O tipo subjetivo de ilícito, no crime de burla, consiste, assim, no conhecimento e vontade do agente determinar outrem, por erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei.
Não contendo o libelo acusatório, no plano subjectivo, a alegação do facto constitutivo do elemento intencional, deve a acusação ser rejeitada por manifestamente infundada.
Encerrado o inquérito mediante acusação, nos termos do artigo 283º, do CPP e transitado o processo para a fase de julgamento, não comporta o regime processual penal vigente a possibilidade de o mesmo processo retroceder à fase de inquérito na sequência de rejeição da acusação por manifestamente infundada.
1. No Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Competência Genérica de … – Juiz …, Proc. nº 624/19.2GBSLV, foi proferido despacho, aos 02/03/2024, que rejeitou por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea d), do CPP, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos AA e BB em que lhes é imputada a prática, em coautoria, de um crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal.
2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):
1º
Vem o presente recurso interposto do, aliás, douto despacho pelo qual foi decidido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Publico por esta se mostrar manifestamente infundada, ao abrigo do disposto pelo art. 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), do C.P.P.;
2º
Ora, “manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência de indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, indiscutível, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais”. (Ac. da Relação de Lisboa de 16.05.2006, disponível in www.dgsi.pt);
3º
A M.ma Juiz recorrida considerou a acusação manifestamente infundada, por dela não constarem factos que preencham o elemento subjectivo do crime;
4º
Discorda-se desse douto despacho em face dos factos aduzidos nos pontos 3, 4, 6, 8, 11, 12, 14, 15 e 16 que:
a) Os arguidos quiseram, criando em erro, de forma astuciosa, levar a ofendida a adquirir as blusas por eles propaladas, que a ofendida acreditava existirem, serem reais, e que lhe seriam enviadas, por forma a obter um enriquecimento, como obtiveram;
b) Os arguidos agiram sempre de forma conjunta e concertada, de forma livre, deliberada e consciente;
c) Bem sabendo que tal conduta não lhes era permitida e que a mesma era punida por lei;
5º
Não extrair estes factos da acusação é uma conclusão absurda, abusiva, não correspondente com a realidade dos factos, fazendo-se, por essa via, tábua rasa do que ali vem descrito;
6º
A acusação não só não é completamente desprovida de factos, de forma clara e evidente, como também se verifica que da mesma constam factos que preenchem, de forma suficiente e bastante, o elemento subjectivo do crime que aos arguidos vem imputa
7º
Termos em que, decidindo como decidiu, a M.ma Juiz recorrida violou o disposto pelo art. 311º, nº 2, al. a), e nº 3, al. d), do C.P.P.;
8º
Para o caso de assim não se entender, sempre deverão os autos ser remetidos ao Ministério Publico para sanação do alegado vício, o que não lhe está vedado, sendo certo que a M.ma Juiz nada determinou nesse sentido.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, o douto despacho ora recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a remessa dos autos para julgamento, com a designação de data para realização da audiência de julgamento.
Para o caso de assim não se entender, sempre deverão os autos ser remetidos ao Ministério Publico para que seja sanado o alegado vicio, com o que se fará inteira JUSTIÇA!
3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
4. Não foi apresentada resposta à motivação de recurso.
5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ao recurso ser negado provimento, mantendo-se o despacho recorrido, aduzindo, em síntese:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 e de 24-3- 1999 e ainda Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).
Assim sendo são apenas as questões suscitadas pelo arguido / recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
O nosso Ex.mo Colega pretende que este Alto Tribunal dê provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, o douto despacho ora recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a remessa dos autos para julgamento, com a designação de data para realização da audiência de julgamento
Salvo sempre melhor e mais elevado entendimento, não podemos sufragar a posição do nosso Ex.mo Colega junto da 1ª instância.
