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CONTRADITA
ACAREAÇÃO
MEIOS DE PROVA
Sumário
Contradita e acareação não são meios de prova. Constituem incidentes, destinados a destruir ou enfraquecer a credibilidade dos depoimentos prestados por testemunhas ou pelas partes.
Texto Integral
Apelação nº 408/21.8T8SJM-C.P1
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I – Resenha do processado
1. AA instaurou ação especial de divórcio sem mútuo consentimento contra BB, com fundamento em separação de facto desde 2014.
Ainda antes da citação da Ré, faleceu o Autor. Suspensos os autos, veio a ser habilitada a mãe do Autor, CC, para, em nome dele, prosseguir os trâmites do processo.
A Habilitada veio requerer o prosseguimento dos autos para efeitos patrimoniais, nos termos do art.º 1785º nº 3 do Código Civil (CC).
Citada, a Ré contestou, impugnando a separação de facto e alegando que o casal tinha um relacionamento conjugal pleno.
Os autos prosseguiram para efeitos patrimoniais. Foi elaborado despacho saneador, sem reclamações.
No decurso da audiência de discussão e julgamento, no dia 24/06/2024, e após as declarações de parte da Ré, a Habilitada efetuou o seguinte requerimento:
«Na sequência das declarações de parte da Ré acabadas de prestar, verifica-se que pela mesma foi afirmado e reiterado que nos momentos que antecederam o óbito do falecido AA e em que este esteve em tratamento não trocou quaisquer mensagens com a testemunha já inquirida nestes autos DD, através das quais lhe tenha transmitido que estaria grávida e que não tinha dinheiro para comer nem para ela, nem para o filho, solicitando ainda que fizesse transferências de montantes monetários, designadamente da quantia de 150,00 € da conta do falecido AA para a conta daquela.
Porém, do teor do documento 1 que ora se apresenta e que consubstancia essa mesma troca de mensagens entre a Ré e a indicada testemunha (documento esse que no passado dia 20 do corrente mês foi disponibilizado pela citada testemunha à aqui requerente CC e de cuja existência esta só tomou conhecimento na sequência do depoimento da testemunha em questão) resulta precisamente o oposto.
De outra banda, declarou a Ré que período de 22/24 de Dezembro de 2020 a 08/01/2021 permaneceu de forma ininterrupta em ..., acompanhada da sua amiga e do seu falecido marido, jamais se tendo ambos deslocado a ..., designadamente ao Casino, e bem assim, jamais tendo feito nesse período qualquer deles, qualquer viagem de comboio entre ... e ....
Porém, do teor do documento 2 que ora se apresenta e que consubstancia um extrato bancário respeitante à conta conjunta do casal referenciado pela Ré, extrato esse que, não obstante ter sido solicitado à entidade bancária respetiva no dia 24/01/2024, a verdade é que somente na passada quarta-feira foi disponibilizado à aqui requerente, dele constando movimentos bancários no período compreendido de 01/01/2021 até à data do respetivo óbito do falecido AA e donde resulta para além do mais, que nesse período em causa, foram efetivamente efetuadas compras no casino de Lisboa, levantamentos no Estoril, bem assim como uma aquisição à CP caminhos de ferro, em ... no dia 06/01/2021 e uma outra compra CP ... no dia 07/01/2021, mais dele resultando ainda que contrariamente ao que aqui foi referido pela Ré, o montante de 14.000,00 do alegado empréstimo foi efetivamente creditado na integra nesta conta do casal no dia 07/01/2021, e que em 16/01/2021, não obstante tal creditação, apresentava um saldo de 720,00 €.
Face ao exposto, requer a aqui requerente CC a junção aos autos de tais documentos que se assumem de capital relevância para a descoberta da verdade material, tendo em conta os princípios contidos nos artigos 413º e 417º do C.P.C., sendo que só agora se justifica a sua apresentação, não só pelas razões atrás explanadas e que prendem com a sua recente obtenção, mas também de modo a poder confrontar a Ré com o seu respetivo teor e assim melhor habilitar o Tribunal a aferir da credibilidade de tais declarações.
