I - A exoneração do passivo restante é um instituto que é aplicável aos devedores singulares com o fito de dar uma oportunidade de começar de novo.
I - Os casos previstos no artigo 238.º do CIRE, que são causa de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, são taxativos.
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 4
RELAÇÃO N.º 155
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Rodrigues Pires
Maria da Luz Seabra
AS PARTES
Insolvente: AA.
Administrador de Insolvência: BB.
1 AA, apresentou-se à insolvência no dia 22.12.2023 e, em simultâneo, requereu a exoneração do passivo restante, alegando que preenche todos os requisitos para o efeito.
2 Declarada a insolvência no dia 03.01.2024, apresentou o Administrador de Insolvência o respectivo relatório, no dia 26.02.2024, no qual declarou nada ter a opor à referida exoneração.
3 Por sua vez, o credor Banco 1... S.A., veio deduzir oposição: “contra a exoneração do passivo restante, considerando que se encontram preenchidos os requisitos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE”.
4. O Ministério Público a 16.04.2024 veio deduzir oposição ao pedido de exoneração do passivo restante, por entender estarem preenchidos os requisitos do artigo 238.º, n.º 1, alínea d) do CIRE.
5. A insolvente foi ouvida.
B)
Foi proferida decisão no apenso de qualificação de insolvência (15.12.2023), tendo-a declarado como fortuita.
*
Após a devida tramitação legal aludida em A), foi proferida DESCISÃO nos seguintes termos:
“Termos em que indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente AA.“.
A insolvente, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:
“(…) na revogação do decidido, deve ser liminarmente admitido, com todas as legais consequências. “
“I. Recorre-se do douto despacho com a referência 459874855, que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente com a inicial, por erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 238º, al. d) do CIRE, onde se estipulam os requisitos cumulativos do indeferimento, a saber: a) Ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência; b) Ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; c) Sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
II. Quanto ao primeiro requisito enunciado na antecedente alínea a) é relevante ter em consideração a factualidade assente em d) e e) do elenco dos factos provados, ou seja, que a Recorrente foi funcionária do Banco 1... até Outubro de 2011, data em que se reformou por invalidez, com uma incapacidade atribuída de 75%, e que desde então vem auferindo uma reforma mensal líquida, de aproximadamente € 2.090,00, e que aquele credor e devedor da pensão foi operando a satisfação dos seus créditos, por compensação, até à data da declaração de insolvência, como se mostra plenamente provado pelos recibos de vencimento e comprovativos de depósito juntos com a inicial, como documentos 3 a 6.
III. E ainda que a insolvente e seu actual cônjuge, CC, vivem em habitação propriedade daquela, por partilha subsequente ao divórcio de seu primeiro marido, DD, como emerge da factualidade assente em a), c), g) e h) e que tal imóvel tem um valor patrimonial tributário de € 246.570,00, determinado no ano de 2021, conforme se mostra plenamente provado pela caderneta predial junta como Doc 24 com a inicial e um valor de mercado que ronda os € 500.000,00.
IV. E que, como emerge da lista provisória de credores anexa ao relatório do AI, elaborada nos termos do artigo 154º do CIRE, o passivo da insolvente atinge o montante de capital de € 337 022,10 e de juros e outros de € 180 465,46.
V. O que importa a conclusão primeira de que a Recorrente dispunha de condições para satisfazer o passivo que ostentava.
VI. É relevantíssimo considerar e concluir que o crédito emergente de Mútuo com Hipoteca e Fiança, titulado por escritura de 02 de Outubro de 2009, de que foi credor o Banco 2..., S.A, foi dado à execução no processo nº 11152/12.7TBVNG, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 1, no valor de € 82.357,72, de que é actual titular a cessionária do crédito, A... - Stc, S.A., onde foi penhorado o imóvel apreendido nestes autos e reclamados verificados e graduados, os créditos discriminados na aliena j) do elenco dos factos assentes
VII. E que em tal processo executivo a AE, no transe da apresentação à insolvência proferiu decisão e promoveu a venda de tal imóvel pelo valor de € 269.500,00, pouco superior ao Valor Patrimonial Tributário indicado em III e incomensuravelmente inferior ao seu real valor de mercado, de que a Recorrente reclamou, como se mostra plenamente provado pelos documentos 21 a 24 juntos com a inicial.