Respiga-se, do despacho acusatório, o seguinte trecho:
2 - Nesse momento, e quando navegava na internet, mais concretamente na rede social do “facebook”, apercebeu-se que os ora arguidos, através do perfil “…” publicitavam a venda de vários artigos de vestuário;
3 - Encetou, então, uma conversação com a arguida BB, tendo esta declarado ter em sua posse duas blusas de cor branca, o que não correspondia à verdade;
4 - E que estaria disponível para vender as referidas blusas pelo valor de 22,00 € (vinte e dois euros) + 3,00 € para os portes, o que sabia ser impossível dado não ser detentora de qualquer blusa das escolhidas pela ofendida CC;
5 - Depois de dialogarem um pouco, terem trocado informações sobre o meio de pagamento, a ofendida acabou por se mostrar interessada na aquisição das referidas blusas, pelo valor total de 25,00 € (vinte e cinco euros);
6 - A arguida solicitou, então, à ofendida que teria de depositar aquela quantia na conta bancária com o NIB …, do …, de que os arguidos são ambos co- titulares, para poder receber as referidas blusas, que lhe seriam enviadas pelo correio;
7 - De tal modo ficou a ofendida convencida de que a arguida teria em seu poder as referidas blusas, e de que esta lhas iria enviar, que logo decidiu efectuar o pagamento daquela quantia;
O tipo legal de crime de burla encontra-se vazado no artº 217 n.º 1, do Cód. Penal.
Segundo este dispositivo, “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido (…)”.
Atento o “desenho legal” resulta que integram, assim, os elementos objectivos do tipo de ilícito em causa:
- a existência de um prejuízo patrimonial;
- de um erro ou engano que determinem outrem à prática de actos causadores do referido prejuízo para si ou para terceiros;
- e que esse erro ou engano tenha sido alicerçado em práticas ou factos astuciosamente provocados;
Porém, cumpre referenciar que da acusação lavrada pelo nosso Ex.mo Colega não se encontram descritos quaisquer factos que, permitam concluir que, no caso concreto, mesmos em termos meramente indiciários, do uso de astúcia por parte da arguida que levou a que a ofendida fizesse aquela disposição patrimonial.
A arguida arrogar-se da posse das 2 blusas no valor de € 22 (vinte e dois) euros não é, no nosso modesto parecer, o suficiente para se poder concluir que se trata de uma “astúcia” (1).
Aliás, o próprio preço não constitui, por si só, um “isco” tratando-se de um preço “normal” de mercado.
Resulta, deste modo, que a arguida na plataforma social “Facebook” publicitava a venda de tais blusas e que a ofendida após contacto se prontificou a pagar a importância de € 22 + € 3 euros de portes.
A razão está, de facto, com a Mme Juiz “a quo” quando refere: “…Ora, compulsada a factualidade imputada aos Arguidos na acusação pública deduzida nos autos, constata-se que não ressumbra da mesma que os Arguidos tenham actuado com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, aquando da sua conduta alegadamente astuciosa traduzida no negócio de compra e venda celebrado com a ofendida através da internet…”.
Efectivamente, o libelo acusatório, à luz, designadamente, do disposto no artº 283 n.º 3, alíneas. b) e c) do C.P.P. – diploma onde se integram as disposições legais a seguir citadas sem menção de origem -, deve conter:
al. b) - “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
al. c); a indicação das disposições legais aplicáveis;
Nessa esteira refere o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, págs. 114 e 115, que “é elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção. É que são estes que constituem o objecto do processo daí em diante e são eles que serão objecto de julgamento”.
No caso em apreço e ora presente à alta apreciação de Vossas Excelências, como foi já referido anteriormente, a necessária descrição dos factos, ainda que sintética, não existe relativamente a este elemento essencial do tipo, que é o necessário uso de “astúcia” bastante por parte do/a arguido/a para poder determinar a vítima na sua decisão.
Vale isto por dizer que foi a astúcia utilizada pelo/a arguido /a que conduziu a vítima/ofendido/a à disposição / diminuição patrimonial em favor daquele e em seu efectivo prejuízo.