Mais se requer ainda que se constata que entre as declarações prestadas pela testemunha DD e as declarações de parte agora prestadas nesta sede pela Ré, se verificam oposição direta, designadamente no que concerne à citada troca de mensagens, principalmente no que diz respeito à questão da alegada existência de um filho que aquela testemunha referiu como sendo a convicção do falecido AA que efetivamente tinha com a Ré, pelo que se requer ainda, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 523º do C.P.C. que se proceda à acareação entre a Ré e a citada testemunha.»
Ouvida a Ré, pela mesma foi dito impugnar a junção dos documentos aos autos e nada ter a opor quanto à requerida acareação.
Em seguida, o Mmº. Juiz proferiu o seguinte despacho:
«O facto que a autora pretende que incida a acareação, do nosso ponto de vista, não releva para efeitos de demostrar a alegada separação de facto do casal, que é a causa de pedir da presente ação, para além de que a aqui Ré esclareceu que teve gravidezes que não foram bem sucedidas, sendo que quer esse facto de estar grávida ou não, quer a referida conta bancária e respetivos movimentos nela elencados, no nosso ponto de vista não relevam para demonstrar a alegada existência de separação de fato do casal, sendo que também o depoimento testemunhal e as declarações de parte são livremente apreciadas pelo tribunal.
Donde, assim nos parecendo, indefere-se, com todo o respeito, o ora requerido pela autora.»
2. É desta decisão que a Habilitada, inconformada, vem apelar, formulando as seguintes conclusões:
1 - Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho proferido em 24/06/2024, na parte em que, não admitiu a junção aos autos dos documentos cuja junção foi requerida pela aqui recorrente em sede de audiência de discussão e julgamento daquele dia, bem assim como indeferiu a acareação igualmente requerida.
2 - Em sede da sessão de julgamento do dia 24/06/2014, a aqui requerente efetuou, na sequência das declarações de parte prestadas pela Ré, o seguinte requerimento que, com a devida vénia, se passa a transcrever (a transcrição está efetuada acima):
3 - No exercício do contraditório, a Ré impugnou a junção dos documentos aos autos, e referiu nada ter a opor quanto à requerida acareação.
4 - Na sequência do assim requerido, foi proferido o douto despacho recorrido com o teor que, com a devida vénia, se passa igualmente a transcrever (a transcrição está efetuada acima):
5 - No que tange à requerida junção aos autos dos documentos em causa, cumpre, desde já referir que o douto despacho recorrido limita-se simplesmente a indeferir a pretensão da recorrente, sem, contudo, apresentar qualquer justificação para essa tomada de decisão, o que o torna nulo nos termos do preceituado na al. b) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C., aplicável aos despachos ex vi do nº 3 do artigo 613º, nº 3 do mesmo diploma legal, nulidade essa que assim expressamente se invoca, com as legais consequências.
6 - Com efeito, o douto despacho recorrido não justifica nem fundamenta o porquê da decisão de não admissão dos documentos cuja junção foi requerida, violando o constante do artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, bem assim como o disposto no artigo 154º do C.P.C.;
7 - Sendo que o direito à prova, constitucionalmente consagrado no art. 20° da CRP - princípio acolhido no art. 413º do CPC -, é uma componente do direito geral à proteção jurídica, de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva.
8 - Desse direito decorre, por um lado, o dever de o tribunal atender a todas as provas produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência, e, por outro, a possibilidade de utilização, pelas partes, em seu benefício, dos meios de prova que mais lhes convierem.
9 - Pelo que a recusa de qualquer meio de prova deve ser fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o tribunal fazê-lo de modo discricionário.
