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RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL
PRESSUPOSTOS
DECISÃO JUDICIAL
ERRO GROSSEIRO
PRÉVIA REVOGAÇÃO DA DECISÃO
Sumário
1. A norma do n.º 2 do art. 13.º do RRCEE concorre, juntamente com a do n.º 1, para a configuração do conteúdo do direito de indemnização emergente da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo exercício da função jurisdicional. 2. Por conseguinte, só após a demonstração da prévia revogação prévia da decisão portadora do erro judiciário é que o tribunal deve entrar na apreciação sobre a existência ou inexistência de tal erro. 3. O advérbio «manifestamente», contido no n.º 1 do art. 13º do RCCEE, abrange todas as situações nele tipificadas, tendo-se por «manifesto» aquilo que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, que não deixa dúvidas a quem quer que seja. 4. Uma decisão judicial é manifestamente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto, quando o erro nela contido é evidente, crasso, palmar, indiscutível, manifesto, ostensivo, ofensivo das mais básicas regras de diligência e zelo a que os magistrados estão obrigados no exercício das suas funções, afastando-se assim o erro vulgar, banal, comum, inerente a um exercício normal da função. 5. O erro a que se reporta o n.º 1 do art. 13.º do RCCEE é, assim, um erro atentatório, clamoroso, indesculpável, que é expectável não ser cometido por um magistrado e que o bom pai de família não cometeria.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório:
MRC instaurou a presente ação declarativa de condenação contra o Estado Português[1], alegando, em síntese, que o Serviço de Finanças de Lagoa, efetuou uma participação contra o A., junto da Direção de Finanças de Faro, que deu origem ao processo de inquérito ____/__, iniciado no dia 26 de outubro de 2016, e que culminou na dedução de acusação pelo Ministério Público contra si, pela pratica, em autoria material e na forma consumada, de um crime de frustração de créditos, p. e p. pelo artigo 88.º n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias.
No âmbito deste processo, numa das vezes que veio a Portugal, foi detido no aeroporto para ser sujeito a interrogatório, situação que lhe causou bastante embaraço e lhe provocou grande mau estar, dado que não existia qualquer fundamento para a instauração de tal processo.
Na sequência desse interrogatório foi sujeito a termo de identidade e residência.
No dia 6 de novembro de 2019 teve de se deslocar a Portugal para estar presente na audiência de julgamento, acusado da prática de um crime do qual veio a ser absolvido, pois a acusação não tinha qualquer fundamento.
A descrita situação causou-lhe danos de natureza patrimonial e não patrimonial pelos quais pretende ser indemnizado.
Conclui assim:
«Termos em que a ação deve ser julgada procedente e, em consequência, ser o R. condenado a pagar ao A. a quantia de €39.802,92 (trinta e nove mil oitocentos e dois euros e noventa e dois cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida dos juros vincendos até seu efetivo e integral pagamento e todas as demais despesas com o presente processo».
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O Estado Português, representado pelo Ministério Público, contestou, ao longo de exageradamente extenso articulado, defendendo-se por impugnação, e concluindo assim:
«Nestes termos e nos melhores de Direito, (...), deverá a presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se o Réu Estado Português do pedido contra si formulado».
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Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, no qual, além do mais, se identificou o objeto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
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Na subsequente tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Face a todo o exposto, conclui-se pela inexistência de erro grosseiro na detenção do arguido/Autor para prestar TIR e na sua sujeição a julgamento criminal, o que determina, ante à ausência de um dos pressupostos de que depende a obrigação do Estado de indemnizar, a improcedência do peticionado».
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Inconformado, o autor interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«A. O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo que conclui pela inexistência de erro grosseiro na detenção do arguido/Autor para prestar TIR e na sua sujeição a julgamento criminal, o que determina, ante à ausência de um dos pressupostos de que depende a obrigação do Estado de indemnizar, a improcedência do peticionado.
D. Inconformado com a decisão proferida pelo tribunal a quo, vem o Recorrente requerer a substituição da referida decisão, pela incorreta interpretação do tribunal a quo das normas legais aplicáveis, nomeadamente a que diz respeito ao artigo 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro (doravante RRCEE), e ao artigo 22.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
X. [A acusação feita contra o autor] é muito grave e carecia do mínimo de fundamento, que não existiu, uma vez que o Recorrente foi absolvido do crime de que vinha acusado.
Y. O pedido indemnizatório do Recorrente decorre de danos decorrentes do exercício da função judicial, estando em causa condutas de um Magistrado do Ministério Público e de um Juiz de Direito.
BB. No erro judiciário, a que alude o artigo 13º do supramencionado diploma, cabem, em concreto, as situações de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade e, em geral, decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais, ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.
EE. O Recorrente foi colocado numa situação de exposição e humilhação públicas perante centenas de pessoas, quando foi detido no aeroporto.
FF. Foi também um momento de grande vergonha e ansiedade, quando o Recorrente foi sujeito a julgamento, sobretudo por não compreender o que estava em causa, pois sempre fez tudo o que estava ao seu alcance para cumprir as suas obrigações fiscais, como tem feito até à presente data.
LL. Face a todo o exposto, conclui-se pela existência do direito do Recorrente a ser indemnizado, pois ficou demonstrado que o ora Recorrente, não foi agente do crime de que foi acusado, nos termos e para os efeitos do artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
AAA. (...) o tribunal a quo não aplicou corretamente o artigo 13.º, da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, pois este não considerou erro grosseiro a situação que o Recorrente viveu, não só pela humilhação e susto que sofreu no dia em que foi detido, como também pelo modo como foi realizada a detenção, a qual foi agravada pela inutilização de todos os meios necessários para que o mesmo fosse avisado».
Remata assim:
«Nestes termos e nos melhores de direito, (...), deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença, condenando-se o Recorrido a pagar a quantia €39.802,92».
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O réu Estado Português respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir se estão reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a responsabilidade civil extracontratual do Estado Português pelo exercício da função jurisdicional.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que:
1. O Autor é sócio-gerente da sociedade BD Lda, NIPC ____, viajando com regularidade pelo mundo em negócios, e tem como residência principal o Reino Unido.
2. Em 28 de Outubro de 2016, a Direcção de Finanças de Faro comunicou ao DIAP de Portimão – 1ª Secção a instauração do processo de inquérito n.º ____/__, pela prática de factos susceptíveis de configurar, em abstracto, a prática de crime de natureza fiscal.
3. A referida sociedade comercial figurava como executada nos processos de execução fiscal com os nºs _____.
4. Por despacho de 31.08.2016 proferido pelo Serviço de Finanças de Lagoa (Algarve), decidiu-se prosseguir com a reversão da execução fiscal acima identificada contra o aqui Autor, “na qualidade de responsável subsidiário”, conforme informação de fls. 58, e cujo teor se dá como reproduzido.
5. Através de escritura pública celebrada a 07.09.2016, no Cartório Notarial de PV, o Autor declarou doar a JEC, sua esposa, o bem imóvel designado por prédio urbano ____, com o valor patrimonial tributário de €323.233,13.
6. Do documento denominado de “parecer”, elaborado pela Direcção de Finanças de Faro, a fls. 184 v-189 e cujo teor se dá por reproduzido, consta, para além do mais, que, na sequência do circunstancialismo descrito em 4), o Autor ficou apenas proprietário de 1/102 avos do prédio urbano ____, com o valor patrimonial de 1.409,78€, o que indiciava potencial dissipação do património por parte do sócio-gerente da sociedade BD Lda.”, aqui Autor, pois o único imóvel cuja propriedade se encontrava inscrita a favor do Autor era insuficiente para garantir o pagamento da quantia peticionada no âmbito das execuções fiscais pendentes contra o Autor e a referida sociedade.
7. Em 15/12/2016, o Autor efectuou um acordo de pagamentos (PERES – Plano Especial de Redução de Endividamento do Estado), com a Autoridade Tributária, tendo sido acordado o pagamento do valor em dívida em 150 prestações mensais.
8. Em 01/09/2017, o Ministério Público proferiu despacho de acusação contra o aqui Autor, a quem imputou, como autor material e na forma consumada, a prática de um crime de frustração de créditos, previsto e punível pelo artigo 88º do RGIT.
