I – Não é aplicável às relações entre duas sociedades de direito norte americano o disposto no Código das Sociedades Comerciais sobre sociedades coligadas.
II - A resposta à questão de saber se uma sociedade de direito americano responde pelas obrigações de outra sociedade, também de direito americano, da qual é sócia, é dada pela lei pessoal daquela sociedade, por aplicação do n.º 2 do artigo 33.º do Código Civil, na parte em que dispõe que à lei pessoal compete especialmente regular a responsabilidade da pessoa colectiva perante terceiros.
Através da presente acção, a autora pretende ser indemnizada – indemnização de clientela - pela cessação de um contrato de representação comercial celebrado, em 23-04-2006, entre ela e a sociedade «Mortara Instrument, Inc.», de nacionalidade americana, fabricante de equipamentos de cardiologia não invasiva. Segundo a demandante:
• Através desse contrato, a aludida empresa concedeu-lhe a ela, autora, o direito de comercializar e vender, no território nacional, com exclusividade, esses equipamentos, aos quais ficou também obrigada a prestar assistência técnica pós-venda;
• O prazo contratual foi fixado em dois anos, renováveis – renovações que sucessivamente ocorreram, ao longo de catorze anos;
• Por missiva datada de 2018.02.14, a referida sociedade «Mortara Instrument, Inc.» comunicou-lhe a ela, autora, que procedia à rescisão do contrato supra referido;
• Entretanto, foi comunicado à autora por uma entidade de nacionalidade espanhola que a sociedade «Hill-Rom Holdings Inc.», empresa multinacional líder em tecnologia médica, havia adquirido a sociedade «Mortara Instrument, Inc.» em 2017.
No âmbito das diligências com vista à citação da ré, verificou-se que, antes da propositura da acção, esta havia sido dissolvida com encerramento da liquidação.
Notificada para se pronunciar sobre a questão, a autora requereu a intervenção nos autos, como ré, da sociedade Hill-Rom Holdings Inc.
O Meritíssimo juiz do tribunal da 1.ª instância indeferiu liminarmente a petição inicial, bem como o pedido de intervenção principal da sociedade Hill-Rom Holdings Inc., com o fundamento de que a ré não tinha personalidade jurídica e, consequentemente, personalidade judiciária, e que tal pressuposto processual não era susceptível de sanação.
Notificada do indeferimento, a autora apresentou nova petição inicial contra Hill-Rom Holdings Inc., sociedade comercial de direito Americano, com sede em ... United States of America (Estados Unidos da América).
O tribunal da 1.ª instância admitiu a nova petição inicial e considerou a acção proposta na data em que a primeira petição havia sido apresentada em juízo, com aproveitamento dos documentos oferecidos, da procuração forense e da taxa de justiça pagada.
Citada, a ré apresentou contestação. Na sua defesa, além de impugnar alguns dos factos articulados na acção, alegou:
• Que era parte ilegítima;
• A caducidade do direito de acção;
• A incompetência absoluta do tribunal onde a acção foi proposta;
• O incumprimento do contrato imputável à autora;
Terminou a contestação, pedindo:
• Se julgassem procedentes as excepções dilatórias e, em consequência, se absolvesse a ré do pedido;
• Sem conceder, se julgasse procedente a excepção peremptória e, em consequência, se absolvesse a ré do pedido;
• Se julgasse, no mais, improcedente a acção.
A autora respondeu à matéria das excepções, pugnando pela respectiva improcedência.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador sentença que decidiu:
• Julgar verificada a legitimidade processual da ré;
• Julgar a acção improcedente, por falta de legitimidade substantiva da ré, e, em consequência, absolvê-la do pedido.
Apelação
A autora não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo se revogasse a sentença recorrida e se concluísse pela legitimidade da ré, em todos os sentidos, com o ulterior prosseguimento dos termos dos autos.
O Tribunal da Relação, perspectivando a possibilidade de a apelação vir a proceder e entendendo que o processo reunia elementos para conhecer da questão da incompetência absoluta do tribunal e da questão da inadmissibilidade da nova petição, convidou as partes a pronunciarem-se sobre elas.
A recorrente pronunciou-se no sentido de que os tribunais portugueses eram competentes para julgar a presente causa e que a nova petição era admissível.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 8 de Maio de 2024, decidiu:
• Julgar procedente a apelação e, em consequência, reconhecer legitimidade substantiva à ré;
• Julgar improcedentes as excepções de incompetência do tribunal e de inadmissibilidade da nova petição.
Revista
A ré não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista, pedindo a substituição do acórdão recorrido.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
A. Com o devido respeito, diga-se, desde já, que andou mal o Tribunal a quo ao proferir a decisão da qual aqui se recorre.
B. A ré, ora recorrente, carece de legitimidade processual passiva e de interesse em agir.
C. O contrato de representação comercial foi celebrado entre a autora, ora recorrida, e a sociedade Mortara Instrument, Inc. (cf. Doc. 1 junto com a Petição inicial.
D. Ainda que o conceito de legitimidade se afira através do critério do artigo 30.º do CPC, “a legitimidade processual não se confunde com a legitimidade substantiva, pois “esta última é distintamente, um fundamento da procedência da ação e aprecia-se de acordo com o direito substantivo e existirá “sempre que o autor seja o titular do direito que alega (legitimidade material activa) e o réu seja titular da obrigação alegada (legitimidade material passiva)” – cfr. Acórdão do STJ, proferido a 21.04.2022, no âmbito do processo n.º 6244/15.3T8VNF-B.G1.S1.
E. Já foi oportunamente referido por várias vezes no decorrer deste processo que a recorrente não celebrou qualquer contrato com a recorrida.
