ALIMENTOS PROVISÓRIOS
MENOR
INDEFERIMENTO LIMINAR
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
Sumário

I - A mãe de um menor, em relação ao qual não foi ainda reconhecida a paternidade, pode exigir alimentos definitivos para o seu filho.
II - Tendo o menor direito a tais alimentos, ainda que se pretenda pedir a fixação de uma pensão provisória - artigo 2007 do Código Civil - tem de se lançar mão do processo de alimentos definitivos - artigo - 186 e seguintes da Organização Tutelar de Menores (OTM) - onde serão fixados, provisoriamente, os alimentos.
III - Pedindo a mãe alimentos provisórios, no circunstancialismo descrito, há erro na forma do processo, por a OTM não prever a existência de processo, com a exclusiva finalidade de fixação de alimentos [provisórios].
IV - Ao abrigo do princípio da adequação formal, o Juiz pode aproveitar a petição inicial para a acção tutelar de alimentos, prevista no artigo 186 da OTM, tanto mais que se está perante processo de jurisdição voluntária.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

MARIA....., solteira, residente na Rua....., ....., como preliminar da respectiva acção, requereu, no Tribunal de Família e Menores daquela comarca, contra JOSÉ....., solteiro, com domicílio profissional na G....., L.da, sita na Rua....., ....., procedimento cautelar especificado de alimentos provisórios, pedindo que seja fixada a prestação do requerido em 100 € mensais, a esse título, para a filha de ambos, Soraia......, nascida em 10/2/2003, alegando urgência e necessidade dessa pensão alimentar.
Por douto despacho de fls. 6 e 7, foi indeferido liminarmente o requerimento inicial, por se ter considerado que existia erro na forma de processo.
Inconformada com o assim decidido, a requerente interpôs recurso de agravo e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
O despacho recorrido indefere liminarmente o pedido de alimentos provisórios por não existir entre os progenitores do alimentando acordo quanto ao exercício do poder paternal;
É imoral o indeferimento liminar, estando em causa uma mãe solteira, desempregada e abandonada com um bebé de meses nos braços pelo requerido;
É, como não podia deixar de ser, ilegal este indeferimento, depois de o art.º 2007º, n.º 1 do C. Civil ordenar a concessão oficiosa de alimentos provisórios se o alimentando for menor;
O próprio legislador não vê obstáculo na falta de reconhecimento judicial da paternidade litigada para que o presuntivo pai conceda alimentos provisórios, assim muito menos a falta de regulação do poder paternal poderá ser óbice para que o pai assumido tenha de conceder alimentos provisórios (art.º 1884º, n.º 2 do C. C.);
Caso as instâncias ordinárias insistam nesta imoralidade e ilegalidade, há que suscitar a intervenção do Tribunal Constitucional para defesa dos direitos fundamentais das crianças, pois Portugal não pode ser um país onde a insensibilidade e o mau arbítrio imperem.

Não foram apresentadas contra alegações, não tendo o requerido sido citado para os termos do recurso nem para os do procedimento.

O Mmº Juiz titular do processo sustentou o despacho impugnado.

Sabido que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões da recorrente (artigos 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C.P.C.), a questão a decidir consiste em saber se era lícito ao Sr. Juiz indeferir liminarmente o requerimento inicial, o que pressupõe indagar sobre a verificação ou não do erro na forma de processo escolhida e, na afirmativa, quais as suas consequências.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Fundamentação

Os factos a ter em consideração na decisão do recurso são apenas os constantes do relatório supra exarado, para os quais se remete e que aqui se dão por reproduzidos.
Importa, pois, aplicar-lhes o direito, tendo em vista a resolução das mencionadas questões.

