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COMBATE À CRIMINALIDADE
DECLARAÇÃO DE PERDA DE BENS/VANTAGENS
TERCEIROS DE BOA-FÉ
RESTITUIÇÃO DOS BENS ÀS VÍTIMAS
BITCOINS
Sumário
I. O combate à criminalidade não pode, nem deve centrar-se apenas na reacção penal sobre a sanção aplicar ao arguido, desprezando a perda ou confisco quer dos instrumentos com que foi praticado o crime quer dos bens ou produtos gerados pela actividade criminosa. II. Só através de um combate efectivo que ataque os benefícios retirados do crime poderá demonstrar que este não compensa e evitará o investimento de ganhos ilegais no cometimento de novos crimes, propiciando, ao invés, a sua aplicação na indemnização das vítimas e no apetrechamento das instituições de combate ao crime e reduzindo os riscos de concorrência desleal no mercado, resultante dos investimentos de lucros ilícitos nas actividades empresariais. III. No caso, apesar de o inquérito ter sido arquivado contra o arguido, o qual se dedicava à compra profissional de bitcoins, e no âmbito do qual lhe haviam sido apreendidas importâncias monetárias provenientes de um ilícito, nada obsta à sua restituição às vítimas, já que nenhuma delas pretendeu celebrar qualquer contracto com o arguido, por terem sido alvo de uma burla informática. IV. Estas vítimas viram, em primeira-mão, violado o seu direito de propriedade e, por isso, apresentaram queixa, não podendo, o eventual direito do arguido, também ele vítima de tal burla, ser fonte aquisitiva de direitos, situação que, essa sim, constituiria uma clara violação, do disposto no art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa. V. Se o arguido se sente prejudicado deverá, à semelhança daquelas vítimas, fazer valer os seus direitos junto das autoridades competentes, socorrendo-se das regras substantivas e processuais aplicáveis ao caso. VI. Desta feita, se as importâncias monetárias com que beneficiou não lhe [arguido] pertenciam, mas sim às vítimas, alheias à prática do crime, e não é perigoso, não devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mas sim restituídas aos seus proprietários, desde que não tenham contribuído, de forma censurável, para a sua utilização ou produção ou do facto não tenham retirado vantagens.
Texto Integral
= Decisão sumária =
I. Relatório
Nos presentes autos de inquérito n.º 1396/19.6TELSB-B do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 7, foi proferida decisão proferida, que, deferindo a promoção do Ministério Publico após o despacho de arquivamento do inquérito, determinou o levantamento da apreensão do saldo das contas bancárias tituladas pelo arguido AA e a devolução das importâncias monetárias de 1.312,72€ (...), 2.000,00€ (banco ...), 1.750,00€ e 1.800,00€ (banco ...) aos ofendidos BB, CC, DD e EE, respectivamente, dado que tais quantias respeitam a transferências relacionadas com transacção de bitcoins efectuadas para as contas do arguido AA, com origem ilícita, embora não da sua [do arguido] autoria.
Para tanto, tal decisão fundamenta-se no facto de os autos indiciarem a prática de oito crimes de burla informática, p. e p. pelo art.º 221.º n.º 1 do Código Penal (doravante CP), um crime de burla informática agravada, p. e p. pelo art.º 221.º n.ºs 1 e 5 al. a) do CP, oito crimes de falsidade informática, p. e p. pelo art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 109/2009, de 15.09 e de um crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368.º n.ºs 1 als. b) e c), 3 e 4 do CP, tratando-se de estruturas de crime organizado com origem no estrangeiro, mediante utilização da internet.
E não obstante o inquérito tenha sido arquivado por insuficiência de indícios quanto aos autores materiais dos factos, foi considerado que, em face aos indícios recolhidos quanto à propriedade das quantias apreendidas, seria de determinar a sua devolução às vítimas supra identificadas que não compraram bitcoins mas foram induzidas a transferir dinheiro para o arguido que recebeu nas suas contas produto de ilícitos, sendo que os seus saldos representam um empobrecimento injustificado daquelas e o inerente enriquecimento injustificado do arguido com quem nenhuma das vítimas pretendeu celebrar qualquer contrato, dado que foram alvo de uma burla informática.
