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ARGUIDO
CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS
EFICÁCIA
CO-ARGUIDO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Sumário
I - Sempre que o arguido confessa e o tribunal verifica a validade da confissão não tem que emitir pronúncia expressa sobre a inverificação das consequências previstas no nº 2 do artº 344º do Cód. Proc. Penal. II - A referência aos co-arguidos constante do nº 3 do artº 344º do Cód. Proc. Penal abrange as situações de co-autoria, mas também as situações em que os co-arguidos foram acusados em autoria singular, sempre que o recorte fático apresentar um nexo de comparticipação, causa ou efeito, continuação, ocultação ou reciprocidade, como sucede quando entre as agressões mútuas praticadas pelos dois co-arguidos se verifica uma relação de causa e efeito, que inviabiliza a autonomização da confissão. III – Para efeito do disposto no nº 3 do artº 344º do Cód. Proc. Penal, quando um co-arguido, prestando declarações, não confessar os factos que lhe foram imputados, a materialidade imputada na acusação ao co-arguido confitente não pode ser considerada provada. IV – Não tendo a confissão produzido os efeitos previstos no nº 2 do art.º 344º do Cód. Proc. Penal, pode ter lugar a alteração não substancial dos factos. V - Nos casos do nº 2 do artigo 344º do Cód. Proc. Penal, o que se encontra sujeita a livre convicção do julgador é apenas a aceitação da confissão como livre, integral e sem reservas, não operando o princípio geral contido no art.º 127º do Cód. Proc. Penal quando a confissão assume plena eficácia probatória. VI – Quando, após a confissão livre, integral e sem reservas de um arguido, se verificam as exceções indicadas citado nº 3 do Cód. Proc. Penal, a apreciação da prova far-se-á de acordo com o princípio da livre apreciação de prova ínsito do artigo 127.º do Cód. Proc. Penal.
(Da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Proc.º n.º 454/21.1JAAVR.P1
Relator: Isabel Matos Namora Adjunta: Maria Deolinda Dionísio Adjunto: José Piedade
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
1. Decisão interlocutória
No processo comum, com intervenção de tribunal coletivo, no proc.º 454/21.1JAAVR, que correu termos no Juízo Central Criminal ..., no decurso da audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 23 de abril de 2024, foi proferido a seguinte despacho: “No entendimento do Tribunal indiciam-se fortemente, com base, designadamente, nos depoimentos da testemunha AA e nas declarações prestadas do arguido BB, factos que ou não constam, de todo, da acusação deduzida nos autos contra os arguidos, ou constam de forma diferente daquela que com base em tais elementos probatórios se indiciam.
São eles:
1. De seguida, o arguido CC e DD saíram do seu veículo automóvel, um dos mesmos empunhando um bastão extensível e dirigiram-se ao arguido BB e, sem que nada o fizesse prever, desferiram-lhe diversos murros e pontapés, atingindo-o no corpo todo, inclusivamente na face, provocando a sua queda desamparada no chão.
2. O arguido BB agiu apenas com intenção de repelir agressão à sua integridade física descrita em 3., a qual se encontrava em curso por parte do arguido CC e de DD, e a ser praticada em simultâneo por estes, sendo a actuação e o meio utilizado por aquele BB o único de que dispunha naquele momento; e sendo tal meio o necessário, adequado e proporcional a esse fim. Tais factos, a serem dados como provados, constituem uma alteração não substancial dos descritos na acusação, visto que não implicam a imputação ao arguido de um crime diverso daquele que na mesma lhe vem imputado nem a agravação dos limites máximos da respectiva sanção. Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 358.º nº 1 do Código de Processo Penal, comunica-se tal alteração de factos ao arguido, concedendo-lhe, caso o requeira, o tempo estritamente necessário para a preparação da sua defesa atinente a tal alteração.”
2. Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões:
“I. Salvo o devido respeito e merecido respeito, pelo Ilustre Tribunal subscritor do douto despacho de 23.04.2023, que é muito, não pode o ora recorrente aceitar a decisão proferida na audiência de 23.04.2024 relativamente à comunicação de uma alteração dos factos constantes da acusação nos termos do n.º1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal (“CPP”).
II. A alteração dos factos constantes da acusação comunicada no seguimento do despacho de 23.04.2023 procedeu a uma alteração quanto à concreta factualidade que concretiza a conduta do arguido CC que ofendeu o corpo e a saúde do arguido BB, integrando a prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º1 do Código Penal (“CP”);
III. Mais concretamente, a factualidade comunicada em 1 do despacho de 23.04.2024 procede à alteração da factualidade constante de 3 da acusação aditando à factualidade referente ao arguido CC a possível posse de um bastão extensível, bem como que os concretos actos praticados pelo arguido CC que ofenderam o corpo e a saúde do arguido BB, foram praticados nas mesmas circunstâncias de espaço e tempo com a testemunha DD.
IV. O arguido aquando da sua inquirição na audiência de julgamento de 09.04.2024 admitiu integralmente a veracidade sobre os factos constantes da acusação pública juridicamente relevantes para a sua culpabilidade e determinação da pena quanto aos crimes de que vinha acusado, desfavoráveis à sua posição processual nos exactos termos constantes da douta acusação pública.
V. O tribunal aquo, por despacho de 09.04.2024 já transitado em julgado, julgou a confissão do arguido prestada na audiência como tendo sido livre, integral e semreservas nos termos do n.º1 do artigo 344.º do CPP, não levantando qualquer reparo à mesma nos termos do n.º3 do artigo 344.º do CPP. VI. O tribunal aquo ao julgar a confissão do arguido CC como integral e sem reserva, não se verificando nenhuma das circunstâncias do n.º3 do artigo 344.º do CPP está vinculado por força do disposto na al. a) do n.º2 do artigo 344.º do CPP a dar como provado quanto à factualidade que integra o preenchimento do tipo legal de crime de ofensa à integridade física (cfr. 3 da acusação) que: “Deseguida,oarguidoCCsaiudoseuveículoautomóvel,dirigiu-seaoarguidoBBe,semquenadaofizesseprever,desferiu-lhediversosmurrosepontapés,atingindo-onocorpotodo,inclusivamentenaface,provocandoasuaquedadesamparadanochão”. VII. O Tribunal a quo, perante a confissão do arguido CC julgada em 09.04.2024 como integral e sem reserva, não pode dar como provado quanto à concreta factualidade imputada ao arguido como consubstanciadora da ofensa à saúde e ao corpo do arguido BB que: “Deseguida,oarguidoCCeDDsaíramdoseuveículoautomóvel,umdosmesmosempunhandoumbastãoextensíveledirigiram-seaoarguidoBBe,semquenadaofizesseprever,desferiram-lhediversosmurrosepontapés,atingindo-onocorpotodo,inclusivamentenaface,provocandoasuaquedadesamparadanochão.” VIII. O Tribunal a quo, perante a confissão do arguido CC julgada em 09.04.2024 como integral e sem reserva, considerando no Acórdão de 21.05.2024 (cfr. 3 dos factos provados) que o concreto modo como o arguido CC ofendeu a integridade física do arguido BB, “podendoterempunhadoumbastãoextensível” e “semquenadaofizessepreverdesferiucomDDdiversos murrosepontapés”, violou o n.º2 do artigo 344.º do CPP, afectando substancialmente a decisão de 09.04.2024 já transitada em julgado que considerou a confissão do arguido CC sobre a factualidade que lhe foi imputada na acusação pública como integral e sem reserva. IX. A confissão do arguido CC na audiência de 09.04.2024, julgada pelo tribunal aquo como integral e sem reservas implica a aceitação de todos os factos que lhe são imputados na acusação pública e que são objecto de julgamento, não admitindo condições ou alterações aos factos que foram admitidos tal como constam da acusação, não podendo como tal a factualidade constante da acusação e objecto de confissão integral e sem reservas ser alterada. X. O tribunal aquo no despacho de 23.04.2024 ao alterar a factualidade consubstanciadora do preenchimento do tipo legal de crime de ofensa à integridade física simples constante de 3 dos factos da acusação, após ter determinado por decisão transitada em julgado a confissão do arguido de 09.04.2024 como livre, integral e sem reservas, violou o n.º2 do artigo 344.º do CPP; XI. A comunicação de factos operada pelo despacho de 23.04.2024 ao versar sobre factualidade essencial (“concretomododeofensaaocorpoeàsaúdedoarguidoBB”) para o preenchimento do tipo de crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo n.º1 do artigo 143.º do CP por parte do arguido, depois deste ter confessado e essa confissão ter sido julgada como livre, integral e sem reservas é ilícita por violação do n.º2 do artigo 344.º do CPP; XII. Assim, deverá ser revogado o despacho de 23.04.2023 que procedeu à comunicação da alteração dos factos constantes de 3 da acusação pública, devendo o mesmo ser substituído por outro que tendo em consideração a solução dada à questão aqui suscitada, sendo alterado o douto Acórdão proferido em 21.05.2024 em conformidade.
3. O Ministério Público na 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido, porquanto a decisão recorrida, no que diz respeito aoarguidoCC, não merece qualquer reparo, não enfermando de qualquer vício de natureza formal ou substancial que inquine a sua validade material, e por isso, deve ser mantida nos seus precisos termos.
4.Acórdão
Concluído o julgamento, o Tribunal Coletivo elaborou o respetivo acórdão, no qual decidiu:
i “Absolver o arguido BB da prática, em autoria material, de um crime de homicídio na forma tentada, p. p. e p. pelas disposições combinadas dos artigos 22.º, 23.º e 131.º, todos do Código Penal. por verificação de actuação ao abrigo de exercício de legitima defesa, nos termos do disposto no artigo 31.º do Código Penal.
ii Condenar o arguido CC, em autoria material e em concurso efectivo pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal; na pena 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros)¸
iii Condenar o arguido CC em autoria material e em concurso efectivo a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea an) e 3.º, n.º 2, alíneas g) e i), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 230 (duzentos e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros)
iv Condenar o arguido CC na pena única de 290 (duzentos e noventa) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros)
v Condenar o arguido CC no pagamento de 3 (três) U. C. de taxa de justiça, nos termos do disposto nos arts. 374.º, nº 4; 513.º, nº s 1, 2 e 3; 514.º, nºs 1 e 2 e 524.º, todos do CPP, bem como nos termos dos art. 3.º e 8.º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais (em conjugação com a Tabela III).
vi Sem custas criminais quanto ao arguido BB.
vii Declarar improcedente por não provado o pedido de reembolso efectuado pelo Centro Hospitalar do Baixo Vouga E. P. E. contra o arguido BB absolvendo o mesmo do respectivo pedido no valor de € 1.935,40 (mil novecentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos).
viii Custas cíveis pelo demandante civil, sem prejuízo de eventual isenção prevista no Regulamento das Custas Processuais.
ix Declarar perdidos a favor do Estado o canivete e o bastão extensível, apreendidos a fls., nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal.”
