LEI DA AMNISTIA
PENA SUSPENSA SEM DEVERES
CONDIÇÕES OU REGRAS DE CONDUTA
Sumário

Face ao teor literal do art.º 3º nº 2 al. d) da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto - « São ainda perdoadas: (…) as demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova» - e seguindo os critérios universais de interpretação e integração de regras jurídicas consagrados no art.º 9º do Código Civil, segundo os quais, nenhum significado que não tenha no texto da lei, um mínimo de correspondência poderá ser extraído e que, na aferição do sentido da Lei, o intérprete deve presumir que o legislador não só soube exprimir de forma correcta o seu pensamento, como ainda consagrou as soluções jurídicas mais correctas e equilibradas, o sentido que se impõe retirar desta norma é o seguinte: a suspensão da execução da pena de prisão que tenha sido imposta, sem quaisquer deveres, condições ou regras de conduta está incluída na primeira parte do art.º 3º nº 2 al. d) da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto e o perdão ali previsto incide sobre a totalidade da pena e não apenas sobre um ano da sua duração.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por decisão proferida em 17.11.2023, no processo comum singular nº 105/16.6PBSCR do Juízo Local Criminal de Santa Cruz do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, foi decidido revogar a suspensão da execução da pena de 2 anos e 10 meses de prisão que havia sido imposta ao arguido AA por sentença proferida em 16.02.2020.
O arguido AA interpôs recurso desta decisão, tendo para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
A. O arguido AA foi condenado nos presentes autos na pena de dois anos e dez meses de prisão, suspensa na sua execução durante igual período respectivo, cf. artigo 50, n.ºs 1 e 5, do Código Penal.
B. A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto nos termos do artigo 15.º entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2023.
C. Em tal data, já se mostrava decorrido o prazo da suspensão.
D. Não tendo, até a referida data, isto é, até 01 de setembro de 2023, sido revogada a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado.
E. A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, estando abrangidas pela mesma as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3º e 4º - cf. artigos 1º e 2º da aludida Lei.
F. Dispõe por sua vez o artigo 3º nº 2 alínea d) que são ainda perdoadas "As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova."
G. De acordo com o artigo 127º nº 1 do Código Penal “1 - A responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto.”
H. Nos termos do nº 3 do artigo 128º do Código Penal "3 - O perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte."
I. Entende-se que uma vez que à data da decisão da revogação da pena já se encontrava em vigor a Lei 38-A/2023 de 02 de agosto, deveria o arguido ter beneficiado do perdão da pena de prisão suspensa na sua execução, com sujeição à condição a que alude o artigo 8º nº 1 da citada lei.
J. Tendo o Tribunal a quo, por outro lado, procedido à revogação da suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado e só após a aludida revogação aplicou a Lei 38-A/2023 de 02 de agosto e determinado o perdão de um ano, na pena de prisão suspensa na sua execução por dois anos e dez meses revogada, determinando em consequência o cumprimento pelo arguido da pena de um ano e dez meses de prisão.
K. Porém, tal entendimento do Tribunal a quo, não é o que mais beneficia o arguido, devendo o Tribunal ter optado pela interpretação e aplicação da lei mais favorável ao arguido, que seria a aplicação da alínea d) do nº 2 do artigo 3º da Lei 38-A/2023 de 02 de agosto, uma vez que o arguido preenche todos os demais requisitos da aludida lei e em consequência deveria a pena, em que foi condenado, lhe ter sido perdoada com sujeição à condição do artigo 8º da mesma Lei.
Nestes termos, julgando o presente recurso procedente, deve o douto despacho de que ora se recorre ser revogado e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta, nomeadamente devendo ser declarado o perdão da pena de prisão suspensa na sua execução em que o arguido foi condenado ao abrigo da Lei 38-A/2023 de 02 de agosto.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual concluiu:
Neste caso, o condenado terá de beneficiar do perdão da pena de prisão suspensa na sua execução, que abrangerá a sua totalidade, por força do disposto no artigo 3.º, n.º 2, al. d), da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.
Face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência, ser declarado o perdão da pena de prisão suspensa na sua execução.
Remetido o processo a este Tribunal da Relação, o Exmo. Sr. Procurador da República emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso e consequente revogação da decisão recorrida, aderindo aos argumentos constantes da resposta apresentada pelo Ministério Público na primeira instância.
Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica e as conclusões dos recursos, a única questão que importa decidir é a de saber se o arguido deveria ter beneficiado do perdão da totalidade da pena por aplicação da alínea d) do nº 2 do artigo 3º da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, com sujeição à condição do artigo 8º da mesma Lei.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação do presente recurso é a seguinte:
Por sentença proferida neste processo em 18 de Fevereiro de 2020, o arguido AA foi condenado pela prática em 20.02.2016, em coautoria material de um crime de furto qualificado, na forma continuada, previsto nos artigos 203, n.º 1, 204º n.º 2, al. e), e 202º, al. e), e 30, n.º 2, do Código Penal, na pena de dois anos e dez meses de prisão suspensa na sua execução durante igual período respectivo (sentença com a referência 48205517 de 16-02-2020)
Esta sentença transitou em julgado em 15 de Junho de 2020 (termo de depósito com a referência Citius 48262847 e boletim de registo com a referência Citius 512801127);
O período da suspensão da execução da pena iniciou-se a 15.06.2020 e terminou a 15.04.2023 termo de depósito com a referência Citius 48262847 e boletim de registo com a referência Citius 512801127);
Durante o período da suspensão AA foi condenado por factos praticados nos anos de 2020 e 2021, em datas não concretamente apuradas, pelo crime de violência doméstica, na pena de 3 anos de prisão e na pena acessória de proibição de permanecer na habitação onde reside a sua mãe BB durante cinco anos, no âmbito do processo n.º 169/21.0PBSCR, desde JL Criminal, sentença transitada em julgado a 18.11.2022 (certificado de registo criminal com a referência Citius 5254442);
Em 17.11.2023, foi proferida a decisão recorrida que tem o seguinte teor:
Por sentença transitada em julgado em 15-06-2020 foi o arguido AA condenado pela prática em 20.02.2016, em coautoria material de um crime de furto qualificado, na forma continuada, previsto nos artigos 203, n.º 1, 204, n.º 2, al. e), e 202, al. e), e 30, n.º 2, do Código Penal, na pena de dois anos e dez meses de prisão suspensa na sua execução durante igual período respetivo, cf. artigo 50, n.ºs 1 e 5, do Código Penal — cf. sentença de 16.02.2020, ref.a 48205517.
Mostra-se decorrido o prazo da suspensão (termo a 15.04.2023).
Analisado o CRC do arguido verifica-se que durante o período da suspensão foi condenado por factos praticados nos anos de 2020 e 2021, em datas não concretamente apuradas, pelo crime de violência doméstica, na pena de 3 anos de prisão e na pena acessória de proibição de permanecer na habitação onde resida a sua mãe BB durante cinco anos, no âmbito do processo n.º 169/21.0PBSCR, desde JL Criminal, sentença transitada em julgado a 18.11.2022 - cfr. refds 5327423, de 07.07.2023 e 5285416, de 12.06.2023.
Em virtude de tal condenação, foi realizada a audição de condenado, na qual o arguido referiu que, no estabelecimento prisional, já pediu para trabalhar e que iria inscrever-se para estudar.
Nessa sequência, o Ministério Público promoveu a revogação da suspensão e o subsequente cumprimento, pelo arguido, da pena em que foi condenado nestes autos (cf. ref.a 53871385 de 10.07.2023).
Notificada a defesa, nada veio requerer.
Cumpre apreciar e decidir.
A revogação da suspensão encontra-se prevista no artigo 56.º, do Código Penal, que prevê que «1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. 2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado.»
Para o que nos interessa, apenas haverá lugar à revogação da suspensão da execução da pena de prisão quando, no decurso do período de suspensão, o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado, por decisão transitada em julgado.
Com efeito, conforme ensina Paulo Pinto de Albuquerque: «(…) só após o trânsito da decisão condenatória ela pode ser tida em conta para o efeito da revogação da suspensão, por força do princípio da presunção da inocência.»
Para além da condenação transitada em julgado, é, ainda, necessário que se revele que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Assim, tal revogação não é automática, exigindo-se «a constatação de que o condenado, ao cometer o novo crime, invalidou definitivamente a prognose favorável que suportou a aplicação da pena de substituição ou seja, a expectativa de, através da suspensão, se manter afastado da delinquência.»
No caso dos autos,
Verifica-se que o arguido praticou crime pelo qual foi condenado em pena de prisão efetiva, por factos praticados durante o período da suspensão dos presentes autos, mais concretamente, no mesmo ano em que a sentença destes autos transitou em julgado.