9. No aludido despacho, lê-se, para além do mais, o seguinte: “10º - O arguido, com a doação efectuada a JEC a 7 de Setembro de 2016, ou seja, posteriormente à data em que foi proferido o despacho de reversão, agiu com o propósito de frustrar a garantia do crédito tributário, evitando uma eventual penhora do imóvel doado, por parte da Fazenda Pública, bem sabendo que o outro imóvel de que era proprietário não seria suficiente para garantir o pagamento da dívida fiscal; 11º - O arguido agiu com o propósito de impedir a satisfação dos referidos créditos, já apurados, pela Fazenda Pública; 12º - O arguido não é proprietário de outros bens suficientes para garantir o pagamento dos impostos de que é devedor ao Estado e relativamente aos quais foram instaurados processos de execução fiscal; 13º - Por tal razão, ficou a Fazenda Pública impossibilitada de obter a satisfação do seu crédito no caso de incumprimento do plano de pagamento em prestações, designadamente através dos referidos processos de execução fiscal, porquanto o património do arguido não é suficiente para liquidar o crédito bancário”.
10. Distribuído os autos de inquérito no Juízo Local Criminal de Portimão – Juiz 2, e por despacho de 17.01.2018, foi recebida a acusação pública, não tendo sido designado data para realização do julgamento face à falta de prestação de termo de identidade e residência por parte do ali arguido, aqui Autor.
11. Por despacho de 24.11.2018, o ora Autor foi declarado contumaz, mais tendo a Mmª Juiz de Direito determinado a emissão de mandados de detenção do Autor, a fim do mesmo prestar TIR, para efeitos de cessação da declaração de contumácia.
12. Através de ofício remetido em 15.01.2019, o Juízo Local Criminal de Portimão – Juiz 2 solicitou à GNR de Almancil que desse cumprimento ao mandado de detenção do ora Autor, que nessa ocasião lhe era remetido, pelo tempo estritamente necessário, apenas para realização das diligências que ali se encontravam descritas, nomeadamente, que o mesmo prestasse TIR, que lhe fosse entregue cópia da acusação pública e do despacho que a havia recebido e, bem assim, que o mesmo fosse notificado nos termos do artigo 287º do Código de Processo Penal, de que poderia arrolar testemunhas e que tal rol poderia ser alterado ou aditado, e ainda que lhe havia sido nomeado como defensor o Dr. ZL.
13. Do mandado cuja elaboração foi determinada em 11), constava que o arguido, aqui Autor, deveria ser sido restituído à liberdade assim que o ordenado em 12) fosse cumprido.
14. Em 09/07/2019, o SEF informou os autos de que havia interceptado o ora Autor na fronteira de entrada em Portugal, no Posto de Fronteira do Aeroporto de Faro, tendo o mesmo prestado TIR e sido notificado da acusação pública contra si deduzida, tendo sido, após a concretização das diligências, restituído à liberdade.
15. Por despacho proferido em 24.09.2019, foi declarada a cessação da contumácia a que ora Autor se encontrava sujeito e foi designado o dia 06.11.2019, pelas 14h00, para realização da audiência de discussão e julgamento.
16. No dia 06/11/2019 realizou-se a primeira sessão da audiência de julgamento, tendo o ora Autor prestado declarações e solicitado a dispensa de comparecer na continuação da audiência de julgamento, o que foi autorizado pelo Tribunal.
17. No âmbito da diligência referida em 16), o Tribunal determinou que solicitasse à Autoridade Tributária que informasse se o plano de pagamentos referido no artigo 29º da presente contestação se encontrava a ser cumprido pelo ora Autor e, bem assim, qual o montante que ainda se encontrava em dívida.
18. A Direcção de Finanças de Faro, por email remetido em 15/11/2019, informou os autos que o plano de pagamentos encontrava-se a ser cumprido pelo ora Autor, encontrando-se em dívida o montante total de 76.645,17€.
19. Em 13/12/2019, o Tribunal proferiu sentença, tendo julgado a acusação improcedente, e decidido absolver o Autor da prática do crime que lhe era imputado, decisão que transitou em julgado a 27.01.2020.
20. Nos termos da sentença referida em 19), o Tribunal considerou provada, nomeadamente, a seguinte factualidade: (…)3. Em Julho de 2016, a sociedade BD, Lda. era devedora à Fazenda Nacional da quantia de €85.744,34; (…) 5. A 31 de Agosto de 2016, foi elaborado despacho de reversão do processo de execução fiscal, procedendo-se à citação do arguido; 6. Por escritura pública celebrada a 7 de Setembro de 2016, o arguido MRC doou à sua esposa JEC – com quem era casado no regime de separação de bens – o imóvel _____, com o valor patrimonial tributário de 323.233,13€; 7. Para além deste imóvel, o arguido era proprietário de 1/102 avos do prédio urbano ____, com o valor patrimonial tributário de €1.409,78; (…) 9. No dia 15 de Dezembro de 2016, o arguido efectuou um acordo de pagamento (PERES) com a Autoridade Tributária, tendo ficado previsto o pagamento da dívida em 150 prestações; 10. O arguido não é proprietário em Portugal de outros bens suficientes para garantir o pagamento dos impostos de que é devedor ao Estado e relativamente aos quais foram instaurados processos de execução fiscal; 11. Por tal razão, ficou a Fazenda Pública impossibilitada de obter a satisfação do seu crédito por via do imóvel doado no caso de incumprimento do plano de pagamento em prestações (…) porquanto o património do arguido não é suficiente para liquidar o crédito tributário”.
21. Nos termos da decisão referida em 19), o Tribunal considerou não provada, nomeadamente, a seguinte factualidade: “17. Que o arguido a 07.09.2016 já tivesse conhecimento de que, por via do despacho de reversão, era pessoalmente titular de dívidas fiscais cuja obrigação de pagamento sobre si impendia; 18. Que o arguido, com a doação efectuada a JEC a 7 de Setembro de 2016, ou seja, posteriormente à data em que foi proferido o despacho de reversão, agiu com o propósito de frustrar a garantia do crédito tributário, evitando uma eventual penhora do imóvel doado, por parte da Fazenda Pública, bem sabendo que o outro imóvel de que era proprietário não era suficiente para garantir o pagamento da dívida fiscal; 19. Que o arguido agiu com o propósito de impedir a satisfação dos referidos créditos, já apurados, pela Fazenda Pública; 20. Que o arguido agiu assim (…) por forma a impedir a Administração Tributária de ver ressarcidos os seus créditos, obtendo o correspondente benefício patrimonial, a que sabia não ter direito, desse modo enriquecendo o seu património à custa da Fazenda Nacional, bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei”.
22. Na mesma sentença, e em sede de “indiciação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção”, lê-se, nomeadamente, o seguinte:(…) O Tribunal não logrou remover esta dúvida séria e objectiva que se lhe suscitou a qual em face do basiliar princípio do in dúbio pro reu terá necessariamente que ser resolvido a favor do arguido. Como assim, o tribunal apenas logrou dar como provada a factualidade referida sob os pontos 1 a 11, dando como não provada a demais como tal elencada”(…).
23. O Autor e a esposa despenderam, a título de bilhete de avião de Londres para Faro, agendado para 05.11.2019, o valor de 303.92 libras.
24. A 04.11.2019, o Autor despendeu, a título de parqueamento, o valor de 57 libras.
25. O Autor sentiu ansiedade e ficou abalado pelo facto de ter sido julgado em Tribunal.
26. Pela circunstância de se ter de deslocado a Portugal para a data agendada para realização da audiência de julgamento, o Autor teve de interromper os seus negócios».
3.1.2 – (...) e não provado que:
«a) o Autor tenha despendido a quantia de €30,00 a título deslocação ao Tribunal de Portimão e do Tribunal de regresso ao aeroporto.
b) Que o Autor foi detido para interrogatório no aeroporto perante centenas de pessoas.
c) No despacho de acusação referido em 9), foi alegado que o ora Autor doou o seu único bem de que era proprietário em Portugal.
d) O Autor sentiu vergonha de ter sido sujeito a julgamento».
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3.2 – Fundamentação de direito: 3.2.1 – Uma nota sobre as conclusões apresentas pelo apelante:
Conforme refere Abrantes Geraldes, «a lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial. Rigorosamente, as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais se possam confundir com argumentos de ordem jurisprudencial que não devem ultrapassar o sector da motivação.
