ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DESIDERATO
PRESSUPOSTOS
ACTOS ONEROSOS
ACTOS GRATUITOS
DOAÇÃO
RESERVA DE USUFRUTO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

I- A alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º – em abstracto – constitui-se como um vício formal (traduzido num error in procedendo) e susceptível de afectar a validade da Sentença.
II - A nulidade a que se reporta a 1.ª parte da alínea c) ocorre quando se detecta um vício lógico traduzido na incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, quando a fundamentação (as premissas) aponta num sentido que está em contradição com a decisão (a conclusão), violando o silogismo judiciário.
III - A impugnação da matéria de facto em sede de recurso é mais do que uma manifestação de inconformismo inconsequente exigindo, com seriedade, razoabilidade e proporcionalidade, a verificação dos requisitos previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, cabendo ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
III – No caso da prestação de um depoimento de parte na Audiência Final e sendo realizada a necessária assentada, da qual as partes e seus mandatários tomaram conhecimento, entendendo-se que nela existe alguma irregularidade (nomeadamente por dela não constar correctamente o que foi declarado pela parte), deve ela ser arguida no acto, invocando-se a sua influência no exame ou decisão da causa, nos termos dos artigos 195.º, n.º. 1, 197.º, n.º. 1 e 199.º, do Código de Processo Civil.
IV – Caso não ocorra o referido em III, fica precludida a possibilidade de se arguir tal irregularidade ou desconformidade em sede de recurso da sentença.
V - A acção de impugnação pauliana – que se rege pelo disposto nos artigos 610.º a 618.º do Código Civil – visa-se apurar da existência (temporal) de um crédito e da correspondente dívida que recaía sobre aquele ou aqueles que dispuseram - por acto gratuito ou oneroso -de determinados bens (através dos quais se pretendia obter a satisfação do crédito) e cuja cobrança foi afectada ou posta em crise por aquele acto, procurando eliminar-se o prejuízo causado com o acto impugnado, facilitando a impugnação de actos lesivos dos interesses dos credores, e levados a cabo pelos respectivos devedores.
VI – A acção pauliana é uma acção de declaração de ineficácia (relativa, stricto sensu) dos actos, em relação ao credor, não se visando declarar nulos os actos praticados em detrimento do devedor, mas apenas atacá-los de forma a se tornarem ineficazes em relação ao credor e apenas na medida da diminuição da garantia patrimonial do crédito (paralisando os efeitos de um negócio válido em relação a adquirente e devedor).
VII – Os pressupostos da acção pauliana, tal qual resultam dos artigos 610.º a 612.º do Código Civil, são a existência de um acto praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal, que esse acto provoque para o credor a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito (ou agrave essa possibilidade), havendo má fé (ou um acto gratuito), desde que haja um crédito anterior ao acto (ou sendo posterior, se o acto foi realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor).
VIII - Tratando-se de um acto oneroso (e para além da prova do montante da dívida - artigo 611.º, 1.ª parte), cabe ao Autor (credor), demonstrar no processo a má fé do devedor e a do terceiro adquirente (artigo 612.º, n.º 1), entendida esta como “a consciência do prejuízo que o auto causa ao credor" (artigo 612.º, n.º 2) (ou seja, o credor prova o passivo e o devedor prova o activo).
IX - No caso dos actos gratuitos não há necessidade de proceder à prova da má fé (por serem, por natureza, prejudiciais para os credores).
X – Sendo o acto impugnado uma doação com reserva de usufruto, da nua propriedade do direito de superfície de um imóvel, o “efeito restitutório” decorrente da procedência da acção pauliana, traduz-se na ineficácia dessa doação, relativamente ao credor impugnante, podendo este executar o direito em causa no património do donatário (na medida do interesse daquele).
XI – Sendo o acto impugnado com a impugnação pauliana a doação como um todo (acoplada à constituição do usufruto vitalício a favor dos Réus), a reserva de usufruto não tem sentido ser cindida ou autonomizada, não podendo subsistir uma sem a outra, dada a sua relação umbilical (só há reserva de usufruto, porque foi doada a nua propriedade).
XII - É a ineficácia deste todo que está em causa, pelo que a reserva do usufruto não pode deixar de ser afectada pela impugnação pauliana, uma vez que a sua manutenção se constituiria como uma evidente diminuição da garantia patrimonial do crédito da Autora (para os efeitos do artigo 610.º), já que, com este oneração, em sede de execução do direito de superfície sobre o imóvel em causa, o seu valor seria, necessariamente (e de forma relevante) muito mais baixo.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
S, LDA. instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra G, R e A, peticionando que:
- seja considerada ineficaz em relação a si a doação do direito de superfície, com reserva de usufruto, da fracção autónoma para habitação designada pela letra B, correspondente ao r/c direito do prédio em regime de propriedade horizontal denominado de lote…, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de sob o n.º e inscrito na respectiva matriz sob o artigo    da ;
- lhe seja reconhecido o direito a executar a mencionada fracção no património de todos os Réus.
Alega , em suma, a Autora, que:
- o 1.º e o 3.º Réus são os únicos sócios e gerentes da sociedade M, Lda., sociedade com a qual a Autora manteve relações comerciais durante anos, no âmbito das quais a mesma ficou em dívida para com a Autora em montante que, em Junho de 2020, ascendia já a € 371.979,51 a título de capital;
- nessa sequência intentou procedimento de injunção, vindo a ser aposta fórmula executória no requerimento inicial, pelo valor de € 443.159,44, título que foi dado à execução pendente sob o n.º 7164/20.5T8LRS no Juízo de Execução de Loures, J3;
- nessa execução foram somente penhorados bens no valor de € 46.916,48, não se tendo até ao momento encontrado outros bens/rendimentos penhoráveis à executada M;
- em 14 de Julho de 2020 foi celebrado acordo, sujeito a termo de autenticação na mesma data, no qual o 1.º Réu se obrigou, por si e em representação da M, a pagar à Autora a quantia de € 443.159,44, nos termos que a Autora explicitou;
- o 1.º Réu não pagou qualquer quantia por conta da dívida, sendo o mesmo devedor de, pelo menos, € 396.242,96 (deduzida a quantia de € 46.916,48 correspondente ao valor dos bens penhorados, acrescido de juros vencidos e vincendos à taxa anual de 7%, perfazendo os vencidos o montante de € 51.363,76);
- no dia 29.12.2021 os 1.º e 2.ª Réus outorgaram escritura doando ao 3.º Réu, seu filho, que aceitou, o direito de superfície da fracção autónoma para habitação designada pela letra B, correspondente ao r/c direito do prédio em regime de propriedade horizontal denominado de lote 26…, tendo reservado para si o direito de usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo e continuando, de resto, a residir na fracção em causa, a qual constitui a sua casa de morada de família;
- o 1.º Réu não tem qualquer outro património capaz de assegurar o cumprimento das suas obrigações, sendo que, com a referida doação foi diminuída a garantia patrimonial do seu crédito;
- todos os Réus estavam cientes que a referida doação iria agravar e comprometer parcialmente a possibilidade de a Autora obter a satisfação do seu crédito.
Citados, veio a Ré apresentar Contestação:
- arguindo a ilegitimidade da 2.ª Ré e do 3.º Réu:
- arguindo a nulidade do documento junto intitulado acordo de pagamento e termo de autenticação e alegando que:
- a 2.ª Ré não esteve presente em tal acordo, nem o assinou, apesar de figurar no mesmo como primeira outorgante presente e no termo de autenticação como tendo comparecido);
- no registo online dos actos dos advogados não se identificam como interessados os 1.º e segundos Réus, nem o 3.º, na qualidade de sócio gerente da M, mas tão somente esta, e que não consta a identificação do legal representante da Autora. que subscreveu tal documento, desconhecendo-se se o mesmo tinha poderes para o acto;
- o 1.º Réu não esteve presente no acto de assinatura do referido acordo de pagamento pelo representante da Autora, nem negociou ou acordou com o mesmo os termos do acordo de pagamento, que não lhe foram explicados, pugnando – assim – pela nulidade insuprível do termo de autenticação e concluindo que, nessa medida, o documento particular não se pode ter como validamente autenticado, nem constituir obrigação de pagamento pelos 1.º Réu e 2.ª Ré das dívidas da M à Autora.
Dispensada a realização de Audiência Prévia foi proferido Despacho Saneador, onde se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade, se dispensou a identificação do objecto do litígio e a seleção dos temas da prova, sem qualquer reclamação.
Realizada a Audiência de Julgamento, na sequência dos depoimentos de parte prestados, veio a Autora pedir a condenação do 1.º Réu como litigante de má fé, em multa e indemnização a favor daquela a fixar pelo Tribunal.
Proferida Sentença, dela consta a seguinte parte decisória:
“A) Julgar a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência declarar o direito da A. à restituição da co-titularidade do 1º R. da nua propriedade do direito de superfície sobre a fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão direito, para habitação com arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado Lote …, cuja aquisição se encontrava registada a seu favor pela Ap. 80 de 25.07.1989, e que foi transmitida para o 2º R., podendo executá-lo no património deste e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei;
B) Julgar a presente ação parcialmente improcedente e, em consequência, absolver a 1ª R. do peticionado e os 1º e 2º RR. do remanescente peticionado.
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Mais decido não condenar o 1º R. como litigante de má fé.
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Custas pela A. e pelos RR. na proporção dos respetivos decaimentos, fixando-se os mesmos respetivamente em 1/3 e 2/3 – artº 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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Registe e notifique.
Dê baixa.
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Considerando as contradições no âmbito do depoimento de parte prestado pelo 1º R. e a suscetibilidade de tal consubstanciar ilícito criminal, determino a extração de certidão da presente sentença e do seu envio, juntamente com a gravação daquele depoimento, ao Ministério Público, para os efeitos tidos por convenientes”.
É desta Sentença que vem pelos Autora interposto Recurso de Apelação, tendo apresentado Alegações, onde lavraram as seguintes Conclusões:
“1. Existe oposição entre os fundamentos e a decisão constantes da douta sentença em recurso, uma vez que, verificando-se os requisitos da impugnação pauliana, na fundamentação considera-se, quanto aos seus efeitos,  que o direito da A. deverá ser executado no património do primeiro R. recorrido, enquanto na parte decisória se julga que a execução deverá ocorrer no património do segundo.
2. Tal oposição configura uma nulidade insanável, nos termos do disposto no art.º 615º, nº 1, al. c), do CPC.
3. Deu-se como assente, no ponto 14 da factualidade provada, e considerada relevante para a decisão da causa que:
“14. C… leu e subscreveu o escrito referido em 10) na ausência do 1º R. e não negociou ou acordou com este último os termos do acordo.”
4. Com início às 10h42m e termo às 10h49m – este referiu “entreguei o assunto à advogada e depois ela chamou-me para assinar… foi feito de acordo com as minhas instruções… aceitei e assinei…”.