Ora, o facto de o arguido ter sido condenado, pela prática de crime, durante o período da suspensão da execução da pena nos presentes autos, numa pena de prisão efetiva é revelador de que as finalidades de punição não puderam ser alcançadas durante a suspensão.
Com efeito, quando o Tribunal substitui a pena de prisão, pela suspensão da sua execução, realiza um juízo de prognose de que o arguido irá pautar o seu comportamento, de futuro, conforme o Direito e que, a mera ameaça de prisão, o demoveria da prática de futuros crimes.
A sua avaliação da condenação nos presentes autos e mudança de atitude foi inexistente, revelando total indiferença perante a condenação e a ameaça de prisão que sobre si pendia.
O arguido não infletiu a sua conduta no sentido de se conformar com a censura que lhe foi feita e de evitar a prática de novos crimes, o que no seu caso era particularmente exigível tendo em conta os seus antecedentes criminais na matéria.
Ao invés, conforme se disse, o arguido praticou novo crime, pelo qual está a cumprir pena de prisão efetiva.
Como tal, o tribunal é levado a concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.
Assim e ao abrigo do disposto no artigo 56.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, e face a todo o exposto, decide-se revogar a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido AA foi condenado.
*
Em 01.09.2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto, que que prevê, para o que ao caso interessa, que a pena até 8 anos de prisão aplicada aos ilícitos criminais praticados até às 00h00m, do dia 19.06.2023, por pessoas com idade compreendida entre os 16 e 30 anos de idade à data da sua prática, beneficia de um perdão de um ano (cf. artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 da referida Lei), exceto nos casos em que esteja em causa algum dos crimes ou condições referidos no artigo 7.º, do mesmo diploma legal.
São perdoadas, ainda, as penas de substituição como é o caso da suspensão simples da execução da pena de prisão.
No presente caso,
O arguido foi condenado, como se disse, por um crime de furto qualificado, numa pena de 2 anos e 10 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, por factos ocorridos em 20 de fevereiro de 2016 e em 22 de fevereiro de 2016, sendo que o arguido à data da sua prática tinha 30 anos de idade.
O crime em causa não está excluído do perdão.
Pelo que, se conclui que estão preenchidos os requisitos supra indicados para a aplicação ao presente caso do perdão da pena.
Assim, determina-se o perdão de um ano, na pena de prisão suspensa na sua execução por dois anos e dez meses, revogada supra.
Tal significa que, em face da revogação da suspensão da execução da pena de prisão e do perdão ora aplicado, é de determinar o cumprimento pelo arguido AA, da pena de um ano e dez meses de prisão.
Notifique o condenado e o seu defensor (cf. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2010, de 21-05) e, ainda, o Ministério Público.
Após trânsito:
- Comunique ao TEP;
- Remeta-se o boletim ao Registo Criminal, nos termos dos artigos 6.º, n.º 1, alínea a) e 7.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio;
Notifique. (despacho com a referência Citius 54394135).
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
O direito de clemência inclui a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual, que, por sua vez, inclui o indulto e a comutação de penas.
A amnistia e o perdão genérico são da competência da Assembleia da República (artigo 161º alínea f) da CRP) e o indulto e a comutação de penas são actos próprios da competência do Presidente da República (art.º 134º al. f) da CRP).
A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos, como da medida de segurança (cfr. art.º 128º nº 1 do Código Penal).
O perdão genérico só extingue a pena, no todo ou em parte (cfr. art.º 128º nº 3 do C.P.). A amnistia é uma medida de clemência, objectiva, de carácter geral e abstracto, cujo critério de aplicação é o tipo de crime a que será aplicável, segundo a descrição constante da norma incriminadora e seja qual for a pena aplicada a um agente concretamente determinado.
A amnistia em sentido próprio, é a que se aplica antes da condenação, refere-se ao próprio crime e faz extinguir o procedimento criminal.
Já a amnistia em sentido impróprio acontece depois da condenação e tem um efeito impeditivo ou modificativo do cumprimento da pena aplicada, fazendo cessar total ou parcialmente a execução da pena principal, bem como das penas acessórias.