As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso como clara e inequivocamente resulta do art. 635.º, n.º 3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo. Incluindo, na parte final, o resultado procurado, as conclusões devem respeitar na sua essência cada uma das alíneas do n.º 2, integrando-se as respostas a tais premissas essenciais no encadeamento lógico da decisão pretendida. Se para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspetiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir um resultado diverso.
Todavia, com inusitada frequência se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações referidas no n.º 2. Apesar de a lei adjetiva impor o patrocínio judiciário, são triviais as situações em que as conclusões acabam por ser mera reprodução dos argumentos anteriormente apresentados, sem qualquer preocupação de síntese, como se o volume das conclusões fosse sinal da sua qualidade ou como se houvesse necessidade de assegurar, por essa via, a delimitação do objeto do processo e a apreciação pelo tribunal ad quem de todas as questões suscitadas.
Ainda que algumas das situações exemplificadas justificassem efeitos mais gravosos, foi adotada uma solução paliativa que possibilita a supressão das deficiências através de despacho de convite ao aperfeiçoamento. Ao invés do que ocorre quando faltam pura e simplesmente as conclusões, em que o juiz a quo profere despacho de rejeição imediata do recurso, qualquer intervenção no sentido do aperfeiçoamento das irregularidades passíveis de superação foi guardada para o relator no tribunal ad quem, como se extrai, com toda a clareza, do n.º 3 do art. 639.º e da al. a) do n.º 3 do art. 652.º.
O relator a quem o recurso seja distribuído deve atuar por iniciativa própria, mediante sugestão de algum dos adjuntos ou, em último caso, em resultado do deliberado em conferência, nos termos do art. 658.º. Por isso, tal como se verifica na fase do saneamento do processo, no despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões o relator deve identificar todos os vícios que, no seu entender, se verificam, por forma a permitir que, sem margem para dúvidas, o recorrente fique ciente dos mesmos e das consequências que podem decorrer da sua inércia ou do deficiente acatamento do convite.
A prolação do despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efectiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais. Para isso pode ser conveniente tornar em consideração os efeitos que a intervenção do juiz e as subsequentes intervenções das partes determinem na celeridade. Parece adequado ainda que o juiz atente na reacção do recorrido manifestada nas contra-alegações de forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras.
(…)
Sem embargo do que se referiu, a experiência confirma que se entranhou na prática judiciária um verdadeiro círculo vicioso: em face do número de situações em que se mostra deficientemente cumprido o ónus de formulação de conclusões, os Tribunais Superiores acabam por deixá-las passar em claro, preferindo, por razões de celeridade (e também para que a parte recorrente não seja prejudicada), avançar para a decisão, na qual é feita a triagem do que verdadeiramente interessa em face das alegações e da sentença recorrida. Agindo deste modo, os Tribunais Superiores colocam os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspetos de natureza formal»[2].
É exatamente por esta razão que não se determina o aperfeiçoamento das conclusões da alegação de recurso do apelante, antes se expurgando as mesmas daquilo que não é essencial, deixando-se, no entanto, claro, que constituem um texto prolixo, cuja extensão de forma alguma se justifica e que desvirtua o sentido da lei quando impõe que o recorrente conclua a sua alegação de forma sintética, indicando os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 3.2.2 – Quanto ao mérito do recurso:
É inequívoco que a presente ação foi instaurada ao abrigo do disposto no art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro[3], nele se dispondo que: «1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».
Afirma o Conselheiro Cardoso da Costa, a propósito do atual Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, e no que à responsabilidade civil do Estado por atos da função jurisdicional diz respeito:
- «por um lado, em primeiro lugar, estabelece-se, expressamente, um princípio geral de responsabilidade pelos “danos ilicitamente causados pela administração da justiça” (destacando-se, entre eles, os decorrentes da “violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável) e define-se o regime respectivo: art. 12.º;
- estende-se a responsabilidade estadual, embora em certos e limitados termos (...) aos danos decorrentes do “erro judiciário”»[4].
Quanto à extensão da responsabilidade estadual aos casos de erro judiciário, afirma o Ilustre Conselheiro que «(...) são dois os pontos que cumpre considerar: um, o da extensão em que a mesma é contemplada no artigo 13.º do «Regime» em apreço; o outro, o da condição ou pressuposto de cuja verificação depende a possibilidade de accionar tal responsabilidade.
(...) Quanto ao primeiro destes pontos, dispõe-se no n.º 1 do artigo 13.º o seguinte: sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes das decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto. Significa isto, desde logo, que a responsabilidade por erro judiciário é limitada às situações de erro grave, ou porventura muito grave, do ponto de vista da percepção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional, já que apenas poderá caber nos casos em que tal percepção contrarie, de modo manifesto, o sentido normativo autêntico da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente errada dos factos. Limitada a este tipo de situações, no âmbito dele a responsabilidade por erro judiciário assume agora, porém, um carácter geral, por assim dizer, ou de princípio — já que, por um lado, pode ter lugar no âmbito de qualquer domínio jurídico ou jurisdicional e em razão de qualquer decisão jurisdicional (não se restringindo apenas a decisões de mérito ou a outras decisões finais, embora seja este, decerto, o mais natural terreno da sua potencial aplicação) e, por outro lado, poderá ser efectivada desde que a decisão produza um qualquer dano ao interessado (não sendo, pois, necessário um dano anormal ou, sequer, de especial gravidade).
Delineada nestes termos, há-de reconhecer-se (...) que o legislador foi bastante longe, na consagração da responsabilidade por erro judiciário: poderá mesmo dizer-se que foi tão longe quanto podia.
Importa a este respeito, e desde logo, recordar e atentar na natureza da função do juiz, ou da função “jurisdicional” (no estrito sentido e âmbito do conceito), a qual é justamente a de «dizer o direito» — o que significa que é o juiz quem recebe e detém a legitimação (e a competência) para «determinar» o conteúdo, sentido e alcance das normas jurídicas e para «fixar» e «qualificar» os factos a que as mesmas vão aplicar-se (sendo que, nem aquelas, nem estes, logram «falar por si», e exigem justamente uma entidade mediadora para a sua «revelação»). Em suma, e se não é abusivo recorrer, marcando a diferença, a uma imagem inspirada na mensagem cristológica central do Evangelho joanino: se aqui o «verbo» não está no princípio, porque «no princípio está o direito», e não o juiz, este não deixa de ser o necessário «verbo» do direito, pertencendo-lhe dizer sobre ele a palavra definitiva. Ora, se é assim, então o «erro» do juiz — a possibilidade do qual, por outro lado, é sempre (por força da natureza das coisas e dos homens) uma inevitabilidade — não será rigorosamente recondutível, enquanto puro «erro», e só por si (isto é, quando não tenha ocorrido a consciente quebra ou incumprimento de nenhum dever deontológico, que sobre aquele impenda), a uma situação de «ilicitude»: quando simplesmente «erra», o juiz não terá propriamente «violado» o direito, mas antes feito dele uma interpretação e aplicação que, de um ponto de vista externo, serão incorrectas.
Pois bem: independentemente de qualquer outra consideração (mormente de ordem pragmática, e situando-se seja no plano financeiro, seja no da funcionalidade do próprio aparelho judiciário), cremos que o que acaba de ser posto em evidência já será suficiente, sem mais, para compreender e concluir que a responsabilidade civil do Estado por danos resultantes de erro judiciário haja de ser limitada, e restringir-se a determinadas situações cuja gravidade a possam justificar. No «Regime» em apreço entendeu-se que essa gravidade se verificava desde que o erro fosse «manifesto» ou «grosseiro». Já se deixou dito que, desse modo, o legislador português foi bastante longe — mas o que pode perguntar-se (ainda que a pergunta venha a chocar alguns) é se não terá mesmo ido longe demais, e se não deveria ter ficado por uma definição mais precisa (eventualmente tipificada) do erro potencialmente gerador de responsabilidade, ou se outros aspectos atrás referidos (sobretudo a gravidade do dano) não deveriam ter sido igualmente considerados.
