SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA
PRESCRIÇÃO/CADUCIDADE
CAUSAS INTERRUPTIVAS E SUSPENSIVAS DA PRESCRIÇÃO
NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA
Sumário

I- O utente dos serviços públicos essenciais, previstos na Lei nº 23/96 de 26 de Julho, é todo aquele, pessoa singular ou colectiva, a quem foram prestados estes serviços, quer os utilize na sua actividade profissional ou industrial e por causa dela, quer os utilize para consumo particular.
II- Os prazos distintos, previstos no artº 10 deste diploma legal sob a epígrafe “prescrição e caducidade”, são distintos e de diversa natureza jurídica, embora visem ambos a finalidade de proteger o utente destes serviços essenciais.
III- O prazo de seis meses estabelecido para o exercício do direito ao recebimento do preço do serviço prestado, mediante o envio da factura descriminada de acordo com o disposto no artº 9 deste diploma legal, é um prazo de prescrição (cfr. decorre do artº 10, nº1 da Lei nº 23/96, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 24/2008 de 2 de Junho), que pode ser interrompido por qualquer dos meios previstos nos nºs 1 e 4 do artº 323 do C.C.
IV- Já o prazo previsto no nº4 do artº 10 da Lei nº 23/96, para a propositura da acção de cobrança da dívida, é um prazo de caducidade, conforme resulta do artº 298, nº3 do C.C., por a lei, referindo-se expressamente à prescrição no nº1 deste preceito legal, no nº 4 referir apenas o prazo para o exercício deste direito.
V- A este prazo não se aplicam as causas interruptivas e suspensivas da prescrição, excepto estipulação válida das partes (cfr. artº 330 do C.C.), pelo que, não existindo essa estipulação, não pode ser interrompido pela notificação judicial avulsa da R. para proceder ao pagamento do preço do serviço prestado.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Proc. Nº 116055/23.0YIPRT.C1- Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Central Cível de Leiria-J...

Recorrente: EDP COMERCIAL -COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA, S.A.

Recorrido: A..., LDA.

 Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: António Domingos Pires Robalo

                                         Sílvia Pires


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO


EDP COMERCIAL -COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA, S.A., instaurou injunção contra A..., LDA., peticionando o pagamento da quantia de €101.672,38, devidos pelo fornecimento de energia eléctrica que a R. não pagou atempadamente.

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Citada, a Ré deduziu oposição alegando a caducidade do direito ao recebimento do preço, ao abrigo do disposto no artº 10, nº4 da Lei nº 23/96 de 26 de Julho.

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Notificada para se pronunciar quanto à matéria de excepção, veio a A. alegar ter interrompido o decurso do prazo - que qualifica como de prescrição - pela notificação judicial avulsa enviada à R.

Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferida sentença que julgou o direito de acção da A. extinto por caducidade e, assim, absolveu a R. do pedido.


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Não conformada com esta decisão, impetrou a A. recurso da mesma relativamente à matéria de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“A. Entendeu o Tribunal a quo que:

“Com efeito, a Fatura n.º FT23BSML11/0000009366, emitida em 11.01.2023 e vencida em 10.02.2023, no valor de € 46.354,18, diz respeito ao fornecimento de energia elétrica entre 02.11.2022 e 04.12.2022 – por isso o direito a exigir o pagamento do preço caducou em 04.06.2023.

A Fatura n.º FT23BSML11/0000026413, emitida em 20.01.2023 e vencida em 20.02.2023, no valor de € 40.294,56 refere-se aos serviços de fornecimento de energia elétrica prestados entre

04.12.2022 e 04.01.2023 – por isso o direito a exigir o pagamento do preço caducou em 04.07.2023.

A Fatura n.º FT23BSML11/0000056834, emitida em 11.02.2023 e vencida em 13.03.2023, no valor de € 8.304,96, é alusiva a serviços prestados entre 04.01.2023 e 17.01.2023 – por isso o direito a exigir o pagamento do preço caducou em 17.07.2023.”