10 - Mas, mesmo que assim se não entenda, o que não se concede e só por mera hipótese de raciocínio se admite, sempre se dirá o seguinte, a propósito da requerida junção de documentos:
11 - O artigo 423 do Código Processo Civil estabelece a disciplina respeitante à junção aos autos dos documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa;
12 - No caso dos autos, a aqui recorrente pretendeu juntar documentos na sessão de julgamento em causa, alegando, para justificar a oportunidade dessa mesma junção, que só dias antes lhe foram os mesmos facultados (sendo que, com relação ao documento 1 que consubstancia a troca de mensagens entre a Ré e a testemunha DD, referiu ainda que só deles tomou conhecimento aquando da prestação do depoimento de tal testemunha) e justificando validamente a pertinência da sua junção, por infirmarem as declarações de parte prestadas pela Ré nessa sede, designadamente:
. na parte em que por esta foi declarado não ter solicitado à testemunha DD, no período que antecedeu o óbito do falecido AA quantias monetárias, bem assim como lhe tenha dito que estava grávida e que não dispunha de dinheiro para comer, nem para a própria, nem para o filho;
. na parte em que declarou ter permanecido, no período de 22/24 de Dezembro de 2020 a 08/01/2021 p de forma ininterrupta em ..., acompanhada da sua amiga e do seu falecido marido, jamais se tendo ambos deslocado a ..., designadamente ao Casino, e bem assim, jamais tendo feito nesse período qualquer deles, qualquer viagem de comboio entre ... e ..., quando, na verdade, do teor do documento 2 cuja junção então requereu e que consubstancia um extracto bancário respeitante à conta conjunta do casal referenciado pela Ré (conta essa à qual só a Ré e o falecido AA tinham acesso) - extracto esse que, não obstante ter sido solicitado à entidade bancária respectiva no dia 24/01/2024, a verdade é que somente na passada quarta-feira foi disponibilizado à aqui recorrente, - constam movimentos bancários no período compreendido de 01/01/2021 até à data do respectivo óbito do falecido AA, dos quais resulta, para além do mais, que nesse período em causa, foram efectivamente efectuadas compras no casino de Lisboa, levantamentos no Estoril, bem assim como uma aquisição à CP caminhos de ferro, em ... no dia 06/01/2021 no valor de 21,00€ e uma outra compra CP ... no dia 07/01/2021 no valor de 21,00€; bem assim como que nessa conta foi efectivamente creditado na conta em causa, no dia 07/01/2021, a quantia de 14.000,00 do alegado empréstimo; tudo a denotar que a Ré mentiu deliberadamente ao Tribunal.
13 - Mais justificou a recorrente a pertinência da junção de tais documentos com o facto de os mesmos se assumirem de capital relevância para a descoberta da verdade material, tendo em conta os princípios contidos nos artigos 413º e 417º do C.P.C., tendo acrescentado que só nesse momento processual se justificou a sua apresentação, não só pelas razões atrás explanadas e que prendem com a sua recente obtenção, mas também de modo a poder confrontar a Ré com o seu respectivo teor e assim melhor habilitar o Tribunal a aferir da credibilidade de tais declarações.
14 - Não obstante, o Tribunal a quo nem sequer quis perscrutar tais documentos, em ordem a poder aferir da sua relevância probatória, proferindo sem mais o despacho recorrido.
15 - Do acabado de expender resulta desde logo que a requerida junção aos autos de tais documentos, além de surgirem no exercício do contraditório, são pertinentes, não só para aferição por parte do Tribunal da credibilidade das declarações de parte da Ré, as também por tratarem de matéria respeitante a factos essenciais e instrumentais sobre os quais incidem a prova, relevância essa que foi devidamente contextualizada.
16 - Estando em causa nos presentes autos a separação de facto do casal e tendo em consideração que a Ré alegou, em sede de contestação que sempre que vinha de férias no Natal a Portugal, o casal se alojava na cidade ..., o que ocorreu no período de 22/24 de Dezembro de 2020 a 8 de Janeiro de 2021, como concretizou em sede das suas declarações de parte, período durante o qual permaneceu o casal ininterruptamente nesta cidade juntamente com uma amiga, revelava-se de especial importância para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa a requerida junção aos autos do documento bancário (doc. 2), na medida em que este espelhava, como oportunamente alegado, que ao longo do período em causa foram efectuados vários movimentos bancários (designadamente, vários levantamentos no Estoril, várias compras no ...; compras várias no ...; uma compra na CP ... no dia 06/01/2021, no valor de 21,00 euros e outra compra CP ... no dia 07/01/2021, igualmente no valor de 21,00 €, bem assim como outros movimentos vários de compras), a denunciar, de acordo com as regras da experiência e do normal acontecer, que, contrariamente ao declarado pela Ré, pelo menos um deles teria que ter estado em ... no período em causa (já que, como referenciado pela Ré apenas o casal tinha acesso à conta bancária em questão e a movimentava, e que se deslocou sozinho, de comboio (atento o valor da viagem adquirida na CP) à cidade ... apenas no dia 06/01 a fim de assinar o contrato de mútuo, após o que regressou de novo no dia seguinte (07/01) a ..., igualmente de comboio e sozinho (dado o valor da respectiva compra).