VIII. O que importa a conclusão de que foi tal inopinada decisão da AE, a que a iniciativa da imediata apresentação à insolvência obviou, atento o valor atribuído ao imóvel, que inexoravelmente remeteu a Recorrente para uma situação de insolvência, por assim frustrar a satisfação dos créditos, o que não ocorreria se este fosse vendido pelo seu real valor,
IX. Donde emerge a insofismável conclusão de que a situação de insolvência no transe da apresentação à insolvência, era actual (al. a) do n.º 2 do artigo 23º do CIRE), tudo a contrariar a data - 2008 – apontada pelo AI, sem qualquer certeza ou fundamento, em que se louvou a decisão em crise, para julgar verificado o primeiro dos requisitos cumulativos da aliena d) do artigo 238º do CIRE, atinente ao alegado desrespeito pelo prazo de seis meses, o que impõe revogação.
X. Importa ainda concluir, por relevantíssimo, que grassa grande confusão e erro, patente no elenco e titularidade dos créditos que constam do quadro que integra a alínea m) dos factos provados quando cotejado com a lista provisória de credores anexa ao Relatório do AI que integra os autos,, como se alegou e concretizou no contexto.
XI. E que emerge das notas de rodapé da lista de credores que ocorreram cessões de créditos por parte das entidades bancárias e não a duplicação e proliferação dos mesmos, com a celebração de novos contratos de crédito, como erradamente se consigna imputa à Recorrente na douta decisão em crise.
XII. Pelo que é mister concluir, na divergência do julgado, que a situação de insolvência da Recorrente ocorreu no final de 2023, por força da decisão sobre o valor de venda do imóvel pela AE no processo executivo referido em VI,, a que se seguiu a imediata instauração da presente, em 22.12.2023, a impor a revogação do decidido, por erro de interpretação e aplicação do disposto na alínea g) do artigo 238º do CIRE.
XIII. Quanto ao segundo requisito, cumulativo, causal do indeferimento liminar, enunciando na alínea b) da conclusão I antecedente, temos que o prejuízo dos credores, tem que ser efectivo e comprovado, o que in casu não se verifica.
XIV. Tal ocorreria, se se verificasse, designadamente, uma diminuição do património da devedora, que não ocorre (ao invés, o imóvel da Recorrente apreendido e objecto de venda em liquidação encontra-se substancialmente valorizado como consequência da subida do valor dos preços de mercado em Vila Nova de Gaia e na zona, o que facto notório é), sendo que os rendimentos da Recorrente, provenientes da sua pensão de reforma ostentam incremento, como decorre do quadro que integra a página 10 do Relatório do AI.
XV. É aqui relevante concluir, como vem sufragando a doutrina e jurisprudência, que o legislador, ao exigir que o atraso na apresentação à insolvência tenha causado prejuízo aos credores, terá pretendido reportar-se a prejuízo que não decorra sempre e de forma quase automática daquele atraso e, portanto, o que não se mostra preenchido pelo mero vencimento de juros de mora.
XVI. O prejuízo em questão deve corresponder a uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a situação de insolvência, decorrente do aumento do passivo ou da diminuição do activo, que não ocorre, posto que, como já se concluiu . não foram contraídos novos e sucessivos créditos, antes ocorrendo cessão dos mesmos, o que tudo legitima a divergência do julgado.
XVII. Também e ainda no que concerne ao crédito da AT, invocado na douta decisão recorrida à laia de fundamento, posto que este goza de privilégio imobiliário especial nos termos dos artigos 122º, nº 1 do Código do IMI, 744º, nº 1 do Código Civil, art. 8º do D.L. nº 73/99 de 16 de Março e art. 97º, nº 1, al. a) e b) do CIRE, garantido pelo imóvel, estando excluído da exoneração do passivo restante, nunca poderia configurar prejuízo para tal credor; o que tudo importa a revogação do decidido, por erro de interpretação e aplicação do disposto na alínea g) do artigo 238º do CIRE.
XVIII. Ainda e sem prescindir, no que respeita ao último requisito da alínea g) do sobredito artigo 238º do CIRE enunciado em I antecedente, conclui-se que o mesmo não se pode ter por verificado, a impor revogação, não se mostrando sequer alegado na douta promoção do MP e na informação do AI, qualquer indício de culpa grave da devedora, antes constando de tais instrumentos o uniforme entendimento de que não ocorre nenhum facto suscetível de qualificar a insolvência como culposa, ainda que com apelo a presunções, antes como fortuita.
XIX. É ainda firme convicção da Recorrente que a questão da doação do direito de uso e habitação não permite a conclusão vertida na douta decisão recorrida, desde logo, porque não ficou demonstrada qualquer intenção da Recorrente de fugir com o seu património aos credores, também na consideração de que, quer na venda em processo executivo, quer na que ocorrerá no âmbito da liquidação nestes autos, os bens são vendidos expurgados de ónus e encargos.