B. Bem como que:

“Por sua vez, as regras de suspensão e de interrupção da prescrição não são aplicáveis à caducidade, por isso, apesar da Notificação Judicial Avulsa recebida pela Requerida em 08.05.2023 ter interrompido o prazo prescricional quanto às faturas peticionadas no requerimento injuntivo, o mesmo não se poderá dizer quanto à caducidade, ou seja, efectivamente, como invocado pela Ré, a Notificação Judicial Avulsa não interrompeu o prazo da caducidade para a propositura da injunção.” (negrito e sublinhado nossos)

C. Tendo concluído que:

“Em suma, o direito de ação da Requerente a peticionar o crédito reclamado nas faturas enunciadas nos autos caducou, nos termos e para efeito do n.º 4 do art. 10º da Lei 23/96, impondo-se, consequentemente, julgar totalmente improcedente a presente acção.”

D. Não obstante, não poderá a ora Recorrente concordar com tal entendimento.

E. Ora, o Tribunal a quo interpretou o prazo mencionado no artigo 10.º, n.º 4 da LSP como sendo um prazo de caducidade.

F. Que, como tal, nos termos e para os efeitos do artigo 328.º do CC, “não se suspende nem se interrompe”.

G. No entanto, este entendimento não é unânime na jurisprudência.

H. De facto, se entendermos o prazo do artigo 10.º, n.º 4 da LSP como um prazo de caducidade, a Notificação Judicial Avulsa, lato sensu, perderá todo o seu efeito útil.

I. E os prestadores de serviços, como a ora Recorrente, serão forçados a avançar, num curto espaço de tempo, para os tribunais, numa tentativa de conseguirem alcançar o pagamento dos serviços prestados, sob pena do prazo para exercício deste direito caducar.

J. O que fará com que haja um abuso excessivo de recurso aos Tribunais,

K. Bem como colocará gravemente em causa o Princípio da Economia Processual.

L. No mais, o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo parece colocar o prestador de serviços, como a ora Recorrente, num “beco sem saída”.

M. Na medida em que, mesmo que os prestadores de serviços pretendam dar uma margem temporal para que os clientes paguem voluntariamente os valores em dívida, até para tentarem preservar a boa relação contratual estabelecida, sempre serão forçados a avançar para Tribunal, no prazo de 6 meses contados deste a prestação dos serviços, sob pena deste direito caducar.

N. A este respeito, há entendimento jurisprudencial que defende que o prazo estabelecido no artigo 10.º, n.º 4 da LSP se trata de um prazo de prescrição.

O. E, sendo este prazo interpretado como sendo prescricional, nos termos e para os efeitos do artigo 323.º, n.º 1 do CC, “(…) interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.”

P. Por conseguinte, interpretando o prazo referido no artigo 10.º, n.º 4 da LSP como sendo de prescrição, as faturas n.º FT23BSML11/0000009366, n.º FT23BSML11/0000026413 e n.º FT23BSML11/0000056834, ainda eram exigíveis à data em que a ora Recorrente deu entrada do procedimento de injunção.

Q. Uma vez que o prazo de prescrição das faturas imediatamente supra mencionadas foi interrompido em maio de 2023, aquando da interpelação judicial à Recorrida.

R. Nesta medida, face a todo o exposto, impunha-se uma decisão diversa à que foi tomada pelo Tribunal a quo.

S. O que desde já se alega para os devidos e legais efeitos.

Termos em que, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, e substituída por uma outra que considere que o prazo estabelecido no artigo 10.º, n.º 4 da LSP se trata de um prazo de prescrição e que foi interrompido em maio de 2023 pela ora Recorrente, com a Notificação Judicial Avulsa da Recorrida, pois só assim V. Exas, Venerandos Desembargadores, farão a habitual JUSTIÇA!”


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A R. interpôs contra-alegações, concluindo da seguinte forma:

“A. Vem o recurso interposto pela Recorrente relativamente à decisão do Tribunal a quo que entendeu julgar procedente a exceção de caducidade invocada pela Ré (aqui Recorrida) relativamente ao direito de instaurar a presente ação e, como tal, absolver a Ré de todos os pedidos formulados pela Autora (aqui Recorrente).