5. Não se conformando com a decisão dela veio interpor recurso o arguido CC, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
I. Salvo o devido respeito e merecido respeito, pelo Ilustre Tribunal subscritor do douto acórdão recorrido, que é muito, não pode o ora recorrente aceitar a decisão proferida no douto Acórdão de 21.05.2024 relativamente à sua condenação na pena única de 290 (duzentos e noventa) dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez euros) pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea an) e 3.º, n.º 2, alíneas g) e i), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
II. A matéria de facto constante do ponto 3 dos factos provados foi incorrectamente julgada (art.º 412, n. º3 al. a) do CPP).
III. Matéria essa que não deveria ter sido julgada como provada, pois ocorreu uma violação do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP) na sua determinação.
IV. Impõe decisão diversa do decidido no douto Acórdão (art.º 412.º, n. º3, al. b) do CPP) a análise conjugada das regras probatórias e regras de experiências inerentes à valoração de uma confissão prestada pelo arguido que foi julgada livre, integral e sem reservas pelo Tribunal aquo em confronto com a valoração do depoimento de um co-arguido julgado nos autos por outro crime e do depoimento de uma testemunha, mãe desse co-arguido.
V. Na audiência de julgamento de 09/04/2024 o arguido CC, na sua primeira tomada de declarações, confessou toda factualidade da qual vinha acusado e consequentemente, a factualidade que constava do ponto 3 da acusação pública.
VI. A confissão do arguido CC foi objecto de despacho na audiência de 09/04/2024, julgando o tribunal a quo que a confissão prestada pelo arguido em audiência foi livre, integral e sem reservas nos termos do n.º1 do artigo 344.º do CPP, não se verificando o tribunal aquo¸ nem existindo no presente caso nenhuma das circunstâncias previstas no n.º3 do artigo 344.º do CPP.
VII. A partir do momento em que o tribunal aceita a confissão do arguido como livre, integral e sem reservas e não apura a existência de qualquer das excepções constantes do n.º3 do artigo 344.º do CPP, a confissão passa a ter plena eficácia probatória quanto aos factos sobre que versa,tendo valor de prova plena.
VIII. Afactualidade constantede3 dos factos provados do douto acórdão aquo, alterou afactualidade que foi objecto de confissão pelo arguido e julgada por esse mesmo tribunal como livre, integral e sem reservas nos termos do n.º1 do artigo 344.º do CPP.
IX. Não há nenhuma norma probatória ou regra de experiência que permita extrair do depoimento de um co-arguido julgado por crime diverso e de uma testemunha mãe daquele, factualidade contrária e que modifica factos que foram previamente objecto de confissão, julgada livre, integral e sem reservas e com eficácia probatória plena.
X. As declarações prestadas pelo arguido BB e pela testemunha sua mãe, deviam ter sido valoradas pelo tribunalaquo nos termos do princípio da livre apreciação de prova constante do artigo 127.º do CPP, não devendo ser valoradas nos casos em que se opõe ao outro meio de prova de valor superior (“confissão do arguido”).
XI. O cumprimento das regras probatórias e do princípio da livre apreciação da prova, impõe que só deverá ser objecto de decisão como factualidade provada sob o ponto 3, a factualidade que constava da acusação e que foi objecto de confissão pelo arguido e que foi julgada pelo tribunal a quo livre,integralesemreservas com o seguinte teor: 3.Deseguida,oarguidoCCsaiudoseuveículoautomóvel,dirigiu-seaoarguidoBBe,semquenadaofizesseprever,desferiu-lhediversosmurrosepontapés,atingindo-onocorpotodo,inclusivamentenaface,provocandoasuaquedadesamparadanochão.
XII. As concretas penas que foram aplicáveis pelo tribunal aquo ao arguido pela prática dos crimes de ofensa à integridade física e de detenção de arma proibida são excessivas e desproporcionais em função das regras de determinação concreta da pena constantes do n.º2 do artigo 71.º, do artigo 72.º e do artigo 73.º todos do CP.
XIII. A pena de 200 (duzentos) dias de multa em que o arguido foi condenado pelo crime de ofensa à integridade física previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º1 do Código Penal situa-se nos 55,55% do máximo da moldura penal abstractamente aplicável, abarcando 5/9 da totalidade dessa moldura.
XIV. A determinação concreta da medida da pena para o crime de ofensa à integridade física teve em consideração a realidade constante de 3 dos factos provados do douto acórdão, em concreto a ocorrência dos actos que ofenderam a saúde do co-arguido BB, perpetrados pelo arguido e por um segundo sujeito, estando na posse um deles de uma arma proibida.
XV. A concreta realidade de 3 dos factos provados na versão resultante deste recurso, de actuação sozinha do arguido nos factos, sem recurso a qualquer arma proibida naquele contexto, considerada com o facto de durante esses actos o arguido ter sido agredido com uma arma, sofrendo 3 golpes na zona do tórax e um na zona do braço pelo outro interveniente (cfr.4 e 5 dos factos provados) e de o arguido CC ter se posto em fuga do local (cfr. 6 dos factos provados) mitigam a intensidade da agressão levada a cabo pelo arguido CC e reduzem a ilicitude da conduta do mesmo globalmente apreciada.
XVI. Quanto ao crime de detenção de arma proibida a medida da pena de 230 dias em 480 possíveis, consubstancia 23/48 da moldura penal abstracta e situa-se nos 47,9% do máximo abstratamente aplicável.
XVII. Assim, a mobilização das concretas circunstâncias em que ocorreram os dois crimes e os factores que mitigam a culpa do arguido mobilizados pelo Tribunal aquo (confissãolivre,integralesemreservas,oarrependimentodoarguido(”reputadoporsincero”)eainexistênciadeantecedentescriminais) impunham em cumprimento do n.º2 do artigo 71.º e do artigo 72.º do CP o apuramento de uma medida concreta de pena inferior ao determinado pelo Tribunal aquo.
XVIII. Será adequada e proporcional às concretas circunstâncias do caso, nos termos do n.º2 do artigo 71.º, do artigo 72.º e 73.º do CP, a atribuição por esse Venerando Tribunal de uma pena em cada um dos crimes que tenha como limite máximo 2/6 da moldura penal abstracta do crime de ofensa à integridade física (120 dias) e no caso do crime de detenção de arma proibida de 1/6 da moldura penal abstracta (80 dias);
XIX. O cúmulo destas duas penas, nos termos do n.º2 do artigo 77.º do CP teria como limite máximo 200 dias (120+80) e como mínimo 120 dias (penamaiselevada).
XX. O quantitativo diário da pena de multa de 10€ diários é excessivo face aos rendimentos do arguido de € 900,00 e ao valor de 820€, referente ao salário mínimo nacional em Portugal no ano de 2024 que funciona como patamar mínimo de subsistência de cada individuo que tenha actividade profissional na sociedade, devendo ser aplicado ao arguido um valor diário próximo do mínimo legal.
XXI. Assim, deverá ser alterado o douto Acórdão de 21.05.2024 quanto à factualidade decidida como provada em 3 dos factos provados, relativamente à medida concreta das penas em que o arguido foi condenado, à pena única em que foi condenado e quanto ao quantitativo diário da pena de multa.
6. O Ministério Público na 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Relativamente à impugnação da matéria de facto provada, a confissão do arguido apenas tem plena eficácia probatória quanto aos factos sobre que versa, quando não se verifica qualquer uma das excepções prevista no nº 3 do art. 344º do CPP;
2. Em audiência de discussão e julgamento, um dos arguidos – o recorrente – confessou os factos, nos termos prescritos no acima citado art. 344º, nº 1 do CPP, no entanto as declarações do co-arguido BB não apresentaram os pressupostos fixados legalmente para que se pudessem caracterizar de confessórias, nos termos e para os efeitos do art. 344º do CPP.
3. E por tal circunstância, não pode o Tribunal a quo renunciar à produção de prova, por força do disposto no nº 3 do art. 344º do CPP, tendo sido produzida a restante prova arrolada;
4. Realizada toda a prova, o Tribunal a quo fundamentou os factos provados, nomeadamente o ponto 3., que o arguido recorrente impugna, na análise critica de toda a prova produzida em audiência de julgamento e na restante prova já pré-constituída, ou seja, na prova documental e pericial junta aos autos.
5. No que respeita à invocação da violação do art. 127º do CPP diremos que o Tribunal a quo decidiu segundo a sua livre convicção explicando e fundamentando de modo lógico e racional a sua motivação de facto.
6. No que à alegada violação dos art. 40º e 71º do Código Penal concerne, a mesma não se verifica, pois, considerada a pluralidade dos factos, e a personalidade indiferente às regras e valores sociais, não se encontra censura a fazer às penas parcelares aplicadas e à pena única encontrada em cúmulo.
7. O Tribunal ponderou de forma adequada, de acordo com a matéria provada e legislação em vigor, a pena e o quantitativo diário em concreto aplicados;
A decisão recorrida, no que diz respeito ao arguido, não merece qualquer reparo, não enfermando de qualquer vício de natureza formal ou substancial que inquine a sua validade material, e por isso, deve ser mantida nos seus precisos termos.
7. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento dos recursos, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância.
8. Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º2 do Cód. Proc. Penal, a recorrente não exerceu o contraditório.
II- Questões a decidir
No recurso em análise, em face das conclusões apresentadas importa apreciar e decidir as seguintes questões:
- violação do n.º2 do artigo 344.º do CPP - da força probatória plena da confissão - admissibilidade da alteração não substancial dos factos;
- impugnação da matéria de facto – eficácia probatória plena da confissão – princípio da livre apreciação da prova;
- medida da pena.
