PROCESSO DE INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO DE BENS
TAXA DE JUSTIÇA
Sumário

I - Com a entrada em vigor da Lei no 117/2019 de 13 de setembro, o processo de inventário passou a situar-se sistematicamente no âmbito do CPC, pelo que a este processo especial serão plenamente aplicáveis os princípios gerais do Código, bem como o regime do processo comum de declaração, com as adaptações necessárias.
II - Com este novo modelo, o processo de inventário apresenta-se como uma verdadeira ação, e a reclamação contra a relação de bens já não constitui um incidente do processo de inventário, inserindo-se na marcha regular do processo em causa, obrigando a que os interessados concentrem os “meios de defesa” no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão.
III – A Taxa de justiça devida pela apresentação de oposição, impugnação e reclamação à relação de bens e eventual multa é calculada com base na taxa de justiça devida pela apresentação de contestação – artº 1104.º e 1105 .º CPC.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório:             
N (...) aqui recorrente, interessada nos autos de Inventário n.º 7778/21.6T8SNT apresentou em juízo nos termos do nº. 1 do artigo 1104º. do Código de Processo Civil (CPC), impugnação às indicações constantes das declarações do cabeça de casal, reclamação à relação de bens e impugnação dos créditos e das dívidas da herança e, liquidou a multa prevista na alínea b) do n.º 5 do artigo 139.º do CPC, dado que praticou o acto no 2.º dia subsequente ao termo do prazo, na sequência do que a Recorrente, foi notificada pela secretaria do Tribunal “a quo” para “ efectuar o pagamento da multa prevista no nº. 5 do artigo 139º. do Código de Processo Civil, sob pena de não se considerar válido o acto processual extemporaneamente praticado.” (refª. citius: 132595067).
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A ora Recorrente não obstante não concordar com o acto da secretaria, à cautela, procedeu ao pagamento da multa em causa e requereu que fosse dada sem efeito tal multa invocando que tratando-se de um incidente deve ser liquidada a taxa de justiça e multa, nos casos em que haja lugar, nos termos da tabela II do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
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Foi proferido despacho que, no mais considerou que no caso vertente apresentada a relação de bens veio a requerente impugnar as indicações constantes das declarações do cabeça de casal, reclamar contra a relação de bens e impugnar os créditos e as dívidas da herança, sendo o articulado apresentado pela requerente o equivalente a uma contestação que tivesse sido apresentada num processo comum, não sendo por isso uma intercorrência processual episódica, nem tendo autonomia relativamente ao processado do inventário, concluindo não assistir razão à requerente e consequentemente indeferindo o requerido.
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É a seguinte a fundamentação da decisão que importa convocar:
«Reclamação (liquidação da multa)
Vem a requerente reclamar quanto ao valor da multa liquidada em consequência da entrega extemporânea do requerimento de impugnação, oposição e reclamação contra a relação de bens que considera tratar-se de incidente devendo como tal ser a multa liquidada nos termos da tabela II do RCP.
A questão suscitada pelo reclamante não é pacífica, existindo acórdãos em sentidos distintos.
Em anotação ao artigo 1091.º do Código de Processo Civil anotado, António Abrantes Geraldes (Ed Almedina, 2020, p 573)“(…) diz-nos «Os principais incidentes do processo de inventário são a intervenção principal ( artigo 1087.º), a habilitação de interessados (1089.º), o exercício do direito de preferência ( artigo 1095.º) a substituição, escusa ou remoção do cabeça de casal ( artigo 1103.ºn.º2), a redução por inoficiosidade de legados ou de doações ( artigo 1118.º n.º3, a emenda e a anulação da partilha ( artigo 1126.º n.º2 e 1127.º n.º2) a partilha adicional ( artigo 1129.º). Para além destes estão disponíveis os demais incidentes nos termos gerais, em função das concretas circunstâncias. A oposição ao inventário, a impugnação da legitimidade dos interessados, a reclamação à relação de bens ou a impugnação de créditos e de dívidas da herança não obstante seguirem uma tramitação de cariz incidental ( artigos 1105.º e 1106.º) não são qualificadas como incidentes, estando envolvidas no direito de defesa, nos termos gerais”.
Um incidente processual é uma ocorrência extraordinária, acidental, estranha, surgida no desenvolvimento normal da relação jurídica processual, que origine um processado próprio, isto é, com um mínimo de autonomia, ou dito de outro modo, uma intercorrência processual secundária, configurada como episódica e eventual em relação ao processo próprio da ação principal – Ac. TRE de 6 de maio de 2020.
No caso vertente apresentada a relação de bens veio a requerente impugnar as indicações constantes das declarações do cabeça de casal, reclamar contra a relação de bens e impugnar os créditos e as dívidas da herança. O articulado apresentado pela requerente é o equivalente a uma contestação que tivesse sido apresentada num processo comum, não é por isso uma intercorrência processual episódica, nem tem autonomia relativamente ao processado do inventário.
Nesta conformidade afigura-se-nos não assistir razão à requerente e consequentemente indefere-se o requerido.».
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A Recorrente insurge-se contra esta decisão, apresentando as seguintes conclusões do recurso:
« I – Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls., proferido pela Meritíssima Juiz dos autos que, no mais considerou: “No caso vertente apresentada a relação de bens veio a requerente impugnar as indicações constantes das declarações do cabeça de casal, reclamar contra a relação de bens e impugnar os créditos e as dívidas da herança. O articulado apresentado pela requerente é o equivalente a uma contestação que tivesse sido apresentada num processo comum, não é por isso uma intercorrência processual episódica, nem tem autonomia relativamente ao processado do inventário”, tendo decido que, “Nesta conformidade afigura-se-nos não assistir razão à requerente e consequentemente indefere-se o requerido”.
II - A Recorrente não se conforma com o douto despacho proferido pelo Tribunal a quo, dado que, o requerimento de reclamação contra a relação de bens apresentado nos autos é um incidente e como tal a taxa a liquidar é a devida nos termos da tabela II do RCP.
III – Em 08/09/2021, a Recorrente apresentou em juízo reclamação à relação de bens e, liquidou a multa prevista na alínea b) do n.º 5 do artigo 139.º do CPC, uma vez que praticou o acto no 2.º dia subsequente ao termo do prazo.
IV – A Recorrente após a junção da reclamação foi notificada para “... efectuar o pagamento da multa prevista no nº. 5 do artigo 139º. do Código de Processo Civil, sob pena de não se considerar válido o acto processual extemporaneamente praticado.”,
V – A Recorrente, não obstante não concordar com o acto praticado pela secretaria do douto Tribunal “a quo”, à cautela, procedeu ao pagamento da multa em causa, através da Guia que lhe foi enviada bem como reclamou quanto ao valor daquela.
VI – O Tribunal a quo admite que a questão suscitada pela ora Recorrente não é pacífica, é certo, mas, as decisões recentes dos Tribunais superiores vão de encontro ao que a Recorrente pretende ver decidido.
VII – A reclamação prevista no n.º 1 do artigo 1104.º do CPC, constitui um incidente, e dá lugar a processamento autónomo especialmente previsto na Lei, possuindo os respectivos efeitos de incidente e, quanto a custas judiciais, é indiscutível que sempre assim foram tributadas as reclamações que são deduzidas nos processos de inventário, as quais dão lugar ao pagamento prévio da respectiva taxa de justiça, enquanto incidente.
VIII – Sendo a reclamação à relação de bens qualificada como incidente, o pagamento da inerente taxa de justiça é fixada nos termos da Tabela II anexa ao RCP, considerando o que consta do seu nº. 4 do artigo 7.º.
IX – Entende a Recorrente que bem andou ao liquidar a multa devida por referência à taxa de justiça dos incidentes, em cumprimento da Tabela II anexa ao RCP, conforme determina o n.º 4 do artigo 7.º deste regulamento.
X – O douto Tribunal a quo o decidir como decidiu, não qualificando a reclamação como incidente mas sim como “equivalente a uma contestação”, o Tribunal a quo violou o n.º 1 do artigo 1104.º do CPC e n.º 4 do artigo 7.º do RCP, devendo ser ordenada a restituição à Recorrente do valor pago em excesso
termos em que nos melhores de direito aplicáveis, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho de que se recorre, substituindo-o por outro que admita a reclamação à relação e bens como incidente e, ordene a devolução à Recorrente do valor pago em excesso»
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Dos autos não constam contra-alegações.
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos do disposto no art.º627.º, 629.º n.º 1, 631.º n.º 1, 638.º n.º 1, 639.º,  644.º n.º 2 al. e), 645.º n.º 2, 647.º n.º 2 e n.º 3 al. e) CPC.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Quaestio Iudicio:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
A questão a resolver é a que consta das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que se resume a apreciar:
I - Da qualificação da oposição, impugnação e reclamação à relação de bens como incidente;
II - Do pagamento da taxa de justiça e eventual multa com base nos termos da Tabela II anexa ao RCP, considerando o que consta do seu nº. 4 do artigo 7.º.