B. Entende a Recorrente que o prazo de seis meses para a propositura da ação ou da injunção previsto no artigo 10.º, n.º 4 da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho se trata de um prazo de prescrição, ao invés de um prazo de caducidade.

C. De acordo com a Recorrente, tratando-se de um prazo prescricional, o mesmo interrompe-se, nos termos e para os efeitos do art. 323º, n.º 1 do CC, “(…) pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, directa ou indirectamete, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.”

D. Tendo a Recorrente requerido Notificação Judicial Avulsa da Recorrida, que ocorreu em 08.05.2023, entende a Recorrente que, de acordo com a jurisprudência mencionada, o prazo referido no artigo 10.º, n.º 4 da Lei 23/96 foi interrompido com a Notificação Judicial Avulsa.

E. E, em consequência, a Fatura n.º FT23BSML11/0000009366, emitida em 11.01.2023 e vencida em 10.02.2023, referente ao fornecimento de energia elétrica entre 02.11.2022 e 04.12.2022, a Fatura n.º FT23BSML11/0000026413, emitida em 20.01.2023 e vencida em 20.02.2023, alusiva aos serviços de fornecimento de energia elétrica prestados entre 04.12.2022 e 04.01.2023 e a Fatura n.º FT23BSML11/0000056834, emitida em 11.02.2023 e vencida em 13.03.2023, referente aos serviços prestados entre 04.01.2023 e 17.01.2023, ainda não estavam prescritas à data da Notificação Judicial Avulsa da Recorrida (08.05.2023) tendo, por isso, o seu prazo de prescrição sido interrompido naquele momento.

F. No entanto, considera a Recorrida que, o Tribunal a quo fez a correta interpretação do Direito e, por isso, deve ser mantida a decisão recorrida.

G. As alegações de recurso apresentadas pela Recorrente versam sobre a caducidade do direto de ação.

H. Estabelece o n.º 4 da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho que “O prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço (…)” (Negrito e sublinhado nosso).

I. Segundo MANUEL DE ANDRADE, a caducidade é uma das formas de extinção de direitos pelo seu não exercício durante um determinado prazo, tendo como fundamento a “necessidade de certeza jurídica”, estando o seu regime previsto nos artigos 296º a 299º e, mais especificamente, nos artigos 328º a 333º todos do CC.

J. O Código Civil, no artigo 298º, n.º 2, adotou um critério formal de distinção do prazo de caducidade do prazo da prescrição extintiva: quando nada se diga sobre a natureza de um prazo para o exercício de um direito, aplicam-se as regras da caducidade.

K. Para que o n.º 4 do artigo 10º Lei n.º 23/96, de 26 de Julho se tratasse de um prazo de prescrição extintiva teria que, nos termos e para efeitos do n.º 2 do artigo 298 do CC, expressamente, referir que se tratava de um prazo prescricional – o que não se verifica.

L. O n.º 4 do artigo 10º Lei n.º 23/96, de 26 de Julho nada refere quanto à natureza do prazo para o exercício do direito, pelo que, entende a Recorrente, que apenas se poderão aplicar as regras da caducidade.

M. A caducidade é de conhecimento oficioso quando diga respeito a direitos indisponíveis, não se suspende ou interrompe e só é impedida pela prática do ato a que a lei ligue esse efeito impeditivo (cfr. artigos 333º, 328º e 331º do CC).

N. Determina o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Proc. n.º 1161/14.7T2AVR.P1.S1, relator António da Silva Gonçalves, em 06.04.2027 e disponível em www.dgsi.pt, que: “I - A caducidade (do direito ou da ação) pode genericamente definir-se como a extinção ou perda de um direito ou de uma ação pelo decurso do tempo, ou ainda, pela verificação de uma circunstância que, naturalmente (v.g. a morte), faz desencadear a extinção do direito.