A amnistia aniquila os factos já ocorridos como objecto da incriminação, «de sorte que aos olhos da justiça, por uma ficção legal, considera-se como se nunca tivessem existido, salvos os direitos de terceiro com relação à acção civil para a reparação do dano» (Acórdão de Fixação de Jurisprudência, datado de 25.10.2001, processo n.º P00P3209, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Luís Osório, Notas, 2ª edª., pág. 425, Maia Gonçalves, «As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão», in RPCC, ano 4, fasc. 1, p. 13; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978, p. 295; Ac. do Tribunal Constitucional nº 510/98, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
«O direito de graça só pode ter a ver, em qualquer dos casos, com a consequência jurídica, não com o facto ou o crime praticados», pelo que «o que distingue os vários institutos abrangidos por aquela realidade é o carácter geral da amnistia (dirigida a grupos de factos ou agentes, na qual se inclui o perdão genérico, que deve ser considerado, para todos os efeitos, uma verdadeira amnistia) em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)» (Figueiredo Dias (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 689).
«O perdão, ao contrário do que sucede com a amnistia, não extingue a infração.
«A amnistia é a abolição da incriminação de certos factos passados, objecto de incriminação (…), enquanto que o perdão é uma abolição da execução da pena no todo ou em parte. O perdão difere da amnistia em que aquele pressupõe a culpabilidade e esta aplica-se às infrações, com abstração dos seus agentes» (Ac. da Relação do Porto de 21.11.2012, proc. 83/95.3TBPFR-E.P1. in http://www.dgsi.pt).
A Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções, a entrar em vigor no dia 1 de Setembro de 2023, a propósito da realização da Jornada Mundial da Juventude em Portugal e em honra da visita de Sua Santidade o Papa Francisco ao nosso país, tal como previsto nos arts. 1º e 15º da referida Lei.
Quanto à amnistia, a Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto concede-a às infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa, desde que praticadas até às 00h00 horas de 19 de Junho de 2023, por jovens, que tenham entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática dos factos integradores do crime (tal como resulta das disposições conjugadas do art.º 2º nº 2 alínea a e do art.º 5º, o regime da amnistia também incluída as sanções acessórias, relativas a contraordenações praticadas até às 00h00 horas de 19 de Junho de 2023, cujo limite máximo de coima aplicável não exceda os € 1.000,00.
No que se refere ao perdão, o âmbito de aplicação da Lei 38-A/2023 são as sanções penais enumeradas no art.º 3º nºs 1 e 2 als. a) a d) (e também as sanções acessórias relativas a contraordenações e as sanções relativas a infracções disciplinares e a infracções disciplinares militares), relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, desde que tenham sido praticados por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos integradores do crime e/ou das contraordenações e restantes infracções abrangidas pelo perdão.
Prevê-se um perdão até um ano de prisão a todas as penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos, das penas de multa até 120 dias, da prisão subsidiária resultante de conversão de pena de multa, da pena de prisão por incumprimento da pena de multa de substituição e das demais penas de substituição, à excepção da suspensão da execução de pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.
A suspensão da execução da pena de prisão é, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 50º a 57º do Código Penal, uma pena de substituição e em sentido próprio porque, além de pressupor a prévia determinação da medida concreta da pena de prisão prevista no tipo legal respectivo, para o crime cometido e de ser aplicada em sentença condenatória, em vez ou em lugar da pena, tem carácter não institucional, já que o seu cumprimento é feito em liberdade ( Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II: As Consequências Jurídicas do Crime, ob. cit., pp. 327 ss.; André Lamas Leite, A suspensão da execução da pena privativa de liberdade sob pretexto da revisão de 2007 do Código Penal, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. 2, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 584 ss., José Gonçalves da Costa, Suspensão da execução da pena e regime de prova, in RMP, A. 4, n.º 15, 1983, pp. 37 ss.; Nuno Brandão, Conhecimento superveniente do concurso e revogação de penas de substituição: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 2003, in RPCC, A. 15, n.º 1, 2005, pp. 149-150; Vasco Sousa Vieira, Um olhar sobre a suspensão da execução da pena de prisão (Entre o regime geral e as especialidades do RGIT), 2016, p. 41-48, in https://abreuadvogados.com/wp- content/uploads/2021/03/artigo1_estudosiab_n8_um-olhar-sobre-a-suspensao-da-execucao-da-pena-de-prisao_vsv.pdf).
A suspensão da execução da pena de prisão, prevista e regulada nos arts. 50º a 57º do Código Penal e nos arts. 492º a 495º do Código de Processo Penal, pode revestir três modalidades: simples; com imposição de deveres e/ou de regras de conduta, que são cumuláveis, de acordo com o art.º 50º nº 3 e sujeita a regime de prova assente no «plano de reinserção social», a propósito do qual o art.º 54º do CP também permite a inclusão de deveres e regras de conduta, impostos pelo Tribunal.