5. A MMª Juiz a quo, ao ditar para a acta a assentada, referiu expressamente o seguinte, no que a esta parte concerne:
“… referindo ainda que não negociou ou acordou os termos do acordo directamente com o Réu G, tendo tal sido feito pela sua advogada Dra. P” (subl. nosso) – mesma gravação com início às 10h42m e termo às 10h49m.
6. Assim, a redacção do referido facto deve ser alterada, nos termos do disposto no art.º 640º, do CPC, para o seguinte teor:
“14. C, legal representante da A., leu e subscreveu o escrito referido em 10) na ausência do 1º R. e não negociou ou acordou directamente com este último os termos do acordo, que foram negociados com o 1º R., mediante as suas instruções, pela sua advogada.”
7. Aceite que está a verificação de todos os pressupostos de que depende a procedência da impugnação pauliana, o que aqui já não se discute, e repercutindo-se os seus efeitos sobre bem que foi efectivamente transmitido a terceiro e cuja propriedade a este pertence, é indiferente que o mesmo tenha originariamente pertencido ao património comum do casal, constituído pelos 1ºs RR, recorridos,
8. Ou que a dívida pela qual responde seja da responsabilidade de apenas um deles ou de ambos.
9. Assim é, porque o acto não é declarado nulo ou anulado, apenas é declarado ineficaz relativamente ao credor que o impugna, de forma a permitir-lhe executá-lo no património do transmissário na medida do necessário à satisfação do seu crédito.
10. Garantindo a propriedade daquele concreto direito sobre o bem imóvel, validamente transmitido a um terceiro, a satisfação do crédito preexistente do A. recorrente, e só deste, na medida do necessário, não se pode limitar os efeitos da impugnação a qualquer parte, meação, ou quota do mesmo, não só porque tal vai contra os próprios termos do disposto nos artºs 610º e 616º do CC,
11. Como ainda porque, mesmo antes da transmissão, o facto de se tratar de um bem comum, significa apenas que o mesmo integrava o acervo de bens comuns do casal, não tendo nenhum dos cônjuges direito de propriedade sobre qualquer específica parte ou meação de tal concreto imóvel.
12. A reserva do usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo do imóvel transmitido não pode deixar de ser afectada pela impugnação, na medida em que a respectiva manutenção se traduziria na diminuição da garantia patrimonial do crédito da A., nos termos do disposto no art.º 610º do CC, posto que, ao executar o direito de superfície sobre o imóvel, o seu valor seria substancialmente mais baixo se onerado com este usufruto, o que não acontecia anteriormente.
13. Por outro lado, nos termos do disposto no art.º 613º, nº 2 do CC, a impugnação procede contra a constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiro, desde que se verifiquem os
requisitos da impugnabilidade relativamente à transmissão, sendo a constituição de usufruto um dos casos que este normativo visa acautelar.
14. É assim de concluir pela total procedência da acção, declarando-se a ineficácia relativamente à A. do contrato de doação do direito de superfície do imóvel sobre que versam os autos celebrado pelos 1ºs RR a favor do segundo, e reserva de usufruto a favor daqueles, permitindo-se à A. a execução do mesmo no património de todos os RR., atenta a existência do usufruto, condenando-se todos os RR no peticionado.
15. Litiga de má-fé o sujeito processual que, consciente da obrigação de pagamento que pessoalmente assumiu, deduz oposição à pretensão da A. recorrente, defendendo a nulidade do documento que sabe ter assinado e afirmando a inexistência da obrigação pessoal de pagamento que voluntariamente assumiu, respaldando-se na alegada invalidade do termo de autenticação a que tal documento foi sujeito.
16. Litiga ainda de má-fé o mesmo sujeito processual que, confrontado com a inocuidade do eventual vício formal do termo de autenticação, mente despudoradamente em sede de depoimento de parte, negando ter
assinado voluntária e conscientemente tal documento, efabulando toda uma narrativa fantasiosa, não se coibindo de fazer imputações graves a propósito de três profissionais do foro, que repetiu a várias instâncias, e
que, por fim, numa segunda sessão de julgamento, e perante um pedido de litigância de má-fé contra si deduzido, vem atabalhoadamente dar o dito por não dito, alegando falta de memória e demonstrando total
desprezo pela dignidade que os tribunais merecem.
17. A douta decisão sub judice violou assim, entre outras que V. Exas. suprirão, as normas ínsitas nos artigos 615º, nº 1, al. c) do CPC, 640º do CPC, 610º a 618º do CC, 542º do CPC e 818º do CC.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:
a) Declarar-se a nulidade da douta sentença em recurso, nos termos supra expostos, com as legais consequências; ou, não se entendo assim, e sem conceder
b) Alterar-se o texto do ponto 14 da matéria de facto dada como provada, nos termos supra expostos; e,
c) Revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que, julgando a acção totalmente procedente, por provada, declare a ineficácia em relação à A. recorrente da doação do direito de superfície, com reserva de usufruto, da fracção autónoma para habitação designada pela letra “B” correspondente ao r/c direito do prédio em regime de  propriedade horizontal denominado lote 26, sito …, outorgada em 29/12/2021 pelos Primeiros RR. recorridos a favor do Segundo R. recorrido, conforme supra descrito, na medida necessária para pagamento da dívida de que a A. recorrente é credora, no montante de €447.606,72, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento; reconhecendo-se à A. recorrente o direito a executar a mencionada fracção autónoma no património de todos os RR., nos termos supra expostos;
d) Condenar-se o 1º R. recorrido, como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da A. recorrente;
e) Condenar-se, por último, os RR. recorridos nas custas processuais;
Como é de Direito e de JUSTIÇA!”.
Os Réus apresentaram Contra-Alegações, culminadas com as seguintes Conclusões:
“1º Não se verifica qualquer nulidade na sentença recorrida.
2º Não se verifica qualquer erro na apreciação ou interpretação da matéria de facto dada como provada.
Nesta sequência
3º As demais conclusões do Recorrente não têm qualquer fundamento quer legal quer factual.
4º Deve ser negado provimento ao Recurso
Decidindo-se, assim, se fará Justiça”.
Aquando da admissão do recurso e quanto à nulidade invocada, o Tribunal a quo referiu o seguinte:
“Vem o recorrente invocar a nulidade da sentença por insanável contradição entre os fundamentos e a decisão, sustentando-se no disposto no art. 615º, n.º 1, al. c), do CPC.
Cumpre ao tribunal pronunciar-se sobre as nulidades invocadas como deflui do disposto do art. 641º, n.º 1, do CPC.
A sustentar a nulidade da decisão invoca a recorrente que no trecho da fundamentação de Direito transcrito o tribunal entendeu que a A. poderia executar o bem cuja transmissão foi impugnada no património do 1º R. e que, subsequentemente, no dispositivo, na parte também transcrita, entendeu que tal bem poderia ser executado no património do 2º R., na medida em que ali se escreve que se decide “Julgar a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência declarar o direito da A. à restituição da co-titularidade do 1º R. da nua propriedade do direito de superfície sobre a fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão direito, para habitação com arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado Lote 26, sito na …, cuja aquisição se encontrava registada a seu favor pela Ap. 80 de 25.07.1989, e que foi transmitida para o 2º R., podendo executá-lo no património deste e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei;”
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que inexiste qualquer contradição, sendo que a decisão está consentânea com o teor da fundamentação, o que emerge da consideração do teor de todo o dispositivo e em que expressamente se determina a restituição da co-titularidade do 1º R. da nua propriedade do direito de superfície sobre a fração autónoma designada pela letra “B”.
Assim, a expressão “podendo executá-lo no património deste”, considerando a decretação daquela restituição ao 1º R, refere-se àquele 1º R. e não ao 2º R.
Pelo exposto, e salvo melhor opinião, entende-se que não ocorreu aqui qualquer nulidade, sendo que V. Ex.as doutamente decidirão”.
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Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na Petição Inicial, como refere, Abrantes Geraldes[1]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará verificar:
I – da existência de alguma nulidade da Sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
II - se alguma da factualidade apurada se mostra adequadamente colocada em causa e, na afirmativa, se existe algo a alterar quanto à redacção do Facto 14 (“C leu e subscreveu o escrito referido em 10) na ausência do 1º R. e não negociou ou acordou com este último os termos do acordo”) para “C, legal representante da A., leu e subscreveu o escrito referido em 10) na ausência do 1º R. e não negociou ou acordou directamente com este último os termos do acordo, que foram negociados com o 1º R., mediante as suas instruções, pela sua advogada”.
III - se a acção se mostra correctamente decidida (nomeadamente quanto à sua improcedência parcial), em face da factualidade apurada e dos pressupostos e requisitos da impugnação pauliana e dos seus efeitos, incluindo ainda a decisão sobre a litigância de má fé do primeiro Réu.
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Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
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Da nulidade
As nulidades da decisão estão previstas no artigo 615.º do Código de Processo Civil e constituem-se como deficiências da Sentença que não podem confundir-se com erro de julgamento: este corresponde a uma desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável (haverá erro de julgamento - e não deficiência formal da decisão - se o Tribunal decidiu num certo sentido, mesmo que, eventualmente, mal à luz do Direito).
Assim, prevê o n.º 1 do referido normativo, que será nula a Sentença quando:
“a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
Para o que releva nos presentes autos, a Autora pretende a existência de uma nulidade por contradição entre:
- a fundamentação (“(…)não é de declarar a ineficácia da transmissão operada como pretende a A., mas tão só de declarar o direito da A. à restituição da nua propriedade do direito de superfície de que o 1º R era co-titular, podendo executar tal direito no património do 1º R. e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei(…)”) e a decisão (“A) Julgar a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência declarar o direito da A. à restituição da co-titularidade do 1º R. da nua propriedade do direito de superfície sobre a fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão direito, para habitação com arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado Lote 26, sito na …, cuja aquisição se encontrava registada a seu favor pela Ap. 80 de 25.07.1989, e que foi transmitida para o 2º R., podendo executá-lo no património deste e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”).
Ora, a alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º – em abstracto – constitui-se como um vício formal (traduzido num error in procedendo) e susceptível de afectar a validade da Sentença, escrevendo Abrantes Geraldes-Paulo-Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, que a “nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos de direito e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente (STJ 8-9-21, 1592/19, STJ 3-3-21, 3157/17, STJ 29-10-20, 1872/18)”[2].
Francisco Ferreira de Almeida, por seu turno, afirma que a oposição entre os fundamentos e a decisão corresponde a uma «construção viciosa», ou seja, corresponde a “um vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusão; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradição entre os fundamentos e a decisão (por ex., toda a lógica fundamentadora da sentença apontaria para a condenação do réu no pagamento da dívida reclamada pelo autor, mas o juiz, na sentença, decreta, de modo contraditório, a absolvição do réu do pedido). Não se trata de um qualquer simples erro material (em que o juiz escreveu coisa diversa da pretendia – contradição ou oposição aparente) mas de um erro lógico-discursivo em termos da obtenção de um determinado resultado – contradição ou oposição real. O que não se confunde, também, com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção da hipótese concreta na correspondente fattispecie ou previsão normativa abstracta, vício este só sindicável em sede de recurso jurisdicional”[3].