III- Fundamentação 1. Na audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 9 de abril de 2024, o arguido CC prestou declarações, na sequência das quais foi proferido o seguinte despacho: “Em face da confissão livre integral e sem reservas prestada pelo arguido CC, declara-se que a mesma foi prestada de forma livre de qualquer coação o que se consigna nos termos do disposto no art.º 344º, nº 1 do C. P. Penal.”
2. Proferida sentença, o tribunal recorrido considerou provados e não provados os factos que se elencam (transcrição): “Da acusação pública 1. No dia 24 de Junho de 2021, entre as 21h30 e as 21h50, na sequência de um desentendimento ocorrido entre o arguido BB e o arguido CC, este último, fazendo-se acompanhar de DD, dirigiu-se no seu veículo automóvel de matrícula ..-CM-.., até à localidade da ..., com vista a confrontar o primeiro. 2. Chegados à referida localidade, o arguido CC avistou o arguido BB que seguia a pé entre a Avenida ... e a Avenida ... e parou o seu veículo junto do mesmo. 3.De seguida, o arguido CC e DD saíram do seu veículo automóvel, um dos mesmos empunhando um bastão extensível e dirigiram-se ao arguido BB e, sem que nada o fizesse prever, desferiram-lhe diversos murros e pontapés, atingindo-o no corpo todo, inclusivamente na face, provocando a sua queda desamparada no chão. 4. Nessa altura, o arguido BB, encontrando-se no chão, pegou um canivete que trazia consigo no bolso, com cabo em madeira de cor castanha e lâmina com cerca de 8 cm de comprimento, contendo as inscrições “Opinel Carbone”. 5. Arma que empunhou e utilizou de lâmina aberta, na pessoa do arguido CC, desferindo-lhe três golpes na zona do tórax e um na zona do braço esquerdo, o qual atravessou a camisa que este trazia vestido. 6. O arguido CC saiu do local, pondo-se em fuga, deslocando-se para as urgências do Centro Hospitalar de Baixo Vouga. 7.Como consequência directa e necessária dos factos descritos em 3., o arguido BB sofreu dores nas regiões atingidas e apresentou lesões físicas, designadamente, traumatismo de natureza contundente que lhe determinaram um período de doença fixável em 10 dias, com afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional. 8. Como consequência directa e necessária dos factos descritos em 4. e 5., o arguido CC sofreu dor e as seguintes lesões no tórax e membro superior esquerdo: - cicatriz rosada de caraterísticas operatórias não recentes no terço médio da face ântero-lateral do hemitórax esquerdo, ao nível da linha axilar anterior, medindo 3cmx2cm, compatível com colocação de dreno torácico; - cicatriz rosada de caraterísticas operatórias não recentes no terço proximal da face póstero-lateral do hemotórax esquerdo, ao nível da linha axilar posterior, medindo 1,5cmx1,5cm; - cicatriz rosada de caraterísticas operatórias não recentes no terço médio da face póstero-lateral do hemotórax esquerdo, ao nível da linha axilar posterior, medindo 2,5cm de comprimento; - cicatriz rosada de caraterísticas operatórias não recentes no terço proximal da face posterior do hemitórax esquerdo, medindo 4cm de comprimento, transversal, de extremidade lateral aguda e medial romba; e - cicatriz rosada de caraterísticas operatórias não recentes no terço proximal da face posterior do braço esquerdo medindo 2cm de comprimento. 9. As referidas lesões determinaram para o arguido CC um período de doença de 45 dias, com afectação da capacidade de trabalho geral por igual período, com sequelas que, no entanto, não desfiguram de forma grave o examinado. 10. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar de 1. a 5., o arguido CC detinha no interior do seu veículo automóvel com a matrícula ..-CM-.., entre os bancos da frente, um bastão extensível, composto com molas em material tipo plástico, de cor preta, que apresentava, estendido, o comprimento de 63,50 cm. 11. Ao actuar do modo descrito em 3., o arguido CC quis molestar fisicamente o arguido BB e provocar-lhe lesões, o que conseguiu. 12. Ao actuar do modo descrito em 9., o arguido CC bem conhecia as características do objecto descrito, bem como a sua perigosidade e sabendo que não o podia transportar consigo, ainda assim, não se inibiu de o fazer. 13. O arguido BB agiu apenas com intenção de repelir agressão à sua integridade física descrita em 3., a qual se encontrava em curso por parte do arguido CC e de DD, e a ser praticada em simultâneo por estes, sendo a actuação e o meio utilizado por aquele BB o único de que dispunha naquele momento; e sendo tal meio o necessário, adequado e proporcional a esse fim. 14. O arguido CC agiu de forma consciente livre e deliberada, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Do pedido de indenização /reembolso formulado pelo Centro Hospitalr do Baixo Vouga, E.P.E 15. No dia 24 de Junho de 2021, deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital ..., CC, tendo-lhe sido prestada a assistência devida, atendendo às lesões apresentadas. Permaneceu em regime de internamento até ao dia 28 de Junho de 2021. 16. Os cuidados prestados por esta instituição foram originados pelas lesões apresentadas pelo assistido em consequência da conduta do arguido BB. 17. Os encargos com a assistência prestada a CC importam a quantia de €1935,40. Mais se provou que 18. Do certificado de registo criminal do arguido CC nada consta. 19. Do certificado de registo criminal do arguido BB consta que por sentença proferida nos autos de Processo n.º 438/15.9PBAVR, o arguido foi condenado pela prática, em 07.04.2015, de um crime de apropriação ilegítima de coisa achada, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, substituída posteriormente pelo cumprimento de prestação de trabalho a favor da comunidade e já declarada extinta pelo cumprimento em 01.06.2021. 20. Do relatório social do arguido CC consta que I – Dados relevantes do processo de socialização O processo de desenvolvimento de CC parece ter decorrido num quadro familiar problemático e conflituoso, existindo menção a episódios de violência doméstica, potenciados por problemática alcoólica do progenitor. Agregado com situação económica suficiente, onde o arguido constava como o mais velho de dois irmãos, cujos rendimentos familiares, nem sempre bem geridos, provinham da atividade profissional dos progenitores, o pai funcionário dos Serviços Municipalizados ... e a mãe operária fabril. O percurso escolar indicia fraco aproveitamento, com retenções, concluindo somente o 7º ano de escolaridade. As dificuldades identificadas ao nível escolar, prender-se-iam com o elevado absentismo e comportamento problemático apresentado, reconhecendo, o próprio, défices ao nível do controlo da sua impulsividade, tornando-se agressivo para com os outros, quando experienciava sentimentos de injustiça e/ou de contrariedade, situação que é, temporalmente coincidente, com a separação parental. Na adolescência dedicou parte do seu tempo livre à prática do futebol, em clube federado, nos escalões de iniciados e juniores. Não obstante este enquadramento de maior normatividade, iniciou consumos de haxixe, adição que viria a manter, interrompida, somente, no ano de 2021. Aos dezasseis anos de idade abandonou a escola e empregou-se, trabalhando nos anos seguintes em fábricas e também na construção civil. Volvidos três anos iniciou processo de autonomização, deixando de viver com a mãe, para residir em habitação arrendada, autossuficiência, assegurada, mediante a atividade profissional desenvolvida. No plano afetivo, teve algumas relações, de namoro, que não subsistiram e das quais não resultou descendência. Com família no estrangeiro, CC esteve emigrado durante aproximadamente seis anos, no Luxemburgo, onde trabalhou na área da jardinagem e construção civil. Regressou a Portugal há cerca de sete, estando desempregado desde 2019. II - Condições sociais e pessoais. No presente, CC encontra-se integrado no agregado familiar do seu progenitor (sexagenário, aposentado por invalidez) e respetiva companheira (reformada). A família reside na morada indicada, casa própria do progenitor, com adequadas condições, situação em que o arguido não paga renda nem encargos domésticos. Estando desempregado há alguns anos, e apesar de inscrito no centro de emprego, CC não usufrui de qualquer apoio pecuniário, pagando as suas despesas pessoais, com o suporte da sua progenitora, que lhe assegura algum dinheiro de bolso. Ocupa o seu quotidiano em tarefas domésticas e em convívio com alguns amigos. III - Impacto da situação jurídico-penal Em contexto de entrevista orientada e levado a tecer considerações sobre a tipologia criminal em causa, em abstrato, o arguido expressou-nos juízo crítico, com consciência da sua gravidade, reconhecendo a necessidade de atuação do aparelho da Justiça. Relativamente à sua situação, CC reconhece dificuldades pessoais, no controlo da sua impulsividade e agressividade, atribuindo a facilidade de passagem ao ato, ao ambiente disfuncional e violento a que esteve sujeito desde idade precoce, enquanto fator de instabilidade e permissividade à agressão. Tal associação, que não será, porventura, de desconsiderar, poderá, no entanto, ser percecionada como postura de desculpabilização e de minimização, carecendo da devida sensibilização para o necessário ajustamento à norma. IV – Conclusão Face ao exposto, podemos concluir que CC apresenta um início de vida conturbado, marcado pela conflitualidade e violência familiar. Segundo o próprio, este contexto de vida terá facilitado a sua posterior adesão a condutas desviantes, expressas na assunção de comportamentos impulsivos e consumos aditivos. Não obstante, viria a ocupar-se profissionalmente, mantendo retaguarda familiar por parte dos seus progenitores, o que se mantém. Assim, numa perspetiva de reinserção social, a serem provados os factos que desencadearam o presente processo e assim a moldura penal o permita, somos de opinião que CC reúne condições para o cumprimento de uma medida de execução na comunidade, eventualmente, com intervenção desta DGRSP. 21. O arguido CC encontra-se em fase de ingresso nos A..., na qualidade de estafeta, trabalho pelo qual irá auferir cerca de € 900,00 mensais. 22. Do relatório social do arguido BB consta que “1 - CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS Tal como ocorria à data dos factos, BB integra o agregado familiar constituído pelos progenitores (EE, 59 anos de idade, operário construção civil e AA, 60 anos de idade, empregada de limpeza), ao qual, ao fim de semana, se junta a namorada (FF, 25 anos de idade, operária de supermercado) e a filha do casal (GG, 2 anos de idade). O mencionado agregado familiar reside em espaço habitacional com satisfatórias condições de conforto, moradia tipologia T3, rés-do-chão com um espaço exterior e uma pequena parcela de terreno que se destina ao cultivo. Em termos escolares, BB progrediu até à conclusão do Curso Profissional ..., o equivalente ao 12º ano de escolaridade, que terminou aos 18 anos de idade. Após a conclusão do percurso escolar, iniciou a sua trajetória laboral, experimentando múltiplas ocupações (operário fabril, agricultura, construção civil), passando por diversas entidades patronais. Atualmente, BB trabalha como pintor da construção civil, tendo efetivado contrato de trabalho na empresa “B...”, auferindo um ordenado de cerca de 850 Euros mensais. A situação económica do agregado é descrita como estável. Os rendimentos provenientes do vencimento dos progenitores de BB e do vencimento deste, suportam as despesas referentes à habitação e ao agregado em que BB está inserido. A dinâmica intrafamiliar é considerada adequada e assente em laços de entreajuda e coesão, vindo o arguido a beneficiar do suporte dos seus progenitores. No meio social, BB parece estar bem inserido, não havendo relatos de vizinhos que refiram receio ou insegurança 2 - REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO O presente processo não constituiu para o arguido o primeiro contacto com as estruturas Judiciais, que remontam ao ano de 2015, por crime de apropriação ilegítima de coisa achada, tendo sido condenado a pena de multa, substituída por 40 horas de trabalho a favor da comunidade, que o arguido devido a questões profissionais, não executou, acabando por cumprir a pena principal de multa. No âmbito do processo nº 1254/22.7PBAVR, crime de violência doméstica, BB esteve sujeito a prisão preventiva, entretanto revista, para obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios da vigilância eletrónica, medida, posteriormente, revogada, conforme despacho de 21/04/2023. Face à evolução do presente processo, BB expressa sentimentos de apreensão e implicações na sua vida pessoal/familiar, perante eventuais consequências que daqui possam decorrer. 3 - CONCLUSÃO No presente, BB aparenta deter um quotidiano relativamente normativo, assente na prossecução de atividade profissional regular, na realização das rotinas domésticas e de convívio com a família, de quem possui apoio e retaguarda, investindo na reorganização vivencial. Face ao exposto, em caso de condenação, consideramos existirem condições para a execução de medida de execução na comunidade, com intervenção técnica dirigida à interiorização do desvalor da conduta criminal.”
2. O tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos (transcrição): “a) os factos descritos em 1. ocorreram a 26 de Julho. b) na situação descrita em 4., o arguido BB encontrava-se de barriga para baixo e canivete encontrava-se na bolsa que trazia à cintura. c) O arguido BB agiu com a intenção de tirar a vida do arguido CC, bem sabendo que os golpes que no mesmo desferiu, atenta a região do corpo e órgãos vitais atingidos, eram aptos a produzir esse pretendido efeito, resultado este que quis e que só não ocorreu por razões alheias à sua vontade. d) O arguido BB agiu de forma consciente livre e deliberada, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
3. E motivou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição): “Nos termos do disposto no artigo 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal, deve o Tribunal indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas. No caso sub judice a convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, globalmente considerada e de acordo com as regras da experiência comum. O tribunal valorou a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com os elementos probatórios já constantes dos autos, tudo ao abrigo do princípio da livre valoração da prova previsto no artigo 127.º do C.P.P. O mesmo será dizer que a convicção do tribunal sobre a matéria de facto supra dada como provada resultou da ponderação do conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente das declarações dos arguidos, das declarações das testemunhas e da análise da documentação junta aos autos, bem como da prova clínica pericial existente, tudo devidamente analisado e ponderado, também, com base nas regras de experiência comum. Ambos os arguidos prestaram declarações a este Tribunal. O arguido CC declarou confessar, de forma livre e integral, todos os factos que lhe vinham imputados, quer no que concerne à agressão dirigida a BB, que no respeita à propriedade e posse do bastão extensível, encontrado no interior do seu veículo, entre o lugar do condutor e do “pendura”. Manifestou arrependimento reputado por sincero, alegando que os factos “ocorrem numa fase conturbada da sua vida, com problemas familiares, encontrando-se a passar por uma situação de depressão nervosa e desempregado”. Sobre a situação que o opunha a BB apenas referiu conhecer o mesmo de festas e discotecas, onde se gerou um problema, nada mais esclarecendo sobre a motivação da sua actuação. Mais esclareceu que os factos ocorreram a 24 de junho de 2021, e não dia 26, conforme consta erroneamente do libelo acusatório, facto que surge naturalmente corroborado pelos elementos clínicos juntos os autos, nomeadamente respeitantes ao seu atendimento em urgência que se verificou imediatamente sequencial à ocorrência. Por seu turno, o arguido BB prestou declarações que, não obstante demonstrativas de alguma imaturidade, pelos termos da exposição efectuada e postura corporal assumida, foram expostas de forma impressiva, vívida, bem como coerente, não tendo sido infirmadas por qualquer demais meio de prova produzido, razão pela qual mereceram credibilidade. Assim, referiu o mesmo ter, à data, um desentendimento com o arguido CC por uma dívida e que este não queria esperar pelo pagamento; que naquela noite, o CC surpreendeu-o, de carro, perto da sua casa, momento em que saiu do carro, juntamento com outro individuo, que à data não conhecia, sendo que um deles trazia um bastão na mão, não sabendo precisar quem, uma vez que se dirigiram, de imediato, a si e começaram agredi-lo, com murros e pontapés que desferiam pelo corpo todo, e que o levaram a cair ao chão; mais disse que andava com um canivete no bolso e, perante “a aflição e o desespero que sentia, retirou o mesmo e usou este”, tendo-se apercebido que havia atingido alguém, sem saber quem e em que zona do corpo, mas não colocando em causa que as lesões apresentadas pelo arguido CC tenham sido produzidas por si, em sede de tal contenda. Mais disse que, em tal momento, a sua mãe surgiu no local e o arguido CC e outro individuo lhe pararam de bater e saíram do local, novamente de carro. Refere que estava em pânico e se dirigiu, de imediato, à GNR para apresentar queixa, o que surge corroborado pelo teor do auto de notícia de fls. 77, atenta o dia e hora consignados no mesmo. Referiu, por várias vezes, apenas se ter defendido em situação de desespero em face das agressões contínuas. Mais disse ter colaborado com a investigação que se desenvolveu, o que foi igualmente atestado pelo inspector da Polícia Judiciária, HH, nos termos que infra se exporão. Analisando a demais prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, temos, antes de mais, o depoimento prestado pela testemunha DD, prestado de forma notoriamente evasiva, denotadora do seu comprometimento com os factos em discussão, patente na sua necessidade de enfatizar nada ter feito: não agrediu, tentou acalmar quando verificou que o CC e o BB se haviam envolvido em agressões, mas não logrou explicitar de que modo empreendeu tais esforços, acompanhou o seu amigo ferido ao Hospital mas deixou o mesmo à porta das urgências e não mais o acompanhou ou esperou para obter informações sobre o seu estado de saúde, o que surge como uma atitude pouco consentânea com a proclamada não participação nos factos descritos. Mais relevante e expressivo da sua exposição entendida por incongruente, disse não ter visto qualquer bastão, não obstante o mesmo ter sido encontrado no carro, à vista, junto à manete das mudanças, logo entre o banco do condutor e do “pendura” (onde assumiu seguir), como foi pelo próprio arguido CC, o que surge manifestamente contrário às regras da normalidade. Assim, referiu o mesmo que, estando na companhia de CC, a dar uma volta pela localidade da ..., com o intuito de “irem beber um copo”, este viu o BB na rua, junto ao ..., “encostou o carro e dirigiu-se ao BB, tendo-o agredido primeiro” e depois “andaram embrulhados à porrada no chão”, momento em que saiu do carro para tentar acalmar a situação (sem dizer como) e ouviu o CC queixar-se que tinha sido ferido, vendo sangue mas não tendo visto qualquer faca. Nega que o CC tenha usado o bastão, bastão este que refere nem sequer ter visto dentro do carro. Referiu desconhecer qual a razão pela qual o CC interpelou o BB, nem manifestou qualquer tipo de curiosidade em saber a razão da contenda, mesmo após o seu desfecho com verificadas graves consequências para aquele que disse ser seu amigo. Assim, a fragilidade do seu depoimento nos termos supra expostos feriu, de forma assaz relevante, a sua credibilidade. Mais atendeu este Tribunal às declarações prestadas pela mãe do arguido BB, AA, revestindo-se este Tribunal de especiais cautelas na sua valoração em face do parentesco existente e dos compromissos de lealdade que habitualmente subjazem aos mesmos. No entanto, apesar da forma precipitada da sua exposição, não verificou este Tribunal qualquer intenção de escamotear a actuação do seu próprio filho, patente no facto de expor, de forma frontal, que, logo, no momento, após o final da discussão, o BB lhe disse os ter esfaqueado. Assim, não obstante o nervosismo patente no e durante o seu relato - o que dificultou a sua capacidade de exposição mais escorreita - certo é que prestou depoimento de uma forma muito vívida, que permitiu a este Tribunal aferir da cadência e dinâmica da ocorrência em análise. Ademais, corroborando, em parte relevante, as declarações prestadas pelo filho, certo é que não verificou este Tribunal qualquer concertação de depoimentos e declarações, o que reforçou a credibilidade do mesmo. Referiu que, tendo combinado com o filho encontra-se na Avenida ... para o transportar para ... – a qual que se desenvolve à saída da sua rua - quando para o local se dirigia, de carro, cruzou-se com um carro onde seguiam dois rapazes, facto que, na altura, não lhe levantou qualquer suspeita; que estando parada já na Avenida, no sentido Porto .../..., olhou pelo retrovisor e viu o seu filho agarrado por dois indivíduos, a ser agredido, tendo um deles um “cacetete na mão”, momento em que saiu do carro a gritar pelo mesmo e quando chegou ao local, os agressores do filho, que não identificou, fugiram. Mais disse que quando chegou junto ao filho este tinha sangue na mão, mas não viu o canivete, estava em pânico, tendo-se defecado todo, mais dizendo que “lhes devia dinheiro e que lhes tinha acertado”, momento em que viu sangue no chão. Confirmou ter acompanhado o seu filho à GNR, nessa mesma noite. No demais, atendeu este Tribunal às declarações prestadas pelo Inspector da Polícia Judiciária, II, o qual estava em serviço de piquete e recebeu a comunicação enviada pelo Hospital ..., dando conta da entrada de um individuo vítima de esfaqueamento, existindo marcas hemáticas no seu carro e um bastão extensível à vista no interior o mesmo, e pelo Inspector HH, o qual realizou toda a investigação subsequente, confirmando os autos de diligências, as apreensões efectuadas e relatórios de inspecção judiciária juntos aos autos e infra elencados e mais acrescentando que o arguido BB foi totalmente cooperante com a investigação, tendo entregado, logo que instado, a roupa usada na noite dos factos e o canivete, ainda que já lavados e limpos. (que, repita-se, o arguido BB não nega ter usado no corpo do arguido CC). Mais referiu que o bastão aprendido ao arguido CC e que se encontrava no carro deste tinha vestígios de sangue. Mais se atendeu ao seguinte acervo de prova pericial e documental: - Relatório de Exame pericial, de fls. 204 a 214 (fotografias do CC no hospital, da roupa e do carro), 216 a 222 (exame ao carro), e de 224 a 232 (fotografia da casa do BB com entrega do canivete e do local dos factos com marcas de sangue no chão). - Relatório de perícia do IML, de fls. 269 a 270-v referente a BB e que atesta as lesões dadas como provadas em 7. - Relatório de perícia do IML, de fls. 298 a 301 de CC e que atesta as leões dadas como provadas em 8. e 9. - Relatório pericial, de fls. 278 a 283 referente a zaragatoas -na camisa e punho do bastão há perfil genético do CC e no canivete e calças analisadas há perfil genético de BB - Relatório de exame pericial de fls. 313 referente a vestígios lofoscópicos- relatório de inspeção judiciária de fls. 56 a 62 realizado pela PJ - Autos de notícia, de fls. 64 e de fls. 77 - Auto de Apreensão, de fls. 43 a BB (canivete, calças de fato de treino e casaco de fato de treino a BB) e fls. 66 a CC (bastão extensível e camisa com mancha de sangue a CC); - Relatório de urgência referente a CC, de fls. 22, datado de 24.6.21 e com hora de admissão às 22:01; - informação de piquete de fls. 74 em sede da qual consta que BB apresentou queixa na GNR pelas 22h15m do dia 24.6.21 - auto de diligência de fls. 79 com prints de Facebook de BB - Elementos clínicos, de fls. 114 a 116, com informação de triagem e relatório da urgência datado de 24.06.2021 e nota de alta datada de 28.06.21 - Folha de suporte, de fls. 119 a 120; com foto do bastão extensível - Fls. 120 – fotos do carro de CC - Auto de Exame directo, de fls. 121 e 122, referente ao bastão extensível - auto de diligência de fls. 154 a 156 com deslocação à morada de BB - auto de diligência de fls. 161 na casa da namorada do BB com entrega de um canivete; - print de Facebook de CC de fls. 172 - auto de diligência de fls. 154 a 155 do qual decorre a existência de imagens do local dos factos; - auto de diligência de fls. 161 a 164 com referência à entrega voluntária pelo arguido BB do canivete e roupas usados na prática dos factos do qual decorre a existência de imagens do local dos factos; - auto de diligência de fls. 185 e seguintes com transcrição de mensagens trocadas entre BB e CC – dívida de € 880,00 e CC indica IBAN seu para transferência – fls. 201 demonstra a titularidade da conta indicada Enunciados os meios de prova produzida, explicitada a razão de ciência dos depoimentos bem como os factos sobre que incidiram, parece-nos já possível intuir de que forma chegou o Tribunal à conclusão assente nos factos provados e não provados. Importa, porém, desenvolver a análise crítica das provas, mormente relativamente a factos que assumem particular relevância, o que se faz de seguida e que se prende, naturalmente, com a apreciação da actuação desenvolvida pelo arguido BB, na medida em que o arguido CC confessou os factos imputados. A verosimilhança das declarações prestadas pelo arguido BB e pela mãe do mesmo, em contraponto com a debilidade das declarações prestadas pela testemunha DD, levaram este Tribunal a formar a convicção que, ao invés do consignado no libelo acusatório, este último não acompanhava apenas o arguido CC na noite de ocorrência dos factos, mas teve uma participação real e efectiva nas agressões de que o arguido BB foi vítima, também esmurrando e pontapeando este, nos mesmos termos que o arguido CC. Não logrou este Tribunal apurar, em forma segura, qual dos dois, se o arguido CC ou DD, empunhava o bastão apreendido posteriormente no veículo do primeiro, nem mesmo se este foi efectivamente usado, para além de empunhado, na agressão sofrida por BB, dado que nem este, nem a sua mãe atestaram ter sentido (no caso de BB) ou visto tal uso no corpo do BB. Nem mesmo a presença de sangue do arguido CC no bastão é de molde a afirmar ser este que o empunhava no momento da agressão a BB, porquanto tendo sido o mesmo encontrado junto à manete de mudanças do seu veículo surge cogitável a transferência de tal vestígio hemático durante o percurso para o Hospital, onde procurou assistência. Certo é que o mero empunhamento de tal objecto, atento o seu potencial lesivo, num momento de agressão levada a cabo por dos indivíduos contra um, surge como perfeitamente idóneo a incrementar o receio da intensidade das agressões em curso, em face das regras da normalidade e da experiência comum. Ora, a mesma verosimilhança e credibilidade conferidas às declarações do arguido BB e da sua mãe, levaram este Tribunal a formar convicção segura de que: - o arguido BB se encontrava a ser agredido, em simultâneo, por dois indivíduos, que dispunham de um bastão, - que as agressões de que era alvo tinham natureza intensa, por se desenvolverem por recurso a murros e pontapés, desferidos por todos o corpo, que levaram a uma queda ao chão - momento em que se fica naturalmente ainda mais vulnerável; - que a acção desenvolvida pelo arguido BB ocorre, pois, num contexto de aflição e medo compreensíveis e mesmo tangíveis, em face das regras da normalidade; - que tal actuação corresponde a uma reacção de defesa para afastar de forma efectiva os seus agressores, procurando cessar as agressões de que estava a ser alvo, não dispondo de qualquer outro meio ao seu alcance nesse momento. Saliente-se que o arguido BB atingiu um e não ambos os agressores e o arguido CC logrou sair do local ainda pelo seu próprio pé e ao volante do seu veículo. Pelo exposto, entendemos que a cadência de desenvolvimento dos factos nos termos dados como provados é demonstrativa de uma real intenção de defesa por parte do arguido BB e não de uma única e principal intenção de atentar contra a vida do arguido CC. No demais, os factos dados como provados referentes aos elementos subjetivos da actuação do arguido CC resultam do teor das suas declarações confessórias mas sempre resultariam da apreciação conjugada de todos os elementos de prova supra descritos, apreciados de acordo com as regras de experiência comum, dado que os actos do arguido e a intenção com que o mesmo agiu emerge, também, da materialidade objectiva dos demais factos que se deram como provados. Os factos dados como provados quanto ao pedido de reembolso formulado pelo CHBV resultam, não apenas das declarações dos arguidos, mas igualmente do teor da análise do episódio de urgência supra mencionado e da factura junta aos autos por tal serviço hospitalar. Temos que o arguido BB assume que as lesões apresentadas pelo arguido CC decorrem de acção imprimida no corpo deste e as mesmas geraram a necessidade de tratamento hospitalar. Não obstante, tal actuação surge comprovada com intenção distinta da imputada, sem demonstração da ilicitude ou culpa na sua actuação. No que concerne à condição sócio-económica e pessoal dos arguidos teve este Tribunal em consideração e análise as declarações pelos mesmos prestadas, que mereceram credibilidade, concatenadas com o teor do relatório social junto aos autos, cujo teor não mereceu reservas. Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos atendeu-se aos certificados de registo criminal juntos aos presentes autos. Os factos dados como não provados decorrem da ausência de produção de prova segura no sentido da sua afirmação, nos termos supra expostos.”
IV- Apreciação do recurso
1. Do recurso interlocutório: violação do n.º2 do artigo 344.º do CPP – força probatória plena da confissão
O arguido recorrente reclama a revogação do despacho proferido em audiência de discussão e julgamento no dia 23.04.2023, despacho esse que procedeu à alteração não substancial dos factos constantes do ponto 3. da acusação pública.
Sustenta que a alteração dos factos, depois da confissão ter sido julgada livre, integral e sem reservas, é ilícita por violação do n.º2 do artigo 344.º do CPP. Ao tribunal a quo está vedado alterar os factos que foram admitidos tal como constam da acusação.
Passemos a expor o enquadramento legal da questão.
O Código de Processo Penal, no artº 61º, nº 1 consagra expressamente um verdadeiro estatuto processual ao arguido, reconhecendo-lhe concretos deveres e direitos de defesa, destacando-se, para o que ora nos importa, o direito ao silêncio sobre os factos que lhe são imputados, assim como, no polo oposto, o direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, negando a prática dos factos ou assumindo a sua prática, total ou parcialmente (artº 343º, nº 1 do Cód. Proc. Penal).
No âmbito do direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência situa-se a confissão, que consiste na declaração arguido, nos termos da qual reconhece, total ou parcialmente, a matéria factual que lhe foi imputada e que lhe é, naturalmente, desfavorável. No primeiro caso, trata-se de uma confissão integral e no segundo, parcial. A confissão pode, ainda, ser feita com ou sem reservas. Não tem reservas a confissão quando o arguido não omite qualquer pormenor ou facto que lhe é imputado. Tem reservas a confissão em que o arguido admite os factos imputados sob condição de um acontecimento futuro ou na dependência do reconhecimento de outros factos não incluídos na acusação ou na pronúncia, factos esses que afastam ou diminuem a sua responsabilidade.
Numa ótica processual, a confissão representa a obtenção da prova através das declarações do arguido sobre os factos que lhe foram imputados na acusação ou na pronúncia e encontra a sua sede no artº 344.º do Cód. Proc. Penal, preceito que regula os procedimentos a adotar se o arguido declarar pretender confessar os factos, bem como o valor probatório da confissão.
Reconhecendo que as disposições legais em matéria de confissão são algo complicadas, Teresa Beleza salienta que se explicam “em parte pelo seu distanciamento em relação a dois polos; os regimes em que a confissão faz prova plena, como tendem a ser os sistemas acusatórios modernos de tipo anglo-americano e, no outro extremo, os regimes que “desconfiam” em absoluto da confissão e nunca a admitem como única prova, como era o caso do nosso Código anterior (1929).
Numa posição cautelosa e de certa maneira “conciliadora”, o artigo 344º do actual Código permite ao tribunal condenar um arguido com base, exclusivamente, numa confissão, mas estabelece limitações. Tem de ser uma confissão prestada em audiência de julgamento; livre, isto é, não coagida – o grande perigo da admissibilidade da confissão, sobretudo nos sistemas em que ela faz prova plana, é a tentação policial de extorquir confissões e a dificuldade do arguido em convencer o tribunal de que foi coagido; integral (deve referir-se a todos os factos de que o arguido vem acusado ou por que vem pronunciado); sem reservas (não pode invocar causas dirimentes da responsabilidade criminal).” (“Tão Amigos que Nós Éramos: O Valor Probatório do Depoimento do Co-arguido no Processo Penal Português”, in Revista do Ministério Público nº 74, pág. 39 a 60).
Dispõe, então, o artº 344º do Cód. Proc. Penal que: “1 - O arguido pode declarar, em qualquer momento da audiência, que pretende confessar os factos que lhe são imputados, devendo o presidente, sob pena de nulidade, perguntar-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas. 2 - A confissão integral e sem reservas implica: a) Renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados; b) Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, à determinação da sanção aplicável; e c) Redução da taxa de justiça em metade. 3 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os casos em que: a) Houver co-arguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles; b) O tribunal, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados; ou c) O crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos. 4 - Verificando-se a confissão integral e sem reservas nos casos do número anterior ou a confissão parcial ou com reservas, o tribunal decide, em sua livre convicção, se deve ter lugar e em que medida, quanto aos factos confessados, a produção da prova. (…)”
No caso em apreço, o arguido recorrente confessou toda a factualidade que lhe foi imputada na acusação, como consta da ata de audiência e julgamento, razão pela qual reclama que o despacho recorrido - que procedeu à alteração não substancial dos factos - violou o nº 2 do artº 344º do Cód. Proc. Penal. Defende que a confissão integral e sem reservas implica a consideração dos factos confessados como provados. Por isso mesmo, defende, estava o tribunal impedido de alterar os factos constantes da acusação, que foram confessados na integra, assumindo a confissão força probatória plena.
Passemos a analisar a pretensão do arguido.
A alteração não substancial de factos define-se como sendo a alteração da factualidade que não determina uma alteração do objeto do processo e, por exclusão de partes, não imputa ao arguido crime diverso ou agrava o limite máximo da pena aplicável (cfr. artº 1.º, n.º 1, f) do Cód. Proc. Penal)
O tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constam da acusação, mas que assumem relevo para a decisão da causa, desde que ao arguido seja comunicada essa alteração e que lhe seja concedido o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, exceto quando a alteração resulte de factos alegados pela defesa (n.º 1 do artigo 358.º do Cód. Proc. Penal). Questiona-se, então, se a alteração não substancial pode ter lugar quando o arguido tenha confessado a prática dos factos que lhe foram imputados na acusação.
A resposta será positiva, como iremos explicar.
Vejamos a situação em análise nos presentes autos.
No decurso da audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 23 de abril de 2024, foi proferido despacho que procedeu à comunicação da alteração não substancial dos factos: “No entendimento do Tribunal indiciam-se fortemente, com base, designadamente, nos depoimentos da testemunha AA e nas declarações prestadas do arguido BB, factos que ou não constam, de todo, da acusação deduzida nos autos contra os arguidos, ou constam de forma diferente daquela que com base em tais elementos probatórios se indiciam.(…)”.
Da leitura do despacho recorrido resulta, de forma inequívoca, que a alteração não substancial dos factos decorreu do depoimento da testemunha AA e das declarações do arguido BB.
Teremos, ainda, que considerar que nos presentes autos foi deduzida acusação contra o arguido recorrente, mas também contra o arguido BB, a quem foi imputada a prática, em autoria material, de um crime de homicídio na forma tentada, p. p. e p. pelas disposições combinadas dos artigos 22.º, 23.º e 131.º, todos do Código Penal.
Do libelo acusatório, no que aqui importa, constava a seguinte descrição dos factos:
1. “No dia 26 de Junho de 2021, entre as 21h30 e as 21h50, na sequência de um desentendimento ocorrido entre o arguido BB e o arguido CC, este último, fazendo-se acompanhar de DD, dirigiu-se no seu veículo automóvel de matrícula ..-CM-.., até à localidade da ..., com vista a confrontar o primeiro.
2. Chegados à referida localidade, o arguido CC avistou o arguido BB que seguia a pé entre a Avenida ... e a Avenida ... e parou o seu veículo junto do mesmo.
3. De seguida, o arguido CC saiu do seu veículo automóvel, dirigiu-se ao arguido BB e, sem que nada o fizesse prever, desferiu-lhe diversos murros e pontapés, atingindo-o no corpo todo, inclusivamente na face, provocando a sua queda desamparada no chão.
4. Nessa altura, o arguido BB, encontrando-se no chão, de barriga para baixo, retirou da bolsa que trazia à cintura um canivete, com cabo em madeira de cor castanha e lâmina com cerca de 8 cm de comprimento, contendo as inscrições “Opinel Carbone”.
5. Arma que empunhou e utilizou de lâmina aberta, na pessoa do arguido CC, desferindo-lhe três golpes na zona do tórax e um na zona do braço esquerdo, o qual atravessou a camisa que este trazia vestido.
6. As agressões apenas cessaram porque arguido CC logrou sair do local, pondo-se em fuga, deslocando-se para as urgências do Centro Hospitalar de Baixo Vouga.”
Como já repetidamente destacamos, o arguido recorrente, CC, prestou declarações no início da audiência de julgamento, tendo confessado os factos. Foi, então, proferido o seguinte despacho: “Em face da confissão livre integral e sem reservas prestada pelo arguido CC, declara-se que a mesma foi prestada de forma livre de qualquer coação o que se consigna nos termos do disposto no art.º 344º, nº 1 do C. P. Penal.”
Já BB, co-arguido nos autos, tendo também prestado declarações em sede de audiência de julgamento, não confessou os factos que lhe foram imputados.
Entende o recorrente que o tribunal a quo não verificou quanto à confissão do arguido CC qualquer das circunstâncias previstas no n.º 3 do artigo 344.º do CPP, nem as mesmas se verificavam, razão pela qual estava compelido a reconhecer os factos confessados como provados, não podendo operar uma alteração, ainda que não substancial.
Contudo, o citado preceito legal afasta as consequências da confissão quando estejamos perante vários arguidos, sem que exista, quanto a todos, confissão integral, sem reservas e coerente entre si, quando exista suspeita do caracter livre da confissão, como por exemplo, dúvidas sobre imputabilidade plena ou sobre a veracidade dos factos confessados ou quando o crime seja punível com pena de prisão superior a 5 anos.
Efetivamente, após a confissão do arguido CC não existiu pronúncia expressa quanto à verificação de qualquer das circunstâncias previstas no nº 3 do artº 344 do Cód. Proc. Penal. Nem poderia existir, diremos, na medida em que o co-arguido ainda não tinha prestado declarações, nem então se sabia se o ia fazer e qual o seu teor. Atente-se que, havendo confissão integral, sem reservas e coerente do co-arguido, poderia operar a consequência prevista no nº 2 do artº 344º do Cód. Proc. Penal.
Não é o caso dos autos.
O co-arguido BB não confessou e deu-se início à produção de prova, por não ter havido “renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados”, ou seja, o efeito previsto no citado nº2 . Concluímos, então, que quando o arguido confessa e o tribunal verifica a validade da confissão não tem que emitir pronuncia expressa sobre a inverificação das consequências previstas no nº 2 do artº 344º do Cód. Proc. Penal.
Por outro lado, existindo um co-arguido que, tendo prestado declarações, não confessou os factos que lhe foram imputados, a materialidade imputada na acusação ao arguido confitente não pode ser considerada provada, como não o foi.
É certo que o recorrente se insurge por entender que não se verifica a exceção prevista na al. a) do nº 3: não há co-arguidos quanto aos dois crimes sobre os quais recaiu a confissão do arguido CC.
Coloca-se, então, a seguinte questão. Quando o legislador no artigo 344º, nº 3, al. a) do Cód. Proc. Penal se refere à existência de co-arguidos está a limitar o âmbito de aplicação da exceção às situações de co-autoria, sendo que os crimes não lhes foram imputados em co-autoria.
A este propósito não podemos deixar de voltar a citar Teresa Beleza que explica estar a admissibilidade da confissão, enquanto meio de prova, “condicionada pela lei, no caso de co-arguidos, à coerência de todas as confissões.” Depois, prossegue “Julgo que é um bom argumento no sentido de que a própria lei sugere que o julgador não deve ter demasiada confiança em situações de co-arguidos “desavindos” (…) o artigo 344º do Código de Processo Penal exige que a confissão, para relevar nos termos especiais desse preceito, seja, em caso de co-arguidos, coerente e plural. Ora, a lógica de tal exigência parece ser a seguinte: em situações de comparticipação, o valor redentor de uma confissão há-de ser o negativo da decisão criminosa comparticipativa que é, ela própria, segundo as exigências da nossa lei, plural e coerente. “ (ob. e loc. citado).
No mesmo sentido, mas com maior detalhe, Paulo Pinto de Albuquerque explica que a “A confissão de um co-arguido obedece a um regime especial: esta confissão só tem os efeitos do nº 2 se os outros co-arguidos tiverem feito ou vierem a fazer uma confissão integral, sem reservas e coerente com as demais confissões (acórdão do STJ, de 10.12.2006, in CJ, acs. do STJ 4, 3, 214). O requisito da coerência entre as confissões ilumina o sentido e o âmbito desta regra especial. Esta só se aplica aos co-arguidos a quem são imputados factos entre os quais haja um nexo de comparticipação, causa ou efeito, continuação, ocultação ou reciprocidade, devendo as confissões de todos estes co-arguidos ser coerentes. Se aos co-arguidos forem imputados factos entre os quais não haja nenhum destes nexos, o tribunal pode apreciar a confissão do co-arguido isoladamente, isto é, não se aplica a excepção do nº 3, al.a).”(in Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª ed. actual, Universidade Católica Editora, pág. 866).
Daqui concluímos que a amplitude normativa desta previsão legal tem que ser densificada. Não será qualquer co-arguido que afastará a aplicação da regra enunciada no nº2, mas também não se exige uma situação de comparticipação.
Revertendo para a situação dos autos concluímos que, não obstantes os dois arguidos não terem sido acusados em co-autoria, verifica-se um nexo entre os factos que foram imputados a cada. Sintetizando, o arguido CC, que confessou, estava acusado de se ter dirigido ao arguido BB a quem, sem que nada o fizesse prever, desferiu murros e pontapés, provocando a sua queda desamparada no chão (estava munido de um bastão extensível, nos termos dos factos que foram depois aditados pelo despacho que ora se impugna). Por sua vez, arguido BB, encontrando-se no chão, de barriga para baixo, retirou da bolsa que trazia à cintura um canivete, com lâmina com cerca de 8 cm de comprimento, desferindo ao arguido CC três golpes na zona do tórax e um na zona do braço esquerdo.
Estas agressões mútuas, traduzem, com evidência, um nexo de reciprocidade, que obstaculizava a que fossem reconhecidos os efeitos previstos no nº 2 à confissão do arguido CC. Entre as agressões mútuas existia, de acordo com a acusação, uma relação de causa e efeito, que inviabiliza a autonomização da confissão. Concluímos, então, que a referência aos co-arguidos mencionada no citado nº 3 do artº 344º do Cód. Proc. Penal abrange, naturalmente, as situações de co-autoria, mas também as situações em que os co-arguidos estão acusados em autoria singular, se o recorte fático apresentar um nexo de comparticipação, causa ou efeito, continuação, ocultação ou reciprocidade.
Aqui chegados, temos que a confissão do arguido recorrente não produziu os efeitos previstos no nº 2 do art.º 344º do Cód. Proc. Penal, razão pela qual foi produzida a prova indicada pela acusação e defesa, na sequência do que foi proferido o despacho impugnado que comunicou a alteração não substancial dos factos, sem que se tenha violado o disposto no nº 2 do artº 344º do Cód. Proc. Penal.
Improcede, pelo exposto, o recurso interposto do despacho interlocutório que determinou a alteração não substancial dos factos.
2. Do recurso da sentença: impugnação da matéria de facto – eficácia probatória plena da confissão – princípio da livre apreciação da prova
O arguido reclama a alteração da matéria de facto, por entender que o ponto 3. foi incorrectamente julgado, devendo manter-se a formulação que foi por si confessada.
Apela ao cumprimento das regras probatórias e ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no artº 127º do CPP, nos termos do qual não podem valorar-se provas quando às mesmas se opõe ao outro meio de prova de valor superior (“confissão do arguido”).
Reitera os argumentos já apresentados, nos termos do qual os factos que confessou não podiam ser alterados, por um lado. Por outro lado, defende que não há nenhuma norma probatória ou regra de experiência que permita extrair do depoimento de um co-arguido julgado por crime diverso e de uma testemunha mãe daquele, factualidade contrária, que venha modificar factos que foram previamente objecto de confissão, julgada livre, integral e sem reservas e com eficácia probatória plena.
Em matéria de apreciação da prova, dispõe o artigo 127° do Código de Processo Penal, que a prova “é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, ou seja, de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinam uma convicção racional, objetivável e motivável.
Sabemos também que a livre convicção não é livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, o que não significa que seja totalmente objetiva pois não pode afastar-se da pessoa do decisor, na qual desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também os elementos puramente emocionais e aqueles que racionalmente não são explicáveis (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 205).
O julgador, nas palavras de Cavaleiro Ferreira, “é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza cientifica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” (in Curso de Processo Penal, 1 vol., Reimp. da Universidade Católica).
Assim, não estamos perante uma operação puramente subjetiva, porquanto não podem ser impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação a ditar a convicção do julgador, a qual deverá resultar da valoração racional e crítica, sopesando as regras comuns da lógica, da razão, bem como os conhecimentos científicos e as máximas da experiência.
A objetividade que aqui importa “não é a objetividade científica (…), é antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodítica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, o que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção (integrada sem dúvida por um momento pessoal)” (Figueiredo Dias, in Curso de Processo Penal, II, Verbo, Lisboa, 1993. Pág. 111).
Nessa medida, a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que informam a opção do julgador, que podem, e devem ser escrutinadas, afirma-se no ac. do STJ de 23.2.2011 (in www.dgsi.pt).
Pode-se, assim, concluir que o recurso em matéria de facto, explica-se no citado aresto, implica tão só uma “reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.
Porém, tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela mesma decisão em relação aos factos concretamente impugnados. Não se pode, nem deve substituir, a compreensão e análise do conjunto da prova produzida sobre um determinado ponto de facto pela visão parcial e segmentada eventualmente oferecida por um dos sujeitos processuais.”
Regressemos ao objeto do recurso, tendo presente que o arguido recorrente confessou e que o tribunal a quo não considerou como provada toda a factualidade confessada. Efetivamente, quando existe confissão o que se encontra sujeito a livre convicção do julgador é apenas a aceitação da confissão como livre, integral e sem reservas.
A propósito desta problemática, Rui Soares Pereira, conclui no estudo que dedicou ao tema:
“A confissão no direito processual penal português não se compreende apenas tendo em conta os quadros do instituto da confissão no direito civil e no direito processual civil.
Há uma certa originalidade na formulação escolhida para o artigo 344º do CPP que, evidenciando alguma inspiração anglo-saxónica, dela se afasta na medida em que o legislador preveniu a possibilidade de confissões falsas ou sem qualquer correspondência com a realidade. O legislador foi cauteloso em relação a confissão do arguido, estabelecendo a possibilidade e o dever de o Tribunal controlar o caracter da confissão e a veracidade dos factos confessados. (…)
O artigo 344º do CPP estabelece que devem ser explicadas ao arguido as consequências da confissão e que a confissão deve reunir um conjunto de características: ser livre, incondicional e integral. E as formalidades prescritas no artigo 344º do CPP terão que ser cumpridas sob pena de nulidade, integrando nalguns casos verdadeira proibição de prova.
Na fase de julgamento, mais propriamente na audiência, o valor da confissão depende da modalidade da confissão: prova plena (se a confissão for integral e sem reservas e não se verificar uma das situações do no 3 do artigo 344º do CPP) ou prova livre (se se verificar uma das situações do no 3 do artigo 344o do CPP ou a confissão for parcial ou com reservas).
Nos casos do no 2 do artigo 344º do CPP, o que se encontra sujeita a livre convicção do julgador é apenas a aceitação da confissão como livre, integral e sem reservas.” (“Acerca do valor probatório da confissão do arguido”, Direito da Investigação Criminal e da Prova Coimbra, Almedina, pág. 222 e 223).
Neste sentido, explica-se no ac. da RP de 26-11-2008, a “partir do momento em que o tribunal aceita a confissão do arguido como livre e confere a inverificação das excepções previstas no nº 3 do art. 344º, - e ressalvada a ocorrência de alguma circunstância superveniente que possa pôr irremediavelmente em causa a validade da confissão – esta passa a ter plena eficácia probatória.” (in www.dgsi.pt).
Aí se acrescentando, que “a apreciação da confissão, integral e sem reservas, prestada pelo arguido só está sujeita ao princípio geral contido no art. 127º até ao momento em que o tribunal conclui não haver razões (porque nada permite duvidar da imputabilidade plena do arguido e da veracidade dos factos confessados) para suspeitar do carácter livre da mesma.”
Se o julgador considerar a confissão livre, integral, verdadeira e sem reservas e se não se tratar de um dos casos do nº 3 do artigo 344º do CPP, explica Rui Soares, “terá de dar como provados todos os factos constantes da acusação e/ou pronuncia e relativos a culpabilidade, sem prejuízo da necessidade de produção de prova sobre a personalidade e condições socioeconómicas do arguido.”
Assim, a livre convicção do julgador, como já fizemos notar na análise do recurso interlocutório, tem a sua expressão na liberdade que o juiz tem de apreciar a liberdade do arguido para confessar, a capacidade do arguido para entender a confissão e eventualmente o grau de esclarecimento do arguido sobre as consequências jurídicas da sua confissão ou ate da veracidade dos factos confessados.
Citando Tereza Beleza, o “tribunal pode sempre pôr em causa o carater livre e espontâneo da confissão, nomeadamente por duvidas sobre a imputabilidade plena do arguido e pode duvidar da veracidade dos factos confessados, conforme reza a alínea b) do nº 3 do artigo 344º. Além disso os, os efeitos da confissão integral e sem reserva estatuídos no nº 2 do artigo 344º são travados por uma de duas circunstâncias, enumeradas no nº 3: co-arguidos que não confessem total e coerentemente; ou estar em causa crime punível com pena superior a três anos de prisão.
Em todos os casos referidos no nº 3 (co-arguidos, dúvidas, gravidade) havendo uma confissão integral e sem reservas, o tribunal pode ainda dispensar ulterior produção de prova quanto aos factos confessados (nº 4 do artigo 344º, primeira previsão). O mesmo regime se aplica aos casos em que o arguido efetuou uma confissão parcial ou com reservas(nº 4 do artº 344º, segunda revisão).” (ob. e loc. cit).
Após esse momento, não se verificando os casos indicados no nº 3 do artigo 344º do Cód. Proc. Penal, o juiz não terá liberdade para não considerar como provados os factos objeto de uma confissão integral e sem reservas. Nestas circunstâncias não tem aplicação o princípio da livre apreciação da prova.
Porém, quando se verificam as exceções indicadas citado nº 3 do Cód. Proc. Penal, como sucede nos autos, não estamos perante provas com valor superior, ao contrário do que defende o recorrente, a apreciação da prova far-se-á de acordo com o princípio da livre apreciação de prova constante do artigo 127.º do Cód. Proc. Penal.
Logo, estamos de acordo que o princípio geral contido no art.º 127º do CPP não opera depois da confissão assumir plena eficácia probatória. Porém, isso nunca ocorreu, ao contrário do que alega o recorrente. O tribunal aceitou a confissão do arguido como sendo integral, livre e sem reservas, mas nunca conferiu e declarou a inverificação das exceções previstas no nº 3 do artº 344º do CPP. Antes pelo contrário, como se infere do decurso da audiência de julgamento, com a produção da prova arrolada, inclusivamente pelo recorrente.
Nos presentes autos o recorrente defende que a matéria de facto foi incorretamente julgada.
A justificação do recorrente ateve-se à já analisada força probatória da confissão, sendo que não mereceu qualquer reparo a circunstância da confissão do arguido recorrente não ser suficiente para prova de todos os factos, por não fazer prova plena.
Alega, ainda, o recorrente que as declarações prestadas pelo arguido BB e pela sua mãe, deviam ter sido valoradas pelo tribunalaquo nos termos do princípio da livre apreciação de prova constante do artigo 127.º do CPP e que por essa razão não tinham a virtualidade de modificar a materialidade que foi confessada pelo outro co-arguido.
Ora, o recorrente faz alguma confusão.
Por um lado, a confissão do arguido não assume como já explicamos plena eficácia probatória. Por outro lado, por não terem a virtualidade de fazerem prova plena dos factos é que as declarações de ambos os arguidos, bem como das testemunhas foram avaliados criticamente, de acordo com aquele princípio. Tal análise critica foi acompanhada do raciocínio lógico, detalhado e claro, que conduziu à formação da convicção do tribunal a quo, raciocínio esse que não merece qualquer censura.
Quanto à ponderação das provas, existindo co-arguidos e confissão, poderá ser consultado o ac. do TRG de 17-06-2013, onde se conclui que “não resulta dos termos dos art.s 344.º e 345.º do Código de Processo Penal que não podem ser valoradas as declarações de um co-arguido quando outro ou outros não confessaram os factos ou optaram pelo silêncio, embora do n.º 3 do primeiro normativo resulte que, sendo este o caso, o tribunal não deve logo dar como provados os factos imputados, havendo então que produzir prova por ausência da confissão integral e sem reservas referida no n.º 2 do mesmo art 344.º. E o art. 125.° do Código Processo Penal estabelece o princípio da admissibilidade de quaisquer provas no processo penal, e do elenco das provas proibidas estabelecido no art. 126° do Código Processo Penal não consta o caso das declarações dos co-arguidos.”
Gorada que ficou a impugnação da matéria de facto, essencialmente por não ser reconhecido valor probatório pleno à confissão do co-arguido, por ter o tribunal a quo efetuado uma análise crítica da prova, à luz do princípio da livre apreciação da prova, que podia e devia aplicar, não enfermou o acórdão recorrido do apontado vício, tendo-se por definitiva a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto.
3. Da medida da pena 3.1.
Mantendo-se inalterada a matéria de facto, importa apreciar se assiste razão ao recorrente quando sustenta que as penas aplicadas são excessivas e desproporcionais.
Para esse efeito importa ter presente que a intervenção dos Tribunais de 2ª instância deve ser moderada, assim se acompanhando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, firmada, entre outros, no acórdão de 2.10.2008, nos termos da qual a intervenção corretiva está reservada para os casos de desproporcionalidade manifesta na sua fixação ou de necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta.
Entende-se hoje, sustenta-se no citado aresto, “que a determinação das consequências do facto punível, ou seja, a escolha e a medida da pena, é realizada pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução daquele, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, num processo que se traduz numa autêntica aplicação do direito (artos 70º a 82º do C. Penal) (…). Mas a controlabilidade da determinação da pena sofre limites no recurso de revista, cabendo então apreciar a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação é sindicável em recurso de revista. E o mesmo entendimento deve ser estendido à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Já tem considerado, por outro lado, este Supremo Tribunal de Justiça e a Doutrina que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.” (in www.dgsi.pt).
Passamos a analisar a pretensão do recorrente, à luz dos respetivos fundamentos.
Ao crime de ofensa à integridade física simples corresponde a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa até 360 dias (artigos 47.º, nº 1 e 143.º, nº 1, ambos do Código Penal); e ao crime de detenção de arma proibida corresponde a pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
Ora, especificamente no que respeita à pena de 200 dias de multa em que o arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física, o recorrente reclama uma pena inferior, tendo essencialmente em consideração a alteração da matéria de facto sob o ponto 3., o que não se verificou. Nessa medida, mantendo-se inalterada a matéria de facto provada, nenhum outro fator que não tenha sido já considerado pelo tribunal a quo importa ponderar de molde a mitigar a intensidade da agressão levada a cabo pelo arguido CC e a reduzir a respetiva ilicitude da conduta.
Ultrapassada esta questão, a discordância do recorrente prende-se com o modo como foram sopesados os vários fatores que o artº 71º do Cód. Proc. Penal convoca.
Reportemo-nos à fundamentação da matéria de facto que ficou exarada na sentença: “No que concerne às exigências de prevenção geral, as mesmas são elevadas e agravantes da conduta do arguido, quer no que concerne ao crime de ofensa à integridade física, quer no que respeita ao crime de detenção ilegal de arma, como referimos supra, na medida em que se tratam de crimes cuja prática se multiplicou na nossa sociedade, gerando inquietação, insegurança e alarde social. Acresce que, no que concerne às exigências de prevenção especial, e relativamente aos dois ilícitos pelos quais o arguido vai condenado, verificamos que: - o arguido agiu com dolo directo, a forma mais desvaliosa de actuação, - a ilicitude, esta entendida enquanto juízo de desvalor sobre um comportamento, afigura-se elevada no que concerne à prática do crime de ofensa à integridade física, atenta a intensidade da agressão levada a cabo; sendo uma ilicitude mediana quanto à detenção de arma, em face do seu potencial lesivo; - mitiga a culpa do arguido a inexistência de antecedentes criminais, a sua inserção social e a sua confissão livre, integral e sem reservas, com demonstração de arrependimento, reputado por sincero.”
Aqui chegados, face à factualidade apurada, às molduras que correspondem a cada um dos ilícitos, bem como à moldura do cúmulo, e ponderada a argumentação resumidamente exposta pelo tribunal a quo, entendemos que é de manter a decisão proferida na 1ª instância.
O recorrente convoca os fatores que mitigam a culpa arguido (confissão livre, integral e sem reservas), o arrependimento do arguido (”reputado por sincero”) e a inexistência de antecedentes criminais), sustentando que impunham, em cumprimento do n.º2 do artigo 71.º e do artigo 72.º do CP, o apuramento de uma medida concreta de pena inferior ao determinado pelo Tribunal a quo.
Analisados, apenas se discorda do tribunal a quo, mas em desfavor do arguido recorrente, do modo como foi considerada a confissão deste arguido. Esta confissão, tendo em consideração a alteração não substancial dos factos que foi operada, não tem a virtualidade de mitigar a culpa do arguido recorrente, como sucederia se a confissão tivesse tido eco na totalidade dos factos provados. Ora, o recorrente não reconheceu, nem assumiu os factos, tais como este vieram a ser considerados provados.
Acresce que estes fatores foram sopesados com os demais: elevadas exigências de prevenção geral que o caso reclama, dolo direto e elevada ilicitude no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, plasmado nas circunstâncias em que foi praticado.
Neste contexto, é de considerar que só em caso de desproporcionalidade manifesta na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, considerados os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o tribunal de recurso alterando a medida da pena concreta.
Assim não sucedendo, isto é, tendo sido respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis, bem como o limite da culpa, não deverá o tribunal ad quem intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.
Concluímos, que as penas parcelares e a pena de cúmulo fixadas na decisão recorrida se revelam proporcionadas, inexistindo quaisquer factos que possam fundar um juízo atenuativo da respetiva responsabilidade penal, razão pela qual não será objecto de qualquer correção, improcedendo também aqui o recurso interposto quanto à questão da redução da medida da pena aplicada.
3.2.
Alega o recorrente que o quantitativo diário da pena de multa de 10€ é excessivo face aos rendimentos do arguido de €900,00 e ao valor de 820€, referente ao salário mínimo nacional em Portugal no ano de 2024 que funciona como patamar mínimo de subsistência de cada individuo que tenha actividade profissional na sociedade, devendo ser aplicado ao arguido um valor diário próximo do mínimo legal.
A fixação do montante diário em €10,00 (dez euros) decorreu da consideração do valor do salário mensal que o arguido irá passar a auferir (900 euros).
Provou-se nos autos que o arguido CC se encontra em fase de ingresso nos A..., na qualidade de estafeta, trabalho pelo qual irá auferir cerca de € 900,00 mensais. Está integrado no agregado familiar do seu progenitor (sexagenário, aposentado por invalidez) e respetiva companheira (reformada). A família reside na morada indicada, casa própria do progenitor, com adequadas condições, situação em que o arguido não paga renda nem encargos domésticos.
Dispõe o artigo 47º, n.º 2 do Código Penal que a cada dia de multa deve corresponder uma quantia entre 5,00€ e 500,00€, a qual deve ser determinada por meio da apreciação da situação económica e financeira do agente e dos seus encargos pessoais.
Partilhamos do entendimento que o valor mínimo, ao contrário do que refere o arguido, deverá ser reservado para os casos de indigência ou próximas do limiar da subsistência. Por sua vez, o limite máximo «não é sequer para os ricos, mas para os muito ricos, para as pessoas que estão em patamares económicos a que a imensa maioria dos cidadãos não pode sequer aspirar». (cfr. ac. TRC de 4/5/2016, in www.dgsi.pt).
Nesta medida, considerando e ponderando que o arguido não tem encargos e o valor que irá auferir, ligeiramente superior ao salário mínimo nacional, consideramos ajustado o quantitativo diário que lhe foi aplicado, quantitativo que não compromete a eficácia intimidatória e dissuasora da pena de multa, e que preserva o princípio da igualdade de ónus e sacrifícios previsto no n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal e no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
V. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes da 4ª secção desta Relação em negar provimento ao recurso interlocutório, bem como ao recurso interposto do acórdão final, que se mantém nos seus precisos termos.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3UC no recurso interlocutório e em 4 UC no recurso final.