Face ao teor literal do art.º 3º nº 2 al. d) da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto - « São ainda perdoadas: (…) as demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova» - e seguindo os critérios universais de interpretação e integração de regras jurídicas consagrados no art.º 9º do Código Civil, segundo os quais, nenhum significado que não tenha no texto da lei, um mínimo de correspondência poderá ser extraído e que, na aferição do sentido da Lei, o intérprete deve presumir que o legislador não só soube exprimir de forma correcta o seu pensamento, como ainda consagrou as soluções jurídicas mais correctas e equilibradas, o sentido que se impõe retirar desta norma é o seguinte: a suspensão da execução da pena de prisão que tenha sido imposta, sem quaisquer deveres, condições ou regras de conduta está incluída na primeira parte do art.º 3º nº 2 al. d) da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto e o perdão ali previsto incide sobre a totalidade da pena e não apenas sobre um ano da sua duração.
A solução preconizada na decisão recorrida seria a correcta, se, porventura, em vez da suspensão simples da pena de prisão de dois anos e dez meses, aplicada ao arguido recorrente, neste processo, por sentença proferida em 16 de Fevereiro de 2020 e transitada em julgado em 15 de Junho de 2020, essa suspensão tivesse sido submetida ao cumprimento de algum dos deveres previstos no art.º 51º, ou a regras de conduta nos termos do art.º 52º ou a com imposição do regime de prova, como previsto no art.º 53º do Código Penal.
Com efeito, para as condenações em pena suspensa na respectiva execução, o art.º 12º da Lei 15/94, de 11 de Maio estabelecia que «relativamente a condenações em pena suspensa, o perdão a que se refere a presente lei e o disposto no artigo 10.º só deve ser aplicado se houver lugar à revogação da suspensão», em termos semelhantes ao art.º 6º da Lei 29/99 de 12 de Maio, segundo o qual, «relativamente a condenações em pena suspensa, o perdão a que se refere a presente lei e o disposto no artigo 3.º só devem ser aplicados se houver lugar à revogação da suspensão».
Porém, na actual Lei 38-A/2923 de 2 de Agosto «não foi essa a opção do legislador em 2023 que estabeleceu o perdão da pena de substituição da suspensão entre 1 e 5 anos da execução da pena de prisão até 5 anos (cfr. art.º 50.º do C.P.) que não tenha ficado subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (cfr. art.º 51.º do C.P.) ou de regras de conduta (cfr. art.º 52.º do C.P.) ou acompanhada de regime de prova (cfr. art.º 53.º do C.P.).
«Não tendo sido estabelecido o perdão da pena de substituição da suspensão entre 1 e 5 anos da execução da pena de prisão até 5 anos (cfr art.º 50º do CP) que tenha ficado subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (cfr art.º 51º do CP) e/ou regras de conduta (cfr art.º 52º do CP) e/ou acompanhada de regime de prova (cfr. Art.º 53º do CP), neste caso, o perdão só poderá ser aplicado uma vez revogada a referida suspensão da execução da pena de prisão, na pena de prisão fixada na decisão condenatória (cfr art.º 56º do CP) e com o limite de 1 ano de prisão estabelecido no nº 1 do preceito em apreço, para onde expressamente remete o nº 3 do art.º 3º da lei em análise» ( Pedro José Esteves de Brito Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, página 15 in Julgar online, agosto de 2023, file:///C:/Users/mj01559/Downloads/20230830-JULGAR-Coment%C3%A1rios-Perd%C3%A3o-e-Amnistia-Pedro-Brito.pdf).
Acontece, que a suspensão da pena aplicada nestes autos, foi uma suspensão simples, pelo que a decisão recorrida não pode manter-se, pois que se impõe ao perdão integral da pena de dois anos e dez meses de prisão, sob a condição resolutiva prevista no art.º 8º da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto.
III – DECISÃO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e declarando o perdão da totalidade da pena de dois anos e dez meses de prisão pela prática em 20.02.2016, em coautoria material, de um crime de furto qualificado, na forma continuada, previsto nos artigos 203º nº 1, 204º nº 2 al. e) e 202º al. e), e 30º nº 2, do Código Penal, imposta, nestes autos, ao arguido AA, nos termos do art.º 3º nº 2 al. d) e sob a condição resolutiva prevista no art.º 8º nº 1, ambos da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, de não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor.
Sem Custas – art.º 513º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelas Juízas Adjuntas.

Tribunal da Relação de Lisboa, 23 de Outubro de 2024
Cristina Almeida e Sousa
Rosa Vasconcelos
Hermengarda do Valle-Frias