Seja como for, o que não poderia, de todo o modo, era ligar-se um efeito potencial de responsabilidade civil (efectivável no caso, claro está, de haver dano) a todas as decisões judiciais relativamente às quais se alegasse (e porventura viesse a comprovar) a ocorrência de um qualquer erro (quanto ao direito ou quanto ao facto), imputáve ao autor delas. Em boa verdade, isso significaria, nem mais, nem menos, do que ligar esse eventual efeito a toda e qualquer decisão a respeito da qual se viesse a concluir que um juiz fizera incorrecta interpretação e aplicação do direito ou uma incorrecta apreciação dos factos: ora, na nossa maneira de ver (e foi isso que pretendemos fundamentar com a consideração acima feita) tal não seria conforme com própria natureza da função jurisdicional. O instrumento para superar e corrigir a incorrecção de decisões judiciais — vale por dizer, o «erro judiciário» — há-de ser primacialmente o do «recurso» (e «reclamação»), não o instituto da responsabilidade civil do Estado.
(...) O segundo aspecto a considerar na disciplina legal da responsabilidade do Estado por erro judiciário é o contemplado no n.º 2 do artigo 13.º, preceito onde se dispõe o seguinte: o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente. A compreensão dele, porém, já encontra aberto o seu caminho nas considerações anteriores e na observação que as encerra.
Efectivamente, sendo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há-de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado «erro» judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo do n.º 2 do artigo 13.º — e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos directamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.
O ponto foi objecto de detida análise e reflexão por parte do Tribunal Constitucional, logo no início do funcionamento deste, no já referido Acórdão n.º 90/84 — aresto no qual o Tribunal sublinhou, em especial, a diferença que intercedia, no ponto em apreço, entre a eventual responsabilidade por actos da função jurisdicional e a responsabilidade por actos da função administrativa. Escreveu-se então (no n.º 7 desse aresto): «diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial ‘diz o direito’ — o ‘direito do caso’ —, e a sua declaração é plenamente válida. [...] se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um acto ‘definitivo’ da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído ‘caso resolvido’, compreende-se, do mesmo modo, que coisa idêntica não possa suceder com um acto judicial ‘consolidado’»
E o Tribunal concluía, pondo em relevo o ilogismo institucional (no fundo, a subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização da ordem judiciária) que representaria solução diversa: “quer dizer: compreende-se que [o acto judicial consolidado] — não havendo sido impugnado ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso — não possa vir a ser ulteriormente ‘desautorizado’ por outro tribunal (porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos.”.
(...)
Resta acrescentar três notas — todas tendo a ver ainda com esta segunda dimensão da disciplina legal da responsabilidade do Estado por erro judiciário.
A primeira, para sublinhar que a “revogação” da decisão danosa, exigida no n.º 2 do artigo 13.º, há-de ser naturalmente uma revogação definitiva — isto é, constante de uma decisão transitada em julgado. Já se conclui, face a quanto antes se explanou, que não é admissível outro entendimento.
A segunda nota será para referir que uma tal revogação há-de, em via de máxima, provir de um tribunal superior, e ser obtida através de recurso. Mas não deverá excluir-se — cremos — que possa também provir do próprio tribunal que proferiu a decisão questionada, quando isso seja processualmente admissível, ou mediante reclamação ou (mormente) pedido de reforma da mesma decisão (cfr. artigo 669.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[5]). Onde não caiba ou não seja viável qualquer destes instrumentos processuais, ficará também precludida a possibilidade da acção de responsabilidade — mas essa é uma consequência que não haverá de estranhar-se, pois que necessariamente derivada de uma condição a que a mesma acção não pode deixar de estar sujeita (consoante foi visto).
A terceira nota, finalmente, será para advertir que, em nosso modo de ver, há-de ser na decisão revogatória que terá de reconhecer-se o carácter “manifesto” do erro de direito ou o carácter “grosseiro” do erro na apreciação dos factos, que são pressuposto substantivo da responsabilidade do Estado. Este é um ponto que a lei não deixou expressamente esclarecido — como, aliás, devia ter feito. Mas temos por muito seguro que não é legítimo outro entendimento, atento o que antes se ponderou: se o erro há-de ter sido reconhecido (e “apagado”) previamente através da via que processualmente esteja aberta para a impugnação da decisão danosa e pela instância judiciária para tanto competente, decerto que há-de igualmente ser esta a apreciar e determinar a sua gravidade (perante ela devendo, pois, ser invocada e alegada tal gravidade). O contrário subverteria a lógica (institucionalmente imposta, como se viu) do n.º 2 do artigo 13.º Assim, para a acção indemnizatória, e correspondente tribunal, ficarão só a verificação de outros pressupostos da responsabilidade, designadamente a averiguação da efectiva ocorrência de dano e o estabelecimento da sua medida.»[6].
Ou seja, o que decorre da petição inicial com que o autor introduziu em juízo, nos tribunais administrativos, a presente ação, é que os alegados danos, cuja responsabilidade imputa ao Estado, a terem ocorrido, seriam decorrentes, não de qualquer ato ou omissão inerente à administração da justiça em geral mas de uma decisão jurisdicional.
Independentemente de se apurar se a decisão jurisdicional em causa é manifestamente inconstitucional ou ilegal ou injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto, o que salta à evidência é que, in casu, o pedido de indemnização contra o Estado Português não se encontra fundado na prévia revogação, pela jurisdição competente, da decisão alegadamente danosa.
No acórdão desta Relação e Secção, datado de 12.10.2021, Proc. n.º 2103/19.9T8LRS.L1-7, relatado pelo Desembargador Luís Filipe Pires de Sousa, in www.dgsi.pt, e subscrito pelo aqui relator na qualidade de 1.º adjunto, escreveu-se o seguinte, com reporte ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 363/2015, escreveu-se o seguinte:
«“[O] o artigo 22º da Constituição reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração. Mas o mesmo artigo 22º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito: ponto é que o legislador, ao fazê-lo, não crie entraves ou dificuldades dificilmente superáveis, nem encurte arbitrariamente o quantum indemnizatório.”
Tal entendimento – a que vai associada a ideia de suficiente determinabilidade a nível constitucional para garantir a aplicabilidade direta do preceito e a invocabilidade imediata do direito nele consagrado – não obsta, todavia, e sem prejuízo da garantia da responsabilidade direta do Estado, que se reconheça uma “larga margem de conformação ao legislador quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado” (assim, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VII ao art. 22.º, p. 429, que se referem à formulação do artigo 22.º da Constituição como “tendencialmente principial”). Jorge Miranda e Rui Medeiros reconhecem igualmente a conveniência de uma intervenção do legislador ordinário (v. Autores cits., ob. cit., anot. XII ao art. 22.º, p. 480):
“Embora os juízes em geral possam e devam assegurar a tutela do direito fundamental dos lesados à reparação dos danos, uma tal via apresenta inconvenientes, tanto do ponto de vista da separação de poderes e do papel que, num Estado democrático, deve estar reservado ao legislador legitimado democraticamente, como na perspetiva da igualdade e da segurança jurídica. O legislador pode, pois, densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime da responsabilidade, cabendo-lhe designadamente delimitar o conceito de ilicitude relevante e esclarecer em que medida uma ideia de culpa […] constitui pressuposto da responsabilidade.
A lei não pode, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22.º da Constituição.”
A possibilidade de o legislador delimitar e definir o âmbito e os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado já foi expressamente reconhecida no Acórdão n.º 683/2006. Aliás, a liberdade de conformação em apreço é, nos casos de atos de autoridade ilegítimos, inerente ao caráter secundário da responsabilidade civil em relação à tutela primária dos direitos dos cidadãos assegurada pelas vias impugnatórias ou de condenação à prática de ato de autoridade devido (salienta em especial este aspeto Alves Correia, “A indemnização pelo sacrifício: …” cit., p. 147; cf. também o artigo 4.º do RCEEP). E, de todo o modo, a circunstância de os citados atos de autoridade poderem ser praticados no âmbito de qualquer uma das funções do Estado – e é pacífico ser esse o âmbito do artigo 22.º da Constituição (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VIII ao art. 22.º, pp. 430-431; e Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., anot. IV ao art. 22.º, p. 474) –, obriga naturalmente a concretizar a garantia da responsabilidade direta do Estado, de modo a adequá-la à diferente tipologia de atuações que pode estar em causa. Com efeito, são diferentes os problemas suscitados por atos concretos ou atos normativos, assim como também são diferentes as questões colocadas pela ilicitude dos atos típicos de cada função estadual.
Ponto é, como referido, que a legislação infraconstitucional, nomeadamente as “cláusulas legais limitativas ou excludentes de responsabilidade”, não eliminem nem esvaziem de sentido a garantia da responsabilidade direta do Estado (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VII ao art. 22.º, p. 429, e anot. XVIII ao mesmo art., pp. 437-438; no mesmo sentido, v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., anot. XII ao art. 22.º, pp. 480-481) e não sejam arbitrárias ou desproporcionadas.
A efetivação da responsabilidade por erro judiciário implica o reexercício da função jurisdicional relativamente à mesma questão de direito ou de facto: uma primeira decisão judicial é considerada errada por um ato jurisdicional subsequente. Assim, num caso como o que é objeto do presente recurso, constituirá sempre condição necessária da procedência de uma eventual ação de indemnização, a verificação – ainda que a título meramente incidental – de que a pretensa decisão danosa incorreu num erro de direito – in casu a aplicação de uma norma inconstitucional –, verificação essa que obriga a uma nova apreciação da questão de direito – ou seja, no caso vertente, a um segundo juízo sobre a constitucionalidade da norma aplicada pela primeira decisão.
Tal reexercício pode ocorrer no âmbito de um recurso ordinário interposto da primeira decisão ou fora dele. E é esta segunda hipótese que, desde sempre tem suscitado as maiores dificuldades (quanto à primeira – que corresponde, no fundo, à situação prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP –, v. as condições de aplicação analisadas por Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil…, cit., anot. 8 ao art. 13.º, pp. 274-276, e anot. 9 ao mesmo preceito, pp. 277-280). Por outro lado, a circunstância de a verificação do erro judiciário exigir o reexercício da função jurisdicional cria naturais interdependências entre o regime constitucional e legal do direito ao recurso e o regime da responsabilidade por erro judiciário (cf., por exemplo, Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil…, cit., anot. 8 ao art. 13.º, pp. 272-273). Como refere Cardoso da Costa, “o instrumento para superar e corrigir a incorreção de decisões judiciais – vale por dizer, o «erro judiciário» – há-de ser primacialmente o do «recurso» (e «reclamação»)”, não o instituto da responsabilidade civil do Estado (v. Autor cit., “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado…”, cit., p. 163). Ou, por outras palavras, “os recursos servem para corrigir decisões e as decisões erradas corrigem-se, não se indemnizam” (assim, a síntese da posição de que discorda feita por Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil…, cit., nota 1.1 ao art. 13.º, p. 344). Todavia, como observa Carlos Fernandes Cadilha, pode haver efeitos negativos gerados pelo erro judiciário que não são afastados pelo provimento de um eventual recurso (v. Autor cit., Regime da Responsabilidade Civil…, cit., anot. 8 ao art. 13.º, p. 273, nota 474). Daí o reconhecimento generalizado de especificidades próprias do regime do erro judiciário.
10.-Tais especificidades estão na origem de uma orientação seguida por este Tribunal desde o Acórdão n.º 90/84 (subsequentemente afirmada noutros arestos, como, por exemplo, no Acórdão n.º 71/2005), segundo a qual:
“Diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» – o «direito do caso» –, e a sua declaração é plenamente válida (já acima se recordou) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um ato «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um ato judicial «consolidado». Quer dizer: compreende-se que este último – não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso – não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos.”
(...)
A doutrina sufragada por este Tribunal desde o mencionado Acórdão n.º 90/84 destaca, assim, e de acordo com este entendimento, o ilogismo institucional – “no fundo, a subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização da ordem judiciária” – que representaria uma solução que prescindisse de um requisito como aquele que vem estatuído no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP: uma decisão judicial transitada em julgado não deve poder vir a ser posteriormente «desautorizada» – isto é, em concreto afastada ou desconsiderada –, mesmo que só incidentalmente e para efeitos de verificação de erro de julgamento relevante em sede de responsabilidade civil por «facto» da função jurisdicional, por outro tribunal “porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior”(cf. Cardoso da Costa, “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado…”, cit., p. 164).
11.–Contudo, esta perspetiva não pode hoje ser aceite sem mais, isto é, sem uma explicação adicional.
Que assim é comprova-o, desde logo, a incompatibilidade com o direito da União Europeia da solução consagrada no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP.
Com efeito, na sequência dos desenvolvimentos do direito da União Europeia, em especial por força da jurisprudência Köbler (nºs 33 a 36) e Traghetti (n.ºs 33 a 40), é hoje consensual a admissibilidade da responsabilidade de um Estado membro da União em consequência da violação do direito da União imputável ao exercício da função jurisdicional, mesmo que tal violação resulte da decisão de um tribunal que decida em última instância. Consequentemente, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP é inaplicável à responsabilidade do Estado Português por ações e omissões dos seus tribunais violadoras de normas do direito da União Europeia (nesse sentido, v., por exemplo: Maria José Rangel de Mesquita, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado…, cit., p. 56; e “Irresponsabilidade do Estado-juiz por incumprimento do Direito da União Europeia: um acórdão sem futuro” (anotação ao Ac. do STJ de 3.12.2009, P. 9180/07) in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 79 (jan-mar de 2010), p. 29 e ss., p. 43; Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil…, cit., anot. 6 ao art. 13.º, p. 268; Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil…, cit., nota 3 ao art. 13.º, p. 361; e Jónatas Machado, “A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia…” cit., p. 273).
Acresce que a própria constitucionalidade daquela solução tem vindo a ser questionada por diversos Autores.
11.1.-Maria José Rangel de Mesquita, por exemplo, manifesta dúvidas quanto à legitimidade constitucional da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente como condição necessária da efetivação de responsabilidade civil por erro judiciário. Na verdade, e como já referido, se tal revogação apenas puder ser obtida pelo lesado de acordo com os meios processuais de reapreciação de decisões judiciais à sua disposição, pode acontecer que não seja admissível recurso ordinário (em razão do valor da causa ou da sucumbência) ou um recurso extraordinário de revisão. Mais: das decisões dos tribunais superiores, em princípio, nunca cabe recurso. Como nota aquela Autora, “tal implica que o lesado não conseguirá, por sua iniciativa, preencher o requisito da prévia revogação da decisão danosa e, consequentemente, demandar o Estado e deduzir o seu pedido de indemnização. [Ora] é duvidoso que a efetivação de um direito constitucionalmente previsto – e concretizado pelo Regime aprovado pela Lei n.º 67/2007 – possa ficar dependente de um requisito que a Constituição, ao consagrar aquele princípio, não prevê e, consequentemente, do teor da legislação ordinária ora vigente em matéria de recursos (reapreciação de decisões judiciais)” (v. Autora cit., “O novo regime da responsabilidade do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional” in Jorge Miranda (coord.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Martim de Albuquerque, vol. II, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2009, p. 415 e ss., pp. 427-428).
Em sentido contrário dir-se-á, todavia, que, conforme mencionado supra no n.º 8, a consagração no artigo 22.º da Constituição do princípio da responsabilidade direta do Estado (e demais entidades públicas) por ações ou omissões ilícitas imputáveis a titulares dos seus órgãos ou aos seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, não é incompatível com a possibilidade de o legislador ordinário delimitar e definir o âmbito e os pressupostos de tal responsabilidade. Tudo dependerá da justificação material e do equilíbrio das cláusulas legais limitativas ou excludentes de responsabilidade. Deste modo, a mera omissão de previsão constitucional de um requisito ou de uma condição de procedibilidade de uma ação de indemnização destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas não é condição suficiente da sua inconstitucionalidade.