F. A recorrida propôs a presente ação contra Hill-Rom Holdings, Inc. alegando que apesar de ter tido dúvidas sobre a identidade da sociedade que havia adquirido a sociedade que com ela celebrara o contrato de representação comercial aqui em causa, veio posteriormente confirmar que a Hill-Rom Holdings Inc. havia adquirido a sociedade Mortara Instrument, Inc., tendo por isso sucedido nas respepectivas obrigações, o que veio a provar-se que não foi o que sucedeu.
G. Importa reconstruir a verdade histórica para uma verdadeira compreensão da relação material controvertida que aqui se discute.
H. Foi efectivamente celebrado um acordo de fusão da entidade Mortara Instrument, LLC com a entidade Welch Allyn, Inc., em Junho de 2018 - como resulta do Certificate of Merger of Mortara Instrument, LLC into Welch Allyn, Inc. e restante documentação referente ao Plan of Merger (cf. Doc. n.º 1, 2, 3 juntos com a Contestação apresentada pela recorrente e respepectivas traduções, constantes dos Docs. n.º 4, 5 e 6).
I. Foi a Welch Allyn, Inc. que sucedeu nas obrigações da Mortara – conforme resulta do acordo de fusão junto com a contestação aos presentes autos.
J. Contrariamente ao que representa a sua obrigação e ao que se encontra na sua disponibilidade, a recorrida não juntou aos autos um único documento devidamente certificado ou autenticado, limitando-se a juntar uma mera fotocópia de uma notícia em que consta a informação “Hill-Rom Completes Acquision of Mortara Instrument”, que carece de veracidade.
K. Foi a própria recorrente que provou ter a entidade Mortara Instrument, LLC celebrado um acordo de fusão com a entidade Welch Allyn, Inc., em Junho de 2018, tal como resulta do Certificate of Merger of Mortara Instrument, LLC into Welch Allyn, Inc. e demais documentação referente ao Plan of Merger, que se encontram juntos aos autos
L. A recorrente nunca esteve envolvida nesta operação de fusão.
M. Ao contrário do que erradamente entendeu o Tribunal a quo, a Hill Rom Holdings Inc. não se encontra numa relação de coligação com a Welch Allyn.
N. Conforme resulta do art.º 485.º do CSC, verifica-se a existência deste tipo sociedades coligadas, sempre que uma sociedade possua uma participação igual ou superior a 10% no capital de outra sociedade, e esta última detenha, por sua vez, simultaneamente, uma participação igual ou superior a tal percentagem no capital da primeira – sendo que este limiar de 10% é apenas formal.
O. São pressupostos da coligação: (1) que duas sociedades detenham reciprocamente uma participação no capital da outra; (2) que tais participações sejam ambas de valor igual ou superior a 10% e inferior a 50%; (3) que uma dessas sociedades tenha já cumprido o dever de participação, relativo à participação que detém na outra; e (4) que, no caso concreto, não se verifique a existência simultânea de uma relação de domínio.
P. De acordo com o disposto no artigo 486.º, n.º 1 do CSC, considera-se que duas sociedades estão em relação de domínio quando uma delas, dita dominante, pode exercer, diretamente ou por sociedades ou por pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, sobre outra, dita dependente, uma influência dominante.
Q. No ordenamento jurídico, não é possível adotar um critério seguro para a definição de “influência dominante”, pois este é um conceito sem densificação por parte da doutrina portuguesa.
R. De acordo com o art.º 486.º, n.º 2, presume-se que uma sociedade é dependente de outra se, direta ou indiretamente: (1) detém uma participação maioritária no capital; (2) dispõe de mais de metade dos votos; (3) tem a possibilidade de designar mais de metade dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização.
S. Estas presunções são ilidíveis nos termos do art.º 350.º, n.º 2 do CC.
T. A Recorrente ilidiu as presunções de forma incontestável.
U. As relações de grupo são uma espécie de coligação societária que denota maior intensidade relacional entre as sociedades, estabelecendo a lei taxativamente de que forma um grupo (de direito, isto é, nos termos da lei) se pode constituir.
V. As normas legais não definem “grupo”, bastam-se com uma diferenciação entre essa qualificação e as demais relações de colaboração societária, através do enunciado das várias formas que podem revestir.
W. Estes “grupos” podem ter origem contratual – contrato de grupo paritário (artigo 492.º) ou contrato de subordinação (artigos 493.º e seguintes) – ou origem participativa (com base numa detenção inicial ou superveniente, de 100% do capital a outra (artigo 488º e seguintes)
X. Para que a autora, ora recorrida, pudesse beneficiar desta garantia creditícia teria o ónus de demandar a Welch Allyn, e ainda alegar e provar a existência das sociedades que se encontram entre si numa situação de participação recíproca, de domínio ou de grupo, nos termos dos artigos 481º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais.
Y. A recorrida não cumpriu esse ónus.
Z. A recorrente não tem legitimidade, direta ou indireta, nos factos apresentados pois não sucedeu em qualquer direito ou obrigação da Mortara.
AA. Verifica-se a ausência de interesse processual ou interesse em agir por parte da recorrente, na medida em que a esta não tem – nem nunca teve – qualquer relação jurídica com a recorrida, o que impede desde logo que seja proferida uma decisão judicial de mérito que produza efeitos em relação à mesma.
BB. Bem esteve o Tribunal de 1.ª instância quando reconheceu a exceção dilatória de ilegitimidade passiva e absolveu a recorrente do pedido.
CC. Fica esclarecido que a Welch Allyn, Inc. tem dois acionistas, a Hill Rom Holdings Inc. e a Hill Rom EU LLC, inexistindo relação de coligação, domínio ou de grupo conforme resulta do CSC.