17 - De outra banda, alegou a Ré em sede de contestação que o falecido AA disponibilizava mensalmente, através de transferências bancárias programadas, inicialmente a quantia de 800,00 € e depois a quantia de € 400,00 € e outras variáveis, de modo a contribuir para as despesas da família, dessa forma tentando demonstrar a contribuição por parte do falecido AA para as despesas da família, aspecto relevante para a determinação da existência da separação de facto em causa.
18 - Porém, foi afirmado por várias testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento que essa quantia mensal consubstanciava uma pensão de alimentos para o filho que o falecido AA julgava ter com a Ré, tendo inclusivamente a testemunha DD afirmado que trocou mensagens com a Ré no período em que o falecido AA estava em tratamento e que antecedeu o seu óbito, no âmbito das quais esta lhe pediu que fizesse transferências bancárias da conta daquele porque não tinha dinheiro nem para a própria comer, nem para o filho, tudo a indiciar que efectivamente inexistia tal economia doméstica (posto que se assim fosse, não faria sentido essas transferências programadas) e que efectivamente existia na cabeça do falecido AA e de quem o rodeava um filho menor, a quem o mesmo pagaria tal pensão de alimentos.
19 - Mas mais, foi igualmente referenciado pela mesma testemunha DD que a Ré lhe terá dito em tais mensagens, que estaria grávida, facto que foi negado pela Ré.
20 - Esta circunstância sempre seria relevante na apreciação global e conjugada da prova produzida, designadamente para aferir da pretensão de divórcio do falecido AA, facto essencial e constante dos temas de prova objecto de instrução, muito mais quando foi referenciado por várias testemunhas, para além do demais, que aquele se queixava de que a Ré só queria dinheiro e que estaria farto disso;
21 - Consequentemente, tais elementos documentais eram absolutamente relevantes para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, não só por serem susceptíveis de por em causa a credibilidade da Ré, mas também por conterem substracto probatório relevante para prova e contraprova dos factos em causa nos presentes autos.
22 - Tanto mais que a partes não estão inibidas de produzir prova sobre factos instrumentais ou circunstancias que incidam sobre factos objecto de instrução.
23 - Dito de outra forma: havendo enunciação dos temas de prova, o objecto da instrução são esses mesmos temas de prova, densificados pelos factos, principais e instrumentais, sendo garantida ampla liberdade às partes em sede de instrução, no sentido de se permitir que na produção de maios de prova sejam averiguados os factos circunstanciais e instrumentais, designadamente todos os que possam servir de base à formulação da convicção do Tribunal.
24 - Pelo que a requerida junção jamais poderia ter sido rejeitada nos moldes em que o foi, sendo o mesmo, além de tempestivo, pertinente.
25 - Do mesmo passo, o douto despacho recorrido indeferiu o requerido incidente probatória da acareação entre a Ré e a testemunha DD, o que fez em manifesta violação da lei, na medida em que o mesmo deveria ter sido deferido, dada a oposição manifesta, directa e flagrante daquilo que foi narrado por uma e por outra, sobre a mesma factualidade.
26 - Com efeito, podendo a acareação ter lugar em qualquer altura da instrução, já que a lei não estabelece um limite específico, tal incidente foi deduzido tempestivamente e foi também deduzido de forma devidamente fundamentada, como decorre do teor do requerimento que acima se transcreveu e que aqui se dá por reproduzido e integrado, indicando com precisão quais os depoimentos/declarações que estão em conflito e quais os concretos factos sobre os quais existe oposição directa, factos esses que, à semelhança do que acima se deixou expresso relativamente à requerida junção de documentos e que aqui se dá por reproduzido, se revelam, senão essenciais para a descoberta da verdade, pelo menos circunstanciais e instrumentais.
27 - Consequentemente, deveria ter o Tribunal ter admitido a requerida acareação.
28 - Aliás a sua admissibilidade, bem assim como a admissibilidade dos documentos acima referenciados seria sempre possível ao abrigo do princípio do inquisitório estatuído no artigo 411º do C.P.C., o que sempre seria de determinar oficiosamente pelo Tribunal a quo, por tais meios de prova consubstanciarem “diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é licito conhecer” e por estarem verificados os requisitos legais do citado artigo 411º, independentemente de tais meios de prova terem sido propostos pela aqui recorrente;
29 - Face ao exposto, deve revogar-se o douto despacho recorrido e o mesmo substituído por outro que admita deferira os requeridos meios de prova.
Termos em que, e nos mais de direito aplicáveis, deve o presente recurso de apelação ser julgado totalmente procedente e, em consequência, deve ser revogado o despacho recorrido e o mesmo ser substituído por outro que admita deferira os requeridos meios de prova, assim se fazendo INTEIRA JUSTIÇA!»
3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
· Se o despacho proferido é nulo, por ausência de fundamentação;
· Se tal despacho deve ser alterado, por ter incorrido em erro de julgamento.
4.1. Da nulidade por falta de fundamentação
À exceção dos atos meramente ordenadores do processo e dos despachos de mero expediente, compete ao juiz fundamentar todas as decisões tomadas: art.º 154º nº 1 do CPC (“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre justificadas”).
A relevância de tal fundamentação fica demonstrada com o facto de a lei cominar com a nulidade a sentença ou despacho que não obedeça a tal comando: art.º 615º nº 1 al. b) do CPC.
Essa fundamentação deve ser expressa e, ainda que sucinta, deve ser suficiente para permitir o controlo do ato.
«Na apreciação do cumprimento do dever de fundamentação (ou, por contraponto, da falta de fundamentação) de um despacho não podem deixar de ser ponderados os princípios da adequação e da proporcionalidade – é em função do processo concreto e da particular questão a decidir que deve ponderar-se a eventual ausência de fundamentação do despacho que a decide, ao conceder ou negar a pretensão deduzida pela parte.» [[1]]
Nessa medida, e pese embora se reconheça que a fundamentação do despacho não discrimina acareação e junção dos documentos, o certo é que atendeu a ambas as situações ao aludir à “conta bancária e respetivos movimentos nela elencados”.
Improcede a pretendida anulação.
4.2. Do erro de julgamento § 1º - “Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta necessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”: art.º 3º nº 2 e 3 do CPC.
O princípio do contraditório pretende concretizar a efetividade do direito de defesa e, segundo os ensinamentos de Lebre de Freitas, pode ser equacionado em diversos planos: como direito de influenciar a decisão, o plano da alegação, no plano da prova e no plano do direito.
«No plano da prova, o princípio do contraditório exige: a) que às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa; b) que lhes seja consentido fazê-lo até ao momento em que melhor possam decidir da sua conveniência, tidas em conta, porém, as necessidades de andamento do processo; c) que a produção ou admissão da prova tenha lugar com audiência contraditória de ambas as partes; d) que estas possam pronunciar-se sobre a apreciação das provas produzidas por si, pelo adversário ou pelo Tribunal. (…)
A segunda derivação do direito à prova implica: (…); b) que os meios de prova (constituendos) cuja prova deva — ou possa — ter lugar antes da audiência de discussão e julgamento possam ser propostos no início da instrução do processo; c) que os meios de prova a produzir em audiência possam ser oferecidos com a antecedência considerada suficiente para assegurar o conhecimento da sua proposição pela parte contrária.» [[2]]
Nisto se traduz a possibilidade “de acompanhar e controlar a própria produção do meio de prova”, corolário do princípio do contraditório, e que os ganhos de eficácia e celeridade processual não podem prejudicar nem beliscar.
Esse princípio do contraditório, o “controlar a produção de prova” tem de ser encarado numa perspetiva de efetividade, de operacionalidade prática, implicando que possa assumir uma amplitude maior ou menor consoante as circunstâncias de cada caso concreto.
Ainda como corolário do contraditório, há que atender ao princípio da audiência contraditória (art.º 415º CPC), obrigando que se faculte às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre os meios de prova apresentados pela contraparte —para efeitos, por exemplo, de possível impugnação da admissibilidade dessa prova ou de arguição de falsidade de um documento — e, bem assim, a de acompanhar e controlar a própria produção do meio de prova — por exemplo, impugnando a admissão duma testemunha a depor ou usando do incidente da contradita ou da acareação, dizendo o que se lhe oferecer quanto ao teor e à força probatória dos documentos ou duma perícia.
§ 2º - Perante depoimentos de testemunhas diametralmente opostos, ou não absolutamente coincidentes, entramos no domínio essencial da prova como resultado. [[3]]
Para deslindar o problema de saber se a Ré “falava verdade”, a Habilitada pretendeu juntar documentos e pediu a acareação com outra testemunha.
Segundo o art.º 521º do CPC, “A parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer”.
E também a acareação, a despoletar “Se houver oposição direta, acerca de determinado facto, entre os depoimentos das testemunhas ou entre eles e o depoimento da parte, pode ter lugar, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, a acareação das pessoas em contradição” (art.º 523º do CPC).
A contradita constitui um incidente, e não um meio de prova (cf. art.º 522º), no âmbito do qual podem então ser apresentados outros meios de prova, designadamente documental, tendentes a demonstrar não poder corresponder à realidade o que a pessoa referiu ou a sua falta de isenção relativamente à contraparte.
Situamo-nos então no domínio da credibilidade das provas produzidas, e não no dos meios de prova para apurar factos. Dois dos meios para atacar a credibilidade de depoimentos testemunhais/declarações de parte/depoimentos de parte, são a contradita e/ou a acareação.
A Habilitada pretendeu questionar a credibilidade da Ré, mediante a apresentação de documentos que, a seu ver, infirmavam as declarações acabadas de prestar.
Fê-lo atempadamente (art.º 522º nº 3 CPC), pelo que os documentos devem ser aceites e confrontada a Ré com o seu teor e o seu significado.
O mesmo se diga quanto à acareação com outra testemunha, que também deve ser admitida.
Assim, errou o Tribunal nos pressupostos. Contradita e acareação não são meios de prova, antes constituindo incidentes, destinados a destruir ou enfraquecer a credibilidade dos depoimentos prestados por testemunhas ou pelas partes, «de modo a que o juiz não venha a tê-lo em conta, ou o tenha só reduzidamente em conta, no juízo que fará sobre a prova dos factos que dele foram objeto. Trata-se, pois, de fazer valer razões fáticas que levem o juiz, ao apreciar livremente a prova, a não dar plena credibilidade ao depoimento da testemunha.» [[4]]
A falta de credibilidade implica sempre a desvalorização do depoimento.
Concluindo, o despacho não pode manter-se.
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido e determinando que se efetue a contradita por documentos, bem como a pretendida acareação.
Custas do recurso a cargo da Ré, face ao decaimento.
Porto, 07 de novembro de 2024
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: Álvaro Monteiro
2º Adjunto: Maria Manuela Machado
______________________ [[1]] Acórdão desta Relação do Porto, de 15/12/2021, processo nº. 515/14.3TBVCD-G.P1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. [[2]] Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 3ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 128 e 130. [[3]] Como refere Germano Marques da Silva, o termo prova pode ser visto num tríplice significado: «A - Prova como actividade provatória: acto ou complexo de actos que tendem a formar a convicção da entidade decisora sobre a existência ou inexistência de uma determinada situação factual; B - Prova como resultado: a convicção da entidade decisora formada no processo sobre a existência ou não de uma dada situação de facto; C - A prova como meio: o instrumento probatório para formar aquela convicção.» [[4]] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra editora, pág. 621.