11.2.-Seguindo uma linha argumentativa assente na rejeição dos pressupostos em que se funda a jurisprudência iniciada com o Acórdão n.º 90/84, Luís Fábrica considera que a norma do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP viola o princípio da igualdade, por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erros judiciários correspondentes a sentenças que, por um ou outro motivo, não podem ser objeto de recurso (Autor cit., Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil…, cit., nota 3 ao art. 13.º, p. 359). Por outro lado, considerando que a atribuição de uma indemnização constitui uma das principais formas estabelecidas no ordenamento jurídico para garantir a efetiva tutela dos direitos lesados pelo facto danoso, o mesmo Autor, entende que retirar da esfera do lesado a via indemnizatória de reparação “por circunstâncias estritamente processuais” significa uma ilegítima restrição do direito fundamental à efetiva tutela jurisdicional, “tanto mais chocante quanto o dano sofrido não resulta de ilicitudes comuns, mas de ilegalidades manifestas e de erros grosseiros, imputáveis precisamente aos órgãos a quem a Constituição comete a tarefa de proteger os direitos e interesses legalmente protegidos” (v. idem, ibidem, p. 360).Tal posição, porém, abstrai das especificidades próprias do regime do erro judiciário, em especial a circunstância de a verificação do mesmo implicar um reexercício da função jurisdicional sobre uma questão já objeto de decisão judicial – o que, como de resto foi justamente salientado no Acórdão n.º 90/84 –, afasta qualquer analogia com o caso decidido dos atos administrativos. Na verdade, reconhecendo embora que no caso da ação de indemnização o juiz, ainda que em vista de um fim diferente, volta a ter de exercer a função de «dizer o direito» sobre uma questão relativamente à qual «o direito já foi dito», LUÍS FÁBRICA não retira de tal novo exercício da mesma função quaisquer consequências (v. ibidem, pp. 358-359).
Contudo, na verificação do erro judiciário, diferentemente do que sucede em relação ao caso decidido administrativo, o juiz depara-se com o «direito do caso», tal como previamente decidido (declarado com a autoridade própria das decisões judiciais) por um outro juiz. Ou seja, ao reapreciar esta primeira decisão, o juiz da ação de responsabilidade exerce necessariamente sobre a mesma questão função idêntica à do juiz que decidiu em primeiro lugar – ocorre, por conseguinte, um reexercício da função jurisdicional; aliás, é precisamente nesse reexercício que reside a semelhança entre as ações de indemnização por erro judiciário e os recursos reconhecida por aquele Autor. Daí o problema: porque é que a decisão do juiz da ação de responsabilidade dever prevalecer sobre a decisão do juiz da causa inicial? Sem resposta a esta questão, o entendimento firmado no Acórdão n.º 90/84 continua a ser suficiente para infirmar a citada analogia (cf. supra o n.º 10). E, assim sendo, é na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para a não arbitrariedade e para a justificação de uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP.
Como a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia evidencia, de modo particular no Acórdão Köbler, os problemas não se situam no plano técnico-processual do respeito do caso julgado (v., em especial, o respetivo n.º 39: um processo destinado a responsabilizar o Estado não tem o mesmo objeto e não envolve necessariamente as mesmas partes que o processo que deu origem à decisão danosa e que entretanto transitou em julgado; o demandante numa ação de indemnização contra o Estado obtém, em caso de êxito, a condenação deste no ressarcimento do dano sofrido – tutela secundária –, mas não a revogação ou revisão da decisão que causou o dano – tutela primária) ou no plano institucional da independência e autoridade dos juízes (v., em especial, os respetivos nºs 42 e 43: a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário não é confundível com a responsabilidade pessoal do juiz que errou e a existência de uma via de direito que permita a reparação dos efeitos danosos de uma decisão judicial errada “pode também ser vista como sinónimo de qualidade de uma ordem jurídica e, portanto, finalmente, também da autoridade do poder judicial”). O que está em causa é a racionalidade sistémica e a coerência institucional: uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, em princípio, e salvo razões juspositivas de especial relevo (como as que estão presentes nos recursos extraordinários de revisão), não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira (nem tão-pouco uma eventual terceira ou quarta decisão sobre a decisão imediatamente anterior – é o problema da regressão infinita); menos ainda se poderá admitir, igualmente salvo razões juspositivas de especial relevo, que a decisão judicial definitiva sobre uma dada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior.
(…)
E a questão coloca-se precisamente porque, em termos de racionalidade sistémica e de coerência institucional não é irrelevante que uma decisão judicial transitada em julgado volte a ser apreciada por um tribunal e, muito menos, que a apreciação de uma questão jurídica feita por um tribunal inferior possa prevalecer sobre a apreciação de idêntica questão feita por um tribunal superior. Nesse plano institucional em que se considera o sistema judiciário como um todo orgânico, contrariamente ao que se deve fazer no plano processual, a dissociação entre o ato judicante – a decisão – e os seus efeitos – o respetivo conteúdo –, embora possível, não é necessária e, frequentemente, não será conveniente. Isto é: pode haver razões de peso que justifiquem a modelação do direito à indemnização sempre que este interfira com a lógica de organização e funcionamento do próprio sistema judiciário. E são tais razões que também podem justificar a solução do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP quando cotejada com os parâmetros constitucionais da igualdade ou da tutela jurisdicional efetiva.
A segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário – em que, por regra, as decisões mais importantes e mais bem fundamentadas são tomadas por tribunais onde têm assento os juízes mais qualificados (cf. por exemplo, o artigo 211.º e ss. da Constituição) – constituem bens constitucionais reconhecidos. Por outro lado, é ainda uma lógica sistémica que explica que o recurso jurisdicional não seja nem universal nem ilimitado, ou que os tribunais se organizem de acordo com certos critérios de especialização. Ora, são precisamente estas considerações que estão na base da ideia de que permitir que um ato judicial «consolidado» – porque não impugnável ou não impugnado tempestivamente – possa vir a ser ulteriormente «desautorizado», mesmo que para os efeitos limitados de reconhecimento de um erro judiciário, por outro tribunal – porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma ordem diversa de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior – constitui um ilogismo institucional (cf. o Acórdão n.º 90/84 e Cardoso da Costa, “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado…”, cit., p. 164).
De resto, mesmo a solução do direito da União Europeia relativamente à responsabilidade dos Estados membros por erro judiciário – “uma responsabilidade excecional reservada para situações especialmente graves” (assim, v. Jónatas Machado, “A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia…” cit., p. 259) –, e em que uma desautorização daquele tipo acaba por ser possível, não é isenta de problemas. Aliás, Jónatas Machado – que chega a falar em disfunções sistémicas – evidencia-o bem, a propósito dos temas da “disfunção hierárquica e defeito de independência”, da “imparcialidade e juízo em causa própria” e do “controlo das decisões dos tribunais superiores” (v. Autor cit., “A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia…” cit., respetivamente, pp. 284-285, 285-286 e 286-288). Sucede, isso sim, que, conforme o mesmo Autor explica, “as apontadas dificuldades e anomalias são amplamente compensadas pela necessidade de assegurar a primazia e a efetividade do direito da UE e da jurisprudência do TJUE, juntamente com a tutela jurisdicional efetiva dos particulares diante das decisões dos tribunais nacionais de última instância que violem direitos e interesses legalmente protegidos pelo direito da UE" (v. ibidem, p. 288; cf. também o Acórdão Köbler, nºs 33 a 36).
Com efeito, no quadro do direito da União Europeia, e face à impossibilidade de os cidadãos demandarem diretamente os Estados membros junto do Tribunal de Justiça por incumprimento daquele direito ou de forçarem o reenvio prejudicial em vista da sua correta interpretação e aplicação (cf., respetivamente, os artigos 258.º e 259.º e o artigo 267.º, todos do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), a tutela secundária correspondente à responsabilidade do Estado membro fundada em erro judiciário relativo ao direito da União Europeia constitui um importante fator de tutela jurisdicional dos direitos dos cidadãos conferidos por esse mesmo direito e de garantia da respetiva primazia face ao direito de cada um dos Estados membros. Comprova-se, assim, a existência de mais-valias sistémicas justificativas da solução do direito da União Europeia.
13.–Analisando agora a solução prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, importa começar por recordar o amplo espaço de conformação legislativa quanto à definição do âmbito e dos pressupostos da responsabilidade do Estado reconhecido pelo artigo 22.º da Constituição (cf. supra o n.º 8). Em especial, no que se refere à responsabilidade do Estado por erro judiciário, esta interfere, pelas razões já mencionadas, com a própria configuração e modo de funcionamento do sistema judiciário, tal como prefigurados na Constituição (cf. supra os nºs 9, 10 e 12), ampliando desse modo ainda mais o campo de intervenção do legislador ordinário. Assim, para além da previsão genérica do direito à reparação pelos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos do estado e demais entidades públicas, que, justamente por ser geral, também deve abranger os juízes e os ilícitos que estes eventualmente cometam no exercício das respetivas funções, não é possível a partir do citado preceito constitucional determinar com mais exatidão os contornos do direito à indemnização fundada em erro judiciário.