DD. Substantivamente se alega que aquela não é uma empresa na qual a recorrente seja detentora da totalidade do seu capital social, não é sua sócia única, nem dispõe sozinha dos seus direitos e obrigações, nem tão pouco tem qualquer actividade comercial ou retirou dividendos da clientela que a Recorrida afirma ter angariado na sua actividade comercial.
EE. A recorrente é apenas uma holding cujo objeto é exatamente e apenas o de participar no capital social de outras sociedades e, enquanto tal, não pode ser demandada ou condenada e pagamentos devidos pelo alegado incumprimento de contratos por qualquer uma das suas participadas – pelo que não pode ser demandada pelo passivo da sua participada.
FF. A recorrente não é titular de qualquer interesse relevante na utilidade da decisão de mérito a proferir nos presentes autos, atenta a ausência de relação com os factos alegados pela recorrida e de qualquer benefício que para si tivesse resultado da sua actividade ao abrigo do contrato de representação celebrado com a Mortara Instruments LLC, carecendo de legitimidade processual passiva para os presentes autos.
GG. A presente ação não deve ser admitida por se verificar a caducidade do direito de ação da autora, ora recorrida.
HH. A autora, ora recorrida, intentou uma ação declarativa de condenação, contra a entidade Hill-Rom, Sociedade Unipessoal, Lda. no dia 22.01.2020.
II. Em 11.03.2020, o Tribunal proferiu um despacho a aludir ao facto de que a referida sociedade se encontrava dissolvida com encerramento da liquidação, com o registo efetuado junto da Conservatória do Registo Comercial de ... resultante da Apresentação n.º 66 de 31 de julho de 2019 (inscrição 9), sendo a sua matrícula ociosamente cancelada na mesma data (inscrição 10), conforme resulta da certidão permanente de fls. 57 a 63 dos presentes autos.
JJ. Foi presenteada a recorrida com um prazo de 10 dias para se pronunciar.
KK. Deduziu um incidente de intervenção principal provocada da ré, ora recorrente.
LL. Concluiu o Tribunal, como resulta do Despacho com referência número .......48, que “A Autora tinha o ónus de se inteirar sobre a realidade registral antes de propor a ação, a fim de evitar algo que não estivesse à espera”.
MM. Acrescentando no parágrafo seguinte que “o julgador não deverá sequer providenciar pelo suprimento desta exceção dilatória, de acordo com o disposto nos artigos 6.º, n.º 2, e 590.º, n.º 2, al. A), do Código de Processo Civil, pelo simples facto de a mesma não ser passível de sanação, porquanto não estamos perante nenhuma circunstância legal que permita a intervenção principal provocada da sociedade Hill-Rom Holdings Inc., nem a (eventual) substituição das partes se revelaria como uma solução processualmente aceitável (cfr. Artigo 262.º, al. A), do Código de Processo Civil).”
NN. Não pode vir a autora, ora recorrida, vir a beneficiar de um novo prazo de 10 dias para apresentar uma nova petição inicial, uma vez que esse prazo já tinha sido facultado em momento anterior à Autora aquando notificada para se pronunciar sobre a questão suscitada.
OO. A Autora propôs a nova petição inicial ipsis litteris sobre o mesmo objeto e pelos mesmos fundamentos – com o mesmo pedido e mesma causa de pedir –, uma vez que o incidente de intervenção principal provocada não procedeu.
PP. Na dita nova petição inicial corrigida, a recorrida limitou-se a sanar a situação da legitimidade passiva, que, como vimos, e à luz das sábias palavras do Tribunal a quo “nem a (eventual) substituição das partes se revelaria como uma solução processualmente aceitável”, à luz do artigo 262.º, alínea a), do Código de Processo Civil.
QQ. Não devia o Tribunal pecar por excesso de paternalismo ao conceder novo benefício perante as inúmeras tentativas da autora para que se considere a data da ação proposta da primeira petição apresentada em juízo – em 22 de Janeiro de 2020 –, procurando deste modo cumprir o prazo de caducidade que consta do artigo 33.º, n.º 4 do Regime Jurídico do Contrato de Agência (doravante, “RJCA”).
RR. Ignorar esta realidade é uma afronta a diversos princípios do nosso Processo Penal – tais como o princípio do contraditório e da preclusão – por excesso de dispositivo.
SS. Em respeito ao artigo 33.º, n.º 4 do referido RJCA, “extingue -se o direito à indemnização se o agente ou seus herdeiros não comunicarem ao principal, no prazo de um ano a contar da cessação do contrato, que pretendem recebê-la, devendo a ação judicial ser proposta dentro do ano subsequente a esta comunicação.”
TT. A missiva, enviada pela Autora na data de 29 de Janeiro de 2019, manifestou o propósito de ser compensada a título de indemnização de clientela (cf. Doc. 7 da petição inicial, o que implica que o prazo de caducidade para intentar uma ação judicial terminaria a 29 de janeiro de 2020.
UU. A petição inicial corrigida é datada de 26 de Março de 2020, o que resulta uma manifesta intempestividade da sua propositura, perante o citado artigo 33.º do RJCA.
VV. O disposto no artigo 590.º já tinha sido beneficiado pela autora em momento anterior, quando esta foi convidada para se pronunciar em 24 de fevereiro de 2020 e como resulta do n.º 4 do mesmo preceito ”Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
WW. Admitir, à luz das nossas regras processuais, o supra descrito é abrir um precedente para um processo em que não vigora o princípio da preclusão, mas sobretudo o princípio da igualdade, nas suas variadas vertentes.