Ou seja e como se assinala no Acórdão de 05 de Fevereiro de 2020 (Processo n.º 3294.11.2TBBCL.G1.S1-Maria do Rosário Morgado), a “nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º, do CPC, segundo a qual a sentença é nula quando os fundamentos estejam em manifesta oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença” sendo que, constituindo “a sentença um silogismo lógico-jurídico (cf. art. 607º, do CPC), de tal forma que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade – como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência - só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído”.
Na síntese perfeita do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2023 (Processo n.º 1603/19.5T8EVR.E1.S1-Fernando Baptista de Oliveira), a “nulidade da sentença consubstanciada na oposição entre os fundamentos e a decisão (que nada tem a ver com um simples erro material, nem é confundível com o chamado erro de julgamento) traduz um vício lógico da sentença/decisão que a compromete: se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença”.
No caso em apreço, inexiste a pretendida contradição, estando o decidido em perfeita consonância lógica e coerente com a fundamentação e o raciocínio antes apresentados, inexistindo qualquer erro lógico-discursivo patente.
Admitindo-se embora que não prime pela perfeição a redacção da parte decisória, em face da proximidade do pronome “deste”, da expressão “2.º Réu”, que se encontra imediatamente antes da vírgula anterior, o certo é que o relevante é a apreciação e a leitura de todo o parágrafo decisório, que está reportado à condenação de um determinado Réu (o primeiro, G…) e aos respectivos efeitos no seu património: a acção foi julgada parcialmente procedente, declarando-se “o direito da A. à restituição da co-titularidade do 1º R. da nua propriedade do direito de superfície” do prédio em causa (“que foi transmitida para o 2º R.”), pode ser  executado no património daquele a quem foi restituído (“deste”) e sobre ele praticados “atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.
O “deste”, não admite outra leitura que não a de se reportar ao Réu G, sendo certo ainda que o outro Réu (A) foi absolvido do pedido, tudo de forma clara e sem passibilidade de qualquer confusão.
Improcede, assim, a invocação da nulidade em causa.
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Fundamentação de Facto
O Tribunal considerou provada a seguinte factualidade[4]:
1. Pela Ap. 1 de 08.06.2001 foi inscrita no registo a constituição da sociedade M, Lda., sendo seus sócios gerentes os Réus G e A.
2. Pela Ap. 4 de 20.08.2009 foi inscrita no registo a cessação de funções do Réu A, por renúncia, da gerência da sociedade anteriormente referida.
3. Os Réus G e R casaram em 17.05.1980, sem convenção antenupcial.
4. O Réu A é filho dos Réus G e  R.
5. Em 11.09.2020 a Autora intentou execução contra a sociedade referida em 1. que, sob o nº 7164/20.5T8LRS, pende no Juízo de Execução de Loures, J3, dando à execução requerimento de injunção com aposição da fórmula executória, no valor total de €443.159,44, sendo €371.979,59 de capital, €71.0126,85 de juros e €153 de taxa de justiça paga.
6. Na execução referida em 5. a Autora indicou a quantia exequenda de € 441.109,03, por terem sido efectuados entretanto dois pagamentos no valor de € 852,39 e de € 1.198,02, respetivamente, imputados em juros.
7. Em 12.10.2020 foram penhorados na execução referida em 5. dois saldos bancários da titularidade da sociedade referida em 1., nos valores de € 913,22 e de € 54,65, respectivamente, e o crédito que tal sociedade detinha na empresa T, Lda., até atingir o valor de € 468.196,61.
8. O crédito anteriormente referido foi reconhecido pela sociedade devedora apenas no montante de € 46.416,29, o qual foi transferido e colocado à ordem da execução referida em 5..
9. Na execução referida em 5. não foi deduzida oposição e não são conhecidos mais bens da executada.
10. Por escrito de 14.07.2020 intitulado de “Acordo de Pagamento”, subscrito pelo Réu G. por si e na qualidade de sócio gerente da sociedade referida em 1., e por C na qualidade de sócio gerente da Autora, figurando como primeiros outorgantes os Réus G e R e a sociedade referida em 1., e como segunda outorgante a Autora, foi feito constar, de entre o mais, o seguinte:
“Considerando que:
a) A segunda outorgante intentou procedimento de injunção contra a M, Lda., que corre termos no Balcão Nacional de Injunções com o nº 43489/20.6YIPRT, com vista à cobrança de € 443.159,44, (…)
b) Nem a sociedade, nem os sócios e respectivos cônjuges têm liquidez imediata para procederem ao pagamento da totalidade da dívida;
c) Os primeiros outorgantes pretendem recorrer a financiamento bancário para pagamento do capital em dívida, ou seja, para pagamento da quantia de € 371.979,59;
d) A sociedade credora aceita receber faseadamente o montante correspondente aos juros peticionados, no montante de € 71.026,85.
E, face dos considerandos supra, as partes acordam livremente e de boa-fé o seguinte:

Pelo presente, os três primeiros outorgantes (sociedade, sócio gerente e respectivo cônjuge) assumem solidariamente a responsabilidade pelo pagamento da dívida mencionada no considerando supra, no montante de € 443.159,44, obrigando-se a pagar tal quantia nos termos seguintes:
a) – A quantia referente ao capital em dívida, no montante de € 371.979,59 será paga impreterivelmente até ao dia 10.09.2020;
b) – A quantia inerente aos juros no montante de € 71.026,85 será paga através de prestações mensais nos termos seguintes:
bb) Os primeiros pagarão à segunda a quantia mínima de € 2000,00 até 31/7/2020;
cc) Os primeiros pagarão à segunda a quantia mínima de € 2000,00 até 31/8/2020;
dd) Os primeiros pagarão à segunda a quantia mínima de € 1000,00 mensais até ao último dia de cada mês subsequente, com início em 30/9/2020 até perfazer a totalidade dos juros em dívida.
ee) Contudo, caso os devedores paguem pontualmente a dívida de capital nos termos acordados e os juros nos termos mencionados nas alíneas bb) cc) e dd) e, em cada semestre pelo menos a quantia de € 15.000,00, ou seja, até ao dia 30/6/2020 e 31/12/2020 e cada um dos dias 30/6 e 31/12 dos anos subsequentes até perfazer o montante de € 45.000,00, a credora perdoa o remanescente da quantia em dívida a título de juros de mora vencidos e vincendos.
ff) Assim, caso os devedores paguem pontualmente, para além do capital, nos termos supra acordados, também os juros em cada semestre a quantia de 15.000 €, nas datas de 31/12/2020, 20/6/2021 e 31/12/2021, a credora perdoa o remanescente em dívida.
(…)
3º A falta de pagamento pontual de qualquer das prestações acordadas implica o imediato vencimento da totalidade da dívida.
(…)”.
11. Em anexo ao escrito anteriormente referido em 10. foi elaborado termo de autenticação subscrito por advogada, onde consta terem comparecido perante a mesma o Réu G, por si e na qualidade de sócio-gerente da sociedade referida em 1., e a Ré R, e estarem perfeitamente cientes do teor de tal escrito, sendo o mesmo expressão da sua vontade e da representada, bem como ter sido verificada a identidade dos outorgantes por confronto com os respectivos documentos de identificação civil mencionados e ter-lhes sido lido o termo em causa e explicado o seu conteúdo.
12. O Réu G subscreveu o termo de autenticação anteriormente referido.
13. A Ré R não subscreveu o escrito referido em 10. e o termo de autenticação referido em 11., não tendo comparecido no acto da respectiva assinatura pelo Réu G.
14. C leu e subscreveu o escrito referido em 10. na ausência do Réu G e não negociou ou acordou com este último os termos do acordo.
15. O escrito referido em 10. foi lido e explicado ao Réu G.
16. Por escritura pública outorgada em 29.12.2021 no Cartório de M, em Alverca do Ribatejo, os Réus G e R declararam doar, com reserva de usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo para si, por conta das suas quotas disponíveis, ao Réu A, seu único filho, o qual declarou aceitar, o direito de superfície da fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão direito, para habitação com arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado Lote 26, sito na    , cuja aquisição se encontrava registada a seu favor pela Ap. 80 de 25.07.1989, com o valor patrimonial de € 43.117,20, atribuindo à nua propriedade doada o valor de € 30.182,04 e ao usufruto o valor de € 12.935,16.
17. Os Réus G e R continuam a residir na fracção anteriormente referida, a qual constitui a sua casa de morada de família.
18. A aquisição referida em 16. encontra-se inscrita no registo pela Ap. 838 de 09.02.2022.
19. A reserva de usufruto referida em 16. encontra-se inscrita no registo pela Ap. 839 de 09.02.2022.
20. Nas circunstâncias referidas em 16. a Ré R e o Réu A tinham conhecimento de que a sociedade referida em 1. tinha dívidas e a Ré R conhecimento da subscrição pelo Réu G de um acordo para pagamento tais dívidas.
***
O Tribunal considerou Não Provados os seguintes factos com relevância para a decisão proferida:
a) No âmbito da execução referida em 5. o valor dos saldos bancários e do crédito da executada perante terceiros totalizasse € 46.916,48;
b) Os actos de autenticação do termo referido em 11. não se encontrassem registados no sistema informático/registo online dos actos dos advogados quanto à identificação da Ré R como interessada, à qualidade do Réu G como sócio gerente da sociedade referida em 1. e à identificação do legal representante da Autora que subscreveu o acordo referido em 10.;
c) O Réu A estivesse ciente de que o Réu G tinha assumido pessoalmente a dívida da sociedade referida em 1. para com a Autora.
****
Apreciação da Matéria de Facto
O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Neste momento processual releva ainda o artigo 662.º do Código de Processo Civil, que começa por afirmar que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”[5].
Como, aliás, assinala o Conselheiro Tomé Gomes no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Setembro de 2017 (Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1) é “hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.
Quando uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto[6], nos termos do artigo 640.º, n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:
1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);
2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).
Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[7], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade[8], sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”[9].
Como pano de fundo da apreciação a fazer dos factos que estejam em causa, também a circunstância de não se proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação “não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)” (Acórdãos da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos[10] e da Relação de Lisboa de 26 de Setembro de 2019, Processo n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2-Carlos Castelo Branco).
Assim, caberá ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e que “o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta”, pelo que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância[11] (sublinhado e carregado nossos).
Ana Luísa Geraldes sublinha mesmo que, em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte»[12].
O Tribunal da Relação deve usar aquilo a que Miguel Teixeira de Sousa chama de “um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação”[13].
Verificadas as Alegações e Conclusões da Recorrente verifica-se que esta coloca em causa o teor do Facto 14. (C leu e subscreveu o escrito referido em 10. na ausência do Réu G e não negociou ou acordou com este último os termos do acordo), sendo certo assume corresponder ao teor da assentada tomada na Audiência final, a  21 de Novembro de 2023 (onde se escreve que “quando assinou o acordo de pagamento, já constava a assinatura do Réu G, não tendo este assinado o mesmo na sua presença, referindo ainda que não negociou ou acordou os termos do acordo com o Réu G, tendo tal sido feito pela sua advogada Dr.ª P. Mais disse que leu o referido acordo antes de o assinar e que não falou com mais nenhuma advogada”).