XX. Por outro lado, ainda sem prescindir, encontra-se plenamente provado nos autos, pelo Relatório Clinico que constitui o documento nº 10 junto com a inicial, que a devedora padece de perturbação bipolar do tipo II, patente em depressões e desgovernos de conduta, doença incapacitante que lhe determina seguimento permanente em consulta de psiquiatria e desde 2002 lhe vem retirando, progressivamente, funções cognitivas e emocionais, que determinaram a sua reforma por invalidez e incapacidade declarada num grau de 75%, como decorre do atestado multiusos que constitui o documento nº 11 junto com a mesma peça e se consagra em d) e k) da factualidade assente.
XXI. Tal quadro de séria afectação das capacidades cognitivas e emocionias da Recorrente jamais permite qualquer imputação em termos de culpa, que a lei exige grave, quando se reporta à ignorância de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica, que eventualmente ocorresse.
XXII. Do cotejo de quanto se motivou no contexto e se verteu nas antecedebtes, conclui-se, assim, pela não verificação de qualquer dos requisitos que legitimam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, que a lei pretende cumulativos, a impor a revogação do decidido, por erro de interpretação e aplicação do disposto na alínea d), do nº 1 do artigo 238º do CIRE, com todas as legais consequências, com o que será feita justiça. “
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:
a) Em face da factualidade dada como provada a conduta da insolvente não integra a previsão legal da alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, e consequentemente, deverá ser deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
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Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e bem como aqueles da sentença, ora em crise.
"Compulsados os autos e do relatório apresentado pelo(a) senhor(a) Administrador(a) da Insolvência, constata-se que:
a) A insolvente casou com DD em ../../1984, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio em ../../2005, embora só se tenham separado de facto em 2012.
b) Deste casamento, existem quatro filhos, todos maiores e independentes.
c) Em agosto de 2014, a insolvente voltou novamente a casar, agora com CC.
d) A insolvente era empregada bancária, mas, desde outubro de 2011, que está reformada por invalidez permanente (atestado médico de incapacidade, com 75% de incapacidade).
e) Atualmente, AA aufere uma reforma mensal de 904,61€ (novecentos e quatro euros e sessenta e um cêntimos) acrescido de um complemento vitalício de 1.153,13€ (mil cento e cinquenta e três euros e treze cêntimos) e diuturnidades de 261,42€ (duzentos e sessenta e um euros e quarenta e dois cêntimos); sobre estes valores incide os descontos da tributação em vigor, neste caso IRS, e outros descontos para: o SAMS - Serviço de Assistência Médico-Social (1,5%), o Sindicato (1,0%) e o FSA - Fundo Sindical de Assistência (0,5%), resultando uma reforma mensal líquida de, aproximadamente, 2.090,00€ (dois mil e noventa euros).
f) O marido da insolvente, CC, atualmente, está desempregado por problemas de saúde, sofre de insuficiência vascular e coronária, para o qual foi submetido a intervenção cirúrgica, apresentando dificuldade de locomoção e incapacidade para o trabalho.
g) O agregado familiar da insolvente é constituído por dois elementos, a própria, e o marido, CC.
h) Vivem em habitação que é propriedade da insolvente por partilha subsequente a divórcio.
i) Em agosto de 2011, a insolvente fez a doação do direito de uso e habitação a três dos seus quatros filhos, são eles:
− EE;
− FF; e
− GG.
j) Existem algumas ações instauradas por credores, a correr contra a insolvente, conforme se discriminam:
(1) Processo de execução n.º 11152/12.7TBVNG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto, Juiz 1, cujo exequente é a A... - STC, S. A., com a quantia exequenda de 82.357,72€;
(2) Processo de execução n.º 11152/12.7TBVNG-A, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto, Juiz 1, cujo exequente é a Banco 3..., S. A., com a quantia exequenda de 36.054,37€;
(3) Processo de execução n.º 11152/12.7TBVNG-A, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto, Juiz 1, cujo exequente é o Banco 1..., S. A., com a quantia exequenda de 156.525,07€;
(4) Processo de execução n.º 11682/22.2T8PRT, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto, Juiz 4, cujo exequente é o Banco 1..., S. A., com a quantia exequenda de 15.161,67€;
(5) Processo de execução n.º 34892/11.3YYLSB, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de Lisboa, Juiz 3, cujo exequente é a B...., com a quantia exequenda de 91.106,00€;
e,
(6) Processos de execução fiscal números, ...46, ...78, ...72, ...59 e outros, cujo exequente é a Autoridade Tributária e Aduaneira, com a quantia exequenda de 15.274,67€.
k) Devido à sua depressão crónica, a insolvente realiza consultas quinzenais de psicoterapia de 70,00€ cada e consultas de psiquiatria bimensais de 100,00€ cada (no total de 190,00€ ao mês em consultas); do marido paga mensalmente 113,00€ de uma intervenção cirúrgica.
l) Em farmácia, em média, gasta 120,00€/mês, 70,00€ da insolvente e 50,00€ do marido.
m) As datas de inicio e de incumprimento dos créditos da insolvente são as seguintes:
n) Não há conhecimento de que a devedora tenha sido condenada pela prática de qualquer dos crimes descritos no art. 238º, nº 1, al. f) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.“.