XX. As reflexões da Relatora Maria José Mouro, no Acórdão da Relação de Lisboa de 29 de Abril de 2004, no âmbito do processo n.º 1556/2004-2 – de que “em termos lógicos apenas duas hipóteses poderão ser consideradas: ou aquele benefício poderia ser usado somente uma vez em cada processo, ou poderia ser usado um número infintio de vezes, tantas quantos os sucessivos indeferimentos o proporcionassem, no mesmo processo. Por outras palavras: se defendermos que tal benefício poderá ter lugar mais do que uma vez, não poderemos limitá-lo a uma ocorrência de duas ou três vezes. Ora, assim sendo, nesta última hipótese o princípio da economia processual subjacente ao preceito perde relevância, além de que deixa de ter justificação que o A. continue a gozar das acima aludidas vantagens - aproveitando-lhe a proposição tempestiva da ação, a distribuição efetuada e o pagamento já realizado do preparo inicial - por tempo indefinido, sucedendo-se as várias petições – valem também para os presentes autos, pois se pudesse instaurar sucessivas petições iniciais corrigidas, ou outros incidentes, sobre o mesmo objeto atá acertar, o princípio da economia processual também subjacente a preceito perderia relevância.
YY. Não pode haver justificação para que a autora, ora recorrida, continue a gozar das vantagens quando o Tribunal já conferiu mais que uma oportunidade para que suprisse a referida exceção dilatória.
ZZ. Está igualmente precludido o direito de ação da autora, ora recorrida, para obter a indemnização de clientela, nos termos do artigo 33.º, n.º 4 do RJCA.
AAA. Em consequência dessa nova insistência por parte da Autora – e cuja exceçpção dilatória de ilegitimidade passiva se mantém (!) –, a ré formou uma convicção de juridicidade e imutabilidade da decisão junto das partes que não pode agora ser totalmente desconsiderada, sob pena de grave violação da segurança jurídica que assiste às partes.
BBB. Também não se pode subscrever o entendimento do Tribunal a quo no tocante à incompetência absoluta dos tribunais portugueses – a qual, efectivamente, se verifica.
CCC. Não se verificando qualquer das circunstâncias que determinam a competência exclusiva dos tribunais portugueses, descritas no art.º 63.º do CPC, não há qualquer impedimento à vigência dos pactos referidos no já referido art.º 94.º.
DDD. O ponto (C) da Cláusula 14 do Contrato (doravante o “Contrato”) celebrado entre a Recorrida e a entidade Mortara Instrument, Inc. dispõe que “Este Acordo será interpretado em conformidade com as leis do Estado Wisconsin, exceto quanto ao previsto no Capítulo 135 dos Estatutos de Wisconsin (1989) ou qualquer outro que lhe suceda” (sublinhado que, aliás, consta do próprio Contrato junta pela Recorrida)
EEE. Estando cumpridos os requisitos exigidos pelo art.º 94.º, n.º 3 do CPC - nomeadamente tratar-se de um acordo escrito, onde resulta menção expressa da jurisdição competente (cfr. alínea e) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 94.º do Código de Processo Civil e Cláusula 14.º, ponto (C) do contrato junto como Doc. 1 na petição Inicial) – o pacto é válido.
FFF. Pelo exposto, o Tribunal em que a ação é proposta é incompetente, por incompetência absoluta, à luz do artigo 96.º do Código de Processo Civil, por violação das regras de competência acima expostos.
GGG. Conclui-se que o Tribunal deve dar como procedente o presente recurso, com consequente absolvição da ré, ora recorrente, do pedido por verificação de exceção perentória de caducidade do direito de ação da autora e de ilegitimidade passiva.
HHH. Conclui-se também por verificada a exceção dilatória, nos termos do artigo 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil, absolvendo-se a Ré, ora recorrente, também da instância, nos termos dos artigos 99.º e 278.º do referido Código.
A recorrida não respondeu.
Seguindo a ordem das conclusões, as principais questões suscitadas pela recorrente são as seguintes:
• Saber se é de julgar verificada a excepção peremptória de caducidade do direito de acção;
• Saber se é de julgar verificada a ilegitimidade passiva e substantiva da ré;
• Saber se é de julgar verificada a incompetência absoluta do tribunal.
Seguindo a directriz traçada pelo artigo 608.º do CPC – aplicável ao julgamento do recurso de revista por remissão do artigo 679.º do CPC para o artigo 663.º do mesmo diploma e do n.º 2 deste último preceito para o artigo 608.º – cabia a este tribunal conhecer, em primeiro lugar, das questões que pudessem determinar a absolvição da instância, e conhecê-las segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.
Das questões suscitadas no recurso, as que podem determinar a absolvição da instância são a ilegitimidade passiva da ré e a incompetência absoluta do tribunal. É o que decorre da aplicação combinada dos artigos 278.º, n.º 1, alíneas a) e d), 576.º, n.º 2, e 577.º, alíneas a) e e), todos do CPC.
Sob o ponto de vista da sua precedência lógica, a primeira questão a conhecer é a da incompetência absoluta, como se infere da ordem por que são enunciadas as excepções dilatórias nos artigos 278.º e 577.º, ambos do CPC.
No caso de resposta negativa a esta questão, caberia apreciar a da ilegitimidade passiva da ré. E caso esta também tivesse resposta negativa, passaria a conhecer-se das restantes questões: caducidade da acção e legitimidade substantiva da ré.
Sucede que nem todas as questões serão conhecidas por este Tribunal. Embora por razões diferentes está vedado conhecer da questão da ilegitimidade passiva da ré e da da caducidade.