Sobre este Facto, aliás, o Tribunal a quo, na fundamentação da matéria de facto apurada escreveu que: “A matéria vertida em 14) da fatualidade provada foi objeto de confissão do legal representante da A. em sede de depoimento de parte pelo mesmo prestado, a qual tem força probatória plena contra o confitente nos termos do artº 358º, nº 1 do Código Civil”.
Ora a Autora pretende que, “por lapso”, não foram “os termos que passaram, nem para a redacção da assentada constante da acta da audiência de 21/11/2023, nem para a redacção dos factos provados, requerendo-se, assim, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 640º CPC, que do item 14 dos factos provados passe a constar” um texto.
Não assiste razão à Autora.
De facto, a Autora faz por esquecer que na audiência de 21 de Novembro de 2023, foi “Lida a assentada, a mesma foi confirmada pelo depoente e não foi objeto de qualquer reclamação”.
E se assim foi, tornou-se inalterável.
Como se assinala no Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Março de 2023 (Processo n.º 12499/21.7YIPRT.C1-José Avelino Gonçalves), sendo “o depoimento prestado em audiência de julgamento, caso a parte representada no acto por mandatário entenda que ocorre alguma irregularidade na prestação do depoimento ou na sua redução a escrito (ou falta dela) deve arguir tal irregularidade no ato, invocando a sua influência no exame ou decisão da causa[14] –artºs. 195º, nº. 1, 197º, nº. 1, e 199º, todos do C.P.C.”, pelo que, caso tal não ocorra, “fica precludida a possibilidade de se arguir tal falta de redução a escrito em sede de recurso da sentença, e consequente não há confissão escrita. Por isso, ainda que o depoente tenha admitido/confessado facto desfavorável, não pode nos autos adquirir força probatória plena – sem assentada a confissão não beneficia da força probatória plena consignada no artigo 358.º, n.º 1, do Código Civil”.
A Autora teve a oportunidade de, na própria audiência, colocar em causa o teor da assentada. E não o fez conformando-se com o que dela ficou a constar.
Outra via que poderia ter sido seguida, haveria de ter sido a da arguição da falsidade da acta, como na situação decidida pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Novembro de 2018 (Processo n.º 121/16.8YHLSB.L1-2-Jorge Leal), assinalando-se que constitui “arguição de falsidade da ata, a ser deduzida no prazo de 10 dias após se ter tomado conhecimento da mesma, a alegação de que na assentada do depoimento de parte não consta corretamente o que foi ditado pelo juiz que presidiu à audiência final e o que foi declarado pela parte”.
Neste contexto, o Facto 14., não é passível de alteração neste momento, uma vez que a assentada em que se fundamenta, já não pode ser colocada em causa (não o tendo sido, no momento adequado, pela Autora ora Recorrente).
Nada há, portanto, a alterar à factualidade apurada, assim se indeferindo a pretensão da Autora.
*º*
Fundamentação de Direito
A Sentença sob recurso assenta o decidido no seguinte processo de raciocínio:
I – Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor se concorrerem as circunstâncias seguintes:
       a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
       b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade (artigo 610.º do Código Civil).
II - De acordo com o artigo 612.º, n.º 1, no caso do acto ser gratuito, a impugnação pauliana procede ainda que o devedor e o terceiro adquirente dos bens tenham agido de boa fé, ou seja, sem a consciência do prejuízo que que o acto causa ao credor (cfr. n.º 2, a contrario).
III – Nos termos do artigo 611.º incumbe ao credor a prova das dívidas e ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.
IV – Da fatualidade provada resulta que, por escrito de 14.07.2020, subscrito pelo 1.º Ré, por si e na qualidade de sócio gerente da sociedade M, Lda., aquele assumiu pessoalmente perante a Autora a dívida que tal sociedade tinha para com a mesma, no montante de € 443.159,44, incluindo capital e juros, obrigando-se pessoal e solidariamente com a sociedade por si representada ao seu pagamento nos termos constantes desse escrito.
V - Invocavam os Réus que tal documento não pode constituir validamente qualquer obrigação de pagamento por, desde logo, o respectivo termo de autenticação, referido no Facto 11, não ser válido, fazendo o mesmo ainda referência à Ré R. que o não subscreveu, apesar de nele constar como outorgante, sendo que:
- nada se provou quanto à omissão no registo informático/online da Ordem dos Advogados dos elementos referidos em b) da factualidade não provada;
- quanto à Ré R, não se trata de uma questão de validade/invalidade do termo de autenticação em causa, mas sim de absoluta ineficácia relativamente a si, já que não subscreveu o documento (o mesmo sucedendo quanto ao acordo de pagamento referido no Facto 10 - a que tal termo se refere -, o qual, de igual modo, não foi por ela subscrito, apesar de nele figurar como outorgante).
VI - Mesmo que o aludido termo de autenticação fosse inválido, tal somente acarretaria a invalidade da autenticação com o mesmo pretendida efetuar, fazendo com que o escrito referido no Facto 10, consubstanciasse apenas um documento particular, nos termos do artigo 363.º, n.º 2, do Código Civil, e não um documento particular autenticado nos termos do n.º 3 de tal preceito.
VII - Tal documento corporiza, de entre o mais, uma assunção pelo Réu G, a título pessoal, da dívida para com a Autora da sociedade M (da qual é sócio gerente), ao mesmo tempo em que se obriga, juntamente com ela, a proceder ao respectivo pagamento faseado (uma assumpção cumulativa, nos termos e para os efeitos do artigo 512.º, n.º 1, do Código Civil).
VIII - Nos termos dos artigos 595.º e seguintes a assumpção de dívida traduz-se na manifestação de vontade de um terceiro em assumir perante o credor a prestação que recai sobre o devedor.
IX - A transmissão singular de dívida não exonera o antigo devedor se não houver declaração expressa nesse sentido do credor e opera mediante contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor, ou por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor (artigo 595.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2, do Código Civil).
X - No caso, estamos na segunda situação, tendo a assumpção de dívida sido efectuada mediante contrato celebrado entre o 1.º Réu, pessoalmente na qualidade de novo devedor, e a Autora credora (cujo legal representante subscreveu o escrito em causa), não comportando a exoneração da dívida da sociedade antiga devedora.
XI - Tal assunção de dívida é ainda formalmente válida, desde logo porque não está sujeita a qualquer forma especial nos termos do artigo 219.º do Código Civil (cfr. Ac. S.T.J. de 22.04.1997, CJ, 2º, pág. 60).
XII – O Réu G constituiu-se na obrigação de pagar o montante em dívida à Autora, nos termos constantes do escrito em causa.
XIII – Tendo apenas sido pago um valor parcial (€ 852,39 e € 1.198,02, imputados em juros – Factos 5 e 6), a Autora - em 11.09.2020 - intentou execução contra a sociedade M no Juízo de Execução de Loures-J3 (Processo n.º 7164/20.5T8LRS), peticionando o pagamento de € 443.159,44 (sendo € 371.979,59 de capital, € 71.0126,85 de juros e € 153,00 de taxa de justiça paga).
XIV - Nos termos constantes da cláusula terceira do escrito referido no Facto 10, tal incumprimento implicou que se tivesse vencido a totalidade da dívida, tendo também em conta o disposto nos artigos 781.º e 799.º.
XV - Não tendo a Autora recebido qualquer pagamento no âmbito da referida execução (apesar de nela se encontrarem penhorados dois saldos bancários e um crédito que a sociedade executada detém sobre terceiro – Factos 7 e 8 – é de concluir que a Autora detém um crédito sobre o Réu G, no valor da quantia exequenda, correspondente pelo menos a € 441.109,03, do qual € 371.979,59 se refere a capital.
XVI - Entretanto, por escritura pública outorgada em 29.12.2021, os Réus G e R declararam doar, com reserva de usufruto vitalício, simultâneo e sucessivo para si, por conta das suas quotas disponíveis, ao Réu A (seu único filho), o qual declarou aceitar, o direito de superfície da fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão direito, para habitação com arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado Lote 26, sito na, cuja aquisição se encontrava registada a seu favor pela Ap. 80 de 25.07.1989, com o valor patrimonial de € 43.117,20, atribuindo à nua propriedade doada o valor de € 30.182,04 e ao usufruto o valor de € 12.935,16 – Facto 16.
XVII - Trata-se de uma transmissão a título gratuito para o Réu A da nua propriedade do direito de superfície da fracção anteriormente referida de que o Réu G é co-titular juntamente com a Ré R, pelo que não se exige, para que a impugnação proceda, que o Réu G e o Réu A estivessem de má fé.
XVIII - O crédito da Autora venceu-se claramente em data anterior à da mencionada doação (a qual teve lugar depois de intentada a execução pela Autora - referida no Facto 5 - e de efetuada a penhora no seu âmbito).
XIX - Não se exige, por isso, que essa transmissão tenha sido realizada dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito da Autora, embora o Réu G não pudesse deixar de saber estar a agravar a possibilidade da Autora não ser ressarcida do seu crédito.
XX - Não sendo conhecidos quaisquer outros bens penhoráveis à sociedade executada (Facto 9) e não tendo o Réu G alegado e provado ter outros bens de igual ou maior valor do que a aludida co-titularidade do direito de superfície fracção referida no Facto 11, é de concluir encontrar-se verificado o requisito remanescente para a procedência da impugnação (ou seja, o resultar da transmissão operada a impossibilidade para a Autora - credora - de obter a satisfação integral dos seus créditos ou, pelo menos, o agravamento dessa impossibilidade).
XXI - Julgada procedente a impugnação o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei – artigo 616.º, n.º 1 ,do Código Civil.
XXII - Nessa medida, não é de declarar a ineficácia da transmissão operada como pretende a Autora, mas tão só de declarar o direito desta à restituição da nua propriedade do direito de superfície de que o Réu G era co-titular, podendo executar tal direito no património deste e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.
XXIII - A presente ação procede assim parcialmente, afigurando-se que o decaimento da A. é suscetível de ser quantificado numa terceira parte face à procedência, mutatis mutandis, do essencialmente peticionado.
XXIV – Quanto à litigância de má fé, reflecte esta a violação do princípio da cooperação.
XXV - Litiga de má fé a parte que, com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes - má fé substancial - pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça um uso reprovável dos instrumentos adjectivos - má fé instrumental (artigo 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
XXVI - A litigância de má fé é sancionada com pena processual de multa e com indemnização à parte contrária, caso esta formule o pedido correspondente (artigo 542.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
XXVII - No caso em apreço, não foi deduzida oposição manifestamente infundada, nem omitidos ou alterados fatos relevantes/feito uso reprovável dos instrumentos adjetivos, apesar de não ter merecido acolhimento pelo Tribunal a nulidade invocada, havendo ainda que ter em conta que o Réu G não faltou à verdade na Contestação, na medida em que não colocou em causa ter subscrito o acordo de pagamento e termo de autenticação juntos com a Petição Inicial.
