A enumeração nos factos provados da sentença de afirmações genéricas e imprecisas, insusceptíveis de concretização factual, entendida esta como uma sequência de acontecimentos da vida real que constituem o evento histórico que integra o crime, nas suas circunstâncias de modo tempo e lugar, deve ter-se por não escrita.
Se o arguido estava acusado de oferecer produto estupefaciente num certo período e não de a vender e se na sentença deu como provado apenas que vendeu esse produto e num período diferente, a omissão de enumeração precisa do que se não provou e a indicação da respectiva motivação integra a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
A sentença em que se dá como provado que o arguido praticou o crime de tráfico de estupefacientes num ano diferente do imputado na acusação, sem que tivesse sido feita a comunicação do artigo 359º do CPP, é nula por condenar por factos que representam alteração substancial.
1.1. Decisão recorrida
Sentença proferida em 23mar2024, pela qual foi condenado o arguido AA na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, por um crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, previsto no artigo 25º al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, tendo ainda sido declarados perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos ao arguido.
1.2. Recurso, resposta e parecer
1.2.1. O arguido recorreu da sentença, alegando, em resumo, a existência dos seguintes vícios:
1. Nulidade da sentença por alteração substancial dos factos:
- O tribunal deu como provados factos diferentes dos que constam na acusação, sem ter feito qualquer das comunicações previstas nos artigos 358º e 359º do CPP;
- Isso aconteceu no facto do ponto 3, pois os actos que na acusação se imputa terem ocorrido em datas não apuradas do ano de 2020, foram dados como provados, mas como tendo ocorrido em dadas não apuradas dos anos de 2020 ou 2021;
- E igualmente nos factos do ponto 4, pois acusação refere que ocorreram em datas não apuradas, entre 2018 e 2020, mas o tribunal deu-os parcialmente como provados como tendo ocorrido em data não apurada de 2021;
- Trata-se de uma alteração substancial dos factos da acusação, a qual é relevante para a defesa do arguido, na medida em que, tendo já sido condenado noutro processo por crime de tráfico de produtos estupefacientes, praticado no mesmo período abarcado pelos factos imputados na acusação, estruturou a sua defesa no sentido de demonstrar que há caso julgado e violação do princípio ne bis in idem;
2. Violação do caso julgado e do princípio ne bis in idem;
- O arguido foi condenado noutro processo por crime de tráfico de estupefacientes, por sentença proferida em 2jun2021 e transitada em 13set2022, sendo que a acusação do presente processo lhe imputa o mesmo crime por factos praticados no mesmo período temporal daqueles abrangidos pela referida condenação;
- Não tendo os factos imputados na acusação sido julgados no outro processo, já não o podem ser agora, sob pena de violação do caso julgado;
3. Nulidade da sentença pior omissão da enumeração dos factos não provados:
- A sentença apenas enumerou como não provado um dos factos imputados na acusação, quando nessa peça se imputam ao arguido outros factos que não foram dados como provados nem como não provados;
4. Nulidade da prova:
- A GNR fez uma busca ao veículo do arguido sem o seu consentimento, sem que houvesse suspeita que a legitimasse e que não foi comunicada ao JIC;
5. Erro de julgamento da matéria de facto:
- Os factos provados dos pontos 1 a 10 foram incorrectamente julgados;
- Nos pontos 1 a 4, a sentença contém como provados factos genéricos e vagos que não permitem o exercício cabal dos direitos de defesa, em violação do princípio do processo equitativo, e que por isso são insusceptíveis de fundamentar a condenação e devem ser tidos por não escritos;
- Os factos dos pontos 5 e 6 não podem dar-se como provados porque foram adquiridos com base em prova nula – a busca não autorizada;
5. Nulidade da declaração de perdimento de bens:
- A sentença nessa parte é nula porque não fundamenta a declaração de perdimento;
6. Medida e espécie da pena:
- A pena adequada aos factos e à culpa, tendo em conta as condições pessoais do arguido e o facto de não se poder considerar como antecedente criminal a condenação posterior ao julgamento, seria a de 1 ano e 6 meses de prisão;
- Essa pena devia ter a sua execução suspensa por ser excessiva a provação de liberdade.
1.2.2. O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo que o mesmo não tem fundamento, em suma, pelos seguintes motivos:
- A busca ao automóvel, para além de ter sido autorizada pelo arguido, é das que podem ser realizadas pelos órgãos de polícia criminal sem mandado e sem consentimento do visado;
- Não há erro de julgamento da matéria de facto, pois baseou-se num exame crítico das provas devidamente motivado, num processo explicativo lógico e racional, tendo-se o arguido limitado a manifestar discordância e uma diferente convicção;
- A pena encontra-se correctamente fixada, quer quanto à espécie quer quanto à medida;
1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, acrescentando que a sentença contém motivação suficiente para fundamentar a declaração de perdimento de bens e a prova de factos relativos a período em parte não coincidente com o referido na acusação.