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A factualidade dada como provada (conduta da insolvente) não integra a previsão legal da alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, e consequentemente, deverá ser deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Importa dar como estabelecido que a, ora apelante, em momento algum, do seu requerimento de recurso, conclusões e alegações de recurso, vem impugnar a decisão da matéria de facto.
Não afirma que pretende recorrer da decisão de facto.
Não afirma qual seja o facto que no seu entender foi mal julgado e que pretende ver alterado.
Muito menos, argui qual seja o meio probatório que o Tribunal a quo não ponderou, para que certo e determinado facto seja dado como provado, ou não provado.
Desta feita, o presente recurso versa somente sobre direito, sendo que a matéria de facto está incólume, não podendo este Tribunal de recurso dela conhecer. A apelante não concretiza qual o ponto de facto que visa atacar e consequentemente pretende ver modificado, são inconsequentes.
Sem que a apelante fixe o objecto do recurso de alteração da matéria de facto, é manifestamente inócua qualquer discussão e decisão quanto a tais argumentos.
“O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…)
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; “.
A exoneração do passivo restante é um instituto que é aplicável aos devedores singulares com o fito de dar uma oportunidade de começar de novo.
Por via, deste instituto, os credores do insolvente não obtêm pagamento integral dos seus créditos do processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento – artigo 235.º do CIRE.
“Para PAULO DA MOTA PINTO, na exoneração do passivo restante, há uma "colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro [...] da proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)", sendo a solução alcançada um sacrifício não desproporcionado do interesse do credor na satisfação do respetivo crédito - PINTO, Paulo da Mota, Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade, in: "III Congresso de Direito da Insolvência", Almedina, Coimbra, 2015, pp. 187 e 194.”, citado por MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed., pág. 400, anotação 1271.
De acordo com a citada autora, somente nos casos de comportamento que mereça uma nova oportunidade é de aplicar este instituto, pois em caso contrário deverá tal pedido ser objecto de indeferimento liminar – artigo 237.º, alínea a) do CIRE.
Os casos previstos no artigo 238.º do CIRE são taxativos – assim Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra 1034/11.5T2AVR-C.C1, de 12.06.2012, relatado pelo Des. ARTUR DIAS e Ac Tribunal da Relação de Coimbra 6102/18.0T8CBR-G.C1, de 22.06.2020, relatado pela Des. MARIA JOÃO AREIAS
A este propósito, importa reter que as pessoas singulares apenas estão obrigadas a apresentar-se à insolvência, no prazo de trinta dias após o conhecimento da situação de insolvência, na hipótese de serem titulares de uma empresa (cfr. artigos 18.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE).
Nos restantes casos, as pessoas singulares não são obrigadas a apresentar-se à insolvência.
Contudo, e, não obstante, não se encontrarem obrigadas a essa apresentação, certo é que devem apresentar-se à insolvência, no prazo de seis meses a contar da situação de insolvência, caso pretendam beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante.
A não observância do prazo de seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência por pessoa singular não titular de empresa comercial, para fundamentar o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, tem que resultar clara dos autos e ser cumulativa com a evidência de que o atraso na apresentação prejudicou os interesses dos credores, sabendo o insolvente ou não podendo ignorar, sem culpa grave, que inexistia qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica.
Nos termos do Ac. da Relação de Coimbra 602/09.0TJCBR.C1, de 26.05.09, relatado pelo Des. ISAÍAS PÁDUA, in dgsi.pt onde se determinou que “[o] incumprimento do dever de apresentação à insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência não retira ao devedor legitimidade para se apresentar em data posterior, não sendo de caducidade aquele prazo. Por maioria de razão, o devedor pessoa singular que não seja titular de uma empresa na data em que incorra em situação de insolvência, sobre quem não recai aquele dever de apresentação, mantém legitimidade para requerer a declaração da sua insolvência a todo o tempo, sem sujeição a qualquer prazo. A apresentação à insolvência configura-se, pois, não propriamente como um direito cujo não exercício em determinado prazo – nomeadamente no de 60 dias previsto no n.º 1, do artigo 18.º ou no de seis meses previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º, ambos do C.I.R.E. – determine a sua caducidade, mas antes, para todos os possíveis sujeitos passivos da declaração de insolvência (artigo 2.º, do C.I.R.E.), com exceção das pessoas singulares não titulares de empresa na data da situação de insolvência, como um dever, cujo não cumprimento atempado acarreta sanções e, para os devedores pessoas singulares não titulares de empresa na data da situação de insolvência, como um ónus cuja inobservância no prazo previsto no artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do C.I.R.E., reunidos os demais requisitos ali exigidos, importa a perda do eventual benefício da exoneração do passivo restante”.