Porém, como referimos a mera publicitação de um dado artigo (sejam blusas ou bilhetes para espectáculos musicais e/ou desportivos), nas plataformas informáticas, sociais ou não, sem mais, não se reconduz ao preenchimento da “astúcia”, tal como ela se encontra descrita no tipo legal de crime em apreço.
No caso em apreço, sem qualquer juízo de valor ou de censura, a vítima estabeleceu contacto com alguém que não conhecia e que lhe apresentou um dado produto e que após contacto (presumivelmente) breve efectuou o pagamento (prévio) desse produto.
Nesta matéria, importa ter em particular atenção a lição do Prof. Almeida Costa (2) que realça que: “… o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente”.
E, mais adiante (3), o Ilustre Professor adianta: “…em conformidade, só na hipótese de o comportamento – pelo especial engenho ou astúcia que reveste – se mostrar susceptível de iludir o cuidado que, no sector em causa, normalmente se espera de cada um, se estaria perante uma situação merecedora de tutela jurídico penal…”.
Ora, conforme resulta dos autos mormente da acusação, são factos essenciais que não se mostram plasmados no libelo acusatório.
Tudo isto são factos que, pela sua essencialidade, haveriam de ter sido ponderados aquando da formulação da acusação, já que condicionantes do sucesso da mesma, mas não o foram, não se descrevendo nesta, de forma probatoriamente sustentada, se esse fosse o caso, os respectivos elementos do tipo de crime em causa, designadamente o recurso a astúcia sobre factos particularmente relevantes na provocação de engano.
Nesta conformidade e sem mais alegadas considerações, somos de entendimento que o despacho da Mme Juiz “a quo” de rejeição da acusação não merece reparo ou censura.
Atento tudo o que se deixou exposto e salvo sempre melhor e mais elevado entendimento deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, negar provimento ao recurso apresentado pelo MºPº e manter o douto despacho de 02.03.2024, referência citius …
6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questão que se suscitam são as seguintes:
Se deveria a acusação pública deduzida nos autos ser rejeitada por manifestamente infundada.
Em caso afirmativo e subsidiariamente, se deveria ser determinada a remessa dos autos ao Ministério Público, a fim de suprir os elementos em falta.
2. Elementos relevantes para a apreciação deste recurso
2.1 Aos 01/11/2023, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos AA e BB imputando-lhes a prática, em coautoria, de um crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal.
2.2 Em 02/03/2024, foi proferida a seguinte decisão objecto do recurso (transcrição):
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O Ministério Público detém legitimidade para promover a acção penal.
Questão Prévia:
O Digno Magistrado do Ministério Público acusou AA e BB pela prática de factos que em seu entender integram a prática em co-autoria de um crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217º, nº 1, do Código Penal, na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro.
Para tanto refere que:
«1- No dia 19 de Novembro de 2019, a ofendida CC, melhor id. nos autos, encontrava-se na sua residência sita na “…”, 1º andar, …, …, nesta cidade de …;
2 - Nesse momento, e quando navegava na internet, mais concretamente na rede social do “facebook”, apercebeu-se que os ora arguidos, através do perfil “…” publicitavam a venda de vários artigos de vestuário;
3 - Encetou, então, uma conversação com a arguida BB, tendo esta declarado ter em sua posse duas blusas de cor branca, o que não correspondia à verdade;
4 - E que estaria disponível para vender as referidas blusas pelo valor de 22,00 € (vinte e dois euros) + 3,00 € para os portes, o que sabia ser impossível dado não ser detentora de qualquer blusa das escolhidas pela ofendida CC;
5 - Depois de dialogarem um pouco, terem trocado informações sobre o meio de pagamento, a ofendida acabou por se mostrar interessada na aquisição das referidas blusas, pelo valor total de 25,00 € (vinte e cinco euros);
6 - A arguida solicitou, então, à ofendida que teria de depositar aquela quantia na conta bancária com o NIB …, do …, de que os arguidos são ambos co- titulares, para poder receber as referidas blusas, que lhe seriam enviadas pelo correio;
7 - De tal modo ficou a ofendida convencida de que a arguida teria em seu poder as referidas blusas, e de que esta lhas iria enviar, que logo decidiu efectuar o pagamento daquela quantia;