2. Questões a decidir
Por ordem de precedência lógica e na medida em que o conhecimento de alguma não prejudique o das subsequentes, as questões a decidir são as seguintes:
- Nulidades da sentença: factos provados genéricos, omissão de enumeração de factos não provados, factos provados que constituem alteração substancial dos imputados na acusação e omissão de fundamentação;
- Violação do caso julgado;
- Nulidade da prova;
- Erro de julgamento da matéria de facto;
- Erro de direito na determinação da espécie e medida da pena.
3. Fundamentação
3.1. Matéria de facto e motivação da sentença recorrida
Factos provados
Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. Em datas não concretamente apuradas, mas, pelo menos nos anos de 2020/21, o arguido dedicava-se à venda e distribuição de produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína e heroína, nas localidades de …, … e …, detendo e fazendo a entrega dessas substâncias directamente a consumidores das mesmas a troco de uma compensação pecuniária.
2. Nesse contexto, os consumidores que pretendiam adquirir aquele produto estupefaciente contactavam o arguido, pessoalmente ou através do seu telemóvel, e recebiam dele quantidades não apuradas de cocaína e heroína entregando-lhe quantias em dinheiro, como contrapartida.
3. Em datas não concretamente apuradas, mas nos anos de 2020/2021, o arguido vendeu, uma ou duas vezes quantidades não apuradas de cocaína e heroína a BB, recebendo em contrapartida cerca de €10 por cada venda de heroína e cerca de €10 por cada venda de cocaína.
4. Em data não concretamente apurada, no ano de 2021, o arguido vendeu, pelo menos, uma vez, quantidade não apurada de heroína a CC, recebendo em contrapartida €20.
5. No dia 10 do mês de Março de 2021, pelas 18h00, na localidade da …, …, mais concretamente junto ao estabelecimento comercial denominado de Restaurante …, o arguido tinha na sua posse:
- No chão do lado do condutor do veículo que conduzia, da marca …, com a matrícula … uma nota de €10 do Banco Central Europeu;
- Num compartimento existente do lado esquerdo do volante acondicionados no interior de uma meia de cor preta:
12 pacotes contendo heroína com o peso liquido de 11,257 gramas equivalente a 4 doses, substância essa abrangida pela tabela I-A anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;
27 pacotes contendo cocaína com o peso liquido de 3,078 gramas equivalente a 26 doses, substância essa abrangida pela tabela I-B anexa ao Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01;
- No bolso interior do seu casaco dois maços de notas do Banco Central Europeu que perfaziam o valor total de €750;
- Um telemóvel de marca …, de cor preta, com os IMEI’s … e …, contendo no seu interior no SIM 1, um cartão da operadora móvel …, com o número … e no Sim 2 um cartão da operadora móvel … e um telemóvel de marca …, de cor azul, tendo o ecrã partido, com os IMEI’s … e …, contendo no seu interior um cartão da operadora …, com o número … e um cartão da … com o número ….
- No interior de uma bolsa de cintura uma nota de €20 Banco Central Europeu.
6. Os telemóveis referidos no ponto anterior, apreendidos ao arguido, foram utilizados pelo mesmo na concretização da actividade de venda de produto estupefaciente.
7. As quantias monetárias apreendidas ao arguido eram provenientes dessa actividade de venda de produto estupefaciente.
8. Com a conduta descrita, o arguido quis deter, vender, e transportar cocaína e heroína, bem sabendo a qualidade, quantidade e a característica estupefaciente dos produtos que possuía e vendia.
9. O arguido tinha conhecimento que a detenção e venda de produtos estupefacientes são proibidos por lei e, não obstante, quis desenvolver tal conduta, apesar de não se encontrar autorizado a tal.
10. O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, pois sabia que a sua conduta era proibida por lei e, ainda assim, não se coibiu de a praticar.
11. O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado, em:
- 2015, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 200 dias de multa, que pagou;
- 2017, pela prática, em 2015, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de um ano e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
- 2019, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de oito meses de prisão, substituída por 240 dias de multa;
- 13.09.2022, pela prática, em 12.06.2019, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de três anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos.
12. O arguido cresceu no seio de uma família de modesta condição socioeconómica. Coabitou com os avós até aos dezassete anos em …, num contexto sócio económico caracterizado por precariedade económica, subsistindo o grupo familiar de fracos recursos provenientes da exploração agrícola e piscatória. Residiam numa casa que teria fracas condições de habitabilidade, sem eletricidade e sem água canalizada.