II - A prescrição, gizada em proveito do devedor ou do sujeito passivo da relação jurídica e destinada a censurar o desleixo do seu titular, tolhe o direito e embaraça a que o credor possa abrir mão da ação creditória; a caducidade porque tem a sua substancial razão no interesse público da segurança do direito e no interesse da presteza das relações jurídicas, derriba quer a ação creditória, quer a retenção a título de cumprimento (a “soluti retentio”).

III - A caducidade do prazo é interrompida com a entrada da petição na secretaria, a prescrição é com a citação que se interrompe; a prescrição não opera ipso jure e a caducidade, reportando-se a direitos subtraídos à disponibilidade das partes, extingue o direito e opera ipso jure, competindo ao réu o ónus da prova da inobservância do prazo prefixo de exercício do direito (arts. 333.º e 342.º do CC).

IV - Estando em causa um direito disponível, o reconhecimento do direito antes do decurso do prazo de caducidade tem eficácia impeditiva da sua verificação (art. 331.º, n.º 2, do CC); a circunstância jurídico-factual de tal prerrogativa ter sido reconhecida pelo beneficiário da caducidade faz com que se apague, de modo definitivo, todo o tempo que a caducidade integra, produzindo o renascimento e a efetivação do direito como se nunca se tivesse verificado tal exceção perentória.

V - O reconhecimento do direito em causa haverá, contudo, de ser indiscutível, evidente, real e categórico, de tal forma que não suscite quaisquer dubiedades sobre a atitude de quem o reconhece. (…)” (Negrito e sublinhado nosso).

O. E, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Proc. n.º 082151, em 03.06.1992, relator Joaquim de Carvalho, disponível em www.dgsi.pt e onde se pode ler que “I - A caducidade não se suspende nem se interrompe, pelo que não lhe são aplicaveis as regras de suspensão e de interrupção da prescrição.

II - O acto impeditivo da caducidade e a propositura de acção e não a citação do Reu (artigo 267, n. 1, do Codigo de Processo Civil).” (Negrito e sublinhado nosso).

P. Os prazos de caducidade não se suspendem nem se interrompem, salvo nos casos em que a lei o determine, conforme estatui o artigo 328.º do CC.

Q. Entende a jurisprudência que, o n.º 4 do art. 10º da Lei 23/96 “(…) não estabelece nenhuma causa de interrupção da prescrição prevista no n.º 1 do mesmo preceito, mas sim um prazo de caducidade para o exercício da acção” (cfr. Acórdão da Relação do Porto, Proc. n.º 28627/14.6YIPRT.P1, relator M. Pinto dos Santos, datado de 24.02.2015 e disponível em www.dgsi.pt). (Negrito e sublinhado nosso).

R. Nos termos supracitados e tal como entendeu o Tribunal a quo, não sendo aplicáveis à caducidade as regras de suspensão e de interrupção da prescrição, a Notificação Judicial Avulsa requerida pela aqui Recorrente (ali A.) em 03.05.2023 e notificada à Ré (aqui Recorrida) em 08.05.2023, não tem a virtualidade de interromper o prazo da caducidade para a propositura da injunção.

S. Deste modo, aquando da apresentação da injunção, por terem decorrido mais de seis meses após a prestação dos serviços, já o direito de intentar a mesma havia caducado relativamente a todas e quaisquer faturas.

T. Assim sendo, entende a Recorrida que: (i) a Fatura n.º FT23BSML11/0000009366, emitida em 11.01.2023 e vencida em 10.02.2023, no valor de € 46.354,18, diz respeito ao fornecimento de energia elétrica entre 02.11.2022 e 04.12.2022, pelo que o direito a exigir o pagamento do preço caducou em 04.06.2023; (ii) a Fatura n.º FT23BSML11/0000026413, emitida em 20.01.2023 e vencida em 20.02.2023, no valor de € 40.294,56 refere-se aos serviços de fornecimento de energia elétrica prestados entre 04.12.2022 e 04.01.2023, pelo que o direito a exigir o pagamento do preço caducou em 04.07.2023; e (iii) a Fatura n.º FT23BSML11/0000056834, emitida em 11.02.2023 e vencida em 13.03.2023, no valor de € 8.304,96, diz respeito a serviços prestados entre 04.01.2023 e 17.01.2023, pelo que o direito a exigir o pagamento do preço caducou em 17.07.2023.