8 - Assim, no dia 28 de Novembro de 2019, não por transferência bancária, mas por MBway, a ofendida CC procedeu ao montante de 25,00 €, que os arguido integraram na sua esfera patrimonial;
9 - Esperou a ofendida pelo envio das referidas blusas, mas o que é certo é que as mesmas não mais chegaram, nem podiam chegar, já que não existiam;
10 - A ofendida ainda tentou entrar em contacto telefónico com a arguida, mas não mais o conseguiu, porque este estava sempre desligado;
11 - A Ofendida ficou prejudicado no montante de 23,00 € (vinte e cinco euros), já que os arguidos lhe devolveram a quantia de 2,00 €, pelos portes de correio não pagos;
12 - Integraram, assim, os arguidos aquela quantia de 23,00 € (vinte e três euros) no seu património, gastando-a em proveito próprio, não obstante saberem que a mesma não lhes pertencia;
13 - O que só conseguiram em virtude do artifício fraudulento por si criado;
14 - Os arguidos agiram de forma conjunta a concertada, por forma a melhor prosseguirem os seus objectivos;
15 - Os arguidos agiram sempre de forma livre, deliberada e consciente;
16 - Bem sabendo que a sua conduta não lhes era permitida, e que a mesma era punida por lei.»
Dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal que:
«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
ou
d) Se os factos não constituírem crime.»
Resulta do disposto no artigo 283.º, n.º3, do Código de Processo Penal a acusação tem que narrar, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (alíneas b) e c) do citado preceito).
E tal exigência legal deriva da circunstância de ser a acusação que fixa o objecto do processo, delimitando o âmbito da ulterior actividade investigatória a desenvolver pelo juiz, nomeadamente na fase de julgamento. Deve, pois, conter a descrição fáctica com a indicação precisa e completa dos factos que o Ministério Público entende estarem indiciados, integradores, tanto dos elementos objectivos do crime, como dos seus elementos subjectivos e que justificam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso a acusação não obedeça a tais requisitos é nula como expressamente se contempla no mencionado artigo 283º, nº 3.
O que se pretende, pois, é que a acusação contenha o facto, normativamente entendido, isto é, em articulação com as normas violadas pela sua prática e que irão, constando da acusação, conformar o “objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado” [Cfr. o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 130/98].
Pratica o crime sob escrutínio de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 217.º do Código Penal, “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.”
O tipo criminal da burla pode ser desdobrado nos seguintes elementos constitutivos, objectivos e subjectivos:
a) Uma falsa representação sobre factos no espírito do burlado;
b) A instalação dessa falsa representação pelo agente, por processo artificioso;
c) Um prejuízo no património do burlado ou de outrem;
d) O nexo de causalidade entre o prejuízo e a falsa representação;
e) O dolo do agente;
f) O elemento intencional, consistente no propósito de obter para si ou para terceiro um benefício patrimonial a que não tem direito.
Ora, compulsada a factualidade imputada aos Arguidos na acusação pública deduzida nos autos, constata-se que não ressumbra da mesma que os Arguidos tenham actuado com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, aquando da sua conduta alegadamente astuciosa traduzida no negócio de compra e venda celebrado com a ofendida através da internet.
Com efeito, embora se alegue que os Arguidos agiram sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta não lhes era permitida, e que a mesma era punida por lei, não decorre da acusação que os Arguidos tenham agido perante a ofendida com intenção de enriquecimento ilegítimo para si ou terceiro, faltando em tal libelo tal elemento subjectivo especial (ou dolo específico) do crime de burla.
Com efeito, o tipo subjetivo de ilícito, necessário ao preenchimento do crime de burla exige, o dolo do tipo, conceitualizado, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade referidos a todos os pressupostos do tipo objetivo, e o dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que com a sua conduta sabe que atua contra direito, com consciência da censurabilidade da conduta.