13. O arguido concluiu o 11º ano de escolaridade em …, tendo vindo para Portugal para prosseguir formação escolar, vindo frequentar um curso de técnico de gestão de empresa, de três anos, que abandonou sem concluir.
14. Passou então a trabalhar em Portugal na construção civil como servente, porém, na sequência de um acidente de trabalho em que se lesionou num joelho (outubro de 2016) permaneceu um longo período inativo, tendo-lhe sido atribuída alta a 11-12-2017.
15. Mais tarde trabalhou no … uns meses como copeiro e depois disso realizou trabalhos na área da construção civil.
16. Desde 2022, o arguido trabalha em empresa de trabalho temporário, como ajudante de motorista/motorista de ligeiros, apresentando uma situação económica sofrível.
17. O arguido coabita com a companheira, um filho do casal (tendo uma relação conjugal há cerca de … anos, estando também aí a residir uma irmã sua. A família reside numa habitação arrendada.
18. O filho do arguido tem … anos de idade, havendo referência à existência de uma dinâmica familiar positiva, ainda que o nascimento de outro filho (de … anos de idade), fruto de uma relação extraconjugal, tenha conduzido, no passado, a conflitos entre o arguido e a companheira.
Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
- O arguido vendeu cerca de 30 vezes quantidades não apuradas de heroína a DD, recebendo em contrapartida €20 por cada venda de “meia-bola” e €40 por uma “bola”, sendo que em algumas das vezes que o arguido lhe vendeu uma “bola” de heroína ofereceu-lhe uma dose de cocaína.
Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base na análise crítica e conjugada, ponderada com juízos retirados da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos seguintes meios de prova:
- Depoimento da testemunha EE, militar da GNR que procedeu à detenção do arguido, em 10.03.2021, pelos factos constantes do ponto 5 da factualidade provada, que de forma segura e espontânea, corroborou o teor do Auto de Notícia, de fls. 5 a 8 e autos de apreensão, de fls. 9 a 10 e 12.
Esclareceu, ainda, esta testemunha, que interceptou no arguido no dia 10.03.2021, em virtude de já ter conhecimento daquele ter sido detido anteriormente pela prática do crime de tráfico, sendo que o arguido, ao observar a aproximação dos elementos da GNR evidenciou nervosismo. Nessa sequência, explicou o militar que procedeu a revista e busca na viatura utilizada pelo arguido, tendo sido apreendidos os objectos e produto estupefaciente indicados em sede de factualidade provada.
Por último, a testemunha referiu em julgamento que, no decorrer da investigação, pode verificar que alguns números de telemóvel existentes no telemóvel apreendido ao arguido pertenciam a indivíduos consumidores de heroína e cocaína, já referenciados pela GNR.
- Depoimento das testemunhas BB e CC, que, em julgamento, confirmaram terem comprado produto estupefaciente ao arguido, nos termos expostos em sede de factualidade provada.
Ambas as testemunhas referiram, também, que, para o feito de compra/venda de estupefaciente, contactavam com o arguido através de telemóvel.
A testemunha BB esclareceu, até, que o número de telemóvel … é o seu número de contacto. Ora, tal contacto encontrava-se gravado num dos telemóveis apreendidos ao arguido, conforme análise pericial aos telemóveis apreendidos ao arguido – Fls. 6, linha 11, do Apenso A.
- Declarações do arguido.
O arguido, após a produção da demais prova em julgamento, pretendeu prestar declarações, tendo negado a prática dos factos de que vem acusado.
Parco nas explicações, a perguntas elaboradas pelo Tribunal, o arguido, mediante pedidos de esclarecimento da defesa, referiu três circunstâncias. A saber:
A primeira, de que os termos de autorização de busca, de fls. 11.; o TIR de fls. 20 e 21; a constituição de arguido, de fls. 16; e o documento “Direitos de Detido”, de fls. 18 e 19, continham assinatura falsa, uma vez que, segundo o arguido, nunca o mesmo assinou tais documentos.
A segunda, de que o produto estupefaciente encontrado no interior da viatura automóvel por si utilizada, não se encontrava em tal local em momento anterior à chegada da força policial.
A terceira, de que é sua convicção de que os factos em causa no presente processo dizem respeito a processo diverso, pelo qual já foi condenado anteriormente.
Vejamos.
Depreende-se que, segundo o arguido, os militares da GNR falsificaram a assinatura do arguido em diversos documentos e colocaram, eles próprios, o produto estupefaciente no veículo utilizado pelo arguido. Esta tese é completamente desrazoável e não abala a força probatória conferida aos demais meios de prova supra explanados.
Depois, o arguido erra quando tenta chamar à colação a eventual violação do princípio ne bis in idem. O anterior processo pelo qual o arguido foi condenado pela prática de crime de tráfico, apesar de ter transitado em julgado em 2022 (após a prática dos factos aqui considerados provados – 2020/21), dizem respeito a factos praticados em 2019, conforme CRC de fls. 555 e ss.
Quanto a outras questões, como sejam, as relacionadas com os telemóveis apreendidos e contactos ali verificados, o arguido decidiu retomar o seu direito a não prestar mais declarações.
O Tribunal considerou, ainda, os seguintes elementos de prova:
- Relatório de exame pericial n.º 202106210-BTX, fls. 473;
- Relatório Forense, fls. 196 a 206 e fls. 2 a 65 do Apenso A;
- Reportagem fotográfica, de fls. 15;
- Relatório social de fls. 577 e ss.
Por fim, os factos elencados nos pontos 7 a 10, da factualidade provada, resultaram demonstrados através da conclusão lógica retirada da actuação objectivamente desenvolvida pelo arguido e dos actos concretos descritos.
O facto não provado resultou de insuficiência de prova, uma vez que a testemunha DD, em julgamento, não conseguiu corroborar o reconhecimento fotográfico que havia realizado em inquérito, segundo o qual havia comprado produto estupefaciente a indivíduo retratado na fotografia do arguido.
3.2. Nulidades da sentença
As nulidades da sentença encontram-se previstas no artigo 379º nº 1 do CPP. Sendo de conhecimento oficioso (nº 2 do preceito), o tribunal de recurso não está limitado pela impugnação da sentença apresentada pelo recorrente.
3.2.1. O primeiro ponto que devemos analisar refere-se aos comumente chamados “factos genéricos”, que na verdade não são “factos”, com o sentido normativo que lhes é dado pelos artigos 283º nº 3 al. a), 368º nº 2 e 374º nº 2 do CPP.
Conforme acima exposto, nos pontos 1 e 2 dos factos provados, a sentença enumerou-os assim:
- «Em datas não concretamente apuradas, mas, pelo menos nos anos de 2020/21, o arguido dedicava-se à venda e distribuição de produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína e heroína, nas localidades de …, … e …, detendo e fazendo a entrega dessas substâncias directamente a consumidores das mesmas a troco de uma compensação pecuniária».
- «Nesse contexto, os consumidores que pretendiam adquirir aquele produto estupefaciente contactavam o arguido, pessoalmente ou através do seu telemóvel, e recebiam dele quantidades não apuradas de cocaína e heroína entregando-lhe quantias em dinheiro, como contrapartida».
Podemos ter como seguro que as afirmações com conteúdo genérico ou impreciso, sem a mínima concretização da sequência de acontecimentos da vida real que constituem o evento histórico que integra o crime, nas suas circunstâncias de modo tempo e lugar, que não permitem individualizar a acção típica penalmente relevante e o grau de participação do arguido, não são “factos” para efeitos penais. A sua enunciação na sentença não corresponde à enumeração de factos exigida pelo artigo 374º nº 2. Nem se vê, aliás, como podem tais afirmações genéricas ser objecto de um processo de decisão judicial que cumpra os requisitos do artigo 368º nº 2.
Uma sentença assim estruturada não permite o exercício do direito ao contraditório, com o alcance e finalidades resultantes dos artigos 32º nº 5 da CRP e 323º al. f) e 327º nº 2 do CPP. Consequentemente, uma condenação baseada em afirmações genéricas e imprecisas viola de forma grave os direitos de defesa e o princípio do processo equitativo, consagrados nos artigos 32º nºs 1 e 5 e 20º nº 4 da CRP, no artigo 6º nº 3 da CEDH e nos artigos 47º e 48º nº 2 da CDFUE.
Trata-se de jurisprudência consolidada, como se pode comprovar pela leitura das seguintes decisões do STJ, coligida no Acórdão TRE, de 17/9/2013, do processo 9711.8PFSTB.E1 (consultável em www.jurisprudencia.csm.org.pt): - Não são "factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ("procediam à venda de produtos estupefacientes", "essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos", "a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", "utilizavam também "correios", "utilizavam também crianças", etc.). As afirmações genéricas, contidas no elenco desses "factos" provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como "factos" inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-05-2004 - Proc. 04P908, Rel. Cons. Santos Carvalho); - O princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2007 - Proc. 06P4341, rel. Cons. Oliveira Mendes); – Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão do STJ de 15-11-2007 - Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho); - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente. Por isso, será de ter por não escrita aquela imputação genérica (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2008 (Proc. 07P4197, rel. Cons. Raul Borges); - Resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, «continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas», agrediu aquela «com bofetadas» e que com «frequência era chamada a Polícia àquela residência», impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal. Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. De 06-05-2004, Proc. N.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. N.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. N.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. N.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. N.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. N.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. N.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. N.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. N.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. N.º 4197/07 - 3.ª. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-07-2008 - Proc. 07P3861, Rel. Cons. Raul Borges). Regressando ao caso em apreço, temos como manifesto que as afirmações acima descritas, dos pontos 1 e 2 dos factos provados, são genéricas e imprecisas, sem conteúdo factual. Diz-se que num período de 2 anos, o arguido vendia heroína e cocaína em quantidades indeterminadas, em quatro localidades, a troco de quantias em dinheiro, após contactos pessoais ou telefónicos dos consumidores.