Escreve MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, in ob. cit, pág. 402 e 403, é fundamento para indeferimento liminar da exoneração do passivo restante “a violação do dever de apresentação à insolvência ou, não existindo esse dever, a falta de apresentação à insolvência nos 6 meses verificação da situação de insolvência, com prejuízo, em qualquer dos casos, para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo, em qualquer dos casos, para os credores (nota 1277 – O preenchimento deste requisito (prejuízo para os credores) tem dividido a jurisprudência. Para um setor da jurisprudência presumem-se os prejuízos para os credores (cabendo ao devedor insolvente a alegação e prova que da apresentação tardia não resultou qualquer prejuízo para os credores), para outro setor, os prejuízos têm que ser provados. Seguindo a primeira orientação, de acordo com o Ac. Rel. Guim, de 13-10-2011 (RAQUEL REGO) "A não apresentação atempada à insolvência torna evidente o prejuízo para os credores, pelo avolumar de seus créditos face ao vencimento de juros e pelo consequente avolumar do passivo global do insolvente (o que dificulta o pagamento dos créditos)". Neste sentido, também, entre outros, o Ac. Rel. Lx, de 15-12-2011 (AGUIAR PEREIRA), o Ac. Rel. Co., de 17-12-2008 (GREGÓRIO SILVA JESUS) e os Acs. Rel. Po, de 9-12-2008 (GUERRA BANHA) e de 12-05-2009 (HENRIQUE ARAÚJO) Perfilhando a segunda orientação, veja-se o Ac. STJ, de 24-01-2012 (FONSECA RAMOS): "Os requisitos tempestividade e prejuízo para os credores são autónomos, já que a apresentação do insolvente pode não causar prejuízos sensíveis aos credores, como está implícito na al. d), mal se compreendendo que prejuízos insignificantes fossem motivo suficiente para a recusa liminar do pedido, por esse prejuízo ser de presumir em virtude da pretensão do insolvente ser requerida fora do prazo legal (…) A apresentação tardia do insolvente/requerente da exoneração do passivo restante, não constitui, por si só, presunção de prejuízo para os credores -nos termos do art. 238, n. 1. d) do CIRE -pelo facto de, entretanto, se terem acumulado juros de mora-competindo aos credores do insolvente e ao administrador da insolvência o ónus de prova desse efetivo prejuízo, que se não presume". Neste sentido, também, veja-se, entre outros, Acs. STJ, de 21-10-2010 (OLIVEIRA VASCONCELOS), de 22-03-2011 (MARTINS DE SOUSA), de 6-07-2011 (FERNANDES DO VALE), de 3-11-2011 (MARIA DOS PRAZERES BELEZA), 24-01-2012 (FONSECA RAMOS), de 15-03-2012 (FERNANDES DO VALE), de 21-03-2012 (João TRINDADE), de 19-04-2012 (OLIVEIRA VASCONCELOS), de 15-05-2012 (SALRETA PEREIRA), 19- 06-2012 (HELDER ROQUE), 21-01-2014 (PAULO SA), os Acs, Rel. Po., de 20-11-2008 (TELES DE MENEZES) de 21-10-2010 (AMARAL FERREIRA), Acs. Rel. Lx., de 14-05-2009 (NELSON BORGES CARNEIRO), de 20-10-2011 (LUIS CORREIA DE MENDONÇA), Ac. Rel. Co., de 13-09-2011 (CARLOS GIL) No sentido de que "a obrigação de aprovisionamento do crédito incobrado pelo Banco de Portugal, não constitui em si mesma um prejuízo" para efeitos deste preceito, veja-se o Ac. Rel. Po, de 18-11-2013 (JOSÉ EUSEBIO ALMEIDA). Considerando que o atraso na apresentação permite ao devedor alienar um imóvel seu a preço reduzido a uma sociedade com sede na amorada pessoal e da qual vem a ser nomeado gerente, veja-se o Ac. Rel. Év., de 28-09-2017 (MÁRIO COELHO).)), e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não haver qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”, realçado nosso.
Por sua vez ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, in Um Curso de Direito da Insolvência, Vol I, 4ª ed, pág.617 e 618: “Também é fundamento de indeferimento liminar o incumprimento do dever de apresentação à insolvência se dai resultou prejuízo para os credores e sabendo o devedor, ou não podendo ignorar sem culpa grave, que não existia «qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica». Se o devedor não está sujeito ao dever de apresentação à insolvência, ainda assim será indeferido liminarmente o pedido de exoneração se não se apresentou à insolvência nos seis meses após a ocorrência da situação de insolvência desde que, mais uma vez, disso tenha resultado prejuízo para os credores e o devedor soubesse ou não pudesse ignorar, sem culpa grave, que não existia «qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica» (al. d)). Em qualquer das duas hipóteses deve entender-se que o prejuízo para os credores tem de ser provado, não bastando o mero decurso do tempo. A lei exige uma relação causal entre o comportamento do devedor e o prejuízo para os credores. Para que se possa concluir pela existência desse prejuízo, será necessário fazer a comparação com o que seria a sua previsível situação se o devedor tivesse cumprido o dever de apresentação ou, não existindo esse dever, se tivesse apresentado nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.”
CATARINA SERRA, in Lições de Direito da Insolvência, 2ª ed., pág. 617 a 619 sustenta: “A jurisprudência debate-se principalmente com o disposto no art. 238., n. 1, al. d). Segundo a lei, para haver indeferimento liminar, é preciso que se verifiquem cumulativamente três requisitos negativos: a sua não apresentação atempada à insolvência (tendo ou não o devedor a obrigação de se apresentar), o prejuízo para os credores e o conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica. O primeiro requisito não suscita especiais problemas. Mas quando pode considerar-se que há prejuízo para os credores?
A jurisprudência tem considerado que é possível presumir o prejuízo sempre que o devedor não se apresente à insolvência sendo manifesto que não tem bens susceptíveis de satisfazer os créditos, já que a escassez de bens permite antever a iminente dissipação do património e o subsequente desrespeito pela regra da igualdade entre os credores. O entendimento está de harmonia com a ideia de que o principio da igualdade é exclusivamente aplicável no processo de insolvência. Com efeito, antes de se apresentar à insolvência, o devedor não está em condições de garantir o respeito pelo principio da igualdade (em rigor, nem sequer tem a obrigação de respeitá-lo); mais do que provável, o prejuízo para os credores é, portanto, inevitável e, logo, presumível.
O problema é que, entendido assim, este segundo requisito dilui-se no primeiro e fica esvaziado de efeito útil. O prejuízo para os credores passa a consubstanciar um efeito necessário da não apresentação atempada à insolvência. É verdade que o atraso na apresentação à insolvência conduz invariavelmente a um conjunto de consequências nefastas para os credores: o activo reduz-se por força das execuções singulares dos credores e, em princípio, desvaloriza-se com o decurso do tempo; em contrapartida, o passivo aumenta, seja em virtude da contracção de novas dívidas, seja do curso de juros, seja da constituição do devedor na obrigação de pagamento das custas judiciais que fiquem a seu cargo como parte vencida. Mas se se considerar que isso é suficiente para se configurar (mediante o funcionamento da presunção ou a produção de prova) o prejuízo para os credores, não se vê para que serviria a alusão (autónoma) da norma a ele?
No que toca ao terceiro requisito - o conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica - também existem dúvidas. Na tentativa de densificar o conceito, já se disse, por exemplo que a inexistência de perspectiva séria é susceptível de resultar da cessação da actividade económica, da situação de desemprego ou da inexistência de património por parte do devedor, mas isto não fornece uma orientação geral.
Apesar de todos os esforços, as fronteiras entre os requisitos continuam incertas. Como é visível, dois dos requisitos a inexistência de perspectiva séria de melhoria da situação económica e o prejuízo para os credores - são geralmente reconduzidos à (ou remetidos para a) inexistência ou insuficiência de bens. Por seu turno, e também segundo a opinião geral, a não apresentação à insolvência por parte de um devedor que esteja insolvente redunda sempre em prejuízo para os credores.
Talvez a solução seja mais simples do que à primeira vista parece. Ao que tudo indica depois de uma leitura atenta, para que a norma se aplique, deverá exigir-se, desde logo, que se verifique um nexo de causalidade entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores. O conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica deverá ser visto, por sua vez, como a circunstância que faz com que os outros dois factos assumam relevância qualificada. A força de tanto se esclarecer que os requisitos eram cumulativos, insistiu-se em configurá-los como requisitos autónomos. Mas a verdade é que, sem prejuízo da sua autonomia, é preciso uma leitura articulada dos requisitos.”, realçado nosso.
Em síntese a decisão do Tribunal a quo refere ter a insolvente incumprido o dever de se apresentar à insolvência em devido tempo e com tal actuação/omissão terem prejudicado os credores.
Vejamos então da bondade da decisão recorrida.