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Inconformado com a sobredita decisão veio o arguido AA interpôr recurso formulando as seguintes conclusões [transcritas]: «I. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, parecendo colocar em causa a inocência do recorrente, a qual foi claramente enunciado no despacho de arquivamento. II. O Tribunal a quo deu guarida à promoção do Ministério Público no sentido de ordenar a devolução dos montantes recebidos pelo apelante pela venda dos criptoativos (sua propriedade) de volta aos compradores, mas sem a consequente condição de devolução dos criptoativos do apelante. lll. Está mais que claro nos autos que o arguido vendeu criptoativos a terceiros, na mais lídima boa fé, sem saber que tais transferências tinham origem em atividade criminosa. IV. Todavia, o Tribunal a quo determinou, com o despacho recorrido, que o arguido ficasse sem o dinheiro em troca do qual vendeu as suas Bitcoins, ficando duplamente prejudicado — sem Bitcoins e sem o preço pela sua venda! V. É notável que o Ministério Público tenha afirmado que o arguido não praticou qualquer crime, mas o Tribunal a quo determinou a devolução de quantias em dinheiro, mas não a devolução das próprias bitcoins. VI. Se o arguido não praticou qualquer crime, como pode então exigir-se a devolução de valores que foram obtidos pela venda de bitcoins sem que estas sejam restituídas, para repor o status quo ante? VII.Além disso, o Tribunal a quo fere o princípio do acusatório quando pretende indiciar que o recorrente se pretende fazer passar por “mero vendedor de bitcoins”, quando foi isso que ficou atestado no despacho de arquivamento. VIII. Ora, este posicionamento secundado pelo Tribunal a quo, viola, desde logo, o direito de propriedade do recorrente às quantias e depositadas nas suas contas bancárias e que dizem respeito aos criptoativos que vendeu em plataforma eletrônica apta para o efeito, verdadeiro direito fundamental de natureza análoga aos DLG's, consagrado no n.º 1 do art.º 62.º da CRP, violação essa que se consuma numa vertente dúplice, no caso em análise. IX. Primeiro, porque o apelante não teve qualquer participação criminosa nos factos em apreço, mas, mesmo assim, determina-se que o dinheiro seja devolvido, retirando-o da esfera de propriedade do apelante, sem qualquer contrapartida, deixando-o pior do que o momento que antecedeu à venda das Bitcoins. X. Em segundo lugar, mesmo que se admitisse a devolução do dinheiro - o que não se admite e só por mero dever de patrocínio se equaciona, sem se conceder - a consequência é que o apelante iria ficar, também, sem as Bitcoins que vendeu. XI. A verdadeira vítima, no seio de tudo isto, é o apelante, que fica sem o criptoativo que vendeu e sem o dinheiro que recebeu pela venda. XII. E o Tribunal a quo permite esta injustiça material prodigiosa, o que ainda é mais agravado pelo facto de querer indiciar que o recorrente “procurar configurar a sua atuação como sendo um mero vendedor de bitcoins”, cruzando a linha vermelha do princípio do acusatório, antevendo o desejo de colocar em causa o despacho de arquivamento. XIII. De notar que o apelante não retirou "benefícios" do recebimento das referidas quantias que foram depositadas nas suas contas bancárias, pois para esse recebimento cedeu algo, de igual ou superior valor - as suas Bitcoins! XIV. Consequentemente, o Tribunal a quo, na interpretação que deu ao disposto nos arts. 186.º, n.º 1 do CPP e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 109.º do CP, violou o direito fundamental à propriedade do arguido sobre as referidas quantias, consagrada nos n.ºs 1 e 2 do art.º 62.º da CRP, o que constitui uma inconstitucionalidade material, a qual desde já se argui, para os devidos e legais efeitos. XV. Em concomitância, na interpretação que deu ao disposto nos arts. 186.º, n.º 1 do CPP e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 109.º do CP, o Tribunal a quo violou o disposto no n.º 2 do art.º 18.