É evidente que ninguém consegue defender-se de imputações como estas. O exercício do direito ao contraditório, para ser efectivo e respeitar materialmente as garantias de defesa, tem de permitir que a pessoa acusada conheça o acto concreto que lhe é imputado e as provas em que essa imputação se sustenta e que o possa confessar, explicar ou contrariar, indicando para isso as provas que tiver por adequadas. Não sabendo o arguido que tipo de droga se provou ter vendido, quando, onde, a quem, quantas vezes, em que quantidades e a troco de que pagamento, é por demais evidente que não podia contrariar tais afirmações com um mínimo de efectividade.
As afirmações que constam nos referidos pontos 1 e 2 da sentença, poderiam, no limite, ter-se como explicativas das subsequentes, isto é, ser consideradas como descritivas do modo da acção de cada acto concreto imputado nos pontos seguintes dos factos. Nessas circunstâncias, teriam conteúdo factual, pois estariam referidas a acções individualizadas e passíveis de contradita. Simplesmente, no caso em apreço, isso não resulta dos factos. Não é possível dizer que a sentença pretendeu dar como provado que os factos dos pontos 3 e 4 ocorreram do modo descrito nos pontos 1 e 2. Por um lado, porque aquela referência genérica a actos de venda de droga durante tanto tempo e em tantos lugares não é compatível com as meras duas ou três vendas que ficaram provadas nos pontos 3 e 4. Por outro lado, porque nem sequer os períodos são coincidentes.
Sendo assim, os pontos 1 e 2 da matéria de facto, sendo irrelevantes para a decisão, têm de se considerar como não escritos.
3.2.2. O segundo ponto que temos de verificar refere-se à omissão de pronúncia, por o tribunal não ter tomado posição sobre certos factos que estavam imputados ao arguido na acusação e que na sentença não aparecem enumerados como provados ou não provados.
De acordo com o disposto nos artigos 339º nº 4 e 368º nº 2 do CPP, o objecto do julgamento é constituído pelo elenco dos factos imputados na acusação ou na pronúncia, pelos factos alegados na contestação e pelos que resultarem da prova em audiência. Tais factos, porém, serão apenas os que tiverem relevância para a decisão das diversas questões em que se desdobra a análise da culpabilidade e da determinação da espécie e da medida da pena. Factos irrelevantes, ainda que contidos na acusação ou na contestação ou revelados na audiência, não podem considerar-se como fazendo parte do objecto do julgamento, por força do disposto nos artigos 368º nº 2 e 369º nº 2 do CPP e do princípio geral da utilidade dos actos processuais, consagrado a contrario no artigo 130º do CPC, segundo o qual “não é lícito realizar no processo actos inúteis”.
Consequentemente, a norma que regula o conteúdo da sentença (na parte que importa referimo-nos ao artigo 374º nº 2 do CPP) tem de ser interpretada à luz daquelas normas que definem o objecto do julgamento. A enumeração dos factos provados e não provados e a exposição dos motivos de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, apenas se refere aos factos relevantes para a decisão. Se o tribunal deixou de pronunciar sobre um facto completamente inócuo para a decisão, não ocorre a nulidade prevista no artigo 379º nº 1 al. c) do CPP.
Os pontos 3 e 5 da acusação contêm as seguintes imputações:
«3. Em datas não concretamente apuradas mas no ano de 2020, o arguido vendeu cerca de 2 a 3 vezes quantidades não apuradas de cocaína e heroína a BB, recebendo em contrapartida €20 por cada venda de heroína e entre €10 a €20 por cada venda de cocaína, sendo que em algumas das vezes que o arguido lhe vendeu heroína ofereceu-lhe uma dose de cocaína.»
«5. Em datas não concretamente apuradas mas no período compreendido entre os anos de 2018 e 2020, o arguido vendeu cerca de 5 vezes quantidades não apuradas de heroína a CC, recebendo em contrapartida €20 por cada venda de “meia-bola” e €40 por uma “bola”, sendo que o arguido lhe ofereceu uma dose de cocaína em cada venda.»
Já nos correspondentes pontos 3 e 4 dos factos provados, consta o seguinte.
«3. Em datas não concretamente apuradas, mas nos anos de 2020/2021, o arguido vendeu, uma ou duas vezes quantidades não apuradas de cocaína e heroína a BB, recebendo em contrapartida cerca de €10 por cada venda de heroína e cerca de €10 por cada venda de cocaína.
«4. Em data não concretamente apurada, no ano de 2021, o arguido vendeu, pelo menos, uma vez, quantidade não apurada de heroína a CC, recebendo em contrapartida €20.»
Comparando aquilo de que o arguido estava acusado com o que se provou, há diferenças irrelevantes, mas também omissões importantes.
Na primeira situação, a acusação referia 2 ou 3 vendas e provou-se que foram 1 ou 2. Na segunda, referia 5 vendas e foi dada 1 como provada. É certo que no pleno rigor formal, o tribunal devia ter elencado como não provado que o número de vendas tivesse sido aquele imputado na acusação. Porém, tendo em conta a natureza dos factos e a circunstância de as acções não se encontrarem individualizadas e se reportarem ao mesmo comprador, a leitura da sentença não deixa qualquer dúvida sobre o significado do que o tribunal deu como provado e não provado. Seria um exagero formal exigir num caso como este uma pronúncia expressa sobre o facto alegado. Se o facto em causa é contrário a outro sobre o qual o tribunal se pronunciou e se a motivação expressa de um contém também a justificação implícita da indemonstração do outro, seria descabido exigir a pronúncia expressa sobre o mesmo facto duas vezes. Por isso, ao dar como provado um concreto número de vendas, o tribunal deu implicitamente como não provado o maior número de que o arguido estava acusado. Aqui consideramos não existir omissão de pronúncia com qualquer relevo para o exercício dos direitos dos sujeitos processuais e para a compreensibilidade da sentença.
Já no que se reporta aos factos dos ponto 3 e 5, o tribunal não se pronunciou expressamente sobre o que constava na acusação, que em certas ocasiões o arguido vendia heroína e oferecia uma dose de cocaína a quem a comprava. Não é a mesma coisa vender droga a troco de dinheiro ou entregar droga como gratificação, pois uma e outra realidade correspondem a diferentes formas típicas de acção. Do mesmo modo, nos factos do ponto 5, o tribunal não se pronunciou sobre a imputação da acção ter ocorrido em data indeterminada dos anos de 2018 a 2020, limitando-se a dar como provado que foi no ano de 2021. Aqui há omissão de pronúncia.
A necessidade de o tribunal tomar posição expressa sobre aquela factualidade, dando-a como provada ou não provada, não é uma formalidade destituída de sentido. É que não está apenas em causa o ter-se ou não provado o facto, mas igualmente o conhecimento da motivação porque se decidiu de uma maneira e não de outra. Se, por um lado, o arguido estava acusado de oferecer droga e não de a vender e se, por outro lado, estava acusado de traficar nuns anos e se provou que foi noutro ano, a enumeração precisa do que se não provou e a indicação das respectivas razões é essencial para a correcta fundamentação da sentença. A motivação que consta na sentença não permite, de todo em todo, inferir a razão de o tribunal não ter dado a factualidade em causa como provada.
Há ainda outro aspecto nos pontos 3 e 4 da sentença em que o tribunal enumerou a factualidade provada de forma dúbia, acabando por não se perceber exatamente o que se provou. Diz-se no ponto 3 que «o arguido vendeu uma ou duas vezes» e no ponto 4 que «vendeu, pelo menos, uma vez». O tribunal está obrigado a tomar posição clara e expressa sobre os factos relevantes, dando-os como provados ou não provados. Não pode dá-los como provados em alternativa – uma ou duas vezes – ou de maneira supletiva – pelo menos uma vez. Se não se apura o exacto número de vendas, isto é, se em relação a algumas existe uma dúvida sobre a veracidade da imputação, então decorre do princípio in dubio pro reo que o facto tem de ser dado como não provado. Até porque, se bem se reparar no caso em apreço, a forma como a sentença está escrita acaba por ser contraditória. Não se pode dizer ao mesmo tempo que foi uma ou duas vezes e depois que recebeu um certo pagamento por cada venda, como se estivesse demonstrado que houve uma pluralidade de vendas; nem se pode dizer que foi pelo menos uma vez e depois que recebeu [presume-se que] uma determinada contrapartida.
É, pois, de concluir que nestes segmentos a sentença é nula por omissão de pronúncia, de acordo com o disposto no artigo 379º nº 1 al. c) do CPP.
3.2.3. Em terceiro lugar, ainda na verificação das nulidades da sentença, há que ver se o tribunal condenou o arguido por factos que constituem alteração substancial daqueles imputados na acusação.
A questão essencial enuncia-se facilmente: estando o arguido acusado de ter vendido droga a BB em 2020 e a CC entre 2018 e 2020 (ponto 3 e 4 da acusação) e tendo-se provado que isso ocorreu, respectivamente, em 2020/2021 e em 2021 (pontos 3 e 5 da sentença), estava o tribunal obrigado a fazer a comunicação prevista no artigo 359º do CPP e a tirar daí as devidas consequências?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
O vício invocado no recurso consiste na condenação do arguido por factos que representam alteração substancial dos imputados na acusação, fora dos casos previstos no artigo 359º do CPP; isto é, sem que o arguido tivesse dado o seu acordo à continuação do julgamento pelos novos factos considerados pelo tribunal.
A questão que temos de resolver é, portanto, a de saber se os referidos factos novos – dar como provado que o crime ocorreu num ano diferente do imputado na acusação –constituem alteração substancial ou não substancial. O critério definidor está no artigo 1º al. f) do CPP: alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso (não referimos a outra modalidade que consiste na agravação da pena por não ser aplicável ao caso).
A expressão “crime diverso” não significa “diferente tipo legal de crime”. Crime diverso pode ser um modo diferente de praticar o mesmo tipo de crime. Uma interpretação redutora que equiparasse o conceito de “crime diverso” ao de “tipo de crime”, levaria a que o julgamento pudesse terminar numa condenação pelo mesmo crime, mas baseada num quadro factual completamente modificado. Seria, por absurdo, condenar o arguido acusado roubar dinheiro a uma vítima ameaçada com uma pistola, por se ter apurado em julgamento que, afinal, tinha roubado o relógio a outra vítima ameaçando-a com uma faca. É evidente que aqui o tipo de crime é o mesmo, mas a alteração radical dos factos não poderia deixar de ser tida como imputação de um crime diverso.
O que seja “crime diverso” para o efeito de se dizer que há uma alteração substancial dos factos sujeita ao regime do artigo 359º do CPP não é matéria consensual. Parece, no entanto, evidente que aquele conceito há-de estar referenciado ao princípio da vinculação temática do julgamento ao objecto do processo definido pela acusação. O que está em causa na proibição de condenação do arguido por factos substancialmente diferentes daqueles que lhe foram imputados na acusação decorre directamente da estrutura acusatória do processo penal e do direito a uma defesa efectiva, com protecção constitucional no artigo 32º da CRP.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2014 (DR nº 18, I Série, 27JAN2018), que uniformizou a jurisprudência sobre os casos em que a acusação é omissa na descrição dos elementos subjectivos do crime, escreveu-se a propósito da definição do objecto do processo o seguinte, com interesse para o caso em apreço: «Tal noção há-de partir de uma ideia de acontecimento histórico, tendo por base uma percepção social unitária, com uma determinada valoração que, não sendo exclusivamente jurídica, não prescinde de uma referência normativa, de carácter jurídico-criminal e mesmo, em último termo, de uma referência ao bem jurídico e a outros elementos da acção. É que “crime” não pode deixar de ter, na sua base conceptiva, um acontecimento da vida real concreta, o tal pedaço de vida histórico-social onde se recorta o facto, mas com relevância jurídico-criminal, já que, da multiplicidade de factos da vida real, só interessam os que podem concretizar ou dar expressão a uma conduta desvaliosa, em termos criminais, embora formulada, durante o inquérito e na acusação, como hipótese. Daí que a lei fale em factos que dão origem a “crime diverso”, não podendo referir-se a crime com outra acepção, que não a que lhe advém da qualificação de determinadas condutas como crime pelo direito substantivo. Isto, muito embora não ocorra coincidência entre unidade do objecto do processo e unidade de crime no direito substantivo Crime também não é sinónimo de tipo legal de crime, pois, se o fosse, a lei não formularia, como alternativa para a alteração substancial dos factos, a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (caso, por exemplo, das agravantes típicas modificativas). Isto não significa, todavia, que não possa haver alteração substancial dos factos, quando a modificação acarretar imputação de um crime menos grave (cf. FREDERICO ISASCA, Ob. cit.,p. 145). Por outro lado, a noção de bem jurídico também haverá de entrar, em muitos casos, para estabelecer a diferença entre identidade e alteridade dos factos. Uma mudança de bem jurídico, que substitua o inicial, em princípio, acarretará alteração substancial, mas pode não ser assim, quando se trate, por exemplo, de concurso aparente de infracções, como o que decorre entre homicídio e ofensas corporais, ambos voluntários ou ambos negligentes, entre homicídio qualificado e homicídio simples, (mas, no caso de se tratar de alteração de factos de homicídio simples para qualificado, a agravação da sanção máxima aplicável implicaria a consideração de alteração substancial), entre roubo e ofensas à integridade física ou furto. Quanto a outros elementos, mencione-se a identidade do sujeito da acção, implicando fatalmente a alteração substancial dos factos, desde logo por força da subjectivação do acontecimento histórico, e o juízo base da ilicitude, como o que intercede entre crime tentado e consumado, cumplicidade e autoria, negligência e dolo, dando origem a alteração substancial dos factos, se não por força da alteridade do crime, pela consequência de a mudança acarretar agravação das sanções máximas aplicáveis».