XXVIII - O que se verificou foi que o Réu G, em sede de declarações de parte, fez determinadas afirmações quanto à subscrição de tais documentos que, depois, veio admitir não corresponderem à verdade, retratando-se.
XXIX - Tal é, assim, susceptível de consubstanciar ilícito criminal, face ao dever de verdade a que o 1.º Réu se encontra adstrito no âmbito do depoimento de parte prestado e para o qual foi advertido, nada tendo que ver com a litigância propriamente dita que, como se disse, observou os ditames inerentes à boa fé processual, pelo que se entende não ser de o condenar como litigante de má fé.
*
Raciocínio claro, escorreito e juridicamente bem sustentado e fundamentado.
Resta saber se também carregado de razão jurídica.
Entende a Autora que não, uma vez que tendo dado como presentes os pressupostos da Impugnação Pauliana (ser titular de um crédito sobre o Réu G; ser esse crédito anterior à doação com reserva de usufruto ora impugnada; que este acto impossibilite ou agrave a possibilidade da satisfação integral do crédito; dispensa de prova da má fé, por se tratar de acto gratuito), a procedência da acção deveria também abranger a reserva de usufruto e os Réus R e A.
Vejamos a questão.
Estamos no âmbito de uma acção de impugnação pauliana , a qual se rege, em termos de legislação aplicável, pelo preceituado nos artigos 610.º a 618.º do Código Civil.
Trata-se de um tipo de acção, na qual se visa apurar da existência (temporal) de um crédito e da correspondente dívida que recaía sobre aquele ou aqueles que dispuseram, por acto gratuito ou oneroso, de determinados bens (através dos quais se pretendia obter a satisfação do crédito) e cuja cobrança foi afectada ou posta em crise por aquele acto, procurando eliminar-se o prejuízo causado com o acto impugnado, facilitando a impugnação de actos lesivos dos interesses dos credores, e levados a cabo pelos respectivos devedores, consistindo, assim, como refere Menezes Cordeiro, num "simples meio conservatório da garantia patrimonial"[15]: o "escopo da acção pauliana reside na manutenção da garantia patrimonial dos credores . Esta efectiva-se, por regra, sobre bens do devedor; apenas ocorrências particulares levam à possibilidade de agredir  bens de terceiro"[16].
Repare-se que os bens alienados não chegam a regressar ao património do devedor, con­servando-se no património do terceiro (adquirente ou não), que é - à face de todos (mesmo do credor impugnante) - o seu proprietário[17]: o que se permite é que o credor impugnante (reunidos os requisitos do instituto jurídico), afecte a esfera jurídica (o património) do terceiro, executando nela o seu crédito sobre o devedor alienante ou praticar os actos conservatórios autorizados por lei aos credores.
"Quer dizer : embora o acto de alienação impugnável através da pauliana produza o seu efeito típico que é a transmissão da propriedade da coisa com eficácia erga omnes, não desenvolve, em relação aos credores com direito a impugnarem o acto, o efeito indirecto que lhe está normalmente associado de subtrair o bem à garantia dos credores do alienante"[18].
Assim se constata que não está em causa a anulação de qualquer acto, pois o de disposição é - por si só – válido, não tendo "nenhum vício genético"[19]: como afirma Maria do Patrocínio Paz Ferreira, da "configuração geral da impugnação pauliana emerge a preocupação de evitar que o acto seja sacrificado para além do limite necessário para a satisfação do credor impugnante, de acordo com um critério de economia jurídica e de máximo aproveitamento do negócio jurídico"[20].
Em sentido semelhante, Henrique Mesquita, refere que a "acção tem por finalidade a indemnização do credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ou valores ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor", tratando-se, portanto, "de uma acção pessoal com escopo indemnizatório - e não de uma acção de declaração de nulidade ou de anulação, ou de uma acção resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor"[21]), sendo certo que, mesmo que um/a autor/a, numa acção de impugnação pauliana, peça “a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do artigo 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664º do Código de Processo Civil” (Jurisprudência n.º 3/2001, de 23 de Janeiro de 2001, relatado pelo Conselheiro Moura Cruz, DR I-A, de 09 de Fevereiro de 2001)[22].
Com enorme clareza e linearidade, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2023 (Processo n.º 1603/19.5T8EVR.E1.S1-Fernando Baptista de Oliveira), assinala-se que  a “acção pauliana é uma acção de declaração de ineficácia dos actos em relação ao credor: não se visa declarar nulos os actos praticados em detrimento do devedor (que o não são), mas, apenas, atacá-los de forma a se tornarem ineficazes em relação ao credor e na medida do seu crédito (isto é, na medida em que diminuem a garantia patrimonial do crédito)”.
E, com a mesma clareza e linearidade, Maria de Fátima Ribeiro sublinha que a impugnação pauliana “é um caso de ineficácia relativa, stricto sensu (paralisa os efeitos de negócio válido apenas em relação a determinadas pessoas)”[23].
Perante este enquadramento, identifiquemos agora – expressamente - os pressupostos da acção pauliana, tal qual resultam dos artigos 610º a 612º do Código Civil. São eles:
"- Um acto praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal;
- acto esse que provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa responsabilidade;
- Havendo má fé ou, simplesmente, um acto gratuito;
- e desde que haja um crédito anterior ao acto;
- ou mesmo um crédito posterior, quando o acto tenha sido efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor”[24].
Na mesma linha, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 1998 (Processo n.º JSTJ00035015-José Silva Paixão) decidiu que são “requisitos gerais da impugnação pauliana a existência de um crédito, a anterioridade deste face ao acto a impugnar - ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor - e que do acto resulte a impossibilidade da satisfação integral do crédito, ou o seu agravamento”.
 Estabelece - portanto - o artigo 610.º, a possibilidade de o credor impugnar actos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (por redução do activo - venda, doação, ou renúncia a direitos, p. ex. ; ou aumento do passivo - por assunção de dívida, p. ex.), que não sejam de natureza pessoal (casamento, divórcio, ou adopção, p. ex.), desde que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, tenha sido realizado com o fim de dolosamente impedir a satisfação do direito do futuro credor ; e resulte do acto (nexo de causalidade) a impossibilidade para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito (b]) ou o agravamento dessa impossibilidade (com a substituição de um bem, por outro de natureza mais volátil ou deteriorável, p. ex.).
Tratando-se de um acto oneroso (e para além da prova do montante das dívidas - artigo 611.º, 1.ª parte), cabe ao Autor (credor), demonstrar no processo[25] a má fé do devedor e a do terceiro adquirente (artigo 612.º, n.º 1), entendida esta como "a consciência do prejuízo que o auto causa ao credor" (artigo 612.º, n.º 2).
No caso dos actos gratuitos não há necessidade de proceder a essa prova: como escreve Gonçalo dos Reis Martins, a “lei estabelece uma diferença substancial do regime aplicável aos atos onerosos e aos atos gratuitos, na medida em que a má fé é apenas exigível relativamente aos atos onerosos.
Considera a lei que, não havendo contraprestação do terceiro nos atos gratuitos, o interesse daquele deverá ceder perante o interesse do credor na preservação da garantia patrimonial do seu crédito”[26] (como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães 09 de Fevereiro de 2017 - Processo n.º 162/10.9TBAVV.G1-Cristina Cerdeira - nos “actos gratuitos não se exige a má-fé, porque são, por natureza, prejudiciais para os credores”).
No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 04 de Junho de 2019 (Processo n.º 65/15.0 T8BJA.E1.S1-Fernando Samões), conclui-se que na “impugnação pauliana de acto gratuito é dispensada a má fé do devedor e dos terceiros, independentemente do momento da constituição do crédito relativamente ao acto impugnado”.
Posto isto, não restam dúvidas de que:
- existe o direito de crédito sobre o Réu G - €371.979,59 de capital, acrescido de juros moratórios, vencidos e vincendos, até integral pagamento (que, em 14/07/2020 ascendiam a €71.026,85, dos quais foram entretanto pagos os valores de €852,39 e €1.198,02, tendo sido penhorados na execução pendente os valores de €913,22, €54,65 e €46.416,29), sendo que a dívida foi assumida pelo referido Réu a 14/07/2020 (Facto 10);
- o acto impugnado (acto de doação com reserva de usufruto feito ao Réu A pelos Réus G e R, a 29 de Dezembro de 2021, do direito de superfície do imóvel em causa[27]), respeita ao bem que deixou o património dos Réus G e R;
- inexistem outros bens penhoráveis no património do Réu G (Factos 7 e 9);
- não há dúvida sobre a impossibilidade para a Autora de obter a satisfação integral do seu crédito ou, no mínimo, fica agravada tal impossibilidade.
Assentes em que estão reunidos os pressupostos e requisitos da impugnação pauliana, resta verificar das suas consequências, uma vez que é neste ponto que surgem as divergências da Autora relativamente ao decidido pelo Tribunal a quo.
É que o decidido vai no sentido da parcial procedência da acção, reconhecendo à Autora o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (artigo 616.º, n.º 1 ,do Código Civil), mas limitando os efeitos à doação da nua propriedade (não declarando a ineficácia da transmissão, mas tão só declarar o direito da Autora à restituição da nua propriedade do direito de superfície de que o Réu G era co-titular, podendo executar tal direito no património deste e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei).
Para além de tudo o já exposto quanto ao modo de funcionamento da impugnação pauliana, vale a pena aqui transcrever o que Gonçalo dos Reis Martins escreve na anotação ao artigo 616.º do Código Civil: “se, por um lado, a lei refere que “o credor tem direito à restituição dos bens”, o que parece indiciar um efeito restitutório, por outro lado, não só essa restituição está limitada pela “medida do interesse do credor”, como tem o credor a faculdade de executar o bem diretamente no património do devedor. Estas últimas características apontam indubitavelmente para a ineficácia do ato relativamente ao credor impugnante, pressupondo-se assim a manutenção da validade do ato e eficácia do mesmo perante terceiros (a este respeito v. Cura Mariano, cit., pp. 84 a 95 e 242 a 244)”[28]. Por outro lado, “o adquirente de boa fé, que não pode ser senão aquele que adquiriu por via de ato gratuito (v. art. 612.º), responde de acordo com o n.º 3, na medida do enriquecimento (v. arts. 479.º e ss., para cuja anotação se remete), cujo limite é o locupletamento do adquirente à data em que tiver sido citado para a ação de impugnação pauliana (de acordo com a leitura conjugada com os arts. 479.º n.º 2, e 480.º-b))”[29].
Assim, não parece que possa gerar quaisquer dúvidas sobre a ineficácia da doação ao Réu A, perante a Autora, sendo certo que, nas palavras de João Cura Mariano, a “expressão utilizada “direito à restituição” não deve ser encarada no sentido de uma viagem de regresso entre patrimónios”, “mas tão somente o restabelecimento da garantia patrimonial diminuída, através da exposição desses bens, independentemente da sua situação jurídica, aos meios legais conservatórios e executórios colocados à disposição do credor impugnante. Com a impugnação pauliana não se obtém a restauração do património do devedor, mas sim a restituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante”[30].
Ou seja, neutralizam-se “algumas das consequências do acto impugnado relativamente ao credor impugnante, sem afectar a sua validade, numa demonstração da sua filiação nos quadros da ineficácia stricto sensu. Os  bens alienados continuam, assim, a desempenhar no património do terceiro a sua função de garantia do cumprimento da obrigações do alienante, ficando apenas desactivado o efeito indirecto de subtracção à garantia patrimonial próprio dos actos de transmissão de bens”[31].
Chegados a este ponto, deparamo-nos com a questão relativa à reserva de usufruto que, ainda que sem grande explicação ou fundamentação por parte do Tribunal a quo, não ficou abrangida pela ineficácia resultante da parcial procedência da impugnação pauliana.
Quanto a esta matéria, vale a pena assinalar o que consta de dois Acórdãos, que se debruçaram sobre situações similares e nos quais sobre ela se discorreu de forma assertiva e certeira:
- o Acórdão da Relação de Coimbra de 12 de Julho de 2017 (Processo n.º 222/14.7T8LRA.C1-Vítor Amaral), onde se refere que os doadores, “por efeito da doação, transmitem a propriedade da coisa ou a titularidade do direito para os donatários, não podendo dizer que mantêm ainda “plenos direitos de propriedade” sobre os bens doados, ainda que com reserva de usufruto, simultâneo e sucessivo”, tornando-se assim irrelevante – aplicando o mesmo entendimento à situação dos presentes autos – qualquer abordagem jurídica que passe por retirar consequências de a Ré R (casada com o Réu G) não se ter obrigado no escrito referido no Facto 10 e de isso afectar de alguma forma a doação referida no Facto 16.
O bem foi efectivamente doado, a dívida do Réu G existe, a acção de impugnação pauliana pode colocar a doação em causa nos seus termos, de forma que, perante um acto de transmissão da propriedade de um bem comum do casal se torna irrelevante, para os efeitos de tal acção, que a dívida seja da responsabilidade de apenas um dos cônjuges (ou de ambos): antes da transmissão e na constância do matrimónio, o bem pertence ao património comum do casal (e não uma meação sobre qualquer bem em concreto), depois da transmissão, o bem, pertence ao transmissário[32];
- o Acórdão da Relação de Guimarães de 19 de Outubro de 2017 (Processo n.º 2184/15.4T8CHV.G1-Pedro Damião e Cunha), onde se escreveu que “o direito atribuído ao credor impugnante à restituição dos bens alienados ao património do devedor significa, em primeiro lugar, que o credor impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor, mas sem a concorrência dos demais credores deste, uma vez que a procedência da pauliana só ao impugnante aproveita. Mas, significa também que, executando os bens alienados, como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente, o impugnante pode executá-los, na medida do necessário para satisfação do seu crédito.”.
No caso concreto, como iremos ver, isto significa que, actuando a Impugnação pauliana sobre bens que continuam a pertencer a terceiros, pois que os actos jurídicos praticados são válidos, e os bens só podem ser executados na medida do necessário para satisfação do seu crédito, toda a argumentação que se funde na sua anterior pertença ao património comum do casal é irrelevante.
Com efeito, com a celebração da escritura de doação, o direito de propriedade sobre o bem imóvel transferiu-se para os terceiros de uma forma válida (cfr. art. 940º do CC), e aí se mantém, apesar da procedência da impugnação pauliana.
Ora, conforme decorre da Jurisprudência citada na decisão recorrida (Acs. do STJ de 12.12.2005, de 9.12.2004, de 6-11-2008, de 14.12.2006, de 9.1.2003 e de 19.4.2000 e 12.3.2015), procedendo a Impugnação Pauliana, em casos em que apenas um dos cônjuges é devedor, o bem imóvel objecto do acto jurídico impugnado continua a ser um bem de terceiro, tendo apenas que ser restituído ao património desse cônjuge devedor nos termos e para os efeitos expostos, pelo que não reassume a natureza de bem integrante do património comum do casal.
Ora, por assim ser, é que deixa de ter cabimento qualquer consideração sobre se a divida será somente da responsabilidade de um dos cônjuges.
Na verdade, o art. 1969º, n.º1, do CC- que estabelece que, pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, respondem os bens próprios do cônjuge devedor, e subsidiariamente a sua meação nos bens comuns- não tem aplicação ao caso concreto, pois que, como vimos, com a transmissão do bem para o património de terceiro deixa de poder considerar-se a natureza (de bem comum) que o mesmo tinha antes dessa mesma alienação.
E é por isso também que, ao contrário do que sucede na acção executiva instaurada contra um dos cônjuges, na Impugnação Pauliana, na medida em que o bem comum haja sido transmitido a terceiro, deixa de haver uma meação de um cônjuge não devedor a respeitar (até porque o bem foi transmitido no seu todo- (…)) e património a partilhar, não se podendo colocar a hipótese de citação do cônjuge para requerer a separação de bens, tal como determina o art. 740º, n.º1, do CPC.
Aqui chegados, pode-se, assim, concordar com o que ficou dito na decisão recorrida, quando aí se afirma que: “… no caso de impugnação de acto de alienação de bens comuns por ambos os cônjuges, aquele bem, que antes da transmissão fora um bem comum do casal, com a transmissão que se considera válida e valendo o título contra o credor, deixa de ter esta qualidade por referência ao património em que antes estava integrado…”.
E, nessa medida, não há que colocar a questão de saber se este bem imóvel, no momento em que é alvo da Impugnação, continua a ser próprio ou comum do casal Réu.
A questão aparentemente poder-se-ia complicar à luz da especial configuração do acto jurídico gratuito aqui impugnado, nomeadamente, por causa de, nesse mesmo acto, os contraentes terem constituído a favor da Recorrente um direito de usufruto sobre o imóvel”.
Ora “é inequívoco que, se em face do Autor se mantiver o direito de usufruto - e se se reconhecesse a impossibilidade de tal acto jurídico ser afectado pela Impugnação Pauliana -, tal acto envolveria uma diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (art. 616º do CC), pois que, pretendendo executar o aludido bem imóvel, obviamente que o seu valor será inferior, se o mesmo estiver onerado com o direito de usufruto (o que não sucedia anteriormente)”.
João Cura Mariano tem também o cuidado de assinalar que “os actos impugnáveis não são apenas os que se traduzem numa alienação de bens do património do devedor”, podendo respeitar também “à constituição de encargos sobre bens”, abrindo a “possibilidade do credor impugnante os executar livre dos encargos constituídos”[33].
Assiste pois razão à Autora, quando diz que “impossível se torna restringir os efeitos da impugnação pauliana à restituição da nua propriedade do direito de superfície de que o 1º R. era co-titular no referido imóvel”.
Visando permitir ao/à credor/a prejudicado/a (Autora na acção de impugnação pauliana) executar o bem doado no património onde este se encontra, a ineficácia da doação repercute-se – obviamente – na doadora R e no donatário A (que, apesar de proprietário do bem, pelo valor da dívida, tem de permitir que o credor faça exercer a sua garantia patrimonial sobre ele)[34].
O que o Tribunal a quo fez foi cindir a doação da nua propriedade da constituição da reserva de usufruto, como se esta pudesse subsistir sem aquela ou com ela não estivesse umbilicalmente ligada: e só há reserva de usufruto, porque foi doada a nua propriedade…
O acto impugnado com a presente impugnação pauliana é a doação como um todo, acoplada à constituição do usufruto vitalício a favor dos Réus G  e R.
Esta reserva de usufruto não tem sentido estar autonomizada para efeitos da acção.
A evidente pretensão dos Réus foi retirar o bem em causa da esfera de garantia pelas suas dívidas (no caso, do Réu G).
É a ineficácia deste todo que está em causa, pelo que a reserva do usufruto não pode deixar de ser afectada pela impugnação pauliana, uma vez que a sua manutenção se constituiria como uma evidente diminuição da garantia patrimonial do crédito da Autora (para os efeitos do artigo 610.º), já que, com este oneração, em sede de execução do direito de superfície sobre o imóvel em causa, o seu valor seria, necessariamente (e de forma relevante) muito mais baixo[35].
A reserva de usufruto só existiu porque foi doada a nua propriedade e, se esta é considerada ineficaz perante o credor impugnante, também a reserva de usufruto o tem de ser.
Cindir a doação e a constituição da reserva de usufruto, para efeitos da impugnação pauliana seria uma situação de inadmissível benefício de infractor e estaria criada uma fórmula perfeita para lograr prejudicar credores.
Neste enquadramento, a decisão do Tribunal a quo terá de ser alterada, assim procedendo o recurso, de forma a que a acção seja julgada totalmente procedente, declarando-se a ineficácia em relação à Autora da doação do direito de superfície, com reserva de usufruto (outorgada por escritura pública de 29 de Dezembro de 2021), da fracção autónoma em causa, pelos Réus G e R, a favor do Réu A, na medida necessária para pagamento da dívida de que a Autora é credora (no montante de €447.606,72, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento), reconhecendo-se a esta o direito a executar a mencionada fracção autónoma no património do Réu A.
É certo que a Autora-Recorrente pretende o reconhecimento do direito a executar a mencionada fracção autónoma no património dos três Réus, mas a correcção efectuada não corresponde a uma improcedência parcial, uma vez que  o que está peticionado (e bem) é a ineficácia e o bem - não há dúvidas para nenhuma das partes - faz parte do património do Réu A: a correcção é apenas uma adequação do peticionado aos pressupostos de que a Autora parte e que correspondem ao que pretende e tem direito, de acordo com as regras jurídicas aplicáveis e aplicadas.
*
A última discordância da Recorrente reporta-se ao seu entendimento sobre a necessidade de condenar o Réu G como litigante de má fé.
Para além dos trabalhos de Fernando Luso Soares (A Responsabilidade Processual Civil-Almedina, 1987) e Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil-Almedina, 1984), produzidos na década de 80 do século passado, a matéria da litigância de má fé durante muitos anos foi particularmente escassa no que respeita a tratamento doutrinário[36].
O século XXI trouxe um notável desenvolvimento ao estudo deste instituto jurídico, com Paula Costa e Silva (A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008), Menezes Cordeiro (Litigância de má fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, 2006) e Pedro de Albuquerque (Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina, 2006)[37].