Certo é que a mencionada solução legal não exclui em absoluto tal direito, limitando-se a estabelecer que o erro judiciário relevante seja previamente reconhecido pela jurisdição competente, o mesmo é dizer, que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação (ou, porventura, de uma revisão oficiosa). Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido (muito menos a invadi-lo). E, por isso mesmo, também não se pode dizer que essa norma revista a natureza de uma lei harmonizadora destinada a resolver um qualquer conflito de bens jurídicos fundamentais ou de uma lei restritiva de um direito fundamental (sobre estas categorias e as consequências jurídicas que a elas vão associadas na dogmática dos direitos fundamentais, v., por todos, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 216-217 e, quanto às leis restritivas, p. 277 e ss., e quanto às leis harmonizadoras, p. 298 e ss.).
Em rigor, a norma do artigo 13.º, n.º 2, RCEEP concorre, juntamente com a do n.º 1 do mesmo artigo, para a configuração do conteúdo do direito de indemnização emergente da responsabilidade do Estado por erro judiciário do Estado. É, nessa exata medida, uma lei conformadora ou constitutiva: “não restringe o conteúdo do direito ou da garantia, porque é a ela própria que cabe determiná-lo, para além do conteúdo mínimo do direito ou do núcleo essencial da garantia, que decorrem da Constituição” (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 213). Na verdade, o direito à indemnização por erro judiciário civil foi fixado, na parte respeitante à determinação de quem é o juiz competente para realizar a apreciação da decisão judicial danosa, legislativamente pelo artigo 13.º, n.º 2, em causa (cf. Vieira de Andrade, ibidem, que, na nota 63, refere como exemplo de direitos e faculdades cujo conteúdo é juridicamente construído pelo legislador, entre outros, os direitos às indemnizações previstas nos artigos 27.º, n.º 5, e 29.º, n.º 6, da Constituição – isto é: as indemnizações por erro judiciário penal).
Como explica Vieira de Andrade, “apesar do poder legislativo de configuração, ao juiz cabe ainda verificar o respeito pelo conteúdo essencial do direito (que será em regra o seu conteúdo mínimo) […], avaliado segundo um critério de evidência” (v. o Autor cit., ob. cit., p. 214). Ora, como referido, a norma do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, as exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado. Inexiste, por conseguinte, qualquer evidência de desrespeito pelo conteúdo essencial do referido direito.
Se à partida, e de modo constitucionalmente legítimo, o direito à indemnização em causa é delimitado negativamente em função da possibilidade legal de reapreciação judicial pelo tribunal competente antes do trânsito em julgado da decisão tida como danosa, também não se coloca qualquer problema de acesso ao direito. Este último, enquanto direito-garantia, pressupões um direito material, que, no caso, inexiste. Finalmente, as referidas exigências orgânico-funcionais relacionadas com o sistema judiciário explicam satisfatoriamente a solução legal, afastando a ideia de que a mesma seja arbitrária.”
Por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 24.2.2015, Pinto de Almeida, 2210/12, analisou a questão nos seguintes termos:
«Tem de reconhecer-se que a norma do art. 13º nº 2 do RRCEE, interpretada nos termos acima indicados – afastando o exercício do direito de indemnização nos casos em que não seja possível a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente –, comporta uma compressão do princípio consagrado no art. 22º da CRP, restringindo o direito subjetivo de reparação que, como se referiu, se entende conferido diretamente por esta norma.
Apesar disso, é reconhecida ao legislador ordinário uma larga margem de conformação quanto à densificação da norma do referido art. 22º, mormente no que toca à definição dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado.
Por outro lado, será de admitir a aludida compressão pela necessidade de compatibilizar o referido regime de responsabilidade com outras normas constitucionais, para salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos (cf. art. 18º nºs 2 e 3 da CRP), como adiante se verá.
É certo que, como tem sido sublinhado, a referida liberdade de conformação do legislador tem de "atender ao sentido da norma de proibição que o art. 22º também transporta e que se traduz na garantia de responsabilidade direta do Estado e das demais entidades públicas (…), sendo vedado ao legislador excluir, por via de lei, essa garantia". Ou seja, a lei não pode restringir "arbitrária ou desproporcionadamente" o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no art. 22º.
Não é esta, porém, a situação que decorre da exigência do pressuposto previsto no art. 13º nº 2 do RRCEE. Recorde-se que, como se prescreve no nº 1 desse preceito, o erro de direito deve ser manifesto e, por isso, especialmente qualificado e intenso e, por outro lado, o erro na apreciação dos pressupostos de facto deve ser grosseiro.
Ora, qualquer destas situações é sanável, podendo o erro ser reparado ou eliminado através do competente recurso ordinário da decisão. Será este, como acima referimos, o instrumento normal para superar a incorreção da decisão judicial, não a ação de responsabilidade.
Mas, mesmo que a decisão danosa seja irrecorrível – em razão da alçada ou por o tribunal decidir em última instância –, é ainda admitida amplamente a possibilidade de reparação do erro. Com efeito, nos termos do art. 616º nº 2 do CPC, qualquer das partes pode requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou quando constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
Por outro lado, pode o erro de direito consistir na aplicação de norma tida por inconstitucional (com infração do disposto na Constituição ou dos princípios nela consignados – art. 204º). Mas de tal decisão pode ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional (art. 280º nº 1 b) CRP) que, em caso de procedência, pode revogar a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade e ordenar que o tribunal recorrido proceda à reforma dessa decisão para se conformar com a decisão daquele Tribunal quanto à questão de constitucionalidade (art. 80º nº 2 da LTC).
Não é de excluir, por fim, a relevância do recurso extraordinário de revisão, como meio de obtenção da revogação da decisão jurisdicional danosa, nas situações previstas nas als. d) – se a confissão não era no caso admissível, e) – nulidade ou falta de citação que o juiz tem de verificar, e f) – no caso de erro por violação do direito europeu, do art. 696º do CPC.
Mas, como se afirmou, a compressão do princípio consagrado no art. 22º da CRP é resultado também da necessidade de harmonizar o regime de responsabilidade com outros preceitos constitucionais, como é o caso dos que respeitam à função jurisdicional, em especial no que toca à independência dos tribunais e à força do caso julgado.
Aos tribunais incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses (art. 202º nº 2 da CRP) e tais competências só podem ser prosseguidas se houver independência dos tribunais (art. 203º) – a implicar o princípio da irresponsabilidade do juiz pelas suas decisões (art. 216º nº 2) –, e se os litígios forem definitivamente resolvidos por decisões dotadas de especial autoridade e estabilidade (art. 205º nº 2 da CRP).
Daí que, quanto aos pressupostos substanciais de responsabilidade, se impusesse um regime particularmente cauteloso, como acima se notou.
Mas, por outro lado, como também se sublinhou, o tribunal diz o direito do caso e a sua declaração perdura plenamente válida se e enquanto não for revogada. Assim, "nenhum outro órgão pode invocar a lei para contestar a solução dada ao caso, pois o sentido dessa lei nas circunstâncias do caso concreto não lhe cabe a ele defini-la, mas sim ao tribunal com competência para decidir o caso".
Compreende-se, por conseguinte, que, não tendo sido impugnada a decisão, ela não possa posteriormente vir a ser desautorizada por outro tribunal, porventura, como se disse, de diversa jurisdição ou da mesma jurisdição mas de grau inferior, o que representaria o aludido ilogismo institucional, com derrogação da estrutura hierárquica judicial, e postergaria, bem assim, a segurança e certeza jurídica do caso julgado.
Caso julgado que se toma aqui, não no sentido próprio da exceção de caso julgado, por ser evidente a falta de identidade objetiva e subjetiva entre as duas ações (ação em que foi proferida a decisão e ação de indemnização), mas com o significado mais amplo acima apontado, de a decisão alegadamente danosa dizer o direito do caso, resolvendo definitivamente a questão concreta que lhe foi submetida para apreciação. Do que fica exposto, decorre que o regime do art. 13º nº 2 do RRCEE, ao pressupor a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, não exclui, nem cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no art. 22º da CRP, não violando esta norma.»