º da Constituição da República portuguesa, o que constitui uma inconstitucionalidade material que desde já se argui para os devidos e legais efeitos. XVI. Face a tudo o exposto, o que o Tribunal a quo deveria ter feito era não ter permitido a devolução das quantias depositadas nas contas bancárias do apelante, enquanto não recebesse também de volta as Bitcoins que vendeu, sob pena da violação do seu direito à propriedade consagrado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 62.º da CRP e, bem assim do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º do mesmo diploma magno e do princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do art.º 18.º do mesmo diploma magno. XVII. O que o Tribunal a quo permitiu, nos autos recorridos, foi uma autêntica “expropriação” sem qualquer contrapartida, provocando um enriquecimento sem causa às "vítimas" que têm as Bitcoins em seu poder e, ainda, ficarão com o equivalente pecuniário ao valor desses criptoativos. XVIII. Ficam as vítimas duplamente beneficiadas e o apelante, duplamente prejudicado, sem tutela, sem respeito pelo Estado, apesar de ter atuado à luz preclara da licitude. XIX. Andou mal o Tribunal a quo tendo violado o disposto n.º 2 do art.º 18.º, n.º 1 do art.º 32.º e n.ºs 1 e 2 do art.º 62.º da CRP e, bem assim, o n.º 1 do art.º 186.º do CPP e n.ºs 1 e 2 do art.º 109 do Código Penal. NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, REVOGANDO-SE O DESPACHO RECORRIDO, COM TODAS AS CONSEQUÉNCIAS LEGAIS.»
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O Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu, pugnando pela sua improcedência, formulando as seguintes conclusões [transcritas]: «3.1 - Em 16/05/2023 o MP proferiu despacho de arquivamento por não se ter apurado a identidade dos autores dos factos suscetíveis de integrar a prática, em concurso efetivo, de 8 (oito) crimes de burla informática, p.p., pelo art.º 221.º, n.º 1, do Código Penal, 1 (um) crime de burla informática agravada, p.p., pelo art.º 221.º, n.ºs 1 e 5, al. a), do Código Penal, 8 (oito) crimes de falsidade informática, p.p., pelo art.º 3.º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e crime de branqueamento, p.p., pelo art.º 368.º, nº 1, als. b) e c), e n.ºs 3 e 4, do Código Penal. 3.2 - Aí se apurou que estamos perante estruturas de crime organizado com origem no estrangeiro que aproveitam a Internet para praticar crimes. 3.3 Num caso (contacto por falso funcionário da Microsotf), trata-se de um modo operandi massificado, isto é, em que são abordadas centenas de pessoas, na esperança de que alguma se deixe enganar e, consequentemente, transfira dinheiro para o agente do crime e assim enriqueça ilegitimamente. Foi o que sucedeu com os ofendidos FF, GG, HH e II 3.4 Noutro caso (falso vendedor), trata-se de pessoas que surgem no mercado digital, como vendedor de bens materiais ou de produtos financeiros, mas que nada têm para vender, o objetivo é apenas o de obter dinheiro de potenciais clientes e assim enriquecerem ilegitimamente. Foi o que sucedeu com os ofendidos JJ e EE e eventualmente com KK e LL 3.5 - Relativamente ao arguido considerou-se que o mesmo nada tem a ver com a execução material dos factos, isto é, com a conduta enganadora que levou à defraudação do património das vítimas. As vítimas, ao realizarem as transferências para as contas do arguido AA, estavam, na prática, a comprar Bitcoins para os agentes do crime. Também se considerou que não existiam nos autos elementos que nos permitissem dizer que o arguido tivesse algum tipo de conivência com os agentes dos crimes (comparticipação, cumplicidade), nem que soubesse ou devesse saber que os compradores dos Bitcoins estavam a utilizar dinheiro obtido de modo fraudulento e que essa compra traduzia um enriquecimento ilegítimo à custa do património alheio (branqueamento, recetação). 3.6 - Todavia, há indícios bastantes nos autos de que o dinheiro que arguido recebeu nas contas por si tituladas eram produto do crime. As vítimas foram enganadas e levadas a transferir dinheiro para as contas tituladas pelo arguido AA. 3.7 - O agente do crime (no caso do falso funcionário da Microsoft), por via do erro, acede ao computador e aos dados da conta da vítima e transfere o dinheiro para a conta do arguido (phishing). O agente do crime (no caso de venda online fraudulenta), por via do erro, leva a vítima a transferir dinheiro para a conta do arguido, cujo IBAN lhe é fornecido para fins de pagamento do suposto preço de compra. O dinheiro que serviu para o criminoso comprar bitcoins ao arguido, não lhe pertencia, antes pertencia às vítimas. 3.8 - Ora, o crime não pode ser fonte aquisitiva de direitos. A compra e venda de BTC está ferida de nulidade. Ademais, tratando-se de uma “aquisição” assente em crime, sempre a mesma estaria ferida de nulidade por ser contrária à lei (art.º 280.º do Código Civil). 3.9 - Não foi o titular da conta de onde saiu o dinheiro para compra de Bitcoíns que negociou com o arguido. Foi o criminoso sob a capa da vítima. 3.10 - No despacho de arquivamento não se apurou que o arguido fosse convivente com os agentes dos crimes (comparticipação, cumplicidade), nem que soubesse ou devesse saber que os compradores dos Bitcoins estavam a utilizar dinheiro obtido de modo fraudulento e que essa compra traduzia um enriquecimento ilegítimo à custa do património alheio (crimes de branqueamento, recetação dolosa ou negligente, auxílio material ao criminoso). 3.11 - Ora, sendo assim, pergunta-se: não havia razão para a declaração de perda, como alega o recorrente? 3.12 - A perda é decretada contra os agentes do crime (autores e comparticipantes, não contra terceiros), salvo as exceções do art.º 111.º do Código Penal, isto é, quando essa pessoa, concorre de forma censurável para a utilização do bem ou vantagem ou tira proveito da mesma, no fundo, a pessoa conhece ou deve conhecer a origem ilícita da vantagem - assim, só o terceiro de boa fé é protegido (o terceiro que desconhece a proveniência ilícita do bem e em que nem lhe é exigível que conhecesse, ou seja, cuja conduta não é censurável). 3.13 - Qual a posição do arguido, após o arquivamento? Atenta a prova produzida não podemos dizer que foi autor ou comparticipante no crime (burla informática; falsidade informática) que levou à transferência de dinheiro das contas bancárias das vítimas para as contas bancárias do arguido, ou associado a algum crime associado ao aproveitamento da vantagem (branqueamento, recetação). Assim, ao arguido seria, na prática, um terceiro, e a decisão teria que ter como critério decisório o disposto no art.º 111.º do Código Penal. 3.14 - De acordo com o art.º 111.º do Código Penal, é terceiro quem não é agente nem beneficiário. Sucede que o arguido e' beneficiário do crime, estando a sua conduta excluída do disposto no art.º 111.º do Código Penal. 3.15 - Qualquer vantagem económica que ingresse diretamente no património de pessoa que não seja o agente, em resultado da prática do facto ilícito típico, é declarada perdida, nos termos do art.º 110.º, n.º 1, al., b) do Código Penal. 3.16 - É precisamente o caso dos autos - o dinheiro que o arguido recebeu diretamente nas suas contas bancárias constitui vantagem económica (ainda que o seu lucro se restrinja ao preço da intermediação), resultante da prática do facto ilícito-típico, não importando que não haja indícios de que tenha sido autor ou comparticipante do facto ou que possa estar ligado de outra forma ao mesmo. 3.17 - O arguido recebeu nas suas contas um total de 29.927,72€ com dinheiro que é produto do crime, o que se pretende devolver é apenas 7.893,406. 3.18 - Se o arguido também teve prejuízo deve ressarcir-se junto do criminoso, isto é, da pessoa que lhe comprou bítcoins, tanto mais que não adotou as devidas cautelas, permitido que o criminoso se passasse pelas vítimas e usasse o seu dinheiro. O risco da atividade corre por sua conta. 3.19 - Ainda que se entendesse que o arguido é, na prática, um terceiro, o mesmo retirou benefícios do facto (art.º 111.º do Código Penal). Donde, é de decretar a perda. 3.20 - Ou, ainda que se entenda que a perda implica sempre conduta censurável do terceiro, o arguido, ao exercer uma atividade de intermediação financeira, sem estar habilitado, e ao não cumprir as regras de prevenção do branqueamento (Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto), potencia, de modo censurável, o risco da conduta. Pelo exposto, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.»