Está vedado conhecer da ilegitimidade passiva da ré porque ela questão foi decidida no despacho saneador-sentença, no sentido de que a ré era parte legítima. Visto que a parte prejudicada por tal decisão – a ré, ora recorrente – não a impugnou, ela transitou em julgado (artigo 628.º do CPC). De acordo com o n.º 3 do artigo 595.º do CPC, tal despacho, logo que transitado, constitui caso julgado formal quanto à questão da legitimidade da ré. Em consequência, tal despacho passou a ter força obrigatória dentro do processo (n.º 1 do artigo 628.º do CPC), impondo-se tanto às partes como ao tribunal. Deve, pois, este tribunal abster-se de proferir nova decisão sobre a questão da legitimidade passiva da ré.
Quanto à questão da caducidade, não cabe a este tribunal conhecê-la porque ela não foi objecto de decisão no acórdão recorrido e não compete ao Supremo Tribunal de Justiça substituir-se às instâncias no conhecimento deste meio de defesa da ré, ora recorrente. É o que resulta do artigo 679.º do CPC, ao excluir da aplicação ao recurso de revista do que se estabelece no artigo 665.º do CPC, ou seja, da regra da substituição recorrido.
Diga-se, ainda, que também não cabe a este tribunal conhecer da questão de saber se a nova petição apresentada pela autora foi devidamente admitida, apesar de ela ter sido apreciada pelo acórdão recorrido. Vejamos.
A Relação conheceu de tal questão ao abrigo do n.º 2 do artigo 665.º do CPC. Segundo este artigo, o tribunal da Relação assume a instância, isto é, substitui-se ao tribunal recorrido, no conhecimento daquelas questões que o tribunal recorrido não conheceu por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio.
O acórdão da Relação laborou no pressuposto que o tribunal da 1.ª instância tinha deixado de conhecer da questão da admissibilidade da nova petição por a considerar prejudicada pela solução dada ao litígio, concretamente a improcedência da acção.
Salvo o devido respeito, não foi o que se passou. A sentença proferida em 1.ª instância não a apreciou porque o tribunal já se havia pronunciado expressamente sobre ela. Com efeito, quando a autora apresentou nova petição, depois de a primeira ter sido liminarmente indeferida, o tribunal pronunciou-se através do despacho proferido em 8-05-2020 sobre tal apresentação, no sentido de que aceitava a nova petição inicial, com a sua modificação quanto ao sujeito passivo da instância, considerando a acção proposta na data em que a primeira petição deu entrada em juízo (22 de Janeiro de 2020). Deste modo, não cabia ao tribunal da 1.ª instância apreciar de novo a questão em sede de despacho saneador.
É certo que, quando o despacho que admitiu a nova petição foi proferido, a ré, ora recorrente, ainda não havia sido citada para a acção. Mas se isto é certo, também o é que, após a sua citação, tinha a faculdade de interpor recurso autónomo de apelação – artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC - e não o fez.
Daí que se formou caso julgado formal sobre a admissão da nova petição, passando a ter força obrigatória dentro do processo (n.º 1 do artigo 620.º do CPC), o qual vincula tanto as partes como o tribunal.
Segue-se do exposto que as únicas questões que cabe conhecer no âmbito da presente revista é a da incompetência internacional do tribunal português onde foi proposta a acção e a da legitimidade substantiva da ré.
1. Em 2006.04.23, a Autora e a sociedade «Mortara Instrument, Inc.», de nacionalidade americana, fabricante de equipamentos de cardiologia não invasiva, celebraram um contrato de representação comercial, nos termos do qual aquela ficou de providenciar clientes, em todo o território de Portugal, para esses equipamentos, com a marca da referida empresa («Mortara»), comprando-lhos, para em seguida os revender (Documento nº 1, com a respectiva tradução anexa).
2. Por missiva datada de 2017.02.14, a referida sociedade «Mortara Instrument, Inc.» comunicou à Autora que procedia à rescisão do contrato supra referido, que celebrara com a Autora, com efeitos a partir do dia 2018.03.13 (Documento nº 3, com a respectiva tradução anexa).
3. A aquisição da sociedade Mortara Instruments, Inc pela sociedade «Hill-Rom Holdings Inc.» foi publicitada (Documento nº 4, com a respectiva tradução anexa).