U. Na data em que foi apresentada a injunção a juízo, em 19.10.2023 (cuja notificação da Ré/Recorrida ocorreu em 27.10.2023), já havia decorrido o prazo de seis meses, contado desde a prestação dos serviços – verificando-se, por isso, a caducidade da ação recorrida pela Recorrente.

V. O prazo estatuído no n.º 4 do artigo 10º da Lei 23/96, é de um prazo de caducidade e, por isso, não se considera interrompido com a Notificação Judicial Avulsa da Recorrida.

W. Tendo em consideração a data da apresentação da injunção (19.10.2023), não pode ser exigível à aqui Recorrida o pagamento de quaisquer faturas peticionadas nos autos.

X. Mesmo que se considerasse a data de vencimento das faturas, o que apenas por mera hipótese académica se admite, tendo em consideração que a data de vencimento da última fatura reclamada nos autos remonta a 13.03.2023, sempre se concluiria que o exercício do exercício da ação do direito ao recebimento do preço dos serviços prestado caducaria em 13.09.2023,

Y. Pelo que sempre se diria, em última ratio, que a ação para cobrança das faturas peticionadas nos autos, teria que dar entrada até 13.09.2023 ou melhor dizendo, a Recorrida (ali Ré) teria que ter sido notificada da injunção até à aludida data – o que não se verificou.

Z. Importa, ainda, referir que a Lei n.º 23/96 apenas exclui da aplicação do preceituado quanto à caducidade relativamente ao fornecimento de energia elétrica em alta tensão, nos termos do n.º 5 do art. 10º da Lei n.º 23/96.

AA. No entanto, o contrato de fornecimento de energia elétrica que deu origem às faturas peticionadas nos autos, foi de Média Tensão (MT), pelo que o fornecimento de energia elétrica nos autos não cabe no âmbito da exclusão do n.º 5 do art. 10º da Lei n.º 23/96.

BB. O direito de ação da Recorrente a peticionar o crédito reclamado nas faturas enunciadas nos autos caducou, nos termos e para efeito do n.º 4 do art. 10º da Lei 23/96.

CC. Entende a Recorrida que o Tribunal a quo fez a correta aplicação do Direito ao caso, mais precisamente do prazo definido no n.º 4 do artigo 10º da Lei 23/96, de 26 de Julho.

DD. Nesta conformidade, deverá ser julgada improcedente a apelação apresentada pela Recorrente e, em consequência, deverá ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal recorrido.

Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, que a apelação seja julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que julgou procedente a exceção de caducidade do direito de instaurar a presente ação relativamente a todas as faturas peticionadas nos autos, absolvendo a Recorrida (ali Ré) de todos os pedidos formulados pela Recorrente (ali Autora), considerando, para o efeito, que o prazo estabelecido no artigo 10º, número 4 da Lei 23/96, de 26 de Julho se trata de um prazo de caducidade para a propositura da ação, com todos os efeitos legais, só assim farão a tão necessária e costumada

JUSTIÇA!”


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, as únicas questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:

a) se o prazo previsto no artº 10, nº 4 da Lei nº 23/96 de 26 de Julho é um prazo de prescrição;

b) em caso afirmativo, se este prazo se interrompeu pela notificação judicial avulsa da R. para pagamento das facturas em dívida.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“A. Factos a ter em conta:

Os factos relevantes a ter em conta (excluindo conclusões e conceitos jurídicos):

1. A Requerente é uma sociedade anónima cuja atividade é a compra e venda de energia sob a forma de eletricidade, gás natural e outras, envolvendo a prestação de serviços de energia, designadamente, de fornecimento de energia.

2. A Requerida, A..., Lda., é uma sociedade por quotas que tem por objeto a fabricação de artigos cerâmicos para uso doméstico e hotelaria.

3. Ao abrigo do contrato de fornecimento de energia elétrica de média tensão (MT) celebrado entre a Requerente e a Requerida, nos termos do qual a primeira se obrigou a fornecer à segunda energia elétrica no ponto de consumo CPE ...76..., contra o pagamento do preço vigente em cada momento.

