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ARRENDAMENTO
RENDA
NÃO PAGAMENTO DA RENDA
RECIBO
RETENÇÃO NA FONTE
NULIDADE DE ESTIPULAÇÃO CONTRATUAL
Sumário
1. É nula a estipulação contratual da qual decorre, direta ou indiretamente, que o arrendatário obrigado pela lei fiscal à retenção na fonte não deve proceder a tal retenção, devendo, sim, entregar a totalidade da renda ao senhorio. 2. A retenção e entrega à Autoridade Tributária, a título de retenção na fonte devida, de parte do valor da renda extingue a obrigação de pagamento desta contraprestação, nessa parte.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
A. Relatório A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
AAA e BBB instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra RRR, L.da, pedindo que a ação seja “julgada procedente por provada e por via dela: a) Declarar-se resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre autores e ré, com a entrega imediata do locado por esta aos autores livre e desembaraçado de quaisquer pessoas, bens, ónus ou encargos, por falta de pagamento integral de renda e das rendas a partir de agosto de 2022; b) Condenar-se a ré a pagar aos autores a quantia de 22.680,00 € acrescida das rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022, no montante de 1.800,00 € e dos juros legais de mora desde os últimos 5 anos e que se liquidam neste momento em 1.756,80 € e vincendos até efetivo e integral pagamento, para além do montante das rendas que se vierem a vencer até efetiva entrega do arrendado; c) Subsidiariamente, e para o caso de a ré pretender pôr fim à mora desde já se requer o pagamento do acréscimo de 50% nos termos do n.º 1 do art. 1041.º do Código Civil vigente à data da celebração do contrato”.
Para tanto, alegaram que deram de arrendamento à ré um prédio urbano, contra o pagamento da renda mensal de € 600,00, livres de quaisquer ónus, encargos ou impostos. A ré nunca pagou a renda de € 600,00 mensais, mas apenas a quantia de € 480,00 por mês. Está, ainda, em falta o pagamento da totalidade das rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 no valor de € 1.800,00.
Citada a ré, ofereceu esta a sua contestação, defendendo-se por exceção (caducidade, prescrição e abuso de direito) e por impugnação. Pediu a condenação dos autores como litigantes de má-fé.
Realizada a audiência final, o tribunal a quo julgou a ação improcedente, concluindo nos seguintes termos:
Pelo exposto e de acordo com os fundamentos legais invocados, julgo a presente ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolvo a ré RRR, L.da, dos pedidos contra si formulados.
Mais decido não condenar os autores AAA e mulher BBB, como litigantes de má-fé.
Inconformados, os autores apelaram desta decisão, concluindo, no essencial:
4 – Face à prova produzida não pode o tribunal dar como provado os factos números 6, 7, 8 e 9 da matéria dada como provada (…).
5 – Constando do contrato de arrendamento assinado pela ré expressamente que a renda era no valor de 600,00 € líquido de quaisquer ónus, encargos ou impostos, a ré ao pagar 420,00 € jamais poderá estar convicta do cumprimento das suas obrigações como arrendatária, e muito menos depois de interpelada por carta e citada para a presente ação.
6 – (…) [O] tribunal deve dar como provado que:
. “A ré nunca pagou os 600,00 € tal como se obrigou”.
7 – (…) [O] tribunal devia ter dado como provado que:
. “A ré não pagou as rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 no dia e mês a que contratualmente se obrigou”.
8 – (…) [O] tribunal devia ter dado como provado que:
. “Os autores nunca emitiram os recibos das rendas por o montante pago não corresponder ao montante da renda acordada”. (…)
11 – A falta de pagamento da renda integral estipulada equivale à falta de pagamento, constituindo justa causa de despejo nos termos do n.º 3 do art. 1083.º do Código Civil na redação em vigor à data da celebração do contrato introduzida pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro. (…)
13 – (…) [A] interposição da ação vale como interpelação da ré para o cumprimento do pagamento da renda estipulada, pelo que, a falar-se de abuso do direito por inércia no exercício deste quanto ao pagamento do diferencial das rendas quanto muito só o poderia fazer quanto ao vencido há mais de 5 anos à data da interposição da ação, não podendo tal entendimento prevalecer quanto às posteriores a esta data sob pena de se entender estarem os autores impedidos de reclamar a totalidade do pagamento das rendas devidas e acordadas pela ré. (…)
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e por via dele declarar-se resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre os autores e a ré por falta de pagamento integral da renda com a inerente entrega do locado aos autores livre de quaisquer pessoas, bens, ónus ou encargos (…).
A apelada não contra-alegou. A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
As questões de facto suscitadas pelos apelantes são as acima constantes das conclusões transcritas.
As questões parcelares de direito a tratar – todas em torno da determinação da renda fixada do seu pagamento – serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
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B. Fundamentação B.A. Factos provados (tal como enunciados pelo tribunal ‘a quo’) Da petição inicial
1. Autores e ré celebraram um acordo escrito, datado de 29 de Novembro de 2006, epigrafado de CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA O COMÉRCIO, ali constando, entre outros, o seguinte: (…) Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito à (…) e por este contrato cedem o aludido prédio à Segunda Outorgante que nele se obriga a exercer a actividade de comércio. Em contrapartida do arrendamento o segundo outorgante pagará, ao primeiro, a importância de € 600,00 mensais, livre que quaisquer ónus, encargos ou impostos, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar (…); Este arrendamento tem início no dia 1 de dezembro de 2006 e celebra-se por tempo indeterminada.(…)”.
2. Os Autores dirigiram uma carta à ré, datada de 7 de setembro de 2022, com o seguinte teor: “Assunto — Resolução do contrato de arrendamento. Exmos. Senhores, Os meus melhores cumprimentos. Devidamente mandatado pelos M. Constituintes AAA e BBB, venho pela presente expor o seguinte: Como é do conhecimento de V. Exas., entre os M. Constituintes e a V. Empresa foi celebrado, em 29.11.2006, contrato de arrendamento tendo como objeto o prédio urbano sito (…). Nos termos de tal contrato e em contrapartida do gozo do referido imóvel, ficaram V. Exa. obrigados ao pagamento da quantia 600,00 € a título de renda. Sucede, todavia, que desde o início da vigência do contrato que V. Exas. não cumprem integralmente tal obrigação, porquanto deduzem ao valor de mensal renda acordado a quantia de 120,00 €, encontrando-se, por isso, há muito em mora e em dívida com os M. Constituintes no montante atual de, pelo menos, 22.680,00 €. Perante o defeituoso e reiterado incumprimento da obrigação de pagamento das rendas, e nos termos do disposto no n.º 3 do art. 1083.º do CC., introduzidas pela Lei n.º 6/2006, 27 de fevereiro, assiste os M. Constituintes fundamento bastante para promover a resolução imediata do aludido contrato de arrendamento, pretensão que pela presente missiva, e ao abrigo do disposto no art. 9.º do N.R.A.U., comunicam V. Exas.. Por tudo o exposto, deverão V. Exas., na sequência imediata do recebimento desta carta, proceder ao pagamento integral da quantia em dívida e à entrega do locado livre de pessoas e bens e em boas condições. (…)”. Da contestação
3. Os Autores dirigiram uma carta à ré, datada de 9 janeiro de 2020, com o seguinte teor: “Assunto: actualização renda contratual prédio sito (…). Ex.mo Senhor A renda comercial estabelecida contratualmente mantém-se inalterada desde Dezembro de 2006. Pela presente venho comunicar-lhe a necessidade de alteração da renda que vem sendo praticada para o valor de € 800,00 mensais. A nova renda será devida a partir do mês de fevereiro de 2020”.
4. Desde dezembro de 2006 até outubro de 2022, a ré procedeu, por conta do acordo firmado em 1), ao pagamento mensal no valor de 600,00 €, sendo € 120,00 a título de retenção na fonte e 480,00 € por transferência bancária para conta titulada pelos autores.
5. Os valores devidos pelos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 foram pagos entre 8 de agosto e 10 de outubro de 2022. Do articulado de aperfeiçoamento da contestação
6. Ao longo de 16 anos, em momento algum, os autores protestaram da falta de pagamento integral das rendas.
7. Durante dezasseis anos, os autores concordaram e aceitaram o pagamento da renda mensal no valor de líquido de 480,00 €.
8. Os autores não interpelaram a ré para que esta lhes entregasse, mensalmente, a quantia líquida de 600,00 €.
9. A ré exerceu a sua atividade comercial no locado convicta do cumprimento das suas obrigações como arrendatária. B.B. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto 1. Reformulação dos enunciados das proposições de facto
O tribunal a quo deu por não provados os seguintes factos: a) A ré nunca pagou os € 600,00 tal como se obrigou. b) A ré não pagou as rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022. c) Ao longo da vigência do contrato, os autores sempre reivindicaram o pagamento do diferencial das rendas, sem que a ré o pagasse.
Insurgem-se os apelantes contra o julgamento dos factos não provados, pretendendo que se dê por provado que:
(i) A ré nunca pagou os 600,00 € tal como se obrigou;
(ii) A ré não pagou as rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 no dia e mês a que contratualmente se obrigou;
(iii) Os autores nunca emitiram os recibos das rendas por o montante pago não corresponder ao montante da renda acordada.
São estes enunciados claramente conclusivos e de direito. Conceitos como “pagou” ou “obrigou” são manifestamente impertinentes à decisão de facto. Aqui, apenas devem figurar, tanto quanto possível, os puros dados de facto – por exemplo, a ré entregou a quantia (…) –, incluindo as intenções, enquanto factos que são.
Esta deficiente enunciação também caracteriza a decisão do tribunal a quo, não sendo apropriado, por exemplo, o enunciado (não provado): “A ré nunca pagou os € 600,00 tal como se obrigou”. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto dirige-se, na verdade, em boa parte, a uma deficiente enunciação dos factos provados e não provados, e não tanto ao sentido da decisão proferida.