Como o relator deste Acórdão teve oportunidade de referir no Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 103-104 (Junho-Julho de 2013), na “história contemporânea deste instituto há três marcos que importa relevar:
- o primeiro, com a alteração de 1995 ao CPC, que, com os arts. 266º (Princípio da Cooperação), 266ºA (Dever de Boa Fé Processual) e 456º (Responsabilidade no caso de má fé-Noção de má fé), instituiu uma nova filosofia de colaboração consagrando "expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos" (Relatório do DL 329-A/95 de 12 de Dezembro): passou a sancionar-se não apenas a litigância dolosa, mas também a temerária;
- o segundo, com a desastrosa e incompreensível intervenção ao nível do Regulamento das Custas Processuais (DL 34/2008, de 26 de Setembro), que, nos termos do seu art. 27º, fixou os limites da multa por litigância de má fé entre 0,5 e 10 unidades de conta (!), tornando o instituto, pouco menos que inútil;
- o terceiro, com a cirúrgica alteração legislativa – surgida na sequência de um excelente estudo fundamentador, elaborado pela DGPJ em Novembro de 2010 (disponível em www.dgpj.mj.pt) – através da Lei 7/2010 de 13 de Fevereiro, que repôs a possibilidade de condenação em litigância de má fé, numa multa entre duas e cem UCs.
A matéria da litigância de má fé não mereceu por parte do legislador de 2013 alterações significativas na elaboração no novo Código de Processo Civil (nCPC).
Assim, o art. 456º, passa a ser o novo art. 542º (do mesmo modo que os arts. 266º e 266ºA, assumem uma diferente numeração: arts. 7º e 8º).
O art. 457º, mereceu apenas correcções formais (tempos verbais e colocação sistemática), passando a anterior alínea c), a ser o nº 2, e o anterior nº 2, a ser o nº 3, do novo art. 543º .
Mais significativa é a alteração do art. 458º, que ficou transposto no novo art. 544º, sendo eliminadas as referências a “pessoa colectiva, ou uma sociedade”, assim se clarificando uma situação que já tinha dado origem a interpretações diversas: a partir de agora, no que respeita às pessoas colectivas e sociedades, a responsabilidade pela litigância de má fé passa a ser destas, sem que seja necessário comprovar que os seus representantes estivessem de má fé (deixando de existir a responsabilidade substitutiva, assinalada no RE 14/06/2007-Almeida Simões).
Também o art. 459º sofreu alterações de pormenor: no novo art. 545º, substituiu-se “Ordem dos Advogados” e Câmara dos Solicitadores” por “respetiva associação pública profissional”.
Não haverá pois alterações a este nível com a entrada em vigor do novo Código, continuando a concretização dos traços fundamentais desta figura a ser facilitada pelo art. 542º, nCPC (ex-456º), do qual resultam as quatro situações que a integravam e continuarão a integrar (sempre em conjugação com os princípios da cooperação – 7º -  e de boa fé processual – 8º):
I - deduzir pretensão/oposição, cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar – nº 2, a] (aqui se incluindo quer o saber, quer o que lhe era exigível que soubesse, não ter razão ou não ser verdade o que afirma/alega/pretende);
II – alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa – nº 2, b];
III - praticar omissão grave do dever de cooperação – nº 2, c], 7º e 8º, nCPC;
IV - usar o processo, ou os meios que este lhe coloca à disposição, de forma manifestamente reprovável, de modo a conseguir um objectivo ilegal, entorpecer a acção da justiça, impedir a descoberta da verdade, ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão – nº 2, d].
A litigância de má fé traduz-se pois na "utilização maliciosa e abusiva do processo" (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 356), relevando do “interesse público de respeito pelo processo e pela própria justiça” (Pedro Albuquerque, pág. 55) e da necessidade de “moralizar a lide” (STJ 10/05/2005-Pinto Monteiro), com vista a assegurar “eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos Tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça” (Pedro Albuquerque, pág. 56).
Os Tribunais – em especial os Superiores - são normalmente acusados de alguma benevolência na apreciação desta matéria (de Dias Ferreira a Paula Costa e Silva a queixa é constante), mas importa sublinhar o esforço que nos últimos anos tem sido feito por não deixar passar em claro condutas menos próprias das partes.
Para sermos justos temos também de dizer que normalmente a litigância de má fé é invocada de forma exagerada nos processos: o que em regra sucede é que as partes apresentam as suas versões dos factos, batem-se por elas e não as logram provar na totalidade.
Normalmente não resulta dos autos que as partes, à partida soubessem que o que alegaram, fosse inverídico e por si devesse ser como tal conhecido, ou que tivessem alterado (ainda que de forma negligente) a verdade dos factos, e muito menos que tivessem usado o processo para um fim (ou de uma forma) reprovável.
Algum exagero na pretensão que foi deduzida não é, por si só, litigância de má fé, mas apenas falta de razão, tratada com a (im)procedência da acção, por falta de prova dos factos constitutivos do seu direito ou impeditivos do da doutra parte.
A “litigiosidade séria”, que “dimana da incerteza”, de que falava Luso Soares (pág. 26), continua a ser a regra e ainda bem (sem esquecer, por outro lado, que, sendo peticionada a condenação da parte contrária como litigante de má fé e saindo vencida por não lhe assistir razão, terá de haver lugar a condenação em custas do incidente, nos termos do arts. 527º, nºs 1 e 2, nCPC e 7º, nºs 4 e 8, Regulamento das Custas Processuais e Tabela II anexa).
Mas uma coisa é o livre exercício de direitos processuais, outra, bem distinta, é a mentira consciente, e, processualmente, dela se pretender aproveitar e prevalecer perante os outros, para obter ganhos (de forma também consciente). Isso já se enquadra na área das situações patológicas, que – ocorrendo – têm de merecer punição e punição não direi exemplar, mas que faça sentir à parte que esse tipo de comportamento processual não vale a pena.
Dizer que não assinou uma letra provando-se que a assinou, alegar um inventado furto de uma viatura e peticionar o seu valor à seguradora, pedir um sinal em dobro sabendo não ter sido entregue sinal, serão sempre condutas desonestas, lamentáveis, gratuitas, revelando uma desfaçatez que ultrapassa as raias da desonestidade intelectual, fazendo impor a condenação e sancionamento sem hesitações de quem assim procede.
Os Tribunais não podem servir para permitir, ou deixar passar impunes tal tipo de comportamentos: é com eles, com a sensação de que pode valer tudo, com a sensação da impunidade das atitudes desonestas que se mina a sociedade e a confiança na Justiça.
Este é dos casos claros em que não nos podemos queixar dos instrumentos legais: existem, estão baseados em princípios claros, estão doutrinal e jurisprudencialmente trabalhados e só têm de ser utilizados…”[38].
É desta base que partimos para análise e verificação da litigância de má fé nos presentes autos.
O Tribunal a quo quanto a esta matéria, conclui que “Como reflexo do princípio da cooperação, as partes encontram-se adstritas a um iniludível dever de boa fé processual.
Litiga de má fé a parte que, com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por ação ou omissão, a verdade dos fatos relevantes - má fé substancial - pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça um uso reprovável dos instrumentos adjetivos - má fé instrumental (artº 542º, nº 2 do Código de Processo Civil).
A litigância de má fé é sancionada com pena processual de multa e com indemnização à parte contrária, caso esta formule o pedido correspondente (artº 542º, nº 1 do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, não foi deduzida oposição manifestamente infundada, nem omitidos ou alterados fatos relevantes/feito uso reprovável dos instrumentos adjetivos, apesar de não ter merecido acolhimento pelo Tribunal a nulidade invocada, havendo ainda que ter em conta que o 1º R. não faltou à verdade na contestação, na medida em que não colocou tão pouco em causa ter subscrito o acordo de pagamento e termo de autenticação juntos com a petição inicial.
O que se verificou foi que o 1.º R., em sede de declarações de parte, fez determinadas afirmações quanto à subscrição de tais documentos que, depois, veio admitir não corresponderem à verdade, retratando-se.
Tal é assim suscetível de consubstanciar ilícito criminal, face ao dever de verdade a que o 1º R. se encontra adstrito no âmbito do depoimento de parte prestado e para o qual foi advertido, nada tendo que ver com a litigância propriamente dita que, como se disse, observou os ditames inerentes à boa fé processual.
Consequentemente, entende-se não ser de condenar o 1º R. como litigante de má fé”.
E tem razão o Tribunal a quo: perante os factos apurados e perante a prova produzida, a pretensão da Autora não tem cabimento.
Na litigância de má fé, no que à culpa se reporta, são hoje penalizadas as aludidas condutas, desde que cometidas com dolo ou negligência grave (ao contrário do direito penal em que as culpas grave, simples, leve e levíssima são equiparadas, no direito processual, “valem o dolo e a negligência grave: não a comum”[39]), ainda que alguma jurisprudência, numa tradicional linha restritiva[40], restrinja este alargamento à negligência grave (entendida como “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um”[41]), às prevaricações substanciais, ficando o dolo reservado para as processuais[42].
Ora, o Réu apresentou uma versão dos factos que não logrou provar (vd. os Factos não provados) e apenas isso (o Réu também não negou quaisquer factos pessoais que tivessem resultado provados).
O que se passou no âmbito do seu depoimento de parte é outra questão e pode ter tratamento penal se assim for entendido, mas não releva para efeitos da pretendida litigância de má fé, que respeita à sua conduta processual de parte.
Assim, em concreto, nada há a apontar ao Réu G (nada tendo este alegado que soubesse não corresponder à verdade), ou que, citando Elício de Cresci Sobrinho, soubesse “que a causa que defende é injusta ofende gravemente a Justiça (cf. São Tomás de Aquino, Sum. Theol. IIª 7, 3, ad Resp.); e o saber da injustiça, transformado em acção, é contrário à boa fé”[43].
Inexistindo "utilização maliciosa e abusiva do processo"[44] por parte do Réu G e inexistindo qualquer desrespeito pelo “interesse público de respeito pelo processo e pela própria justiça”[45], ou uma ultrapassagem clara e ostensiva dos limites daquilo a que, como atrás se disse, Luso Soares chamava de “litigiosidade séria" (que "dimana da incerteza"[46]), nada há a alterar ao decidido quanto a este aspecto.
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Em consequência de tudo o exposto, o Recurso interposto pela Autora apenas não procede no que ao aspecto da litigância de má fé releva.
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Nas palavras de Eric Voegelin as “sociedades dependem para a sua génese, a sua existência harmoniosa continuada e a sobrevivência, das acções dos seres humanos componentes. A natureza do homem e a liberdade da sua acção para o bem e para o mal, são factores essenciais na estrutura da sociedade"[47].
Recorrente e Recorridos escolheram o seu caminho de actuação.
Ao Tribunal resta, no "acto de julgar", dar razão à Autora no essencial considerando procedente o seu recurso (tendo, na linha de Paul Ricoeur, como "horizonte um equilíbrio frágil entre os dois componentes da partilha" - "demasiado próximos no conflito e demasiado afastados um do outro na ignorância, no ódio, ou no desprezo" - mas impondo-se, "por um lado, pôr fim à incerteza, separar as partes; por outro, fazer reconhecer a cada um a parte que o outro ocupa na mesma sociedade, em virtude do que o ganhador e o perdedor do processo seriam reputados ter cada qual a justa parte no esquema de cooperação que é a sociedade"[48]).