4. Entre 02.11.2022 e 17.01.2023, a Requerente forneceu eletricidade à Requerida e emitiu, para o efeito, as faturas correspondentes.

5. Para o período de faturação entre 02.11.2022 e 04.12.2022, a Requerente cobrou à Requerida o preço de € 46.354,18 (quarenta e seis mil trezentos e cinquenta e quatro euros e dezoito cêntimos), conforme titulado pela fatura n.º FT23BSML11/0000009366, emitida pela Requerente em 11.01.2023 e que se venceu em 10.02.2023- conforme DOC. 1

6. Para o período de faturação entre 04.12.2022 e 04.01.2023, a Requerente cobrou à Requerida o preço de € 40.294,56 (quarenta mil duzentos e noventa e quatro euros e cinquenta e seis cêntimos), conforme titulado pela fatura n.º FT23BSML11/0000026413, emitida pela Requerente em 20.01.2023 e que se venceu em 20.02.2023- conforme DOC. 2.

7. Para o período de faturação entre 04.01.2023 e 17.01.2023, a Requerente cobrou à Requerida o preço de € 8.304,96 (oito mil trezentos e quatro euros e noventa e seis cêntimos), conforme titulado pela fatura n.º FT23BSML11/0000056834, emitida pela Requerente em 11.02.2023 e que se venceu em 13.03.2023- conforme DOC. 3.

8. Não obstante, a Requerida não liquidou as referidas faturas à Requerente, nem nas respetivas datas de vencimento, nem em qualquer momento até à presente data.

9. A Requerente remeteu, a 3 de maio de 2023, com referência Citius 45464094, uma Notificação Judicial Avulsa à Requerida, numa tentativa de interpelação para pagamento das mencionadas faturas.

10. A Requerida permanece sem pagar os montantes de capital em dívida daquelas faturas.

11. Está em causa o fornecimento de energia eléctrica.

12. A presente acção/injunção deu entrada em 19/10/2023.

13. A notificação da Ré da injunção ocorreu em 27/10/2023.”


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Funda a recorrente, nas suas conclusões, a sua discordância relativamente à decisão objecto de recurso, essencialmente no seguinte argumento:

-o prazo previsto no artº 10 nº1 e 4 da Lei nº 23/96 de 26 de Julho é um prazo de prescrição, pelo que se interrompeu com a notificação judicial avulsa da R.;

-considerar que este prazo não se interrompe retira toda a eficácia à notificação judicial avulsa e constitui um ónus excessivo imposto aos fornecedores, obrigando ao recurso aos tribunais em prazos muito curtos sem oportunidade de serem solucionados estes litígios extrajudicialmente, o que viola o princípio da economia processual.

 

Decidindo

Se o prazo previsto no artº 10, nº 4 da Lei nº 23/96 de 26 de Julho é um prazo de caducidade ou de prescrição, como alega a apelante.

A Lei nº 23/96 de 26 de Julho veio estabelecer um conjunto de medidas que visam a protecção do utilizador dos serviços públicos essenciais procurando atenuar o desequilíbrio que resulta da necessidade e portanto, vulnerabilidade do utente de um determinado serviço público, face ao prestador desse mesmo serviço.

Nestes termos, o artº 1, nº1 da referida Lei, dispõe que esta “consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente” destes serviços, entre os quais se inclui o serviço de fornecimento de energia eléctrica (nº2 al b)), devendo o prestador do serviço proceder sempre de “boa fé e em conformidade com os ditames que decorram da natureza pública do serviço, tendo igualmente em conta a importância dos interesses dos utentes que se pretende proteger” (artº 3).

Utente para efeito deste diploma é todo o destinatário do serviço prestado, quer este serviço se destine a consumo próprio quer a actividade empresarial ou industrial por ele desenvolvida. Não coincide assim, como já referido no Acórdão desta secção de 28/03/2023[1], em que a ora Relatora foi 2ª adjunta, com a noção de consumidor final tal como vem definido no artº 2, nº1 da Lei nº 24/96 de 31 de Julho (LDC), ou seja, “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios “.

