”, determinando a afirmação da competência territorial do Tribunal reclamado.
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IV. Nos termos expostos, julga-se procedente a reclamação apresentada, revogando-se o despacho reclamado, declarando-se competente para prosseguir a lide, o Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz (…).
Sem custas.
Notifique.
Baixem os autos.
Lisboa, 25-09-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).