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A Digna Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer «secundando a muito bem fundamentada posição expressa pelo Ministério Público em sede de resposta, emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente e o despacho recorrido mantido».
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Após o exame preliminar do recurso em apreço, afigura-se-me que este deve ser rejeitado.
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II. Fundamentação
O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso -, como pacificamente decorre do art.º 412.º, n.º 1, do CPP (doravante CPP) e, ainda, designadamente, em sintonia com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10(1).
O art.º 412.º, n.º 1, do CPP, sob a epígrafe “Motivação do recurso e conclusões”, estipula o seguinte: “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.”
O art.º 417.º, n.º 6º, do CPP, sob a epígrafe “Exame preliminar” estipula o seguinte: “Após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que: …O recurso dever ser rejeitado”.
O art.º 420.º, n.º 1, al. a), do CPP, sob a epígrafe “Rejeição do recurso” estipula o seguinte: “O recurso é rejeitado sempre que: …For manifesta a sua improcedência”.
Desta forma, o legislador permitiu evitar mais delongas processuais, perante um uso injustificado do recurso, contribuindo para a celeridade do processo penal na realização dos fins de interesse público a que este está determinado.
Vejamos.
Antes do mais, há que salientar que o combate à criminalidade não pode, nem deve centrar-se apenas na reacção penal sobre a sanção aplicar ao arguido, desprezando a perda ou confisco quer dos instrumentos com que foi praticado o crime quer dos bens ou produtos gerados pela actividade criminosa.
Só através de um combate efectivo que ataque os benefícios retirados do crime poderá demonstrar que este não compensa e evitará o investimento de ganhos ilegais no cometimento de novos crimes, propiciando, ao invés, a sua aplicação na indemnização das vítimas e no apetrechamento das instituições de combate ao crime e reduzindo os riscos de concorrência desleal no mercado, resultante dos investimentos de lucros ilícitos nas actividades empresariais.
A decisão final – seja na fase de inquérito ou de instrução, seja na fase de julgamento -, é por excelência, o momento processualmente adequado, à definição de direitos, característica da função jurisdicional, ou seja, a altura apropriada para que haja uma pronúncia sobre a perda dos instrumentos ou objectos relacionados com a prática de crime.
Para a declaração de perdimento dispomos de um quadro normativo geral no Código Penal e de vários regimes específicos que encontramos na legislação penal extravagante.
Nos termos do art.º 109.º do CP, os bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, ou que tenham sido produzidos no seguimento do cometimento desse crime ou se puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou ordem públicas, ou puderem ser utilizados para a prática de novos crimes, devem ser declarados perdidos a favor do Estado (n.º 1).
A perda de objectos (dotada de eficácia real, já que opera a transferência de propriedade do objecto a favor do Estado) exige, assim:
- a existência de um facto ilícito, sendo suficiente a tentativa;
- a exigência de que tais objectos sejam produto de um crime(2) ou tenham sido utilizados ou estejam destinados à sua comissão(3);
- e que os mesmos possam, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do facto, oferecer riscos de serem utilizados para o cometimento de novos crimes ou pôr em perigo a comunidade.
E tal declaração de perdimento ocorre ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pela prática de um crime (n.º 2 do normativo citado).
São todavia inúmeros os casos em que os bens apreendidos e utilizados no cometimento do facto ilícito típico são pertencentes a terceiro (por ex., o veículo furtado e utilizado na prática de vários roubos organizados, sequestros, etc.), sendo que nestes casos, e desde que aquele não tenha contribuído, de forma censurável, para a sua utilização ou produção ou do facto não tenha retirado vantagens, não haverá lugar à declaração de perda de objectos, nos termos do art.º 110.º do C.P. - este preceito, conjugado com o art.º 178.º, n.º 7 do CPP, constitui uma garantia do direito de propriedade de terceiros de boa-fé.
Quanto à perda de vantagens, estabelece o art.º 111.º, n.º 1, do C.P. que é declarada perdida a favor do Estado “toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem”.
São igualmente declarados perdidos a favor do Estado “os direitos ou vantagens, que através do facto ilícito, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelo agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie” (n.º 2) bem como as “coisas ou os direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos” por meio do crime (n.º 3), sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiros de boa-fé.