O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito. Mas é ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal e, nesta parte, é ainda elemento constitutivo do tipo-de-culpa dolosa. O dolo é, assim, uma entidade complexa, cujos elementos constitutivos se distribuem pelas categorias da ilicitude e da culpa.
Tudo isso, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude) – factos 15 e 16 da acusação.
Porém, o crime de burla exige ainda um dolo adicional, traduzido na intenção do agente obter um acréscimo para o seu património ou de terceiro, sem que se torne necessária a verificação do enriquecimento.
O tipo subjetivo de ilícito, no crime de burla, consiste, assim, no conhecimento e vontade do agente determinar outrem, por erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei [neste sentido ver Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 17.12.2020, relator Sérgio Corvacho, processo n.º 315/15.3GCSLV.E1, disponível em www.dgsi.pt].
Ora, o libelo acusatório, no plano sujectivo, não contém a alegação do facto constitutivo do elemento intencional, que, no caso concreto, seria terem os Arguidos actuado movidos pelo propósito de obter um benefício económico a que não tinham direito, concretizado no recebimento da quantia de €23, sem abrir mão de contrapartida.
Pelo que, em suma, se conclui que a factualidade imputada aos Arguidos na acusação pública deduzida nos autos não preenche a totalidade dos elementos subjectivos do tipo de ilícito do crime de burla simples de que os mesmos estão acusados nos autos.
E se, na verdade, a sua comprovação se pode inferir dos demais factos provados, com recurso a presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum, tal não implica que seja admissível prescindir da narração dos factos que consubstanciam o dolo.
Sem essa narração, salvo o devido respeito por entendimento contrário, não se mostra perfectibilizada a imputação criminosa em causa, já que não é admissível, como vem sido entendimento da jurisprudência, a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção, pelo que, em face da referida omissão, não há fundamento para aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança, nos termos do artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Quanto à consequência a extrair de tal omissão, a mesma não poderá deixar de a rejeição da acusação, já que tal omissão acarreta a nulidade da acusação, nos termos do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, nulidade que não se mostra possível de sanação/correcção à luz do nosso ordenamento jurídico. Também neste sentido, vide, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015 que – se e enquanto não vier a ser alterado – fixou jurisprudência no sentido de «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.».
Por conseguinte, e em face do exposto, decide-se rejeitar a acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério, por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º3 al. d) do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Notifique.
Apreciemos.
O tribunal recorrido rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos AA e BB, em que se lhes imputa a prática, em coautoria, de um crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, por entender ser manifestamente infundada, uma vez que os factos não constituem crime, visto que da descrição efectuada não consta factualidade enformadora de que os arguidos tenham actuado com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, aquando da sua conduta alegadamente astuciosa traduzida no negócio de compra e venda celebrado com a ofendida através da internet.
Estabelece-se no artigo 311º, nº 2, do CPP, que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente”.
E, a acusação considera-se manifestamente infundada, nos termos do nº 3, do mesmo artigo:
“a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d) Se os factos não constituírem crime”.
Pois bem.
De acordo com o artigo 217º, nº 1, “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido (…)”.
Daqui resulta que é este tipo de crime integrado pelos seguintes elementos:
- Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
- Por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
- Determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
“O tipo de crime de burla apenas admite a forma dolosa da sua prática (pois, de acordo como o disposto no artigo 13º, do Código Penal, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”), sendo admissíveis as suas diversas modalidades, como definidas no artigo 14º, do mesmo Código.
Tem-se sedimentado na doutrina penalista o entendimento do dolo do tipo de ilícito como composto pelo conhecimento (momento intelectual ou cognitivo) e vontade (momento volitivo) de realização do facto, o que plasmado está no referenciado artigo 14º, de onde, para que o dolo do tipo esteja presente necessário se torna, desde logo, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo objectivo de ilícito (isto é, o conhecimento dos elementos materiais constitutivos do mesmo).
Com efeito, é necessário que ao actuar, o agente conheça “tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter de ilícito”, porquanto só quando os elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito – assim, Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 351 - exigindo-se ainda que a prática do facto seja presidida por uma vontade dirigida à sua realização.
Daí que, como se refere no Ac. da Relação de Coimbra de 13/09/2017, Proc. nº 146/16.3 PCCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual)”.
Mas, como se viu, subjectivamente. para além do dolo genérico, exige-se ainda um dolo específico - a aludida intenção do agente.
Assim, este tipo legal caracteriza-se pela disposição patrimonial, determinada por erro ou engano astuciosamente provocado, com intenção do agente obter enriquecimento ilegítimo – sem qualquer justificação face ao direito civil - para si ou para terceiro.
Trata-se, portanto, de um delito de resultado parcial ou cortado, por existir uma “descontinuidade” entre o tipo subjectivo e o tipo objectivo, em que se requer a aludida intenção de enriquecimento, mas consumando-se o crime, desde logo, com o dano patrimonial da vítima, independentemente da efectiva verificação do enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro.
Ora, como bem se assinala na decisão recorrida, o libelo acusatório, no plano sujectivo, não contém a alegação do facto constitutivo do elemento intencional, que, no caso concreto, seria terem os Arguidos actuado movidos pelo propósito de obter um benefício económico a que não tinham direito, concretizado no recebimento da quantia de €23, sem abrir mão de contrapartida –no sentido da imprescindibilidade desta descrição vd. Ac. da Relação de Évora de 17/12/2020, Proc. nº 315/15.3GCSLV.E1, consultável em www.dgsi.pt.
É certo que essa “intenção” poderá até ser comprovada por qualquer forma, mesmo efectuando um raciocínio de inferição alicerçado na demais factualidade de teor objectivo e subjectivo articulada, com recurso a presunções naturais ou às regras da vida, mas, exigindo-se a prova da mesma, como se exige em nosso entender, constitui matéria de facto que, por isso, tem de ser descrita na acusação.
E, vero é até que no Ac. do STJ nº 1/2015, de 20/11/2014, DR nº 18, I Série, de 27/01/2015, se fixou a seguinte jurisprudência: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”.
No mesmo se podendo ler, que “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.”
Acrescentando-se ainda: “conexionada com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrada no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.
Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.
11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP)” (…) a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa” – fim de citação.
De onde, se impõe a conclusão de que a factualidade descrita na acusação pública formulada nos autos não preenche a totalidade dos elementos do tipo penal do crime de burla, pelo que se mostra correcta a sua rejeição nos termos explanados na decisão revidenda.
Cumpre, pois, negar provimento ao recurso neste segmento.
Mas, na decisão recorrida não se determinou a remessa dos autos ao Ministério Público, a fim de suprir os elementos em falta, contra o que o recorrente igualmente se insurge.
Vejamos.
A propósito diz-se no Ac. da Relação de Lisboa de 30/01/2007, Proc. nº 10221/2006-5, consultável em www.dgsi.pt, que “perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal – leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido. Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem uma terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito.”
Entendimento subscrito pelo Ac. da Relação do Porto de 27/06/2012, Proc. nº 581/10.0GDSTS.P1, a ler no mesmo sítio, de acordo com o qual “se não tivesse sido requerida a instrução, a circunstância de os factos descritos na acusação não constituírem crime levaria à rejeição desta, nos termos do artigo 312º, nº 2, a), e 313º, nº 3, d), do mesmo Código (com o consequente arquivamento dos autos). E se, mesmo assim, a acusação não tivesse sido rejeitada e viesse a ser realizado julgamento, essa situação levaria à absolvição do arguido (com o consequente arquivamento dos autos).”
Aduzindo-se ainda no mesmo aresto que “em nenhuma destas situações se prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processo, em vez do seu arquivamento. Tal possibilidade de modo algum se harmonizaria com o espírito do sistema processual penal, assente nalguma forma de proteção das expetativas do arguido em face de uma acusação determinada e não sujeita a correções ou reformulações”.
Ou seja, os autos, vindos do Ministério Público, deram entrada em juízo e foram distribuídos ao juiz competente para o julgamento, sendo que este, quando se pronunciou, fê-lo já num processo judicial e não em sede de inquérito. Verificando-se que esse processo judicial não pode prosseguir, deverá ser arquivado no tribunal, porquanto já não é um inquérito – cfr. Ac. da Relação de Évora de 22/06/2021, Proc. nº 1207/18.0PBFAR.E1, também em www.dgsi.pt.
E, com efeito, a actividade processual obedece a uma organização predefinida, em que se encontram delimitadas e reguladas as várias fases da marcha do processo. Assim, no que concerne ao processo comum distingue-se nitidamente a fase de inquérito, ordenada no Título II do Livro VI do Código de Processo Penal da fase do julgamento contemplada no Livro VII do mesmo Código – onde se inserem, precisamente, as normas do artigo 311º, o que leva a concluir que o legislador entendeu estarem estas já inseridas nesta fase - para além de fases processuais eventuais, sendo estabelecida uma sequência lógica e cronológica dos actos processuais.
Face a tal ordenação sequencial de actos, encerrado o inquérito mediante acusação, nos termos do artigo 283º, do CPP e transitado o processo para a fase de julgamento, embora não se desconheça a posição jurisprudencial divergente (vertida, mormente, nos Acs. da Relação de Évora de 10/04/2018, Proc. nº 1559/16.6GBABF.E1; da Relação de Coimbra de 13/01/2021, Proc. nº 99/19.6GASAT.C1 e da Relação de Guimarães de 08/03/2021, Proc. nº 96/16.3T9MGD.G1, todos disponíveis no mencionado sítio), entendemos que não comporta o regime processual penal vigente a possibilidade de o mesmo processo retroceder à fase de inquérito na sequência de rejeição da acusação por virtude de os factos não constituírem crime – cfr., também, o Ac. da Relação de Guimarães de 19/06/2017, Proc. nº 175/13.9TACBC.G1, disponível no sítio referenciado,
Aliás, esta solução de retrocesso à fase de inquérito não se apresenta como admissível tendo em conta que o Ac. do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR nº 212, I Série A, de 04/11/2005, fixou jurisprudência nos seguintes termos: “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, entendimento que também abrange a narração deficiente ou insuficiente, como se sustenta no Ac. do STJ de 12/06/2014, Proc. nº 7/14.0YGLSB.S1, que pode ser lido em www.dgsi.pt - cfr. também os Acs. do Tribunal Constitucional nº 636/2011 e nº 175/2013, disponíveis no respectivo sítio - e vero é que a remessa dos autos ao Ministério Público para esse efeito se configura como um verdadeiro convite ao aperfeiçoamento da acusação, sendo perfeitamente aplicáveis ao caso em apreço os seus fundamentos.
Assim, não merece crítica o tribunal recorrido ao não determinar a remessa dos autos o Ministério Público.
E, cumpre dizer, para sossego das consciências, não ficará a acção penal por se exercer, pois parece inexistir obstáculo a que o Ministério Público instaure novo processo e assim avance com a perseguição penal contra o arguido pelos mesmos factos, mas requerendo ao respectivo processo na 1ª instância a extracção de certidão e deduza acusação onde se narrem, então, como se impõe, todos os factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos (mormente os nos presentes autos omissos) do tipo legal de crime imputado, como se decidiu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 246/2017, que pode ser lido no seu sítio.
Destarte, cumpre negar na íntegra provimento ao recurso.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a decisão recorrida.
Sem tributação.
Évora, 5 de Novembro de 2024
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)
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(Artur Vargues)
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(Jorge Antunes)
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(Laura Goulart Maurício)
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1 Com interesse, vide por todos, Ac. Relação de Lisboa de 29.04.2021, relator Almeida Cabral
2 Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pags. 274 e segs, especificamente pag. 295
3 Pag. 297