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III - Fundamentação
Os elementos fácticos relevantes para a decisão são os supra elencados
Como fundamento do pedido alega a Recorrente, em suma, que sendo a reclamação à relação de bens qualificada como incidente, o pagamento da inerente taxa de justiça é fixada nos termos da Tabela II anexa ao RCP, considerando o que consta do seu nº. 4 do artigo 7.º.
Resulta do disposto pelo art. 1097º nºs 1 e 3 als. c) e d) do CPC, que o processo de inventário se inicia com a entrada em juízo do requerimento inicial, ao qual deve ser junto (quando o cabeça-de-casal é o requerente, como é o caso dos autos) a respectiva relação de bens e dos créditos e das dívidas (da herança ou do património comum a partilhar).
Por seu lado, resulta do art. 1104º do mesmo diploma legal que os interessados diretos na partilha podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação, deduzir oposição ao inventário, impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, e impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações, e apresentar reclamação à relação de bens, e/ou impugnar os créditos e as dívidas da herança (nº1), faculdades estas que também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no nº3 do art. 1100º CPC e, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do nº2 do mesmo artigo (nº2).
Já o art. 1105.º CPC preceitua a sequência da tramitação da reclamação, ou seja, notifica-se a reclamação ao cabeça-de-casal, cabendo ao mesmo apresentar a respetiva resposta também no prazo de 30 dias. Segue-se a realização de prévias diligências probatórias que couberem ao caso, requeridas ou ordenadas oficiosamente (n.º 3, do referido art.1105.º CPC), a eventual realização de uma conferência prévia (art. 1109.º CPC) ou o saneamento do processo (art. 1110.º CPC), decidindo-se, então, as questões suscitadas pelas partes (incluindo os eventuais incidentes), devendo ser elaborado um despacho, cuja finalidade e conteúdo decorre das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1110.º do CPC, devendo o juiz, nesse despacho, resolver todas as questões susceptíveis de influenciarem a partilha e a determinação dos bens a partilhar, ordenando a notificação dos interessados (e do Ministério Público, sendo o caso) para, querendo, proporem a forma à partilha, designando dia para a conferência de interessados, seguindo-se a demais tramitação processual prevista nos arts. 1111.º e ss. CPC.
Assim, com a entrada em vigor da Lei no 117/2019 de 13 de setembro, o processo de inventário passou a situar-se sistematicamente no âmbito do CPC, pelo que a este processo especial serão plenamente aplicáveis os princípios gerais do Código, bem como o regime do processo comum de declaração, com as adaptações necessárias. Ademais, com este novo modelo, o processo de inventário apresenta-se como uma verdadeira ação, e a reclamação contra a relação de bens já não constitui um incidente do processo de inventário, inserindo-se na marcha regular do processo em causa, mas obriga a que os interessados concentrem os “meios de defesa” no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão. ( cfr. Ac. TRGuimarães 01.02.2024 in www.dgsi.pt).
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ªedição, p. 553 e 554 “para além do recuo na experiência de desjudicialização que foi adoptada pela Lei nº23/13, importa sublinhar a vontade de alteração do paradigma a que obedecia o processo de inventário judicial quando era regulado segundo as normas inscritas no CPC de 1961. É este o verdadeiro contraponto do novo regime legal, sendo de notar que recebe os contributos das regras gerais do processo e da acção declarativa, o que especialmente se evidencia pelo que se dispõe acerca da concentração e da preclusão dos actos respeitantes a cada fase processual, como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação. Assim, fixada a pessoa que irá desempenhar o cargo de cabeça de casal, por designação do juiz ou por confirmação judicial quem se arrogue tal qualidade, e juntos aos autos os elementos essenciais atinentes à abertura da herança, identificação dos interessados e acervo patrimonial hereditário, é estabelecido um verdadeiro contraditório, recaindo sobre cada interessado que venha a ser convocado o ónus de deduzir todos os meios de defesa e de alegar tudo o que se revele pertinente para a tutela dos seus interesses e para o objectivo final do inventário… É nesta primeira fase (fase dos articulados, que engloba a fase inicial e da oposições e verificação do passivo), em face do requerimento inicial e dos actos e documentos apresentados pelo requerente (arts. 1097º e l099º) ou pelo cabeça de casal judicialmente designado ou confirmado (art. 1100º, nº1, al. b)), que deve ser concentrada a discussão de todos os aspectos essenciais relevantes. Sem embargo das excepções salvaguardadas por regras gerais de processo (Vg. meios de defesa supervenientes) ou por regras específicas do inventario que permitem o diferimento (v.g. avaliação dos bens, incidente de inoficiosidade), cada interessado tem o ónus de suscitar nesta ocasião, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objetivo final do inventário (art. 1104º), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial…”.
E concretamente sobre o preceito contido no art. 1104º do CPC, explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa (ob. cit., p. 603). que “tal corresponde a um verdadeiro ónus e não a uma mera faculdade, já que o decurso do prazo de 30 dias determina, por regra, efeitos preclusivos quanto a tais iniciativas, sendo que a não impugnação dos elementos factuais e documentais vertidos nas alegações do requerente de inventário ou do cabeça de casal tem os efeitos previstos nos arts. 566º, 567º e 574º ex vi art. 549º, n°1. Mantêm-se as excepções ao efeito cominatório semipleno decorrentes dos arts. 568° e 574, nºs 2 a 4… Este regime diverge do que estava consagrado no CPC de 1961 (art. 1348) e integra-se, agora, no modelo geral dos processos de natureza contenciosa, sendo o efeito preclusivo justificado, além do mais, por razões de celeridade e de eficácia da resposta a um conflito de interesses, que importa resolver, em torno da partilha…” .
Já quanto à reclamação contra a relação de bens com fundamento na insuficiência, no excesso ou na inexatidão da descrição ou do valor, afirmam os mesmos autores (ob. cit., p. 606) que “Contrariando a solução prevista no art. 1348° CPC de 1961, a reclamação relativa à relação de bens não suporta o diferimento que tal regime permitia. Uma vez que os bens são relacionados pelo cabeça de casal e só depois se procede a citação dos interessados, facilmente se compreende que também tenha sido marcado um prazo peremptório para o exercício do direito de defesa mediante reclamação, de modo que, uma vez exercido o contraditório e produzidas as provas pertinentes, as questões atinentes ao ativo e passivo da herança estejam definitivamente decididas quando for convocada a conferência de interessados...”.
Esta tramitação evidencia, como faz notar Lopes do Rego, in “A Recapitulação do Inventário”, Julgar on line, Dezembro 2019, p. 12 e 13, que
(…) toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respetiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações) ou com as questões que sejam de conhecimento oficioso pelo tribunal. Daqui decorre, por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objetiva ou subjetiva, na fase das oposições – e não a todo o tempo, em termos idênticos à junção de prova documental, como parecia admitir o art. 1348.º, n.º 6, do anterior CPC.”.
É assim hoje pacífico que o processo de inventário é hoje uma verdadeira acção, obrigando a que os interessados concentrem os meios de defesa no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão.(cfr. Ac. TRGuimaraes, 16.05.2024 in www.dgsi.pt).
Neste sentido pronuncia-se o Acórdão do Tribunal de Relação de Guimarães de  02.06.2022, in www.dgsi.pt , apreciando que “(…) Desde logo, importa ter presente que a reclamação à relação de bens não obstante seguir uma tramitação de cariz incidental ( art. 1105º e 1106º do CPC), não é qualificada como incidente, estando envolvida no direito de defesa, nos termos gerais. Abandonada a experiência subsequente de atribuição aos cartórios notariais da competência exclusiva para a tramitação dos inventários, tendo em conta os frustrantes resultados, a nova regulamentação foi orientada pelo objetivo de modernizar tal processo especial contribuir para a resolução célere e justa de partilhas litigiosas. Para tal, considerou-se, desde logo, impor ao requerente (seja ou não cabeça de casal) o ónus de alegar e demonstrar os factos mais relevantes, de modo que, citados, os demais interessados, possam exercer o seu direito de defesa em toda a amplitude, mas com efeitos preclusivos, tornando mais eficiente a tramitação, mediante a concentração dos atos em cada uma das diversas fases processuais. Não se compreendendo, aliás, a persistência no campo do processo civil de um “enclave” no qual as regras processuais pudessem ser manipuladas em função das conveniências de ordem meramente particular; ao invés, o facto de no inventário se conjugarem diversos interesses exige a fixação de regras que, embora sem uma absoluta rigidez formal, contribuam para a resolução oportuna das diversas questões e, a final, para a concretização de partilhas justas e equilibradas, num prazo razoável. Neste novo cenário, o requerimento inicial assemelha-se a uma verdadeira petição inicial…” Também Lopes do Rego, in Julgar on line, Dezembro de 2019, refere “ Este novo modelo procedimental parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte; e assim, o modelo procedimental instituído para o inventário na Lei n.º 117/19 comporta: I) Uma fase de articulados – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo; II) Uma fase de saneamento, em que o juiz, após realização das diligências necessárias, e com a possibilidade de realizar uma audiência/conferência prévia, deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar, proferindo também, nesse momento processual – e após contraditório das partes – despacho contendo a forma à partilha (antes de convocar a conferência de interessados); III) Um procedimento específico para a verificação e redução de eventuais inoficiosidades, através de um incidente com a estrutura de uma ação enxertada no inventário; IV) A fase da partilha, consubstanciada, desde logo, nas diligências e atos que integram a conferência de interessados…; Só depois de encerradas estas diligências se passa à elaboração do mapa da partilha, concretizando, na sequência do resultado dessas várias diligências anteriores, os bens que integram o quinhão hereditário de cada interessado – e encerrando-se naturalmente o processo com a prolação de sentença homologatória” Concluiu aquele mesmo autor “com este regime de antecipação/concentração na suscitação de questões prévias à partilha ou de meios de defesa, associado ao estabelecimento de cominações e preclusões, pretende evitar-se que a colocação tardia de questões – que podiam perfeitamente ter sido suscitadas em anterior momento ou fase processual – ponha em causa o regular e célere andamento do processo, acabando por inquinar irremediavelmente o resultado de atos e diligências já aparentemente sedimentados, tendentes nomeadamente à concretização da partilha, obrigando o processo a recuar várias casas, com os consequentes prejuízos ao nível da celeridade e eficácia na realização do seu fim último.” (…) Prima facie, atente-se que a remissão do artigo 1091.º do Código de Processo Civil para as normas gerais que disciplinam a tramitação dos incidentes de instância, e a que alude o despacho recorrido, designadamente o prazo para a indicação dos meios de prova, só vale para as situações em que não existam normas específicas, no processo de inventário, que regulem os incidentes nele suscitados. Não é seguramente o caso da reclamação à relação de bens, cujas provas devem ser indicadas com o respetivo requerimento e resposta, como expressamente determina o citado artigo 1105.º. Por outro lado, atualmente, tal como resulta do que acima foi dito, a reclamação contra a relação de bens já não constitui um incidente do processo de inventário, inserindo-se na marcha regular do processo em causa. (…) Ora, por via do disposto no art. 549º, nº 1 do C. P. Civil, à tramitação do inventário são aplicáveis as disposições da parte geral desse Código, bem como as regras do processo civil de declaração que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial ». Neste sentido se pronuncia Lopes do Rego ( in Julgar on line, 2019, p. 14), a propósito do reforço do papel do juiz, realçando que: “ passando o processo de inventário a situar-se sistematicamente no âmbito do CPC, é evidente que a este processo especial serão plenamente aplicáveis os princípios gerais do Código, bem como o regime do processo comum de declaração, com as adaptações necessárias.” (Ac. TRGuimarães, 01.02.2024 in wwwdgsi.pt)
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A decisão recorrida, pronunciou-se precisamente no sentido de que, no caso vertente apresentada a relação de bens veio a requerente impugnar as indicações constantes das declarações do cabeça de casal, reclamar contra a relação de bens e impugnar os créditos e as dívidas da herança, pelo que foi considerado pelo Tribunal a quo, e bem, em consonância com a actual previsão legal, que o articulado apresentado pela requerente é o equivalente a uma contestação que tivesse sido apresentada num processo comum, não sendo por isso uma intercorrência processual episódica, nem tendo autonomia relativamente ao processado do inventário, e consequentemente indeferiu o requerido pela ora Recorrente, porquanto a taxa de justiça devida pela apresentação de oposição, impugnação e reclamação à relação de bens é calculada com base na taxa de justiça devida pela apresentação de contestação – artº 1104.º e 1105 .º CPC- e não conforme pretende a recorrente com base nos termos da tabela II do RCP prevista para os incidentes.
Atento o supra exposto, conclui-se, pois, pela manutenção da decisão recorrida.
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IV- Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do presente recurso a cargo da recorrente, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique

Lisboa, 24.10.2024
Elsa Melo
Eduardo Petersen Silva
Nuno Gonçalves