Do mero confronto entre o facto descrito no n.º 4 do leque dos factos provados e a al. a) dos factos não provados, e considerando a matéria assente entre as partes, resulta que esta al. a) deve ser eliminada e que o referido n.º 4 deve ter a seguinte redação: “Desde dezembro de 2006, até outubro de 2022, com intenção de pagar a renda referida no ponto 1 dos factos provados, a ré desembolsou a quantia mensal de € 600,00, destes retendo e entregando ao Estado a quantia de € 120,00, a título de retenção de IRS na fonte, e entregando aos autores € 480,00 por transferência bancária”. É este, na verdade, um facto que não está controvertido. Questão diferente, a tratar em sede de direito, é da qualificação desta conduta como representando o cumprimento pontual do acordado.
Pelo que respeita ao segundo facto que os autores pretendem que seja dado por provado – “a ré não pagou as rendas dos meses de agosto, setembro e outubro de 2022 no dia e mês a que contratualmente se obrigou” –, e mais uma vez, estamos perante matéria conclusiva. Apenas podem ser dadas por provadas as datas de entrega das quantias, sendo questão de direito concluir que esse dia não é aquele a que a ré “contratualmente se obrigou”. Ora, os autores não indicam na petição inicial tais dados de facto (concretas datas) a serem dados por provados.
Também aqui, o facto que os autores pretendem ver provado já foi julgado nesse sentido; e também aqui se verifica uma deficiente enunciação dos factos provados e não provados, por força do recurso a conceitos conclusivos e de direito. Neste sentido, deve ser eliminada a al. b) dos factos não provados (por desnecessária) e reformulado o ponto 5 dos factos provados nos seguintes termos: “Entre 8 de agosto e 10 de outubro de 2022, a ré entregou aos autores a quantia correspondente a três vezes € 480,00, visando liquidar as rendas respeitantes aos meses de agosto, setembro e outubro de 2022”. 2. Não emissão de recibos e motivação desta omissão
Como vimos, pretendem os apelantes que seja dado por provado que “[o]s autores nunca emitiram os recibos das rendas por o montante pago não corresponder ao montante da renda acordada”. Estão em causa dois factos: por um lado, a não emissão de recibos; por outro lado, a motivação dos autores para assim procederem.
O primeiro facto encontra-se assente, por acordo – cfr. os arts. 51.º da contestação e 8.º da resposta. Em rigor, este facto estava subtraído ao objeto da instrução (sem prejuízo do disposto no art. 574.º, n.º 2, segunda parte, do Cód. Proc. Civil), pelo que não se coloca a questão da sua prova.
Na economia da decisão de mérito, este facto é, e si mesmo, pouco relevante. No entanto, como constitui ele, supostamente, a base de uma presunção que conduz à prova de um facto mais relevante, poderá ele ser incluído no leque dos factos assentes, nos seguintes termos: “Os autores nunca emitiram os recibos das quantias entregues pela ré”.
Os apelantes pretendem que se extraia o segundo facto referido – os autores assim agiram “por o montante pago não corresponder ao montante da renda acordada” – a partir da referida omissão de emissão de recibos, com recurso às regras da experiência. No entanto, a não emissão de recibos pode ter várias causas. Desde logo, pode resultar de mera inércia dos senhorios, por nunca terem sido pedidos pela ré, considerando as partes o registo bancário da transferência seria prova bastante do pagamento. As regras da experiência não impõem, pois, a decisão no sentido da prova da alegada motivação dos autores para a não emissão de recibos. 3. Factos complementares e, ou, concretizadores alegados
Entendem os apelantes que, “face à prova produzida não pode o tribunal dar como provado os factos números 6, 7, 8 e 9 da matéria dada como provada”. Está em causa a matéria respeitante ao abuso do direito alegado.
O tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:
No que concerne aos factos introduzidos na lide por via do convite ao aperfeiçoamento dirigido à ré, estes resultaram provados pela concatenação dos depoimentos de BG (mulher do legal representante da ré) e PPP (nora dos autores). Na verdade, esta última trouxe, a nosso ver, a (verdadeira) razão desta ação. Trabalhando há cerca de 24 anos com os seus sogros, em comércio de roupa, deixou escapar que há cerca de dois anos ficaram sem a loja onde funcionavam, demonstrando desassossego pelo facto de não poderem usufruir do espaço objeto dos presentes autos. Por seu turno, BG, pese embora tenha assumido nunca ter lido o contrato de arrendamento, demonstrou saber, entre outros, que o valor da renda era acordado era de € 600,00, aqui se incluindo a retenção na fonte de € 120,00.
O depoimento de QQQ foi desconsiderado, na medida em que prestou um testemunho agressivo, pouco parcial, talvez fruto do diferendo judicial que teve em tempos com a ré.
Afirmam os recorrentes que o testemunho de PPP dá conforto à sua impugnação da decisão sobre os factos complementares e concretizadores alegados pela ré, dados por provados pelo tribunal a quo. No entanto, este testemunho não tem a relevância que os autores lhe atribuem.
A testemunha confirmou aquilo que não está controvertido: a ré “nunca pagou os € 600,00”, isto é, nunca entregou este montante diretamente aos autores. No mais, afirmou que presenciou alguns protestos do autor junto de um funcionário da demandada, tendo por objeto o valor e a pontualidade do pagamento da renda.