Em sentido confluente com os acórdãos citados, vejam-se ainda: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10.5.2016, Fonseca Ramos, 136/14, de 23.10.2014, Fernanda Isabel Pereira, 1668/12; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.9.2018, Ondina Alves, 9000/16; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24.4.2018, Igreja Matos, 1196/12, de 10.7.2019, Alexandra Pelayo, 8819/18.
(...) a regra decorrente do Artigo 13º, nº 2, da Lei nº 67/2007, de 31.12, no segmento atinente à prévia revogação da decisão danosa, não consubstancia uma norma atinente a um formalismo processual, não fixa os requisitos formais ou o tempo da prática de um ato processual, tido como indispensável para o exercício de um direito, qual seja o de responsabilizar o Estado por erro judiciário. Tal norma é classificada maioritariamente com um requisito de procedência desta ação. Todavia, em rigor, estamos mais perante uma norma atinente a um pressuposto processual. Afirma a este propósito TEIXEIRA DE SOUSA, “É discutível que a prévia revogação da decisão danosa seja uma condição de procedência da ação de indemnização contra o Estado e que a ausência dessa revogação determine a improcedência dessa ação; melhor é qualificar essa prévia revogação como um pressuposto processual: perante a falta dessa revogação, a ação deve ser considerada inadmissível” (Blog do IPPC, 30.11.2015).
Com efeito, os pressupostos processuais são “os requisitos que têm que estar previamente preenchidos para que o tribunal possa apreciar o mérito da causa, julgando a ação procedente ou improcedente, ainda que parcialmente (…)” (Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª ed., p. 222), são “as condições cuja verificação é indispensável para que o tribunal se ocupe do mérito da causa” (Ana Prata, Dicionário Jurídico, 4ª Ed., p. 911). E, de facto, só mediante a prévia demonstração da revogação prévia da decisão é que o tribunal entra na apreciação sobre a (in)existência do erro judiciário.»
Posto isto, e retornando ao caso concreto, parece evidente que a presente ação está, ab initio, votada ao insucesso.
Além da ausência do pressuposto a que alude o n.º 2 do art. 13.º do RRCEE, também não se verifica qualquer uma das situações tipificadas no n.º 1.
Conforme esclarece Guilherme da Fonseca[7], deve entender-se que o advérbio «manifestamente» abrange todas as situações tipificadas no n.º 1.
Ora, não está provado um único facto do qual resulte a prolação de qualquer decisão jurisdicional:
- manifestamente ilegal;
- manifestamente inconstitucional;
- manifestamente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.
Nem poderia estar, pois que na petição inicial não é sequer alegado um único facto concreto suscetível de, uma vez provado, revelar a prolação de qualquer decisão jurisdicional:
- ilegal;
- inconstitucional; ou,
- injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto,
quanto mais, «manifestamente».
Ao erro grosseiro liga-se a ideia de culpa grave, na medida em que a decisão jurisdicional em causa reflete uma diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontram obrigados os juízes em razão do seu cargo (cfr. art. 8.º, n.º 1, do RRCEE).
Conforme pertinentemente salienta Salvador da Costa, em Parecer da Procuradoria Geral da República de 30 de março de 1992 respeitante a ações intentadas contra o Estado com vista à indemnização por danos resultantes da prisão ou detenção ilegal, a propósito do erro judiciário refere o seguinte:
«Dispõe o artigo 225º[8]:
"1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.
2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação de liberdade lhe tiver causado, prejuízos anómalos e de particular gravidade. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro". É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa dúvidas.
Será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da prática de um crime a que corresponda pena de prisão de máximo inferior a três anos, e da detenção com base na indiciação de uma infracção criminal apenas punível com pena de multa.
(…) Os pressupostos de indemnização a que alude o nº 1 consubstanciam-se na privação da liberdade manifestamente ilegal, na existência de prejuízo reparável e de um nexo de causalidade adequada entre este e aquela»[9].
Ainda segundo Fátima Galante, «A Lei 67/2007, no artigo 13º, nº 1, salvo melhor entendimento também apenas sanciona o erro manifestamente inconstitucional, ilegal, ou injustificado, pelo que continua actual, a expressão contida no dito Parecer nº 12/92: “é manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa dúvidas”. Não se trata de mero erro ou lapso que afecta a decisão mas não põe em causa a sua substância (“error in judicio”). Não será, outrossim, um lapso manifesto. E não é de mais realçar que o artigo 13º reporta-se ao erro in judicando, não ao lapso/erro in procedendo. O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente. Terá de se traduzir num óbvio erro de julgamento, por divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão, a interferir no seu mérito, resultante de lapso grosseiro e patente, por desconhecimento ou flagrante má compreensão do regime legal e que, por isso, conduziu a uma decisão definitiva – por insusceptível de recurso correctivo – violadora de direitos, liberdades e garantias ou causadora de prejuízo a outrem»[10].
No dizer de Verónica Bandeira, trata-se de error intolerabilis, portanto, grave, que assume relevância e importância jurídica, sendo, no entanto, ainda necessário que «o erro seja manifesto, ostensivo, ofensivo às mais bases regras de diligência e zelo, afastando-se assim o erro vulgar, banal, comum, inerente a um exercício normal da função, aquele que o bonus pater familias não cometeria, numa palavra, um erro que é indesculpável. Trata-se portanto, de um erro atentatório, clamoroso, que é expectável que um Magistrado não vá cometer, e que o bom pai de família não cometeria. No Erro Grosseiro ou indesculpável, o Juiz nesse caso podia e devia ter decidido de outro modo»[11].
Nos termos do Ac. do S.T.J. de 21.03.2023, Proc. n.º 2138/20.7T8BRG.G1.S1 (Ferreira Lopes), e demais arestos nele citados, todos acessíveis em www.dgsi.pt, «[é] entendimento pacífico que apenas o erro evidente, crasso, indesculpável, inadmissível e sem justificação, que só por desatenção ou desleixo foi cometido, pode ser qualificado como erro grosseiro para efeitos do art.º 13º do RRCEE».
Reitera-se: além de não se mostrar verificado o pressuposto no n.º 2 do art. 13º. do RCCEE, não se vislumbra sequer a prolação de qualquer decisão jurisdicional que padeça de um tal tipo de erro, suscetível de fundamentar a pretensão indemnizatória do autor, aqui recorrente.
***
IV - DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a sentença proferida.
As custas do recurso, na modalidade de custas de parte, são a cargo do apelante – arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2.
Lisboa, 5 de novembro de 2024
José Capacete
Carlos Oliveira
Ana Rodrigues da Silva
_______________________________________________________ [1] Indevidamente, fez constar do cabeçalho da petição inicial, como sujeitos passivos da ação, «ESTADO PORTUGUÊS e MINISTÉRIO PÚBLICO, com morada na Rua ____ n.º __, Lisboa». [2]Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Almedina, 2022, pp. 185-188. [3] Diploma que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, doravante designado apenas por RRCEE [4]Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 138.º, N.º 3954, pp. 159-160. [5] Trata-se do art. 669.º, n.º 2, do CPC/95-96, correspondente ao atual art. 616.º, n.º 2, do CPC/13. [6]Revista cit., pp. 161-165. [7]A Responsabilidade Civil por Danos Decorrentes do Exercício da Função Jurisdicional (Em Especial, o Erro Judiciário), in Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, N.º 5, maio/agosto de 2008, Coimbra Editora, n.º 5, p. 55. No mesmo sentido, Fátima Galante, O Erro Judiciário: A Responsabilidade Civil por Danos Decorrentes do Exercício da Função Jurisdicional, Verbo Jurídico, 2013, p. 37, acessível na internet em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.oa.pt/upl/%7B0ff03430-d160-4be2-aaf1-b251d1f285db%7D.pdf. [8] Da Constituição da República Portuguesa. [9] Parecer da Procuradoria Geral da República nº 12/92 de 30-03-1992, Relator: Salvador da Costa, in www.dgsi.pt/pgrp [10]O Erro Judiciário, cit., pp. 41-42. [11]Responsabilidade Civil do Estado decorrente da Função Jurisdicional em Especial pelo Erro Grosseiro, Mestrado em Ciências Jurídico Administrativas, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, julho de 2013, p. 42, acessível na internet em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/70776/2/24832.pdf