I - Apesar de estar consagrada no artigo 41º da CRP, inserido no Capítulo I do Título II relativos aos direitos, liberdades e garantias pessoais, esse reconhecimento constitucional não obsta a que, em determinadas circunstâncias, a liberdade de consciência, de religião e de culto possa sofrer limitações, por impossibilidade física ou material, como pode suceder em casos de privação da liberdade física e confinamento espacial em razão de detenção legítima, como é aqui o caso.
II - Não pode, pois, essa circunstância impedir a detenção validada e mantida pela decisão recorrida ou justificar, só por si, a sua substituição por medida de coação compatível com o seu livre exercício, se e enquanto se perfilar como necessária e adequada à sua finalidade primeira, qual seja a de prevenir o perigo de fuga e, assim, garantir as condições materiais de efetiva entrega do recorrente às autoridades judiciárias do Estado de emissão do MDE, caso a decisão final assim o determine.
III – Tão pouco a eventual verificação de uma causa de recusa facultativa e só passível de apreciação pelo tribunal da Relação aquando da decisão final, pode antecipadamente servir de suporte à decisão sobre a manutenção ou não da detenção, que, no caso em apreço, não se mostra desproporcional e desadequada às necessidades cautelares que o caso exige, tendo em conta a obrigação do Estado Português, através das competentes autoridades judiciárias, garantir as condições materiais que assegurem a efetiva entrega do detido e recorrente às autoridades judiciárias francesas emitentes do MDE.
IV – Seja porque da pretensão formulada pelo recorrente é lícito inferir que o mesmo reconhece a existência de um concreto perigo de fuga, seja porque o MDE foi emitido para cumprimento de uma pena e não para procedimento criminal, o que acentua e reforça o dever do Estado Português acautelar as condições materiais da entrega do detido às autoridades de emissão, para o que a detenção se revela mais eficaz e segura do que a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, menor garantia igualmente decorrente da situação precária em que seria executada, em espaço habitacional cedido por terceiros e por ora ainda não especificado, nomeadamente quanto ao seu isolamento ou partilha com outras pessoas e em que moldes.
V - Não despicienda é também a circunstância de a detenção se apresentar neste caso como uma espécie de início ou antecipação de cumprimento da pena em que o recorrente foi condenado em França, sendo o tempo de duração descontado no período total de privação da liberdade dela resultante, como decorre do artigo 10º da LMDE, assim como os prazos perentórios da sua duração fixados no artigo 30º da mesma Lei, claramente inferiores aos da duração legalmente admissível da medida de coação pretendida pelo recorrente, nos termos dos artigos 215º e 218º, n.º 3, do CPP.
Acordam, em Conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I – RELATÓRIO
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I. 1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), em ... de ... de 2024, promoveu a execução de mandado de detenção europeu (MDE) para cumprimento de pena, emitido pelas competentes autoridades judiciárias francesas, junto do Tribunal de Recurso de ..., contra AA, de nacionalidade Israelita e do Reino Unido e com os demais sinais dos autos, na sequência da sua detenção pela PSP, no dia ... de ... de 2024, pelas 22,15 horas, no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, em cumprimento de correspondente pedido inserido no SIS II (Sistema de Informação Schengen).
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1. 2. Aberta conclusão ao Juiz Desembargador de turno, foi por este proferido despacho em ........2024, a determinar a apresentação do detido para ser por ele ouvido nesse mesmo dia, pelas 11,30 horas.
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I. 3. Realizada a diligência, nos termos constantes do respetivo auto (referência 22120010), e considerada a oposição do detido à sua entrega às autoridades de emissão do MDE, foi proferido despacho judicial também consignado naquele auto, que validou e manteve a detenção do requerido, do seguinte teor:
(…) Seguidamente, pelo Exmº Srº. Desembargador, foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Concede-se o requerido prazo de 5 dias para apresentação da oposição.
A detenção é válida, porquanto efectuada no âmbito de MDE válido, não ocorrendo nenhuma das causas de recusa previstas no artº 11º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto.
O detido foi apresentado no prazo a que alude o artº 18 nº 3 da Lei 65/2003, de 23 de Agosto.
