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COACÇÃO DE FUNCIONÁRIO
CRIME DE PERIGO
AMEAÇA
Sumário
I - O crime de coacção de funcionário é um crime de perigo que visa proteger o interesse do Estado em ver respeitada a autoridade pública. II - A gravidade da violência ou da ameaça há-de aferir-se em função das capacidades do destinatário de suportar pressões.
Texto Integral
Acordam na Relação do Porto:
Findo o inquérito a que se procedeu, o Mº Pº requereu o julgamento, em processo comum e por Tribunal Colectivo, do arguido JOAQUIM....., com os sinais dos autos, acusando-o da autoria material e em concurso efectivo de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artº 22º, 23º, 203º e 204º, nº 1, al. f), do C. Penal, e de um crime de coacção a funcionário, p. e p. pelo artº 347º do mesmo Código.
Distribuídos os autos à -ª Vara Criminal do Círculo do....., o Mmº Juiz proferiu douto despacho, pelo qual rejeitou liminarmente aquela acusação na parte respeitante ao acusado crime de coacção a funcionário, por nessa parte a considerar “manifestamente infundada e por os factos não constituírem crimes”.
Na justificação desse seu entendimento, considera o Mmº Juiz que “o artº 347º do Cód. Penal - coacção sobre funcionário - implica o emprego, por parte do agente, de violência ou ameaça grave, contra funcionário”.
E, após referir que na acusação deduzida não é narrada qualquer ameaça, qualquer promessa de mal futuro grave, esclarece que “este adjectivo quis precisamente afastar, como bagatelas, os simples desabafos de agentes ao verem-se presos, aos quais os elementos policiais já estão habituados no exercício das suas funções”.
Deste despacho recorreu então o Mº Pº, dizendo em síntese conclusiva:
1. A acusação integrou os factos praticados pelo arguido e devidamente descritos, além do mais, como um crime de coacção a funcionário, p. e p. pelo artº 347º do CP.
2. Ao proferir o despacho a que se refere o artº 311º do CPP, entendeu o Mmº Juiz que tais factos descritos na acusação não constituem aquele crime e assim rejeitou a acusação nessa parte por a julgar manifestamente infundada.
3. Ao juiz do julgamento não é lícito, ao proferir o despacho a que se refere o artº 311º do CPP, antecipar o julgamento, apreciando de fundo os factos introduzidos em juízo pela acusação.
4. Por outro lado, o meio de execução deste tipo de crime é a violência ou ameaça grave, onde se inclui a coacção ou violência moral.
5. A acusação descreve factos bastantes, integradores do aludido crime de coacção a funcionário.
6. Não se verifica nenhum dos requisitos previstos no artº 311º, nº 3, do CPP, a acusação não é manifestamente infundada, pelo que não deve ser rejeitada.
Não houve resposta e o Exmº Juiz sustentou doutamente o seu despacho.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronuncia-se pelo provimento do recurso, parecer a que, notificado, o arguido não respondeu.
Assim, cumpridos os vistos, cabe decidir.
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Remetido o processo para julgamento sem ter havido instrução, cabe nos poderes do presidente do tribunal “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada” - artº 311º, nº 2, al. a), do C. P. Penal -, sendo certo que será manifestamente infundada aquela acusação que, considerados os seus próprios termos, não tem condições de viabilidade por padecer de algum dos males apontados nas quatro alíneas do nº 3 desse artº 311º, ou seja: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime.
No caso presente, o Mmº Juiz rejeitou parcialmente (quanto ao crime do artº 347º do C. Penal) a acusação do Mº Pº “por manifestamente infundada e por os factos não constituírem crime”, já que nela “não é narrada qualquer ameaça, qualquer promessa de mal futuro grave”.
Assim sendo, vejamos, antes de mais, os termos da acusação do Mº Pº.
Após descrever a conduta integradora do crime de furto tentado que vem imputado ao arguido que, no acto, foi surpreendido por Agentes da PSP, a douta acusação refere, no que aqui importa, o seguinte:
“E, ao aperceber-se da aproximação de Agentes da Polícia de Segurança Pública - que se faziam transportar num veículo com os dizeres daquela entidade e que se encontravam devidamente uniformizados - o arguido encetou a respectiva fuga, vindo a ser interceptado ainda na referida Rua....., nesta cidade.
Assim, ao sentir-se agarrado pelo agente ofendido – Francisco..... -, o arguido declarou, para este - em tom sério, convincente e intimidatório - que “isto não fica assim, um dia destes encontro-te na rua e então aí conversamos”.
Também aqui o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de, ao proferir as referidas intenções de agressão, obstar a que os Agentes da Polícia de Segurança Pública procedessem à sua detenção.”.
Foi esta conduta, assim descrita, que o Mº Pº entendeu integrar o crime do artº 347º, preceito que, sob a epígrafe “Resistência e coacção sobre funcionário”, dispõe que “quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até 5 anos.”.
E a questão que se coloca consiste em saber se, na verdade, tal conduta integra esse crime e, mais precisamente, se se pode considerar emprego de ameaça grave a frase - “isto não fica assim, um dia destes encontro-te na rua e então aí conversamos” - que o arguido dirigiu a um dos agentes ao sentir-se por ele agarrado.
Com o tipo legal de crime em questão pretende-se proteger o interesse do Estado em ver respeitada a sua autoridade, manifestada na liberdade funcional de actuação do seu funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança (Ac. do STJ, de 25.9.2002, CJ/STJ, X, 3º, 182), ou seja, como no texto deste aresto se concretiza, o preceito “... visa essencialmente a protecção do bem da autoridade pública, colocada particularmente em causa pelo emprego de violência ou ameaça grave para com os agentes incumbidos da função de a exercer em concreto”.
Por outro lado, conforme decorre com clareza desse texto legal, a consumação do crime de coacção sobre funcionário basta-se com a acção do agente, traduzida no emprego de violência ou ameaça grave contra o funcionário do Estado com vista às finalidades ali apontadas - impedir o funcionário de praticar acto relativo ao exercício das suas funções ou constrangê-lo à prática de acto relativo a essas funções, mas contrário aos seus deveres -, sendo indiferente para essa consumação que tais resultados efectivamente venham a verificar-se. Trata-se de um crime de perigo e não de dano, para cuja consumação se exige apenas a prática da acção coactora adequada a anular ou comprimir a capacidade de actuação do funcionário ou afim e já não a verificação desse concreto resultado - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, III, 347, e Ac. Rel. Év., de 19.2.2002, CJ, XXVII, 1º, 278.
Presentes estas considerações, outro aspecto a referir - aliás, aqui directamente em questão - respeita ao alcance a conferir à expressão “violência ou ameaça grave” que, conforme o tipo legal, há-de integrar o comportamento do agente.
Reportando-se à questão, Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense, III, 341, considera que tais meios devem ser entendidos, principalmente, do mesmo modo que no tipo legal de coacção, remetendo para a anotação ao artº 154º, assim fazendo a aproximação do conceito “ameaça grave” ao de “ameaça com mal importante”, mormente enquanto o mal ameaçado tanto pode ser ilícito como não ilícito (Ob. cit., I, 356).
Mas, prosseguindo na sua apreciação (Loc. cit., 341), não deixa de dizer que, no preenchimento do tipo legal em causa (artº 347º), há, em todo o caso, que ponderar as especiais qualidades dos destinatários da coacção no que respeita à capacidade para suportar pressões e, ainda, que estão munidos se instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum, nessa linha considerando que membros das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios, exigindo-se um mais elevado grau de violência ou de ameaça para que se possa considerar preenchido o tipo, pelo que “a utilização do critério objectivo-individual (cfr. comentário ao artº 153º § 19) há-de assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de acção do funcionário” e, assim, “será natural que uma mesma acção integre o conceito de violência relevante nos casos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar. Ou seja: nalgumas hipóteses desta concreta coacção que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas «sobre-capacidades»”.
Nesta linha de entendimento que se afigura exacta e de subscrever, dir-se-á que, no caso vertente e numa primeira leitura, sendo o ameaçado um agente policial, se exigirá uma maior gravidade da ameaça; porém, sem esquecer que, a despeito de tal qualidade, ele poderá não reunir um tal leque de “sobre-capacidades” que bastem para o tornar superior e insensível à ameaça, tendo-a como desprezível. O que, se bem se considera, somente em concreto e no cotejo de todas as provas a produzir, pode ser fundadamente avaliado.
Isto posto:
Sendo certo que a expressão que, ao sentir-se agarrado, o arguido dirigiu ao agente de autoridade - “isto não fica assim, um dia destes encontro-te na rua e então aí conversamos” - comporta vários sentidos, no entanto, nas concretas circunstâncias, um dos seus mais naturais alcances será o do anúncio de uma posterior vingança, de ajuste de contas pela acção que sobre ele o agente de autoridade estava então a concretizar; anúncio que, naturalmente, tem subjacente a intenção de atemorizar o seu interlocutor e com o qual o arguido, conforme alegado na acusação, teve o propósito de obstar a que a sua detenção fosse levada por diante.
Sendo este um dos sentidos, aliás bem plausível, dessa expressão do arguido, com óbvia possibilidade de esclarecimento em sede de audiência de julgamento - sujeitos a princípios específicos (da oralidade, imediação e contraditório), aí confluirão e se debaterão os vários elementos de prova disponíveis que melhor poderão informar o julgador quanto ao sentido dessa expressão, confirmando ou não o alcance que lhe é atribuído na acusação do Mº Pº e os termos em que o seu destinatário as sentiu - pensa-se que não estão reunidas as condições que, nos termos do artº 311º, nº 2, al. a), do C. P. Penal, poderiam justificar a rejeição da acusação nos moldes decididos no douto despacho recorrido, mormente por não constituírem crime os factos ali narrados, e que se impunha que os autos tivessem prosseguido para julgamento para cabal esclarecimento da matéria de facto alegada pelo Mº Pº.
Porque assim, o recurso merece provimento.
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Nesta conformidade, acorda-se em conceder provimento ao recurso do Mº Pº, pelo que se revoga o douto despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que, recebendo a acusação deduzida contra o arguido Joaquim....., faça o processo prosseguir seus ulteriores termos, como no caso couber.
Não são devidas custas.
Porto, 14 de Janeiro de 2004
José Henriques Marques Salgueiro
Francisco Augusto Soares de Matos Manso
Manuel Joaquim Braz