A alteração substancial de factos há-de pois ser aquela em que o objecto do processo levado ao julgamento se modifique em tal extensão que leve a que o seu prosseguimento, contra a vontade do arguido, represente uma violação da sua estrutura acusatória e dos direitos de defesa. Mais do que procurar uma definição abstracta, exacta e válida para todas as hipóteses do que seja crime diverso, parece-nos que importa verificar em cada caso se o novo facto surgido no julgamento constitui um factor essencial diferenciador dos elementos típicos do crime e se a condenação por esse novo facto, sem o acordo do arguido, diminui intoleravelmente as suas garantias de defesa. Se o comportamento humano no contexto do acontecimento real descrito na acusação como hipótese a comprovar para a subsunção na norma penal incriminadora é ainda, na sua unidade e essencialidade, o mesmo, ou se, por virtude da modificação, esse comportamento é outro.
Na correcta interpretação da lei, uma modificação radical das circunstânmcias de tempo da acção típica traduz-se na alteração de um dos elementos típicos dos crimes. Crimes de tráfico praticados em 2018, 2019 ou 2020 ou praticados em 2021, aqui já até na pendência do processo crime, não são os mesmos crimes. No plano das garantias de defesa, sujeitar a julgamento acções ocorridas entre 2018 e a data da detenção do arguido para depois se dar como provado que elas ocorreram algures no tempo em 2021, inclusivamente depois da detenção, e condenar o arguido em conformidade, constitui uma grave violação do princípio do contraditório.
Para aferir se os direitos de defesa ficaram intoleravelmente limitados não interessa saber que defesa teria o arguido para apresentar em relação ao facto novo pelo qual veio a ser condenado. O que releva é que esse facto não fazia parte do objecto do processo levado ao julgamento e que o arguido acabou por ser condenado pelo mesmo tipo de crime, é certo, mas praticado num período temporal radicalmente diferente. Tal alteração, não comunicada ao arguido no julgamento, origina uma modificação essencial dos crimes imputados. Em conclusão, os factos novos não comunicados ao arguido correspondem a uma alteração substancial da acusação, pelo que teria de ter sido dado cumprimento ao disposto no referido artigo 359º. Não tendo isso sido feito e tendo o tribunal tomado em conta tais factos para condenar o arguido, a sentença está inquinada com a nulidade prevista no artigo 379º nº 1 al. b) do CPP.
3.2.4. Resta analisar, ainda no capítulo das nulidades da sentença, o problema da omissão de fundamentação da decisão de declaração de perdimento de bens.
Nos pontos 6 e 7 dos factos provados ficou estabelecido que os telemóveis foram usados na concretização das vendas e que o dinheiro era proveniente do tráfico.
Porém, como decorre do acima exposto, a prova dessas vendas – aquelas em que os telemóveis foram utilizados –, que só podem ser as referidas nos pontos 3 e 4, não se encontra ainda consolidada, na medida em que a sentença é anulada nessa parte. Em função do que o tribunal vier a decidir depois de comunicada a alteração substancial dos factos, poderá ser necessário alterar a redação dos pontos 6 e 7 e decidir diferentemente quanto à declaração de perda, nomeadamente no que respeita aos telemóveis.
Sendo assim, está prejudicada a possibilidade de decidir esta questão neste momento.
3.2.5. Conclusão:
A nulidade da sentença implica o seu suprimento pelo tribunal que a proferiu.
No caso, tal suprimento impõe, por um lado, que se considerem não escritos os factos dos pontos 1 e 2, que se faça a enumeração precisa dos factos não provados, nos termos acima referidos, e que se proceda à reabertura da audiência de julgamento para se fazer a comunicação da alteração substancial dos factos, com as consequências previstas no artigo 359º do CPP.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso procedente e em declarar a nulidade da sentença para suprimento nos termos referidos em 3.2.5.
Não há lugar ao pagamento de custas.
Évora, 5 de Novembro 2024
Manuel Soares
Carla Francisco
Artur Vargues