4. Em 16 de Março de 2018 a Autor remeteu um e-mail dirigido a AA na qualidade de representante da empresa Hill Rom Holdings Inc, com o seguinte teor: (Documento nº 5). “Exmos. Senhores: Acusamos a recepção da vossa carta datada de 14 de Fevereiro por via da qual nos transmitem a vossa intenção de terminar o contrato de distribuição que celebramos em 23 de Abril de 2006. Em relação a essa comunicação gostaríamos de salientar os seguintes items: Como V. Exas. sabem, temos vindo a vender os produtos que temos vindo a comprar à vossa Empresa ao longo dos últimos catorze anos, com exclusividade para o mercado Português, tendo ao longo desse tempo providenciado uma muito relevante quantidade de clientes para esses produtos – Hospitais (Públicos e Privados), Clínicas Médicas Privadas, Consultórios Médicos, Universidades, e similares. Para esse fim e para ter conseguido obter esses objectivos a nossa Empresa (além do trabalho dedicado que com frequência justamente mereceu os vossos elogios), criou uma organização empresarial adequada, nomeadamente com vendedores e técnicos especializados e a cooperação de empregados com capacidades técnicas apropriadas (um dos quais aliás – BB – , também trabalhando para a vossa empresa e parcialmente pago por ela. Sucede que a nossa Empresa tem actualmente contratos em vigor com vários clientes, assegurando a prestação de serviços relacionados com os produtos que lhe vendemos, e estes contratos são válidos pelo resto do ano. Além disso, a nossa Empresa está também, actualmente (e ao tempo da vossa carta atrás referida), a negociar a venda de produtos e a maior parte dessas negociações seguramente resultará em futuras encomendas pelos nossos clientes Segundo o sistema da União Europeia, que se aplica em Portugal, a terminação de um contrato como o nosso deve obedecer a algumas regras fixadas e naturais. Entre elas, a terminação deve ser anunciada três meses antes de se tornar efectiva (se, como é o caso, o contrato durou por mais de dois anos). Sendo assim, por favor considerem que a vossa comunicação produzirá os seus efeitos três meses após o respectivo recebimento. Isso dar-nos-á um mínimo (embora insuficiente) de tempo para contactar os nossos clientes e transmitir-lhes a terminação do nosso contrato com a vossa empresa e estabelecer as regras necessárias, entre outras, sobre serviços a prestar e pagamentos a serem feitos. Tendo em consideração que providenciámos (ao longo de catorze anos) uma vasta quantidade de clientes para os vossos produtos, que se mantêm estáveis e satisfeitos, e que certamente como tal continuarão (e cuja lista naturalmente forneceremos assim como manuais de rastreabilidade) gostaríamos de referir que a terminação do nosso contrato por vossa iniciativa confere à nossa Empresa direito a uma compensação/indemnização como consequência. Poderemos abordar este último tema em qualquer momento ulterior que entendam conveniente. Por enquanto, é muito importante para nós ter o período de três meses a que temos direito para que possamos reorganizar toda a nossa actividade. Por isso, por favor tenham presente que a data de terminação do nosso acordo será 15 de Maio de 2018. Claro que nos manteremos em contacto ao longo do período de tempo que decorrer até essa data.”
5. A Autora remeteu em 2018.04.18 uma missiva Sr. CC, signatário da carta junta como doc. nº 3, com o seguinte teor: “Caro CC: Em 23 de Fevereiro passado recebemos por meio do Sr. DD em nome de «Hill-Rom», anexo a um email que ele enviou, a carta cujo remetente era Mortara, datada de 14 de Fevereiro, assinada por si, na qual foi manifestado o propósito de terminar o nosso acordo de vendas de catorze anos. Respondemos directamente ao remetente, tal como tínhamos sido instruídos por ele para fazer, nos termos da mensagem anexa. Contudo, temos algumas dúvidas que gostaríamos de ser esclarecidos sobre a situação e o processo que por meio da presente mensagem pedimos tenha a gentileza de nos elucidar: O contrato que celebramos foi com Mortara Inc; Assim, a Mortara deixou por qualquer forma de existir? Foi fundida em qualquer outra Empresa ou assumiu qualquer posição similar? Qual é a posição neste assunto de Welch Allyn Inc.? E «Hill-Rom» é alguma outra Empresa? E a ser assim, qual é a relação que existe entre estas Empresas? De qualquer forma, o que é fundamental para nós é saber se a posição de Mortara (se ainda existe) no contrato com Cardio Solutions foi por qualquer forma transmitido para qualquer outra entidade. Por exemplo para Welch Allyn Inc? Ou para «Hill-Rom» (se esta última é de facto uma Empresa)? Não temos qualquer elemento de prova que comprove a afirmação do Sr. EE de que ele está a falar em nome de Mortara, nem por quem será agora detida a posição ocupada por Mortara no contrato celebrado com Cardio Solutions, por isso é-nos necessário sermos elucidados sobre esta matéria e as outras atrás referidas e cremos que o senhor é a pessoa certa para o fazer. Por um lado, temos um vínculo com Mortara, e providenciar, por exemplo, uma lista de 6. clientes a alguma entidade para o que Mortara não nos deu instruções não seria correcto. Por outro, temos também de saber que Empresa está na posição anteriormente ocupada por Mortara pois essa seria a Empresa responsável por qualquer compensação a que Cardio Solutions pode ter direito devido à terminação do contrato. Assim por favor tenha a amabilidade de nos elucidar sobre estes assuntos. (Documento nº 6, com a respectiva tradução anexa).
6. Por missiva remetida em 29/01/2019 por e-mail para todos os contactos que poderiam representar a entidade adquirente da «Mortara Instrument, Inc.», a Autora manifestou expressamente o seu propósito de ser compensada por quem tivesse sucedido na posição contratual daquela empresa no acordo que esta celebrara com ela Autora a título de «indemnização de clientela» – que aliás quantificou, em termos de «acordo amigável» (Documento nº 7, com a respectiva tradução anexa).
7. Em 14/02/2017 a sociedade Mortara Instrument, Inc. foi incorporada por fusão na sociedade Welch Allyn, Inc e subsequentemente extinta.
8. A sociedade Welch Allyn. Inc é detida pelas sociedades Hill Rom Holdings, Inc e Hill Rom EU, LLC.
Incompetência absoluta
O acórdão da Relação julgou improcedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal com base na seguinte linha argumentativa:
• A ré funda a incompetência dos tribunais portugueses para o julgamento da acção na cláusula 14.ª do contrato;
• A referida cláusula nada dispõe quanto à jurisdição, ou seja, não faz a eleição de qualquer foro, não designa qualquer tribunal para dirimir o litígio; estabelece apenas a lei que deve ser aplicada à interpretação do contrato;
• No contrato junto aos autos a autora figura como distribuidora, em Portugal, dos produtos fornecidos pela Mortara. A relação comercial desenvolveu-se, pois, em Portugal.
• E porque assim é, o tribunal português é internacionalmente competente para conhecer da acção, ao abrigo do art.º 62.º, b), do CPC.