Nesta medida, a R., entidade a quem foram fornecidos estes serviços, é considerada utente, independentemente de ter utilizado estes serviços no âmbito da sua actividade e por causa dela, beneficiando de toda a protecção que é conferida por este diploma aos utentes de serviços essenciais.

Inseridos no âmbito da protecção do utente de serviços essenciais, encontram-se os prazos, estipulados no artº 10 deste diploma legal, durante os quais pode ser exercido o direito ao recebimento do preço e o direito à propositura da acção de cobrança do preço do serviço prestado. São estes dois prazos, previstos nos nºs 1 e 5 do artº 10 da Lei nº 23/96, distintos e com diversa natureza jurídica, conforme decorre, aliás, da nomenclatura utilizada neste preceito: “Prescrição e caducidade”, embora a sua finalidade seja comum: a protecção do utente.

O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação (cfr. decorre do artº 10, nº1 da Lei nº 23/96, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 24/2008 de 2 de Junho).

Significa isto que o prestador do serviço tem o prazo de seis meses para peticionar o seu pagamento, mediante o envio da competente factura, devidamente especificada de acordo com os critérios plasmados no artº 9 deste diploma legal, ao utente. Se o não fizer, nem interromper este prazo por qualquer dos meios previstos nos nºs 1 e 4 do artº 323 do C.C., o beneficiário deste prazo pode recusar a prestação a que estava adstricto, ou opor-se, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito, faculdade que lhe é conferida pelo artº 304 do C.C. Com efeito, como realça Menezes Cordeiro[2]O legislador pretendeu (…) que o prestador não demorasse indefinidamente o envio das facturas. Se o não fizesse no prazo de seis esses, após a prestação, (…) o prestador já não poderá provar que mandou uma factura determinada e, consequentemente, que ela não tenha sido paga. (…) Enviada a factura no prazo de seis meses: o direito de exigir o pagamento foi tempestivamente exercido.”

Trata-se esta de uma prescrição negativa, fundada no decurso do tempo e que permite à contraparte opor-se ao exercício do direito quando este se não verifique no prazo indicado para o seu exercício. A prescrição visa, assim, essencialmente tutelar o interesse do devedor[3], utente deste serviço, evitando que este fique numa posição fragilizada pelo decurso do tempo e pela maior dificuldade em deduzir oposição aos valores facturados, ou exercer por alguma forma os seus direitos perante o prestador do serviço.

No entanto, porque o decurso do prazo para o exercício do direito não pode ser conhecido oficiosamente, carecendo de ser invocada pelo beneficiário deste prazo, não se pode considerar que a prescrição fundada no decurso deste prazo possui eficácia extintiva, “antes se limita a paralisar o direito do credor, dado que apenas confere o direito potestativo de a invocar: se este direito não for exercido, a obrigação mantém-se civil, não se produzindo quaisquer efeitos; se a prescrição for invocada, a obrigação converter-se-á em obrigação natural - como tal inexigível, mas com solutio retendi.” .[4]

Este prazo previsto no artº 10, nº1, pode ser interrompido por meio de notificação judicial avulsa, mediante a qual o prestador do serviço notifique o utente de que pretende exercer o seu direito ao recebimento do preço do serviço prestado. Ocorrendo esta notificação o decurso do prazo previsto no nº1 interrompe-se, começando a correr novo prazo para o exercício deste direito (artº 326, nº1 do C.C.).

Ora, quando ocorreu a notificação judicial avulsa da R. em 03/05/2023, já os serviços peticionados pela A., prestadora deste serviço tinham sido facturados e a R. encontrava-se já em incumprimento. Esta notificação judicial avulsa não tem, assim, a virtualidade de interromper o prazo de prescrição previsto no nº1 deste preceito legal. E também não poderia interromper o prazo previsto no nº4 do artº 10 da Lei nº 23/96, porque ao contrário do que alega a A., é este um prazo diverso do nº1 e de caducidade. Conforme resulta do teor deste nº 4, o prazo aqui previsto é o prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços e já não o prazo para o recebimento do preço do serviço prestado.