No entanto, não nos é dado o concreto contexto em que surgem tais protestos. Não sabemos, assim, se foram justificados por um conjuntural pagamento (atrasado ou inferior ao devido) nem se estava em causa um arrependimento com a fixação de “€ 600,00, por causa do valor ser inferior ao valor real”.
O depoimento da testemunha QQQ também não contraria relevantemente a decisão do tribunal a quo. Diz a testemunha que o autor afirmou, referindo-se ao gerente da ré: “Este não paga as rendas atrasadas. A gente combinou um preço e ele não paga”. Ficamos sem saber quais os valores em litígio e se estamos perante um problema conjuntural ou, diferentemente, um diferendo que se prolongou durante toda a relação contratual.
Em suma, à luz destes depoimentos, não sabemos qual o valor pago nos meses em que ocorreram os pontuais protestos do autor, designadamente, se foi de € 480,00 ou, diferentemente, por exemplo, de € 300,00. Assim, não sabemos se os protestos tinham alguma coisa a ver com a retenção na fonte. E também não sabemos se tinha a ver com a pretensão do autor de aumentar a renda para € 800,00 mensais, como foi referido no depoimento do representante da ré.
Sabemos, no entanto, que o senhorio considerava então corresponder a renda inicialmente fixada a € 600,00 – embora se ignorando se com, ou sem, retenção na fonte –, e não, por exemplo, a € 750,00 ou a € 800,00. O autor considerava-se pago com a liquidação de uma renda de € 600,00 – como, aliás, consta da missiva descrita no ponto 2 dos factos provados. Todavia, não resultou claro destes depoimento se, por vontade das partes, sobre este valor incidiria uma retenção na fonte.
Não deixando de acompanhar as reservas que estes dois testemunhos mereceram ao tribunal a quo, afigura-se-nos, no entanto, que a pronúncia de facto deve ser alterada, de modo a ajustar-se melhor à prova produzida, podendo ser um pouco mais circunstanciada.
Deve, pois, ser dado por provado (já empregando a numeração que se virá a adotar adiante):
7 – Ao longo de 16 anos, nalgumas ocasiões, o autor protestou junto de um funcionário da ré por, supostamente, não ter sido nessa ocasião paga integralmente ou em tempo a renda acordada, sendo esta de € 600,00.
8 – Durante dezasseis anos, os autores nunca recusaram o pagamento da renda mensal no valor de líquido de € 480,00.
9 – Os autores não interpelaram o legal representante da ré para que esta lhes entregasse, mensalmente, a quantia líquida de € 600,00.
10 – A ré exerceu a sua atividade comercial no locado convicta do cumprimento das suas obrigações como arrendatária. 4. Conclusão sobre a impugnação da decisão de facto
Em resultado do exposto, deve, no essencial, ser mantida a decisão de facto do tribunal a quo, improcedendo a sua impugnação, apenas se aditando a não emissão de recibos e reformulando os enunciados verbais conclusivos, para além de se alterar a decisão respeitante aos factos complementares e concretizadores alegados pela ré. Com estas alterações, a decisão original é agora reproduzida, embora com uma sistematização distinta, mais ajustada à crónica dos factos essenciais.
São, pois, os seguintes os factos a considerar na decisão do recurso: 1. Declarações das partes
1 – Em 29 de novembro de 2006, autores e ré subscreveram o documento intitulado CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA O COMÉRCIO, neste constando, além do mais, o seguinte:
1.Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito (…) e por este contrato cedem o aludido prédio à Segunda Outorgante que nele se obriga a exercer a atividade de comércio.
2.Em contrapartida do arrendamento o segundo outorgante pagará, ao primeiro, a importância de € 600,00 mensais, livre que (sic) quaisquer ónus, encargos ou impostos, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar (…).
3.Este arrendamento tem início no dia 1 de dezembro de 2006 e celebra-se por tempo indeterminada.
2 – Datada de 9 de janeiro de 2020, os autores dirigiram uma carta à ré com o seguinte teor:
Assunto: atualização renda contratual (…).
A renda comercial estabelecida contratualmente mantém-se inalterada desde dezembro de 2006.
Pela presente venho comunicar-lhe a necessidade de alteração da renda que vem sendo praticada para o valor de € 800,00 mensais.
A nova renda será devida a partir do mês de fevereiro de 2020.
3 – Datada de 7 de setembro de 2022, os autores dirigiram uma carta à ré com o seguinte teor:
Assunto – Resolução do contrato de arrendamento. (…)
Como é do conhecimento de V. Exas., entre os M. Constituintes e a V. Empresa foi celebrado, em 29.11.2006, contrato de arrendamento (…).
Nos termos de tal contrato e em contrapartida do gozo do referido imóvel, ficaram V. Exa. obrigados ao pagamento da quantia 600,00 € a título de renda.
Sucede, todavia, que desde o início da vigência do contrato que V. Exas. não cumprem integralmente tal obrigação, porquanto deduzem ao valor de mensal renda acordado a quantia de 120,00 €, encontrando-se, por isso, há muito em mora e em dívida com os M. Constituintes no montante atual de, pelo menos, 22.680,00 €.