No tocante aos objectos apreendidos não oriundos, nem relacionados com a prática de crime, encontram-se sujeitos ao regime do art.º 186.º do CPP, que determina a sua restituição ao seu proprietário (regime este que se aplica, também, às situações de restituição de objectos quando não tenha havido lugar à declaração de perdimento a favor do Estado por não se verificar o requisito da perigosidade previsto no art.º 109.º do Código Penal).
Ora, a exigência probatória dos tribunais tem-se situado ao nível da superação de qualquer dúvida razoável, em que a prova da ligação entre os bens e a(s) infracção(ões) é necessária, exigência esta que não implica que não se possam utilizar, para superar aquela dúvida razoável, critérios de prova indirecta ou por presunções.
Pese embora a sua utilização esteja sujeita a cautelas, já que nos situamos no âmbito do processo penal, como já vimos na motivação de facto, entendemos que a sua utilização não está vedada ao julgador, porquanto existem inúmeros casos em que não há prova directa dos factos e em que a perda se funda em elementos objectivos que levam o julgador, através de presunção ou prova indirecta, a concluir pela sua utilização no cometimento e/ou preparação do crime.
Assim, por imposição do princípio da segurança, a jurisprudência tem vindo a desenhar alguns critérios que devem presidir à declaração de perda de objectos, apelando a critérios de causalidade e proporcionalidade (esta posição conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação).
- relativamente ao primeiro, a perda de objectos a favor do Estado só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, para que, sem essa utilização, o delito em concreto não teria sido cometido. Tais bens devem, assim, ser declarados perdidos a favor do Estado, já que estão intrinsecamente ligados à infracção, sendo tal perda adequada e proporcional à sua prática;
- no que respeita ao segundo, a perda dos bens a favor do Estado só deve ser decretada quando for necessária para evitar a perigosidade.
O que vale dizer que, para o apontado fim perda de objectos do crime exigível é tão só a existência do indispensável nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime) e proporcional à gravidade do facto ilícito cometido, quando aqueles sejam pertença do agente. Isto significa que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e tal gravidade.
Caso os bens pertençam a terceiro e sem qualquer conexão com a actividade criminosa, a declaração de perdimento apenas poderá fundar-se na perigosidade que represente o bem em causa. Ou seja, a perigosidade dos instrumentos, produtos e objectos do crime só condiciona a perda dos que não pertencem ao agente.
Daqui se infere que se um instrumento não pertence ao agente, mas a terceiro, alheio à prática do crime, e não é perigoso, não deve ser declarado perdido a favor do Estado, mas sim restituído ao seu proprietário, desde que não tenha contribuído, de forma censurável, para a sua utilização ou produção ou do facto não tenha retirado vantagens, como referimos supra.
É precisamente o caso dos autos.
Com efeito, as vítimas supra identificadas viram-se privadas de importâncias monetárias por terem sido induzidas a transferi-las para a conta do recorrente - que recebeu produto de ilícitos -, porquanto aquelas não compraram bitcoins, sendo que os seus saldos representam um empobrecimento injustificado e o inerente enriquecimento injustificado do arguido com quem nenhuma das vítimas pretendeu celebrar qualquer contrato, por terem sido alvo de uma burla informática.
Dito de outra forma, estas vítimas viram, em primeira-mão, violado o seu direito de propriedade e, por isso, apresentaram queixa, que agora, com a decisão em crise, lhes é (re)afirmado, não podendo, o eventual direito do ora recorrente, ser fonte aquisitiva de direitos – situação que, essa sim, constituiria uma clara violação, por banda das autoridades(!), do disposto no art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa.
Ou seja, como assinala – e bem - o Ministério Público, “A compra e venda de BTC está ferida de nulidade. Ademais, tratando-se de uma “aquisição” assente em crime, sempre a mesma estaria ferida de nulidade por ser contrária à lei (art.º 280.º do Código Civil). Não foi o titular da conta de onde saiu o dinheiro para compra de Bitcoins que negociou com o arguido. Foi o criminoso sob a capa da vítima.”.
Isto não significa, contudo, que o arguido também não se tenha visto privado dessas importâncias e, desta forma, visto igualmente violado o seu direito de propriedade.