O prazo previsto na lei para a propositura da acção, verificado o incumprimento do devedor a quem já foi solicitado o pagamento, é um prazo de caducidade. Com efeito, conforme refere o artº 298, nº3 do C.C., sempre que “por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.”

A lei, referindo-se expressamente à prescrição no nº1 deste preceito legal (artº 10 da Lei nº 23/96), no nº 4 fixa um prazo para a propositura da acção, sem referir expressamente a prescrição, pelo que é este um prazo de caducidade,[5] o que está de acordo com a própria epígrafe do preceito.

 Ora, o fundamento da caducidade, ao contrário da prescrição, não assenta na inércia e desinteresse do titular do direito, mas antes em critérios de certeza e segurança jurídicas. Por essa razão, a caducidade traduz a extinção de uma posição jurídica pela verificação de um facto stricto sensu, dotado de eficácia extintiva. Como ensina Menezes Cordeiro “a caducidade é uma forma de repercussão do tempo nas situações jurídicas que, por lei ou por contrato, devam ser exercidas dentro de certo termo. Expirado o respectivo prazo sem que se verifique o exercício, há extinção.”[6].

A diferente natureza destes prazos, comporta diversos regimes jurídicos no que se reporta às causas de suspensão e interrupção. Aos prazos de caducidade não se aplicam as causas interruptivas e suspensivas da prescrição, excepto estipulação válida das partes (cfr. artº 330 do C.C.).

Este prazo de caducidade começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido, ou seja, no momento em que a dívida se venceu e não foi paga. A caducidade pelo decurso deste prazo só é impedida pela prática, dentro do prazo legal, do acto a que lei atribui eficácia impeditiva, ou seja, pela interposição da acção ou injunção contra o devedor (artº 331, nº1 do C.C.) ou pelo reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido, caso se trate de direito disponível (art.° 331, nº 2, do C.C.).

Não sendo alegado que tenha existido qualquer reconhecimento do direito do fornecedor do serviço por parte do utente, a propositura desta injunção em 19/10/2023, decorridos mais de seis meses desde a data de vencimento aposta nestas facturas conforme resulta dos pontos 5 a 8 (10/02, 20/02 e 13/03), ocorreu no momento em que já se extinguira, pelo decurso do prazo, o direito de intentar acção em juízo para cobrança destes serviços.

Assim, a resposta aos argumentos da recorrente é negativa. Nem o prazo previsto no artº 10, nº4 da Lei nº 23/96 de 16 de Julho é um prazo de prescrição, nem pode ser interrompido por notificação judicial avulsa.

Improcede assim a apelação, confirmando-se a sentença recorrida por ter caducado o direito de acção do recorrente.


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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar improcedente o recurso interposto pela A., mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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As custas da acção fixam-se pelo apelante (artº 527 nº1 do C.P.C.).


Coimbra 25/10/24


[1] Proferido no proc. nº 93/22.0T8PCV.C1, de que foi relator Henrique Antunes, disponível para consulta no endereço www.dgsi.pt.
[2] CORDEIRO, António Menezes, “Da Prescrição do Pagamento dos Denominados Serviços Públicos Essenciais”, Revista O Direito, Ano 133º, 2001, IV (Outubro -Dezembro), pág.809/810.

[3] Ibidem, pág. 788/789.
[4] Enquadrando a prescrição nas causas de extinção dos direitos de crédito, ou seja, das “obrigações civis e perfeitas”, COSTA, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, 12ª edição revista e actualizada, Almedina, pág. 1121. Ainda VASCONCELOS, Pedro Pais de, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 381.

[5] No mesmo sentido vide o Ac. do TRL de 13/01/2022, proferido no proc. nº 1168/20.5T8FNC.L1-2, de que foi relator Orlando Nascimento, disponível no endereço www.dgsi.pt.
[6] CORDEIRO, António de Menezes, “Da Caducidade no Direito Português”, Revista O Direito, nº 136 (2004) V, págs. 19 e 20.