O presente Mandado tem por finalidade o cumprimento de pena de 2 anos de prisão por parte do detido, estando em causa decisão já transitada em julgado.
Como se refere o Mandado a actuação do detido insere-se no âmbito de um grupo organizado e que actua a nível internacional.
Em face de tal, entende-se que, como consta da douta promoção que antecede, apenas a manutenção da detenção se revelará eficaz e suficiente para que o Estado Português possa, se assim vier a ser decidido, entregar o detido às autoridades do Estado de Emissão, face ao concreto perigo de que tente eximir-se ao cumprimento do Mandado.
Muito respeita este Tribunal a religião professada por este detido, como respeita as religiões professadas pelo demais detidos que lhe são presentes. Mas, a questão da criação de condições para que o detido possa exercer a sua religião bem como alimentar-se de acordo com a mesma, terá que ser colocada ao Director do E.P. para o qual vier a ser transferido.
Assim, continuará o detido a aguardar os ulteriores termos deste processo na situação de detenção, dado que a mesma, para além de ser a única adequada e eficaz também se revela proporcional face ao supra exposto.
Passem-se mandados de condução ao estabelecimento prisional.
Notifique.»
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I. 4. Do transcrito despacho recorre para este Supremo Tribunal de Justiça (STJ) o referido AA, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
«(…) III – Conclusões:
A) O presente recurso tem por objeto a douta decisão proferida pela Meritíssima Juiz Desembargadora no passado dia ........2024, que decide pela manutenção da situação de detenção para aguardar os ulteriores termos deste processo de execução de mandado de Detenção Europeu formulado pelas autoridades da França, nomeadamente pelo Tribunal de ....
B) Até ao momento, não se encontra junto aos autos, certificação da sentença transitada em julgado, ou tão pouco mera sentença proferida em sede de recurso, contudo decorre do MDE que o detido foi condenado por factos que ocorreram no período correspondido entre ... de ... de 2013 e ... de ... de 2013, e tiveram a ver com o seguinte circunstancialismo fático: ter recebido uma transferência a crédito no valor de 395.700 euros para a sua conta bancária na ... e seis dias depois, efetuou uma transferência a débito no montante de 350.000 euros da mesma conta para uma conta de uma entidade ..., sem que esta operação tivesse qualquer justificação comercial.
C) Na esteira da promoção do Ilustre Procuradora da República junto do TRL, julgou a Mma. Juiz Desembargadora que tendo o Mandado por finalidade o cumprimento de pena de 2 anos de prisão por parte do detido, estando em causa decisão já transitada em julgado, e porque a atuação do detido se insere no âmbito de um grupo organizado e que atua a nível internacional, em face de tal, apenas a manutenção da detenção seria eficaz e suficiente para que o Estado Português possa, se assim vier a ser decidido, entregar o detido às autoridades do Estado de Emissão, face ao concreto perigo de que tente eximir-se ao cumprimento do Mandado.
D) E com esta decisão não pode o recorrente confirmar-se, por não se verificarem os pressupostos que permitem a decisão, desde logo, a manutenção da situação de detenção não é adequada nem necessária ou proporcional para a satisfação das finalidades inerentes ao MDE não existindo nomeadamente perigo de fuga que constitui o fundamento específico da detenção ou outra medida cautelar que a substitua.
E) Pelo que medida menos gravosa que a detenção é adequada e suficiente para prevenir aquele mesmo risco, em conformidade com a regra estabelecida no artigo 12.º da Decisão-Quadro MDE.
F) Para tanto, haverá que ter em conta a antiguidade dos factos criminosos –que ocorreram há mais de 10 anos, inexistindo qualquer indício que permita sustentar a conclusão que o detido mantenha quaisquer contactos com tal grupo organizado ou que faça parte de grupo criminoso.
G) Antes pelo contrário, o arguido está socialmente e profissionalmente inserido, e conhecedor da sentença que transitara em julgado em ... de ... de 2023 (A035 e A036) do MDE após recurso por si apresentado, viajava livremente em voo internacional, munido de passaporte válido emitido pelo Reino Unido, indiciando que o requerente fazia a sua vida de forma pública, sem tomar cuidados para se ocultar das autoridades policiais.
H) Por outro lado, resulta do MDE que o recorrente, em concreto, foi condenado ao cumprimento de pena de prisão por factos que não ocorreram no estado requerente da execução – as transferências bancárias ocorrem para e de a conta deste na ..., pelo que a expectativa que o recorrente tem de ver a execução do mandado ser rejeitado por Portugal ao abrigo do artº 12 nº 1 al. h) ii) da RMDE é consideravelmente elevada.
I) A continuação da privação da liberdade que atualmente se verifica, em ambiente prisional, privado de se alimentar de acordo com a religião judaica que professa e de se alimentar em conformidade com a mesma, não se justifica, por não existir em concreto perigo de fuga.
J) Do artigo 12º da Decisão Quadro MDE, segundo o qual “ … A libertação provisória é possível a qualquer momento de acordo com o direito nacional do Estado-Membro de execução, na condição de a autoridade competente deste Estado-Membro tomar todas as medidas que considerar necessárias a fim de evitar a fuga da pessoa procurada”.
K) Para além disso, sempre é o que resulta da aplicação subsidiária do Código de Processo Penal ao processo de execução do mandado de detenção europeu (art. 34.º do RMDE), pois a revogação e substituição das medidas de coação encontra-se prevista no art. 212º do CPP, o que o requerido pretende em via de recurso.
L) No caso do requerente, este foi condenado ao cumprimento pelo estado Francês, como referido, de pena de prisão efetiva com a duração de dois anos, e a ser executada em Portugal, permitiria ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, tal como previsto no artigo 43º do Código Penal.
M) Pese embora a sua residência e o seu local de trabalho não sejam em Portugal, o que poderia indiciar perigo de fuga, a verdade é que o requerente é membro reconhecido da comunidade internacional judaica, e conta com o apoio da comunidade israelita nacional, na pessoa dos Rabinos BB líder da comunidade local de ... e de CC, Rabino da Comunidade Israelita ..., tendo na presente data sido visitado pela Embaixadora de... em Portugal no Estabelecimento Prisional onde se encontra.
N) Em virtude de o requerente não dispor de residência em ..., os referidos Rabinos disporão de alojamento adequado à execução da medida de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, o que cumulativamente com a entrega dos passaportes Britânico e Israelita, se revela serem as medidas adequadas e proporcionais a evitar o risco de fuga.
O) Termos que que deverá a medida de detenção ser revogada, por desproporcional e desadequada e substituída pela medida de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
A Advogada,.».
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I. 5. Admitido o recurso por despacho de ........2024, para subir imediatamente, em separado e com efeito não suspensivo (meramente devolutivo), foi concedido ao Ministério Público junto do Tribunal da Relação o exercício do contraditório, de que o mesmo se prevaleceu, apresentando resposta que rematou com as seguintes conclusões (transcrição):
«(…) Conclusões:
1 . O conteúdo e forma do MDE vem prevista no art. 3º da L. nº 65/2003 de 23.08.
2. Não é exigível, por falta de fundamento legal, que o MDE venha instruído com a sentença da tribunal do país que requisita a diligência.
3 . Não pode o tribunal português de execução do mandado de detenção europeu debruçar-se, reapreciar ou colocar em crise a matéria de facto e de direito tal como lhe é apresentada pelo país e autoridade requisitante.
4. É adequada, proporcional e deve merecer total credibilidade o juízo formulado no Tribunal português determinado que o requerido aguarde os ulteriores termos do processo na situação de detenção, pois o mesmo não tem qualquer ligação a Portugal e as suas circunstâncias de vida fundamentam o perigo de fuga – como aliás, a fuga à justiça francesa também permite concluir.
5. A decisão recorrida não merece censura, deve ser mantida e confirmada nos seus precisos termos.
VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO J U S T I Ç A.
O Procurador-geral adjunto.».
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I. 6. Subiram os autos ao STJ e, colhidos os vistos em simultâneo, realizou-se a conferência de que resultou o presente acórdão.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
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II. 1. Factos
Os factos e ocorrências processuais relevantes são os que resultam do relatório e das peças processuais nele parcialmente transcritas, e que, por conseguinte, aqui se têm por reproduzidos e assentes, porque incontroversos
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II. 2. Direito
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II. 2. 1. Considerando a motivação e conclusões do recurso, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, a questão nele colocada é a seguinte:
a) Necessidade de manutenção da detenção do recorrente até à decisão sobre o pedido de execução do MDE e eventual entrega do mesmo às autoridades do Estado - Membro de emissão versus possibilidade da sua substituição pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância
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II. 2. 2. Na jurisprudência do STJ, nomeadamente nos acórdãos de 2.02.2005 e 19.08.2013, proferidos nos processos n.ºs 05P141 e 750/13.1YRLSB.S!, relatados, respetivamente, pelos Conselheiros Henriques Gaspar e Pires da Graça, citados pelo recorrente e referenciados nas anotações à Lei n.º 65/2003, de 23.08 (doravante LMDE), acessível no sítio https://www.pgdlisboa.pt/leis/, o segundo também disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, e nos de 12.12.2018 e 23.11.2023, proferidos nos processos n.ºs 94/18.2YRPRT.S2 e 320/23.6YRPRT-A.S1, relatados pelos Conselheiros Lopes da Mota e Agostinho Torres, disponíveis nos sítios https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/ e https://juris.stj.pt/, respetivamente, tem-se consolidado a ideia orientadora de que a execução dos mandados de detenção europeus se rege pelo princípio do reconhecimento mútuo entre as autoridades judiciárias dos Estados - Membros da UE, o que pressupõe a confiança recíproca entre essas autoridades, que interagem diretamente e sem necessidade de qualquer intermediação de índole político-administrativa, sem prejuízo da possibilidade de recurso ao auxílio das respetivas autoridades centrais.
Dele decorre também, como regra, a insusceptibilidade de as autoridades judiciárias do Estado - Membro de execução sindicarem o mérito das decisões das congéneres do Estado - Membro de emissão ou duvidarem da correção e fidedignidade dos pedidos e informações por elas transmitidas, sem embargo de lhes solicitarem esclarecimentos e informações complementares, se e quando os elementos transmitidos se mostrarem insuficientes, formalmente incorretas ou forem postos em crise pelas pessoas procuradas, no exercício legítimo da sua defesa e oposição à entrega.
Em suma, tudo se deve passar como acontece nas relações funcionais e processuais entre as autoridades judiciárias nacionais de cada um dos Estados - Membros, baseadas na confiança mútua e na fidedignidade das informações entre elas trocadas, como decorre, aliás, dos artigos 1º da LMDE e da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, a que deu cumprimento.
No caso em apreço, o detido e recorrente, apesar da desconformidade que anota à certificação da sua detenção, na parte em que se afirma ter-lhe sido entregue cópia da decisão em que foi condenado e no âmbito de cujo processo foi emitido o MDE em execução, que na economia do recurso não releva, mais ainda porque, como o próprio afirma, tem dela conhecimento e do respetivo trânsito em julgado, não suscita quaisquer questões de natureza formal ou material capazes de pôr em causa a sua exequibilidade.
Tão pouco o faz relativamente ao procedimento, na medida em que este cumpriu os deveres de informação sobre o seu estatuto e garantias de defesa, em conformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP) e com as pertinentes normas da LMDE e do Código de Processo Penal (CPP), direta e subsidiariamente aplicáveis (v.g., artigos 27º, n.ºs 3, al. c), in fine, e 4, 17º, 18º e 34º e 57º a 67º, respetivamente).
Apenas alega a eventual ocorrência de uma causa de recusa facultativa da respetiva execução, nos termos do artigo 12º, n.º 1, al. h), al. ii), da LMDE, que aqui não pode ser apreciada e decidida, mas que, entre outras, convoca para suportar a pretendida modificação da situação processual em que se encontra, substituindo a detenção validada e mantida na decisão recorrida pela aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, que entende suficiente, adequada e proporcional à sua situação e às necessidades reclamadas pela execução do MDE, quais sejam as de o Estado Português, através das competentes autoridades judiciárias, assegurar as condições materiais de concretização da sua entrega às autoridades judiciárias francesas emitentes do MDE, caso a decisão final assim o determine.
Por conseguinte, também não questiona o primado do dever que, nos termos dos artigos 12º e 17º da referida Decisão Quadro, recai sobre o Estado-Membro de execução no sentido de “zelar por que continuem a estar reunidas as condições materiais necessárias para uma entrega efectiva da pessoa”, procurada e detida, leia-se.
Dever primeiro também expressamente imposto na LMDE, conforme decorre do seu artigo 26º, n.º 4.
Por fim, ainda alinhado com a jurisprudência acima resenhada, aceita que a detenção a que se encontra sujeito, como de resto outras pessoas procuradas e detidas ao abrigo de pedidos de execução de MDE’s não se equipara às medidas de coação previstas no CPP, na natureza, finalidades e fundamentos, antes se perfilando como consequência inerente às obrigações a que Portugal se encontra vinculado, como os demais Estados-Membros, de dar execução aos MDE’s por estes emitidos e garantir a efetiva entrega das pessoas procuradas e detidas nesse âmbito, conforme, aliás, decorre das normas antes citadas da LMDE e da Decisão Quadro a que deu cumprimento, tendo, portanto, como pano de fundo o perigo de fuga da pessoa procurada, que a consumar-se, acarretará o incumprimento daquele dever.
Todavia, discorda da decisão impugnada que validou e manteve a sua detenção, porque entende que daqueles princípios e normas não decorre uma obrigatoriedade geral de manutenção da detenção, mas antes a de ela dever ser analisada casuisticamente e considerando a situação concreta da pessoa detida, podendo, sem entraves, ser substituída por uma medida de coação, privativa ou não da liberdade, segundo os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida em função da gravidade dos factos imputados e dos perigos que as justifiquem, aqui limitados ao de fuga e consequente subtração à responsabilização criminal, em procedimento ainda em curso ou para cumprimento de pena já decretada e estabilizada, como é caso dos autos.
Discordância que, no campo dos princípios, colhe apoio naquela jurisprudência e na própria letra da lei, como resulta inequívoco do texto dos citados artigos 12º e 17º da Decisão Quadro e 18º, n.º 3, da LMDE, ao admitirem a possibilidade de ser aplicada à pessoa procurada medida de coação prevista no CPP, opção que, como nos referidos arestos se enfatiza, reclama sempre uma exercício de compaginação de uma e outra das alternativas com o caso concreto em apreciação, nomeadamente em função do que se apurar quanto à residência e vinculação pessoal, familiar e profissional estável ou não no Estado de execução e de o MDE ter sido emitido para procedimento criminal ou cumprimento de pena ou medida de segurança.
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À luz destas considerações, vejamos o caso sub judice.
O recorrente pretende substituir a detenção a que se encontra sujeito em regime de reclusão institucional pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, medida de coação prevista no artigo 201º do CPP, a que acresceria a apreensão do passaporte de que é titular.
Donde se extrai que, na sua ótica, essas duas medidas conjugadas acautelariam o perigo de fuga que neste âmbito está em causa, do mesmo passo que garantiriam o dever de o Estado Português assegurar as condições materiais para a sua efetiva entrega às competentes autoridades judiciárias francesas, caso a decisão final do procedimento assim venha a decidir.
Esta pretensão, tal como formulada pelo recorrente, não deixa de encerrar uma certa contradição argumentativa.
É que, se por um lado afirma que não está inserido em qualquer organização internacional e que a sua condição pessoal e familiar lhe exigem um permanente compromisso de respeito pelas normas e regras de convivência normativa e social e de assunção das respetivas responsabilidades pelo seu incumprimento, como comprova o facto de, sabendo embora da sua condenação definitiva em pena de prisão pelos tribunais franceses, não se ter refugiado na clandestinidade para se eximir ao cumprimento dessa pena, antes viajando de ...para Portugal em voo comercial normal para um encontro internacional, por outro, parece admitir a verificação do perigo de fuga justificativo daquela medida de coação, por nenhum outro dos elencados no artigo 203º do CPP poder equacionar-se no caso.
Acresce que, sem pôr em causa a possibilidade de, mesmo não tendo residência em ..., beneficiar do apoio das comunidades judaicas e da Embaixada de ...em Lisboa no sentido de lhe proporcionarem uma habitação compatível com a instalação dos meios técnicos indispensáveis à execução daquela medida de coação de obrigação de permanência na habitação, a aplicação desta mantê-lo-ia privado da liberdade, com o inerente prejuízo para a sua vida familiar e profissional que atribui à detenção em regime institucional, pese embora mais favorável à prática religiosa que segue e ao regime alimentar que observa, nos quais se afigura residir o principal fundamento da sua pretensão.
Ora, apesar de a liberdade de consciência, de religião e de culto estar consagrada no artigo 41º da CRP, inserido no Capítulo I do Título II relativos aos direitos, liberdades e garantias pessoais, esse reconhecimento constitucional não obsta a que, em determinadas circunstâncias, essa liberdade não possa sofrer limitações, por impossibilidade física ou material, como pode suceder em casos de privação da liberdade física e confinamento espacial em razão de detenção legítima, como é aqui o caso.
Não pode, pois, essa circunstância impedir a detenção validada e mantida pela decisão recorrida ou justificar, só por si, a sua substituição por medida de coação compatível com o seu livre exercício, se e enquanto se perfilar como necessária e adequada à sua finalidade primeira, qual seja a de prevenir o perigo de fuga e, assim, garantir as condições materiais de efetiva entrega do recorrente às autoridades judiciárias do Estado de emissão do MDE, caso a decisão final assim o determine.
Nem se diga que tal entendimento se mostra desconforme com aquela previsão constitucional, pois, como também dela resulta, ninguém pode sequer ser perguntado por qualquer autoridade sobre as suas convicções ou prática religiosa, nem, como decorre do princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º da CRP, alguém pode ser beneficiado ou prejudicado por essas convicções e prática, cabendo ao Estado garantir o seu livre exercício, sem preferências nem discriminações, nos termos consagrados na Lei da Liberdade Religiosa, aprovada pela Lei n.º 16/2002, de 22.06, cujo artigo 13º, n.º 1, de resto, estabelece que “(…) a detenção em estabelecimento prisional ou outro lugar de detenção não impedem o exercício da liberdade religiosa e, nomeadamente, do direito à assistência religiosa e à prática dos actos de culto”, impondo o n.º 3 que “O Estado, com respeito pelo princípio da separação e de acordo com o princípio da cooperação, deverá criar as condições adequadas ao exercício da assistência religiosa nas instituições públicas referidas no n.º 1”.
Acresce que a causa de recusa facultativa também convocada pelo recorrente como fundamento da sua pretensão substitutiva da detenção pelas referidas medidas de coação, não tem virtualidade suficiente para a justificar.
Antes de mais porque, como acima referido, os seus pressupostos não se mostram preenchidos nos autos, uma vez que, ao contrário do afirmado pelo recorrente, as autoridades emitentes expressamente afirmam que os factos também decorreram no seu território, como decorre da seguinte transcrição dos pontos [A042, A043, A044 e A045] do MDE: “Descrição das circunstancias nas quais a ou as infrações foram cometidas, incluindo o momento (a data e a hora), o lugar e o grau de participação da pessoa procurada à infração ou às infrações : BRANQUIAMENTO AGRAVADO: AJUDA EM VADA ORGANIZADA NA JUSTIFICAÇÃO FALSA DA ORIGEM DOS BENS OU RENDAS DO AUTOR DE UM DELITO
Data dos fatos : entre o 1.º de janeiro 2013 e o 20 de março 2013, a horas ignoradas
Lugar dos fatos : FRANÇA, SUIÇA, ISRAEL
Grau de participação : Autor
Entre o 1.º de janeiro 2013 e o 20 de março 2013, DD livrou se a atividades de branqueamento de dinheiro, no território francês mas também na ... e em ..., recebendo na sua conta bancaria na ... uma transferência de créditos de 395.700 euros e debitando essa mesma conta 6 dias depois por uma transferência de débito para a conta de um estabelecimento georgiano até 350.000 euros e isto enquanto que esta operação não tinha nenhuma justificação comercial, os fatos tendo sido cometidos em banda organizada no âmbito de uma rede empresarial estruturada, com recursos a contas bancarias abertas em nome de terceiros.” (negrito, itálico e sublinhado nossos).
Esta afirmação, considerando o que inicialmente se adiantou quanto aos princípios do reconhecimento e confiança mútua. não merece qualquer reserva e tem de aceitar-se como correta, tanto mais que o recorrente não a impugnou, nem solicitou que fossem pedidos esclarecimentos sobre a matéria, limitando-se a apresentar a sua própria e deficiente leitura.
Depois, porque, mesmo a verificar-se, a causa de recusa seria facultativa e só passível de apreciação pelo TRL aquando da decisão final, não podendo por isso antecipadamente servir de suporte à decisão sobre a manutenção ou não da detenção.
Ainda assim, poderá considerar-se que, no caso em apreço, a detenção se mostra desproporcional e desadequada às necessidades cautelares que o caso exige, tendo em conta a obrigação do Estado Português, através das competentes autoridades judiciárias, garantir as condições materiais que assegurem a efetiva entrega do detido e recorrente às autoridades judiciárias francesas emitentes do MDE?
Cremos que não.
Com efeito, da pretensão formulada pelo recorrente é lícito inferir que o mesmo reconhece a existência de um concreto perigo de fuga, o qual, aliás, resulta também da sua contraditória argumentação, quanto ao cumprimento dos deveres e á não intenção de se eximir às suas responsabilidades, mas, em simultâneo, não se ter ainda apresentado voluntariamente em França para cumprimento da pena de dois anos de prisão em que foi condenado, ciente do respetivo trânsito em julgado desde ... de ... de 2023.
Ao que deve aditar-se a circunstância de o MDE ter sido emitido para cumprimento daquela pena e não para procedimento criminal, o que, segundo a referenciada jurisprudência, acentua e reforça o dever do Estado Português acautelar as condições materiais da entrega do detido às autoridades de emissão, para o que a detenção se revela mais eficaz e segura do que a medida de obrigação de permanência na habitação, ainda que fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, como comprovam os vários incidentes de incumprimento e mesmo de desaparecimento dos arguidos, que, como é do conhecimento geral da comunidade judiciária, ocorrem em Portugal, só muito tardiamente percecionados e comunicados às competentes autoridades, ainda que também em regime de reclusão possam ocorrer evasões, mas com menos probabilidade e frequência.
Essa menor garantia da medida de coação resulta também da situação precária em que seria executada, em espaço habitacional cedido por terceiros e por ora ainda não especificado, nomeadamente quanto ao isolamento do recorrente ou à partilha com outras pessoas e em que moldes.
Não despicienda é também a circunstância de a detenção se apresentar neste caso como uma espécie de início ou antecipação de cumprimento da pena em que o recorrente foi condenado em França, sendo o tempo de duração descontado no período total de privação da liberdade dela resultante, como decorre do artigo 10º da LMDE.
Assim como os prazos perentórios da sua duração fixados no artigo 30º da mesma Lei, claramente inferiores aos da duração legalmente admissível da medida de coação pretendida pelo recorrente, nos termos dos artigos 215º e 218º, n.º 3, do CPP
Tudo, por conseguinte, a convergir no sentido de se poder afirmar que, in casu, a decisão que validou e manteve a detenção do recorrente, se mostra adequada, necessária, proporcional e conforme às respetivas exigências cautelares e de garante da efetividade da entrega do detido às autoridades judiciárias francesas, sendo nesse sentido, como se perfila provável, a decisão final a proferir no processo
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III - DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA, mantendo-se o despacho impugnado.
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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) UC (artigo 524º do CPP, 1º a 6º e 8º, n.º 9, do RCP e Tabela III ao mesmo anexa), sem prejuízo do disposto no artigo 35º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, quanto à responsabilidade pelas despesas e ressalvado o benefício de apoio judiciário.
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Lisboa, d. s. certificada
(Processado pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP)
João Rato (Relator)
Celso José das Neves Manata (1.º Adjunto)
Vasques Osório (2.º Adjunto)
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Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/..↩︎