Perante o defeituoso e reiterado incumprimento da obrigação de pagamento das rendas, e nos termos do disposto no n.º 3 do art. 1083.º do CC., introduzidas pela Lei n.º 6/2006, 27 de fevereiro, assiste os M. Constituintes fundamento bastante para promover a resolução imediata do aludido contrato de arrendamento, pretensão que pela presente missiva, e ao abrigo do disposto no art. 9.º do N.R.A.U., comunicam V. Exas..
Por tudo o exposto, deverão V. Exas., na sequência imediata do recebimento desta carta, proceder ao pagamento integral da quantia em dívida e à entrega do locado livre de pessoas e bens e em boas condições. 2. Execução do acordo
4 – Desde dezembro de 2006, até outubro de 2022, com intenção de pagar a renda referida no ponto 1 – factos provados –, a ré desembolsou a quantia mensal de € 600,00, retendo e entregando ao Estado a quantia de € 20,00, a título de retenção de IRS na fonte, e entregando aos autores € 480,00 por transferência bancária.
5 – Os autores nunca emitiram os recibos das quantias entregues pela ré.
6 – Entre 8 de agosto e 10 de outubro de 2022, a ré entregou aos autores a quantia correspondente a três vezes € 480,00, visando liquidar as rendas respeitantes aos meses de agosto, setembro e outubro de 2022.
7 – Ao longo de 16 anos, nalgumas ocasiões, o autor protestou junto de um funcionário da ré por, supostamente, não ter sido nessa ocasião paga integralmente ou em tempo a renda acordada, sendo esta de € 600,00.
8 – Durante dezasseis anos, os autores nunca recusaram o pagamento da renda mensal no valor de líquido de € 480,00.
9 – Os autores não interpelaram o legal representante da ré para que esta lhes entregasse, mensalmente, a quantia líquida de € 600,00.
10 – A ré exerceu a sua atividade comercial no locado convicta do cumprimento das suas obrigações como arrendatária. B.C. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar: 1. Qualificação da relação negocial 2. Renda fixada pelas partes 2.1. Sentido de “€ 600,00 mensais, livre [de] quaisquer (…) impostos” 2.1.1. Dizer € 600,00 não significa dizer € 800,00 2.1.2. Livre de imposto não é igual a obrigação de suportar o imposto 2.2. Conclusão: sentidoque deve valer para a para a declaração 3. Licitude da conduta da ré 4. Responsabilidade pelas custas Qualificação da relação negocial
Não merece censura a qualificação da relação negocial existente entre as partes feita na sentença recorrida – como sendo um contrato de arrendamento urbano para o exercício do comércio (ou seja, para fins não habitacionais). Nesta se pode ler:
Estabelece o art. 1022.º do Código Civil que “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”, designando-se arrendamento quando versa sobre bens imóveis – cfr. o art. 1023.º do Cód. Civil. // São elementos caracterizadores do dito contrato: a obrigação de uma parte proporcionar à outra o gozo de parte de uma coisa imóvel; que esse gozo seja temporário e que tenha como contrapartida uma retribuição (renda). // Da matéria dada como provada resulta, indubitavelmente, estarmos perante um contrato de arrendamento comercial.
Não obstante, no essencial, considerar provados os fundamentos de facto da demanda, e de considerar que estes poderiam conduzir à procedência dos pedidos, o tribunal recorrido julgou a ação improcedente, por ter julgado procedente uma exceção perentória arguida. Para que se possa concluir ocorrer um exercício abusivo do direito é necessário, logicamente, que se possa afirmar a existência desse direito. Vejamos, pois, se é de acompanhar a posição do tribunal a quo no sentido de assistir aos autores o direito que pretendem exercer por meio desta ação. 1. Renda fixada pelas partes
Resulta dos factos provados, e assim foi considerado pelo tribunal a quo, que as partes declararam por escrito acordar que a renda devida pela ré teria o valor (líquido) de “€ 600,00 mensais, livre [de] quaisquer ónus, encargos ou impostos”. Na sentença apelada, discorre-se sobre a intenção das partes, ao subscreverem o documento intitulado “Contrato de Arrendamento para o Comércio”, em especial, ao fixarem o montante da renda devida pela ré inquilina. Neste âmbito, o tribunal a quo qualificou como “ponto fundamental” a “natureza dos € 600,00” respeitantes à renda devida. E concluiu a motivação da convicção sobre a matéria de facto com a afirmação de que, “seguramente” os autores “nunca assumiram que lhes assistia tal montante”, isto é, que lhes era contratualmente devida a renda mensal de € 600,00 líquidos.
Não obstante estar seguro de que os autores nunca se consideraram credores da renda líquida de € 600,00 e de que “a ré entende que desse valor, terá de deduzir a retenção na fonte”, a sentença impugnada concluiu que “o tribunal não se encontra habilitado para conhecer a vontade real dos contraentes”. Os comportamentos das partes na execução do contrato poderiam ter aqui constituído um valioso subsídio do apuramento da vontade real dos contraentes: por um lado, ao longo de 16 anos (e ressalvada a tentativa de aumento da renda para € 800,00 mensais), o autor nunca reclamou o pagamento de uma quantia diferente dos mencionados € 600,00 mensais; por outro lado, a ré sempre liquidou a quantia de € 480,00, entregando € 120,00 à Autoridade Tributária. No entanto, nada consta de concludente no leque dos factos provados a este respeito.
Se a intenção do declarante, quanto ao sentido da sua declaração, é uma questão de facto, o sentido da declaração que deve valer é uma questão de direito. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (art. 236.º, n.º 1, do Cód. Civil).
Cabe-nos, pois, no respeito pelo limite imposto pelo n.º 1 do art. 238.º do Cód. Civil, fixar o âmbito e alcance da cláusula 2.ª do contrato de arrendamento. 1.1. Sentido de “€ 600,00 mensais, livre [de] quaisquer (…) impostos”
O enunciado contratual que nos ocupa tem o seguinte teor:
2.
Em contrapartida do arrendamento o segundo outorgante pagará, ao primeiro, a importância de € 600,00 mensais, livre que (sic) quaisquer ónus, encargos ou impostos, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar (…).
Está em causa a fixação da renda, objeto de uma prestação identitária do contrato de arrendamento.
Estabelece o n.º 1 do art. 1075.º do Cód. Civil que, no arrendamento de prédios urbanos, “a renda corresponde a uma prestação pecuniária periódica”. Resulta deste enunciado, no confronto com o n.º 2 do mesmo artigo e com o disposto no art. 1039.º do Cód. Civil, que a renda consiste numa prestação pecuniária (quantitativamente homogénea) que se renova periodicamente. Isto não significa que seja inválida a estipulação desta contraprestação variável (ou conjunto de diferentes prestações únicas distintas) pelo gozo de um espaço físico; apenas significa que não é ela uma renda, para os efeitos previstos no art. 1075.º do Cód. Civil.
No caso dos autos, resultou provado que as partes qualificaram o negócio jurídico que celebraram de contrato de arrendamento para fins não habitacionais (para comércio) – no que foram acompanhadas pelo tribunal a quo. Como “contrapartida do arrendamento”, foi estipulado o pagamento da “importância de € 600,00 mensais, livre que (sic) quaisquer ónus, encargos ou impostos”.
O efetivo valor da renda acordada não deve ser indeterminado. No entanto, no caso dos autos, a questão da determinação da prestação coloca-se, por não ser claro o sentido do inciso “livre que (sic) quaisquer (…) impostos”. Prestam-se estes dizeres, tal como os autos o revelam, a diferentes interpretações.
Por um lado, este segmento poderá apenas significar que o inquilino não deve proceder a qualquer retenção na fonte de imposto sobre rendimentos prediais. Neste caso, a renda acordada é certa e fixa, tendo o valor de € 600,00. Por outro lado, poderá querer significar, que a renda corresponde ao valor indeterminado correspondente ao resultado da soma do valor indicado (€ 600,00) com valor (indeterminado) do imposto que virá a ser devido pelo senhorio – que o inquilino desconhece e não tem obrigação de conhecer. Neste caso, a renda variará ao sabor, designadamente, da alteração das taxas de IRS ou de IRC.
Em rigor, o tribunal a quo não fixou, em toda a sua extensão, o âmbito e o alcance desta estipulação contratual, limitando-se, sim, a recusar o sentido que lhe é dado pela ré, afirmando depois “ser devida a importância de € 600,00 aos autores, já depurada de quaisquer encargos relativos a, designadamente, obrigações fiscais (aqui se incluindo a retenção na fonte)”. Ora, afigura-se-nos incontroverso que decorre da cláusula 2.ª do contrato de arrendamento que ficou acordado que a ré entregaria aos autores a (totalidade da) quantia mensal de € 600,00. Mas o que importa verdadeiramente apurar é se essa quantia corresponde à renda (na sua totalidade).
Dito de outro modo, o que se pretende não é concluir, pela negativa, que o enunciado contratual não tem determinado sentido; pretende-se, sim, pela positiva, fixar o sentido que deve valer para a declaração negocial, em toda a sua extensão e com todas as suas consequências – o seu âmbito e alcance. O que se trata aqui é, pois, de apurar o que se pretende dizer, quando se diz que a renda líquida é de € 600,00. 1.1.1. Dizer € 600,00 não significa dizer € 800,00
Resulta claramente dos factos provados que as partes não acordaram que a renda devida é superior a € 600,00, isto é, por exemplo, que é de € 750,00 ou de € 800,00. Aliás, tal narrativa nunca foi adotada pelos autores nestes autos, nunca se arrogando do direito de receber mais de € 600,00 e nunca alegando que a ré tem outra obrigação (remuneratória) que não seja entregar-lhes esta quantia (por inteiro).
Importa aqui, no entanto, desenvolver brevemente o raciocínio que está subjacente a esta hipótese de interpretação, de modo a afastarmos claramente um determinado sentido que se poderia dar ao segmento “livre [de] quaisquer (…) impostos”.
Os autores não reclamam o pagamento de € 600,00 (deduzido dos € 480,00 já liquidados) acrescido do valor do imposto que devem liquidar ao Estado. Por exemplo, admitindo-se que são sujeitos passivos de um imposto liquidado à taxa de 25%, não reclamam o pagamento da quantia de € 800,00 (deduzido dos € 480,00 já liquidados) – correspondente a x = 600 + 0,25*x. Ou seja, os autores não consideram que o valor da renda corresponde a € 600,00 mais o imposto de que os próprios são devedores ao Estado. Consideram, sim, no que são acompanhados pelo tribunal a quo, que a renda é satisfeita mediante a entrega da quantia total de € 600,00.
Note-se que, mesmo que se trabalhe com a taxa de retenção na fonte adotada pela ré – considerando os sujeitos passivos residentes na Região Autónoma dos Açores –, isto é, com a taxa de 20%, se entendessem que a renda correspondesse a € 600,00 mais imposto, teriam os autores reclamado o pagamento de € 750,00 – correspondente a x = 600 + 0,2*x.
Não vale aqui dizer que os autores não se julgam titulares do direito a € 600,00 mais imposto, não pedindo o valor do imposto, porque a ré já liquidou esse tributo – não querendo enriquecer sem causa. É que, por um lado, o valor retido na fonte nada tem a ver com o valor efetivamente devido ao Estado no fim do exercício (ano fiscal), pois resultam da aplicação de taxas diferentes. Por outro lado, ainda que se considere a taxa adotada pela ré (20%), apenas foi liquidado ao Estado € 120,00, quando € 600,00 corresponde ao valor líquido de imposto, à referida taxa de 20%, de uma matéria coletável de € 750,00. O mesmo é dizer que à taxa de 20% (e para garantir o valor líquido de € 600,00), deve ser entregue ao Estado € 150,00, e não € 120,00 (valor da retenção na fonte efetuada), pelo que a ré ainda seria devedora de € 30,00 mensais (que os autores teriam de entregar depois ao Estado, para liquidação do imposto devido sobre a renda efetiva de € 750,00).
Não é este sentido insólito que se deve adotar para o enunciado da cláusula 2.ª do contrato de arrendamento. A comunicação dos autores transcrita no ponto 2 – factos provados – evidencia bem qual é a renda acordada, no seu entender: “nos termos de tal contrato e em contrapartida do gozo do referido imóvel, ficaram V. Exa. obrigados ao pagamento da quantia 600,00 € a título de renda”. 1.1.2. Livre de imposto não é igual a obrigação de suportar o imposto
Não menos insólita é a interpretação alternativa da cláusula 2.ª do contrato de arrendamento que corresponde à posição do tribunal a quo, se desta extrairmos todas as suas consequências, revelando o pleno âmbito e alcance da norma. De acordo com esta interpretação, a cláusula 2.ª do contrato de arrendamento deve ser lida do seguinte modo:
“Em contrapartida do arrendamento, a locatária pagará aos locadores a quantia de € 600,00 por mês de gozo do locado, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar, acrescida do valor correspondente ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incidente sobre a referida quantia mensal, valor este a pagar aos locadores no ano civil seguinte, depois de apurado, ou seja, depois de estes receberem da Autoridade Tributária a nota de liquidação que revela o imposto proporcionalmente pago sobre a referida quantia mensal, de modo a que tais € 600,00 sejam livres de impostos”.
Trata-se de uma interpretação do clausulado contratual verdadeiramente esdrúxula. A ela nunca chegaria um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário.
O tribunal a quo, por um lado, apegou-se em demasia à letra da cláusula analisada, quando é evidente que esta não foi redigida com rigor, para ser aplicada à relação contratual dos autos: para além do uso indevido do pronome relativo “que”, refere-se tal enunciado a um inexistente “segundo outorgante” (quando temos, sim, uma segunda outorgante) e afirma que a renda apenas será paga “ao primeiro” outorgante (e não aos primeiros outorgantes), como se a senhoria a ela não tivesse direito.
Por outro lado, o tribunal a quo não foi coerente nem consequente com a sua interpretação do inciso “livre (…) de quaisquer (…) impostos”. Se o fosse, teria ficcionado que as partes declararam que a renda devida seria de € 750,00 ou € 800,00 – para “compensar” o imposto devido –, o que ninguém alegou e nenhuma prova corroborou. Não o podendo fazer, por não corresponder à factualidade provada, deveria ter concluído que tal inciso – “livre (…) de quaisquer (…) impostos” – tem o insólito sentido acima referido – aos € 600,00 mensais acresceria o “valor correspondente ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incidente sobre a referida quantia mensal, valor este a pagar aos locadores no ano civil seguinte, depois de apurado, ou seja, depois de estes receberem da Autoridade Tributária a nota de liquidação que revela o imposto proporcionalmente pago sobre a referida quantia mensal, de modo a que tais € 600,00 sejam livres de impostos”.
Em suma, o sentido sufragado pelo tribunal recorrido, tomado em todas as suas inevitáveis consequências, é insustentável, não podendo ser acolhido. 1.2. Conclusão: sentidoque deve valer para a para a declaração
A única interpretação compatível com os critérios hermenêuticos aplicáveis às declarações negociais consagrados no Código Civil é a que dá à cláusula analisada o sentido de dever a renda estabelecida (€ 600,00) ser entregue na sua totalidade aos senhorios, sem qualquer retenção. É este o sentido que o declaratário normal retira da cláusula 2.ª do contrato de arrendamento. Não cabe aqui conjeturar sobre o propósito dos autores com a consagração desta cláusula, mas a não emissão de recibos de renda e a ausência de uma interpelação escrita (na qual se refira que não há lugar ao pagamento de imposto sobre o rendimento predial) poderá representar um indício desse propósito.
Em suma, as partes declararam acordar que a renda mensal é de € 600,00 mensais, devendo esta ser integralmente entregue aos autores, sem qualquer retenção na fonte. Se estes se encarregariam, oportunamente, de, documentando a operação, mediante a emissão de recibo, observar as suas responsabilidades tributárias perante a Administração Fiscal, ou não, é uma questão que já exorbita o objeto do contrato (e da ação). 2. Licitude da conduta da ré
À questão “qual é o valor da renda inicialmente acordado (?)” – isto é, o valor da “prestação pecuniária periódica” (art. 1075.º, n.º 1, do Cód. Civil) –, se € 600,00, se outro – tertium non datur –, respondemos, sem hesitação, que é o indicado: € 600,00 mensais. Ora, sendo esta a renda acordada, é inevitável concluir que o incumprimento contratual imputado à ré que fundamenta o pedido não é, em rigor, a falta de pagamento da renda, mas sim a falta de entrega do seu quantitativo total aos autores, isto é, é o facto de a ré não ter entregado aos autores – mas sim à Autoridade Tributária – a parte da renda correspondente à retenção na fonte de IRS.
Está, pois, em discussão a regularidade, à luz do clausulado acordado, da entrega de parte da renda a terceiro (Autoridade Tributária), discussão esta que só pode ter lugar depois de analisarmos a regularidade da própria clausula contratual invocada.
A cláusula 2.ª do contrato de arrendamento, considerando o seu âmbito e alcance acima fixados, pode, no que para o caso releva, ser cindida em duas diferentes normas contratuais: a) a renda é de € 600,00 mensais; b) a renda deverá ser integralmente entregue aos senhorios, não devendo ser realizada a retenção de IRS na fonte.
Sendo manifesta a validade do conteúdo descrito na al. a), resta perceber se também é válido o conteúdo referido na al. b).
Estabelece o n.º 1 do art. 98.º do CIRS (retenção na fonte – regras gerais) que, “[n]os casos previstos nos artigos 99.º a 101.º (…), a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, (…) são obrigadas, no ato do pagamento (…) a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses atos ocorrem” – o sublinhado é nosso, obviamente. Dispõe, por seu turno, a al. e) do n.º 1 do art. 101.º do CIRS (retenção sobre rendimentos de outras categorias) que “[a]s entidades que disponham (…) de contabilidade organizada são obrigadas a reter o imposto, mediante a aplicação (…) das seguintes taxas: e) 25 %, tratando-se de rendimentos da categoria F” – sendo esta a taxa nacional.
Esta modalidade de “substituição tributária” encontra-se abrangida pela norma geral contida no n.º 1 do art. 20.º da LGT, tal como resulta do seu n.º 2 e do art. 34.º da LGT, constituindo a violação da imposição legal um ilícito contraordenacional, nos termos previstos no art. 114.º, n.º 3, do RGIT. O mesmo é dizer que, dispondo a ré de contabilidade organizada (art. 123.º do CIRC), estava ela obrigada a entregar à Autoridade Tributária, e não aos autores, o valor da renda correspondente à retenção na fonte.
Sendo a retenção na fonte obrigatória, uma cláusula com o conteúdo acima descrito na al. b) – com um âmbito de aplicação irrestrito, e não apenas limitado ao caso (não alegado nem provado) de dispensa de retenção na fonte (art. 101.º-B do CIRS) – é claramente violadora de normação imperativa. Isto significa que, sendo inválida e ineficaz esta estipulação (art. 294.º do Cód. Civil), não obriga ela a ré, pelo que a sua insatisfação não representa um incumprimento contratual.
Ainda que se entendesse ser a cláusula 2.ª em análise totalmente válida, sempre seria de concluir que a ré não incumpriu o seu dever de pagar a renda. Com efeito, a ré efetuou a prestação acordada, na sua totalidade, embora o tenha feito, em parte, a terceiro (a Autoridade Tributária). Ora, a prestação feita a terceiro extingue a obrigação, quando a lei assim o determina (art. 770.º, al. f), do Cód. Civil). Determinando a lei que uma parte da renda deve ser retida e entregue ao Estado, não poderá esta entrega deixar de ter efeito liberatório no contexto da execução do contrato.
Em conclusão, a retenção na fonte realizada pela ré não pode ser qualificada como um incumprimento da obrigação de liquidação da renda, pelo que todos os pedidos formulados, fundados no (inexistente) incumprimento contratual, devem improceder. 3. Responsabilidade pelas custas
A responsabilidade pelas custas da apelação cabe aos apelantes, por terem ficado vencidos – art. 527.º do Cód. Proc. Civil.
C. Dispositivo C.A. Do objeto do recurso
Em face do exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em negar provimento ao recurso. C.B. Das custas
Custas da apelação a cargo dos apelantes. * Notifique.
Lisboa 5/11/2024
Paulo Ramos de Faria
Luís Filipe Pires de Sousa
Alexandra de Castro Rocha