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DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar parcialmente procedente a apelação apresentada pela Autora e, em consequência:
- julgar a acção totalmente procedente:
- declarando-se a ineficácia em relação à Autora da doação do direito de superfície, com reserva de usufruto (outorgada por escritura pública de 29 de Dezembro de 2021), da fracção autónoma em causa (para habitação, designada pela letra B, correspondente ao r/c direito do prédio em regime de propriedade horizontal denominado de lote 26, sito na ----), pelos Réus G e R, a favor do Réu A, na medida necessária para pagamento da dívida de que a Autora é credora (no montante de €447.606,72, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento);
- reconhecendo-se à Autora o direito a executar a mencionada fracção autónoma no património do Réu A, na referida medida necessária;
- confirmar a decisão do Tribunal a quo, no que concerne à inexistência de litigância de má fé, por parte do Réu G.
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Custas do Recurso a cargo de Recorrente e Recorridos, na proporção de 95% a cargo dos Recorridos.
Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do Código de Processo Civil).
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Lisboa, 05 de Novembro de 2024
Edgar Taborda Lopes
Diogo Ravara
Ana Mónica Mendonça Pavão
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[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] Abrantes Geraldes-Paulo-Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Volume, 3.ª edição, 2022, Almedina, páginas 793-794.
[3] Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, Almedina, 2015, páginas 370-371.
[4] Os Factos colocados em causa pela Recorrente estão destacados com letra em carregado e de maior tamanho (e os não provados também em itálico).
[5] “O atual art. 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” - Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 332.
[6] Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, páginas 193 a 210.
[7] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., página 200.
[8] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 201-205.
[9] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 206-207.
[10] Que acrescenta, relevantemente, que “este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10)”.
[11] Acórdão da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos.
[12] Assinalando ainda que “nessa reapreciação da prova feita pela 2ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido” (Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, publicado nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, Coimbra Editora, 2013, páginas 589 e seguintes(609), com o texto disponível on line em http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf, páginas 17-18 [consultado a 30/10/2024]
[13] Blog do IPPC, 19/05/2017, Jurisprudência (623), em anotação ao Acórdão da Relação de Coimbra de 07/02/2017, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2017/05/jurisprudencia-623.html  [consultado a 30/10/2024]
Vd. também, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 14 de Dezembro de 2022 (Processo n.º 1720/20.9T8GDM.P1-Fernanda Pinheiro.
[14] Carregado e sublinhado nossos.
[15] Menezes Cordeiro, Impugnação Pauliana, Parecer, in Colectânea de Jurisprudência, 1992, tomo 3, página 60.
[16] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, Almedina, 1985, página 496).
Sobre esta matéria, vd. Maria de Fátima Ribeiro, anotação aos artigos 610.º a 618.º, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, (Coordenado por José Carlos Brandão Proença), Universidade Católica Editora, 2019, páginas 693 a 619; Gonçalo dos Reis Martins, anotação aos artigos 610.º a 618.º, in Ana Prata, Código Civil Anotado - Volume I. 2.ª Edição, Almedina, 2019, páginas 826 a 836; João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª edição revista e aumentada, Almedina, 2008; Juan António Fernández Campos, El Fraude de Acreedores: La Acción Pauliana, Publicaciones del Real Colégio de España, Bolonia, 1988; Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2.º volume, AAFDL, 1980, página 494; Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1982, páginas 594 a 604 ; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 4.ª edição, Almedina, 1990, páginas 434-451; Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, III, Lisboa, 1993, páginas 74 a 83 ; Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu regime civil, Almedina, 1995, páginas 722 a 727; Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra Editora, 1996, páginas 56 a 59; Lemos Triunfante, Dos Meios Conservatórios da Garantia Patrimonial do Credor, Porto Editora, 1996, páginas 61 a 98; Mota Pinto, Onerosidade e Gratuitidade das Garantias de Dívidas de Terceiro na Doutrina da Falência e da Impugnação Pauliana, BFDUC, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1983, páginas 93 e seguintes; Álvaro Monjardino, A Impugnação Pauliana e o Valor da Acção, Scientia Juridica, tomo XX(1971), página 537; Vaz Serra, Responsabilidade Patrimonial, BMJ 75, páginas 280 e seguintes; Frederico Freitas e Vasconcelos, Do Fundamento da Rescisão Pauliana, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 8.º, n.º 1 e 2, páginas 125 a 164; Parecer n.º 36/2000, de 21/12/2000, da Procuradoria Geral da República, elaborado por Carlos Fernandes Cadilha, DR II, de 30 de Março de 2001, páginas 5759-5773; Rui Correia de Sousa, Impugnação Pauliana (colectânea de sumários de jurisprudência), Quid Juris, 2002).
[17] O "bem não reentra no património do devedor alienante nem mesmo para o limitado efeito de ser aí executado pelo credor que impugnou procedentemente o acto" (Maria do Patrocínio Paz Ferreira, Natureza Jurídica da Impugnação Pauliana, Revista da Banca, n.º 21, Janeiro/Março 1992, página 90; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 1997, Torres Paulo, CJSTJ, tomo 1, página 52).
[18] Maria do Patrocínio Paz Ferreira, Natureza… cit., página 91.
[19] Menezes Cordeiro, Impugnação..., cit., página 59.
[20] Maria do Patrocínio Paz Ferreira, Natureza…, cit., página 88.
[21] Manuel Henrique Mesquita, Impugnação Pauliana: natureza jurídica do direito do impugnante e efeitos da procedência da acção, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128.º, páginas 256 e 210-224, 251-256. Também o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 1997 e o Acórdão da Relação de Coimbra de 13 de Novembro de 1990, Roger Cunha Lopes, Colectânea de Jurisprudência, tomo 5, página 43.
[22] Vd., também, Acórdão do Tribunal Constitucional 33/2000, de 12 de Janeiro de 2000, Vítor Nunes de Almeida, DR II, 04 de Outubro de 2000, páginas 16138-16139.
[23] Maria de Fátima Ribeiro, anotação ao artigo 616.º, in Comentário…, cit., página 725.
[24]Menezes Cordeiro, Impugnação…, cit., página 58.
Almeida Costa indica como requisitos:
- a anterioridade do crédito - artigo 610.º, alínea a];
- a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito - artigo 610.º, alínea b];
- a má fé por parte do devedor e do terceiro - artigo 612.º (Direito da Obrigações, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1984, páginas 590 a 603.
Antunes Varela, por seu turno, refere:
- um acto lesivo da garantia patrimonial - eventus damni;
- a anterioridade do crédito;
- e a má fé nos actos a título oneroso (Das Obrigações em Geral, II, 4.ª edição, Almedina, 1990, páginas 435 a 441).
[25] Sobre a matéria do ónus da prova, vd., com interesse, até pela referência ao ordenamento jurídico nacional, Juan António Fernández Campos, El Fraude…, cit., páginas 49-50 (“o Código Civil português faz uma repartição «salomónica» do ónus da prova, ajustada às possibilidades reais do credor conhecer a consistência efectiva do património do devedor facilitando assim o exercício da acção de impugnação pauliana: o credor que impugna prova o montante do débito, correspondendo ao devedor provar que o obrigado tem bens susceptíveis de execução de igual ou maior valor que este”[tradução nossa]).
De forma certeira, o Acórdão da Relação de Guimarães de 19 de Outubro de 2017 (Processo n.º 2184/15.4T8CHV.G1-Pedro Damião e Cunha), afirma esta ideia, desta forma: “Reparte-se, assim, o encargo da prova entre o credor e o devedor: aquele prova o passivo e este prova o activo”.
[26] Gonçalo dos Reis Martins, anotação ao artigo 612.º, in Ana Prata, Código Civil, cit., páginas 828-829.
Também, Maria de Fátima Ribeiro, anotação ao artigo 612.º, in Comentário…, cit., página 711.
[27] Fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão direito, para habitação com arrecadação no sótão, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado Lote 26, sito na ….
[28] Gonçalo dos Reis Martins, anotação ao artigo 616.º, in Ana Prata, Código Civil, cit., páginas 833-834.
[29] Gonçalo dos Reis Martins, anotação ao artigo 616.º, cit., página 834.
[30] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, cit., páginas 242-244.
[31] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, cit., página 244.
[32] Assim, também, Maria de Fátima Ribeiro, anotação ao artigo 612.º, in Comentário…, cit., página 710.
[33] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, cit., página 247.
[34] Aliás, o próprio artigo 613.º, n.º 2, do Código Civil, pressupõe que a situação se aplique inicialmente, uma vez que alarga a possibilidade de impugnação contra as transmissões posteriores, à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiro
[35] Como é evidente, o usufruto faz diminuir o valor patrimonial do imóvel em causa, agravando a impossibilidade de a credora obter a satisfação integral do seu crédito.
[36] Relevam ainda a recolha jurisprudencial feita por Rui Correia de Sousa, Litigância de má fé (colectânea de sumários de jurisprudência), Quid Juris, 2001; e o pequeno estudo de António Furtado dos Santos, A punição dos litigantes de má-fé no direito pátrio, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 4, Janeiro de 1948, páginas 44 a 56.
[37] A que ainda acresce Marta Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, [em linha], Dissertação de Mestrado na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, com Menção em Direito Processual Civil, apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sob orientação da Professora Doutora Maria José Oliveira Capelo Pinto de Resende, 2014, Universidade de Coimbra, disponível em
https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/28438/1/Algumas%20reflexoes%20em%20materia%20de%20litigancia%20de%20ma-fe.pdf [consultado a 30/10/2024].
[38] Edgar Taborda Lopes, A litigância de má fé na jurisprudência e doutrina, Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 103-104, Junho-Julho de 2013, páginas 30-31.
[39] Menezes Cordeiro, Litigância de má fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, 2006, página 26.
[40] Dias Ferreira, citado por Menezes Cordeiro afirmava até, que "tão grande é a repugnância dos tribunais em impôr multas, mesmo aos litigantes de má fé que é preciso ser esta evidentíssima para decretarem a condenação" (Da Boa Fé no Direito Civil, I, Almedina, 1984, página 380, nota 446).
[41] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Dezembro de 2001 (Processo n.º 01A3692-Afonso de Melo)
[42] Menezes Cordeiro, Litigância…, cit., página 26.
Sublinhando a benevolência dos Tribunais superiores e, em especial, do Supremo Tribunal de Justiça, vd. Paula Costa e Silva, A Litigância…, cit., página 339.
[43] Elício de Cresci Sobrinho, Dever de Veracidade das Partes no Processo Civil, Edições Cosmos-Livraria Arco-Íris, 1992, página 135.
[44] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, página 356.
[45] Pedro Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina, 2006, página 55.
[46] Fernando Luso Soares, A Responsabilidade Processual Civil, Almedina, 1987, página 26 (citando Carlo Furno).
[47] Eric Voegelin, A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, Vega, 1998, página 95.
[48] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, páginas 168-169; cfr., também, com interesse, François Ost, A Natureza à Margem da Lei - A Ecologia à Prova do Direito, Instituto Piaget, 1997, páginas 19 a 24.