Vejamos.
Como bem assinala o Ministério Público “(…) o dinheiro que o arguido recebeu diretamente nas contas bancárias constitui vantagem económica resultante da prática do facto ilícito-típico, não importando que não haja indícios de que tenha sido autor ou comparticipante do facto ou que possa estar ligado de outra forma ao mesmo. O arguido recebeu nas suas contas um total de 29.927,72€ com dinheiro que é produto do crime, o que se pretende devolver é apenas 7.893,406.” (sublinhado nosso).
E prossegue dizendo, uma vez mais, de forma acertada (aliás, como o fizeram as vítimas que denunciaram tal esquema), “Se o arguido também teve prejuízo deve ressarcir-se junto do criminoso, isto é, da pessoa que lhe comprou bitcoins (…)” (sublinhado nosso).
Ou seja, se o arguido se sente prejudicado - e certamente se sente, tanto mais que interpôs o presente recurso -, deverá, à semelhança das vítimas, fazer valer os seus direitos junto das autoridades competentes, máxime junto do Ministério Público, mas usando, desta vez, a forma correcta, isto é, socorrendo-se das regras substantivas e processuais aplicáveis ao caso.
Ademais, e como diz uma vez mais o Ministério Público, o ora recorrente “não adotou as devidas cautelas, permitido que o criminoso se passasse pelas vítimas e usasse o seu dinheiro. O risco da atividade corre por sua conta. Ainda que se entendesse que o arguido é, na prática um terceiro, o mesmo retirou benefícios do facto (art.º 111.º do Código Penal). Donde, é de decretar a perda. Ou, ainda que se entenda que a perda implica sempre conduta censurável do terceiro, o arguido, ao exercer uma atividade de intermediação financeira, sem estar habilitado, e ao não cumprir as regras de prevenção do branqueamento (Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto), potencia, de modo censurável, o risco da conduta.»
Donde se conclui, como o faz a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal, cujo teor aqui reproduzimos, “De facto, o tribunal não ordenou a devolução do dinheiro aos compradores, massim às vítimas deste, que por atuação enganosa, fraudulenta foram levados a transferir o seu dinheiro para contas tituladas pelo arguido que disso beneficiou. De igual modo, ao contrário do que alega o recorrente, o tribunal não provocou um enriquecimento sem causa às vítimas nem estas ficaram duplamente beneficiadas, porquanto apenas recuperam as quantias que saíram das suas contas de forma ilegal/ilegítima constitutiva de crime, sendo certo que não compraram nem têm em seu poder as bitcoins que o arguido vendeu ao agente do crime que as detêm.”
Desta forma, em consonância com as disposições conjugadas dos arts. 412.º, n.º 1, 417.º, n.º 6, al. b) e 420.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do CPP -, deve ser rejeitado este recurso, por ser manifestamente improcedente.
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III. Decisão
Pelo exposto e nos termos dos arts. 417.º, n.º 6, al. b) e 420.º, n.º 1, al. a), do CPP, rejeito o recurso interposto pelo arguido AA.
O recorrente pagará a importância de 3 UCs, nos termos do art.º 420.º, n.º 3, do CPP.
Notifique.
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TRL, 16-10-2024
Marlene Fortuna
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1. Publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995.
2. Ou seja, “producta sceleris” que «são as coisas ou direitos adquiridos directamente com o crime (v.g. coisa roubada), ou mediante sucessiva especificação (jóia feita com o ouro roubado), ou conseguidas mediante alienação (dinheiro da venda do objecto roubado), ou criadas com o crime. Incluem, pois, qualquer bem ou valor que importe proveito») - cfr. Leal Henriques e Simas Santos, in “Código Penal”, 1.º volume, 2.ª Edição, pág. 746.
3. Isto é, “instrumenta sceleris” que «são os materiais, as coisas cujo uso não importe destruição imediata da própria substância de que se serviu ou se preparava para servir o agente na prática do facto ilícito típico. Compreendem, por ex., as gazuas no furto, os meios utilizados na falsificação automóvel, o motociclo utilizado pelo violador para transportar a vítima ao local da violação» - ob., loc. cit.