O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a sua decisão (iremos transcrever os trechos mais significativos):
i) “Em causa para apreciação, está a eventual verificação da alínea d) cujos requisitos cumulativos são os seguintes:
a) ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência;
b) ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores;
c) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
A primeira questão a verificar é a de saber se a devedora deixou de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência.
O senhor Administrador da Insolvência aponta para o ano de 2008 o momento em que a devedora se encontrou incapacitada de satisfazer a generalidade das suas obrigações vencidas.
Atenta a matéria de facto assente, verificamos que a devedora celebrou contratos de crédito com:
a) A... – STC, S. A. em 02.10.2009;
b) C..., S.A. em 19.03.2008;
c) D..., Unipessoal, Lda. em 10.07.2007;
d) Banco 4..., S.A. em 25.08.2008;
e) E... - STC, S. A. em 13.11.2008, 31.12.2009, 01.10.2008.
Entrou em incumprimento destes contratos em:
a) 02.02.2011;
b) –
c) 15.09.2011
d) 17.05.2012
e) 13.11.2010; 31.10.2011; 25.10.2010.
Acresce que celebrou outro contrato de crédito com a E... - STC, S. A. em 31.01.2011 que entrou em incumprimento logo em 19.02.2011.
De recordar que a devedora tinha naquela altura pendentes outros dois contratos de crédito celebrados com o Banco 1..., S. A. em 17.07.1997 e 14.07.1999.
Ora, esta quantidade e sucessão de celebração de contratos de crédito indiciam, com enorme probabilidade, que a insolvente já se encontrava incapacitada de satisfazer a generalidade das suas obrigações vencidas, tendo optado por uma espécie de “fuga para a frente”, celebrando novos contratos de crédito para pagar outros contratos de crédito.
E essa opção tanto foi errada quanto se verificou que, pouco depois, a devedora deixou de cumprir com esses contratos.
É de salientar as datas dos processos executivos em que foi executada e que estão descritos na alínea j) da matéria de facto assente.
Só se apresentou à insolvência a 22.12.2023, muito depois de se ter tornado insolvente.
Mostra-se, assim, preenchido o pressuposto supra referido como alínea a), pois a insolvente AA não se apresentou à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência.“, realçado nosso.
Quanto ao preenchimento do primeiro requisito, a apelante/insolvente veio sustentar em sentido diverso e oposto ao que chegou a primeira instância.
O Tribunal a quo reporta a data da situação de insolvência da apelante para data “próxima” de meados do ano de 2012, tendo-se apresentado à insolvência quase 11 anos depois, finais do ano transacto.
Por sua vez, a apelante alega que a sua resolução de se apresentar à insolvência nesta data se ficou a dever à decisão do Agente de Execução no processo de execução de vender a casa morada de família por um valor substancialmente inferior ao seu valor real. Que a sua situação financeira tem-se mantido estável em termos de rendimento – aufere pensão. Foi a dita situação que alterou significativamente a possibilidade de poder satisfazer os créditos existentes.
O Tribunal a quo conclui, dos factos dados como provados, que a insolvente já estaria nessa situação, desde pelo menos, meados do ano de 2010, e que a mesma deveria ter-se apresentado à insolvência em tal data e não mais de 13 anos, depois.
Não podemos acompanhar, quer o raciocínio, e muito menos, quer as conclusões de facto vertidos na sentença.
De acordo com os elementos dos autos, designadamente relatórios do Administrador de Insolvência, a insolvente tem como património a casa onde vive, desde pelo menos data do divórcio do seu primeiro casamento – 2005. Tal bem tem o valor patrimonial de 269.390,63 €. De acordo com o relatório do Administrador de Insolvência a insolvente afirma que terá o valor comercial de 500.000,00 €, mas, o Administrador de Insolvência entende que o imóvel não tem valor (nulo) por a insolvente em Agosto de 2011 ter doado o uso e habitação a 3 dos seus 4 filhos.
Os factos dizem-nos que a insolvente actualmente tem um passivo no valor de 517.487,56 €, sendo 337.022,10 € de capital e 180.465,46€ de juros.
De acordo como o relatório do Administrador de Insolvência “Face ao valor das dividas da insolvente e ao valor das despesas mensais, a insolvente deixou de honrar as suas obrigações e a sua situação tem vindo a agravar-se com o vencimento sucessivo destas, às quais são acrescidos os juros de mora.”
É o mesmo Administrador de Insolvência que afirma (em complemento ao seu relatório) que a insolvente está na situação de incumprimento das suas obrigações desde o ano de 2008. Então, surge a pergunta: como explicar que durante 16 anos nenhum dos seus credores, sendo um deles a sua anterior entidade patronal, banco, um dos principais credores, nunca tenha pedido a sua insolvência? Como logrou a insolvente sobreviver financeiramente a 16 anos de situação de impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, sem que nenhum dos credores tenha formulado pedido de insolvência?
A insolvente celebrou o último contrato de crédito no ano de 2009. A grande maioria dos créditos tem como garantia hipoteca sobre a casa morada de família.
Os factos e a normalidade da vida, judiciária, dizem-nos que os contratos de crédito, caso ocorra incumprimento, acarreta um valor de juros significativo, em proporção ao capital em dívida, como é o caso da insolvente – sensivelmente metade do valor do capital.
Assim, não podemos concluir tal como o fez a primeira instância – ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência –, pelo que não se pode declarar como verificado o primeiro requisito.
Deveria estar demonstrado nestes autos que a insolvente desde uma data específica e concreta, há mais de seis meses, estava já na situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações, de modo a que os seus credores não vissem satisfeitos os seus créditos.
ii) Apreciemos o requisito seguinte – ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores.
A sentença afirma o seguinte:
“Esta omissão causou prejuízo aos credores, pois se o tivesse feito nos seis meses seguintes à verificação da insolvência não teria celebrado os últimos desses créditos, nem teria certamente as dividas à Autoridade Tributária (pelo menos as de IMI, pois o seu imóvel teria sido vendido no âmbito de uma liquidação do activo) e não teria prejudicado esses credores com a criação dessas dividas.
Está, pois, também preenchida a alínea b) – causou, com o atraso, prejuízo aos credores.“
Dos factos provados e dos demais elementos dos autos, a insolvente contraiu crédito pela última vez a 2009. Como se aludiu, a grande maioria dos credores tem a seu favor, como garantia do seu crédito, a hipoteca sobre o único imóvel. Por sua vez, como refere e bem a insolvente, o crédito da AT “goza de privilégio imobiliário especial nos termos dos artigos 122º, nº 1 do Código do IMI, 744º, nº 1 do Código Civil, art. 8º do D.L. nº 73/99 de 16 de Março e art. 97º, nº 1, al. a) e b) do CIRE, garantido pelo imóvel, estando excluído da exoneração do passivo restante, nunca poderia configurar prejuízo para tal credor”.
Tanto assim, que resulta dos autos que os credores optaram por apresentar e formular pedido de execução singular contra a ora insolvente. O que permite concluir por os mesmos entenderem que o património da insolvente era suficiente para satisfazer as responsabilidades.
Por outra via, nada ficou demonstrado quanto ao requisito do prejuízo dos credores e a ausência de perspectiva séria de melhoria da sua situação económica. Não foi demonstrado qual tenha sido o comportamento da insolvente que possa preencher tal requisito. Não está alegado e nem demonstrado que as responsabilidades da insolvente se tenham acumulado durante tal período de tempo – 13 anos.
iii) Por fim, quanto ao terceiro requisito – sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
“Finalmente, atentas as regras de experiência comum, considerando critérios de razoabilidade e lógica, concluímos que não podia a devedora deixar de saber não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica, pois era conhecedora do estado das suas finanças.
E um indício forte de que assim era está no facto de, em agosto de 2011, a insolvente ter feito a doação do direito de uso e habitação a três dos seus quatros filhos. É das regras de experiência comum que uma das formas escolhidas pelos devedores para fugir com o seu património aos seus credores é procederem à doação do direito de uso e habitação aos seus filhos.
São situações que verificamos com enorme frequência nos tribunais.
Não surgiu qualquer justificação válida para aquela doação, pelo que concluímos que a mesma ocorreu para tentar pôr a salvo património da devedora dos seus credores, o que permite concluir que a insolvente sabia perfeitamente da gravidade da sua situação financeira. “
Nos autos, não está provada factualidade que permita concluir por esta concreta insolvente sabendo estar em situação de insolvência não se tenha apresentado no prazo de seis meses à insolvência. Com o devido respeito pelo decidido pela primeira instância, não se sabe qual era a situação financeira e económica da insolvente no momento que a sentença entendeu que estava já em situação de insolvência – quais os créditos vencidos e incumpridos, e qual o património.
E muito menos, que a insolvente consciente de tal situação, o fez prejudicando os seus credores. Não está demonstrado nem alegado que a insolvente tenha contraído novas responsabilidades.
Em face de todo o exposto, a pretensão da apelante terá vencimento, e em consequência terá que revogar o decidido, devendo ser proferida decisão de admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante.
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Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o recurso, julgando-se procedente a apelação, e em consequência deverá ser proferida decisão de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Sem custas, por não serem devidas (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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Porto, 22 de Outubro de 2024
Alberto Taveira
Rodrigues Pires
Maria da Luz Seabra
[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.