A recorrente, repetindo o que alegara na contestação, contrapõe:
• Não se verificando qualquer das circunstâncias que determinam a competência exclusiva dos tribunais portugueses, descritas no art.º 63.º do CPC, não há qualquer impedimento à vigência dos pactos referidos no já referido art.º 94.º;
• O ponto (C) da Cláusula 14 do Contrato (doravante o “Contrato”) celebrado entre a recorrida e a entidade Mortara Instrument, Inc. dispõe que “Este Acordo será interpretado em conformidade com as leis do Estado Wisconsin, exceto quanto ao previsto no Capítulo 135 dos Estatutos de Wisconsin (1989) ou qualquer outro que lhe suceda”;
• Estando cumpridos os requisitos exigidos pelo art.º 94.º, n.º 3 do CPC, nomeadamente tratar-se de um acordo escrito, onde resulta menção expressa da jurisdição competente (cfr. alínea e) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 94.º do Código de Processo Civil e Cláusula 14.º, ponto (C) do contrato junto como Doc. 1 na petição Inicial) – o pacto é válido;
• Pelo exposto, o Tribunal em que a ação é proposta é incompetente, por incompetência absoluta, à luz do artigo 96.º do Código de Processo Civil, por violação das regras de competência acima expostos.
Este fundamento do recurso é de julgar improcedente.
A pretensão da recorrente assenta no pressuposto de que o ponto (C) da Cláusula 14 do Contrato (doravante o “Contrato”) celebrado entre a recorrida e a entidade Mortara Instrument, Inc. atribuiu a uma jurisdição estrangeira – que a recorrente não especifica qual é, mas que se supõe ser a jurisdição dos Estados Unidos da América – a competência para o julgamento da presente acção.
Decorre o artigo 94.º do CPC que os pactos de jurisdição são acordos através dos quais as partes convencionam qual a jurisdição competente para dirimir um determinado litígio ou os litígios decorrentes de certa relação jurídica. São atributivos quando, para usarmos as palavras de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre “…concedem competência aos tribunais portugueses para apreciação de pedido referente a uma situação jurídica plurilocalizada, para o qual não eram por lei competentes, e privativos aqueles que lhes retiram a competência que para tanto tinham por lei…” Código de Processo Civil Anotado Volume I, 3.ª Edição Coimbra Editora, página 188].
Se, como alega a recorrente, a mencionada cláusula configurasse um pacto de jurisdição seria de esperar que nela estivesse indicada a jurisdição competente para dirimir o presente litígio. Sucede que não está. Ao disporem em tal cláusula “Este Acordo será interpretado em conformidade com as leis do Estado Wisconsin, exceto quando ao previsto no Capítulo 135 dos Estatutos de Wisconsin (1989) ou qualquer outro que lhe suceda”, o que as partes convencionaram foi a lei aplicável à interpretação do contrato. Ora uma coisa é a lei aplicável ao contrato ou à interpretação do contrato, outra, diferente, é a jurisdição competente para conhecer dos litígios emergentes do contrato.
Pelo exposto, improcede a alegação da recorrente de que o ponto (C) da cláusula 14 do contrato celebrado entre a recorrida e a entidade Mortara Instrument, Inc. atribuiu a uma jurisdição estrangeira a competência para o julgamento da presente acção.
Afastada esta alegação, cabe afirmar, como fez o acórdão recorrido, que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o conhecimento da presente acção, considerando o disposto na alínea b) do artigo 62.º do CPC e a circunstância de o contrato que integra a causa de pedir ter sido executado em território português.
Antes de mais importa precisar que, apesar de a recorrente se referir nas alegações a legitimidade processual, é isento de dúvida que, com elas, visou não apenas tal questão (já decidida com trânsito em julgado, como se escreveu acima), mas também a da sua legitimidade substantiva para a acção, decidida no acórdão recorrido.
Ao falar-se em legitimidade substantiva tem-se em vista, como se escreveu no acórdão do STJ proferido em 18-10-2018, processo n.º 5297/12.0TBMTS.P1.S2, publicado em www.dgsi.pt, o complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa, ou, nas palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “ao poder de disposição atribuído pelo dirieto substantivo ao autor do acto jurídico” [Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, página 125].
No caso, a questão da legitimidade substantiva da ré, ora recorrente, é a de saber se, à luz do direito substantivo (português ou estrangeiro), ela é sujeito passivo da obrigação de indemnizar em causa nos autos. Vejamos.
Através da presente acção, a autora pretende efectivar o direito de indemnização de clientela previsto no artigo 33.º do Decreto-lei n.º 178/86, de 3 de Julho, que regulamenta o contrato de agência ou representação comercial. Este direito está a ser exercido não contra a sociedade com quem a autora celebrou o contrato de representação comercial, a sociedade «Mortara Instrument, Inc.», mas contra outra sociedade, ambas com sede nos Estados Unidos da América.
A justificação que a autora deu para demandar a ora ré foi a seguinte: ela adquiriu a sociedade «Mortara Instrument, Inc.», tendo, por isso, sucedido nas respectivas obrigações (artigo 30.º da petição).
A ré contestou esta alegação, dizendo que não celebrou qualquer contrato com a autora e que a entidade Mortara Instruments celebrou um acordo de fusão com a entidade Welch Allyn Incor em Junho de 2018.
Na resposta, a autora veio alegar que, em 2017, a sociedade Mortara, por meio de aquisição, tornou-se uma empresa do grupo Hill – Rom e que a mesma Mortara foi fundida na Welch Allyn, outra empresa do grupo Hill – Rom e que, por esta razão, a ré assumiu e tem assumido as obrigações que caberia à referida Mortara.
O acórdão recorrido afirmou a legitimidade substantiva da ré com base na seguinte fundamentação:
• A sociedade que incorporou por fusão a sociedade Mortara – sociedade Welch Allyn, Incorp - é detida pela ré e por outra sociedade – Hill Tom EU LLC;
• Por força do disposto no artigo 501.º do CSC a sociedade directora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada, constituídas antes ou depois da celebração do contrato de subordinação, até ao termo deste;
• Era questão assente a responsabilidade da sociedade dominante pelas obrigações da sociedade dominada;
• É aplicável à pretensão da autora a lei portuguesa.
O acórdão citou em abono do seu entendimento os seguintes acórdãos do STJ: o proferido em 11-10-2022, no processo n.º 860/11.0TYLSB e o proferido em 31-05-2005, no processo 05A1413.
A recorrente contrapõe:
• Quem sucedeu nas obrigações da sociedade que celebrou o contrato de representação comercial (Mortara) foi a sociedade Welch Allyn, Incorp;
• Esta última sociedade é detida pela ré e por outra sociedade (Hill Rom EU LLC);
• À luz do Código das Sociedades Comerciais não há relação de coligação, domínio ou de grupo entre a ré e a sociedade Welch.
Nesta parte, o recurso é de julgar procedente.
Vejamos.
No caso não há controvérsia quanto ao seguinte: a sociedade Welch Allyn Inc sucedeu nos direitos e obrigações da sociedade Mortara Instrument, Inc, isto é, da sociedade com quem a autora, ora recorrida, celebrou o contrato de representação comercial.
Na verdade, apesar de o acórdão sob recurso não o ter dito de modo expresso, é desta realidade que parte para afirmar a legitimidade substantiva da ré.
A sucessão da Welch nos direitos e obrigações da Mortara tem apoio nos factos provados e na lei que lhes é aplicável. Com efeito está provado que, em 1 de Junho de 2018 (por lapso, a sentença refere a data de 14/02/2017), a sociedade Mortara Instrument, Inc. foi incorporada, por fusão, na sociedade Welch Allyn, Inc e subsequentemente extinta. Ora, de acordo com o número 180.1106 (1) (c) da lei que regeu a fusão, a lei do Estado de Wisconsin relativa à fusão de empresas (junta aos autos pela autora em 24-01-2023), a “a entidade comercial sobrevivente fica com todas as responsabilidades de cada entidade comercial que seja parte na fusão”.
Tendo a sociedade Welch Allyn sucedido nos direitos e obrigações da Mortara, a questão que se colocava era de saber se a ré, pelo facto de deter parte do capital social da 1.ª (Welch Allyn), respondia perante terceiros (a autora) pelas obrigações daquela.
A resposta à questão era dada pela lei pessoal da ré. Com efeito, de acordo com o n.º 2 do artigo 33.º do Código Civil, à lei pessoal compete especialmente regular a responsabilidade da pessoa colectiva perante terceiros.
A lei pessoal das sociedades, como decorre do n.º 1 do artigo 33.º do Código Civil e do n.º 1 do artigo 3.º do Código das Sociedades Comerciais, é a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da sua administração. Consagra-se, assim, o chamado critério real, como escreve Rui Pereira Dias em Código das Sociedades Comerciais Em Comentário, Volume I, Almedina, 2.ª Edição, página 80).
Apesar de nada ter sido alegado a propósito da sede real e efectiva da ré, é seguro afirmar-se que sua sede real e efectiva não é em Portugal. É a conclusão que se retira do facto de a própria autora ter indicado os Estados Unidos da América como sendo o Estado onde a ré tem a sua sede, e do facto de a ré ter alegado, sem impugnação da autora, que era uma sociedade de direito americano, regida pelas leis do Estado de Indiana.
Assim sendo, não é aplicável às relações entre a ré e a sociedade Welch Allyn as disposições do Código das Sociedades Comerciais sobre sociedades em relação de domínio. E não é aplicável não apenas porque a lei portuguesa não é a lei pessoal da ré; mas também porque o n.º 2 do artigo 481.º do Código das Sociedades Comerciais diz expressamente que o título sobre sociedades coligadas (que compreende as sociedades em relação de domínio – alínea c) do artigo 482.º) aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal, salvo o disposto nas alíneas a) a c), as quais nenhuma relação tem com a situação dos autos.
Só assim não seria se, de acordo com a directriz do n.º 3 do artigo 348.º do Código Civil, fosse impossível determinar o conteúdo do direito estrangeiro aplicável, o que não sucede.
Na verdade, como se escreveu acima, a ré alegou, sem impugnação da autora, que se tratava de uma sociedade de direito norte americano, regida pelas leis do Estado de Indiana. Mais alegou que, nos termos do Indiana Business Corporation Law (secção 3, Artigo 1, Título 23.º, capítulo 26), “salvo disposição em contrário nos estatutos, um sócio de uma sociedade não é pessoalmente responsável pelos atos ou dívidas da sociedade, exceto nos casos de responsabilidade pessoal derivada dos atos ou conduta do próprio sócio”.
Não estando demonstrada, no caso, nenhuma das excepções previstas no preceito, vale a regra nele enunciada de que um sócio de uma sociedade não é responsável pelos actos ou dívidas da sociedade.
Logo, como concluiu a recorrente, a mesma não é responsável pelo pagamento da indemnização pedida na acção.
Há fundamento, pois, para revogar o acórdão recorrido e substituí-lo por decisão a julgar que a ré não é sujeito passivo da obrigação de indemnização em discussão nos presentes autos.
Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido e substitui-se por decisão a absolver a ré do pedido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a autora ter ficado vencida no recurso, condena-se a recorrida nas custas do recurso.
Lisboa, 14 de Novembro de 2024
Relator: Emídio Santos
1.ª Adjunta: Catarina Serra
2.ª Adjunta: Paula Leal de Carvalho