É sabido que o menor tem direito a alimentos definitivos, estando obrigados a prestá-los ambos os progenitores, cada um de acordo com as suas possibilidades económicas e com as necessidades do filho (art.ºs 36º, n.º 5 da CRP, 1878º, n.º 1, 2004º, n.º 1 e 2009º, n.º 1, al. c) do C. Civil).
Tais alimentos podem ser fixados em acção de alimentos, quando só este aspecto se imponha regular (art.ºs 186º a 188º), em acção de regulação do exercício do poder paternal (art.ºs 174º a 180º) e, ainda, em consequência de uma acção de inibição ou limitação do exercício do poder paternal (art.ºs 194º a 198º, todos da OTM).
Em princípio, o pedido de alimentos só deve ser formulado depois de se saber a quem o menor foi confiado, visto que só o progenitor que foi encarregado da sua guarda poderá exigir alimentos ao outro, como resulta dos art.ºs 180º da OTM e 1905º do Código Civil.
É através da regulação do exercício do poder paternal que se define a atribuição da guarda do menor, o regime de visitas, a fixação de alimentos e a forma de estes serem prestados.
Essa regulação é conveniente e, por vezes, necessária, visto que, enquanto não se mostrar regulado o exercício do poder paternal, não é possível reconhecer legitimidade a qualquer dos pais para exigir alimentos para os seus filhos.
Tratando-se, porém, de pais não casados entre si, não se exige essa regulação prévia.
É que, nesse caso, o exercício do poder paternal pertence ao progenitor que tiver a guarda do filho e, para este efeito, presume-se que é a mãe que tem a guarda do filho; presunção esta que só é ilidível judicialmente (art.º 1911º, n.ºs 1 e 2 do C. Civil).
No caso dos autos, ainda não se mostra regulado o exercício do poder paternal. Mas, apesar de tal regulação ser conveniente, não é necessária, visto que os pais da menor Soraia não estão casados um com o outro e o requerido não ilidiu aquela presunção, pois nem sequer foi chamado ao processo.
Assim, a requerente tem legitimidade para exigir alimentos para a sua filha, não se lhe impondo o recurso à acção de regulação do exercício do poder paternal.
Todavia, a requerente pediu a fixação de alimentos provisórios, socorrendo-se do procedimento cautelar previsto nos art.ºs 399º a 402º do CPC.
Acontece, porém, que as medidas tutelares cíveis referentes a menores estão reguladas no Título III da OTM e a elas se deve recorrer, já que se trata de processos especiais, regulando-se, por isso, pelas disposições que lhes são próprias, só sendo lícito lançar mão das regras do processo civil quando não exista naquele diploma processo adequado às medidas pretendidas, com as devidas adaptações e desde que não contrariem os fins da jurisdição de menores (art.ºs 161º da OTM e 463º, n.º 1 do CPC).
Embora o pedido de alimentos provisórios não contrarie esses fins, a verdade é que não existe caso omisso, atento o disposto no art.º 157º da OTM, que permite ao tribunal decidir, a título provisório, em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, relativamente às matérias que devam ser apreciadas a final (n.º 1), bastando, para o efeito, proceder às averiguações sumárias que tenha por convenientes (n.º 3).
Este procedimento é muito mais simples, rápido e eficaz do que o estabelecido no Código de Processo Civil para a providência requerida, cujas regras nos estão vedadas, por não haver caso omisso.
O fim principal visado por aquela norma é a execução útil da decisão que a final deva ser proferida, o qual marca o âmbito instrumental da medida provisória a adoptar, tendo sempre em conta o superior interesse da criança (cfr. Ac. da RL de 1/6/2000, na CJ, ano XXV, tomo III, págs. 113 e 114 e art.º 3º, n.º 1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança).
Visa, no interesse dos menores, a atempada e adequada decisão de questões urgentes que se não coadune com a demora normal do procedimento em causa, à semelhança dos procedimentos cautelares em geral, modelados para obstar ao periculum in mora.
Entre essas questões conta-se a prestação de alimentos a cargo do progenitor a quem não esteja confiada a custódia do menor.
Tendo a menor direito a alimentos definitivos, como já se referiu, e ainda que se pretenda pedir a fixação de uma pensão provisória ao abrigo do disposto no art.º 2007º do Código Civil, tem que lançar-se mão do processo de alimentos definitivos previsto nos art.ºs 186º e segs. da OTM, onde serão fixados os alimentos provisórios nos termos e ao abrigo do preceituado no citado art.º 157º.
A providência requerida só será de aplicar quando o menor tiver apenas direito a alimentos provisórios (cfr. art.ºs 1821º do C. Civil e 208º da OTM), hipótese diferente do presente caso (cfr., neste sentido, António Antunes e Rui Epifânio e António Farinha, em Organização Tutelar de Menores, anotação ao art.º 186º, respectivamente, págs. 156 e 390).
É em face da pretensão deduzida que se deve apreciar a propriedade ou inadequação da forma da providência solicitada. É o pedido formulado pelo autor ou requerente e não a causa de pedir que determina a forma de processo a utilizar em cada caso, conforme jurisprudência dominante ou até uniforme (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 14/11/94, in http://www.dgsi.pt/jstj00025880).
No mesmo sentido, se pronunciou o Prof. Alberto dos Reis, escrevendo “E como o fim para que, em cada caso concreto, se faz uso do processo se conhece através da petição inicial, pois que nesta é que o autor formula o seu pedido e o pedido enunciado pelo autor é que designa o fim a que o processo se destina, chega-se à conclusão seguinte: a questão da propriedade ou impropriedade do processo especial é uma questão, pura e simples, de ajustamento do pedido da acção à finalidade para a qual a lei criou o respectivo processo especial” (in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., págs. 288 e 289).
Em face do pedido formulado e do que se deixou dito, não há dúvida de que existe erro na forma de processo, nulidade que é de conhecimento oficioso (art.ºs 199º e 202º, ambos do CPC).
Esta nulidade importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei (n.º 1 do citado art.º 199º).
A petição não pode ser utilizada em determinada forma de processo sempre que o seu aproveitamento represente uma falta de petição, ou seja, sempre que não satisfaça os requisitos legais (art.º 467º do CPC e Rodrigues Bastos, Notas III, pág. 30).
No caso em apreço não se pode aproveitar a petição para a fixação de alimentos provisórios, visto que a OTM não prevê a existência de um processo com essa exclusiva finalidade.
Mas já pode ser aproveitada para a acção de alimentos prevista nos art.ºs 186º e segs. da OTM, visto satisfazer os requisitos exigidos por aquele preceito.
A tal não obsta o facto de no pedido se referir a fixação da prestação “a título de alimentos provisórios”.
É que o juiz, além de ter o poder de direcção do processo, tem o dever de adequar as especificidades da causa à tramitação processual prevista na lei (art.ºs 265º e 265º-A do CPC), tanto mais que estamos perante um processo de jurisdição voluntária, em que o tribunal não está sujeito a critérios de estrita legalidade, devendo adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna e onde pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (art.ºs 150º da OTM e 1409º, n.º 2 e 1410º do CPC).
Seguindo essa forma de processo já pode ser fixado, em qualquer altura, um regime provisório de alimentos, ao abrigo do n.º 1 do citado art.º 157º.
Do exposto conclui-se que a nulidade decorrente do erro na forma de processo não acarreta o indeferimento liminar da petição, devendo antes ser aproveitada e ordenar-se o prosseguimento dos autos como acção tutelar de alimentos prevista no art.º 186º da OTM.
Neste sentido decidiram, pelo menos, os acórdãos da RC de 14/6/83, na CJ, ano VIII, tomo 3, pág. 65, da RL de 7/10/93, sumariado em http://www.dgsi.pt/jtrl00012387 e desta Relação de 27/11/95, no BMJ n.º 451, pág. 502.
Não pode, pois, manter-se o despacho recorrido que indeferiu liminarmente a petição inicial, com o fundamento de que o meio adequado era a acção de regulação do exercício do poder paternal.
O agravo merece, por conseguinte, provimento.

III. Decisão

Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, pelo que revogam o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que mande o processo prosseguir como acção de alimentos prevista no art.º 186º e segs. da OTM, processando-se todos os demais termos a ela correspondentes.

*

Sem custas (art.º 2º, n.º 1, al. o) do CCJ).
*

Porto, 20 de Janeiro de 2004
Fernando Augusto Samões
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge