DIREITO DE MANIFESTAÇÃO E REUNIÃO
LIBERDADE DE DESLOCAÇÃO
DIREITOS FUNDAMENTAIS
COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ATENTADO À SEGURANÇA DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
ERRO
MEDIDA DA PENA
Sumário

Os direitos de reunião e de manifestação são liberdades essenciais num Estado de Direito Democrático, dada a sua estreita conexão com a liberdade de expressão (art.º 37º da CRP) e afinidade com os direitos de associação (arts. 46º e 51º da CRP) e de participação na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país (art.º 49º da CRP), sendo importantíssimos mecanismos de reflexão colectiva e de formação e expressão da opinião pública.
À semelhança de todos os direitos, liberdades e garantias, a liberdade de reunião e manifestação não é um direito absoluto, no sentido de ilimitado, mas, sendo um direito fundamental, tem a força jurídica prevista no art.º 18º da Constituição, o que envolve a aplicabilidade directa e vinculação das entidades públicas e privadas, a possibilidade de restrição legal, embora limitada ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e apenas nos casos expressamente previstos na CRP.
O mesmo quanto à liberdade de deslocação que está especificamente consagrada no art.º 44º nº 1 da CRP e é uma das diferentes dimensões de constitucionalidade em que se manifesta a liberdade individual genericamente reconhecida, no art.º 27º da CRP, como um direito universal à liberdade, embora com um âmbito de aplicação específico, dada a sua componente acentuadamente territorial.
Considerando a inserção sistemática dos arts. 44º e 45º da CRP, ambas as liberdades de reunião e manifestação e de deslocação são direitos, liberdades e garantias e tanto o art.º 44º como o art.º 45º são normas deliberadamente abertas e com uma vocação de plenitude. 
Como é próprio de um estado de direito democrático alicerçado nos princípios da dignidade humana e da igualdade, a Constituição da República portuguesa assume em diversas normas, como é o caso dos arts. 18º a 22º, uma intenção clara de conferir a todos os direitos, liberdades e garantias o máximo de efectividade.
Porém, não se segue que os direitos fundamentais sejam absolutos ou ilimitados.
O princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º da CRP envolve, para os tribunais, a obrigação de interpretar e aplicar os preceitos sobre direitos, liberdades e garantias de modo a conferir-lhes a máxima eficácia possível, dentro do sistema jurídico, e a obter equilíbrio, a concordância prática, se possível, a realização simultânea dos direitos, liberdades e garantias, por um lado, e da iniciativa privada, por outro, ou no limite e mediante as circunstâncias concretas do caso, através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos sacrifícios de cada um dos valores constitucionais em confronto, na justa medida necessária e adequada à menor compressão possível de cada um dos valores em causa, de acordo com o peso relativo que tenham em concreto, por referência à intensidade e extensão com que a sua compressão em cada caso afecta a protecção que lhe é atribuída pela Constituição.
Nenhum direito é exercido legitimamente, quando esse exercício se traduza na prática de um crime (no caso, o de atentado à segurança rodoviária) e, em simultâneo, há várias outras alternativas lícitas para o seu exercício em iguais condições de plenitude, do mesmo modo que se devem considerar excedidos os limites constitucionais do direito de reunião e manifestação quando o seu exercício concreto se traduz em comportamentos como os que são objecto deste processo, que se materializam, afinal, em verdadeiras afrontas ao Estado de Direito Democrático, em cujo domínio todos devem ter a possibilidade de exercer os direitos, liberdades e garantias que a Constituição da República Portuguesa consagra e reconhece, mas com respeito pelos direitos fundamentais dos outros.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por sentença proferida em 20 de Outubro de 2023, no processo sumário nº 1324/23.2... do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa - Juiz 5, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi decidido:
a) Absolver as arguidas AA, BB e CC, da prática do crime de desobediência qualificada, de que se encontravam acusadas.
b) Condenar, cada uma das mesmas arguidas, pela prática, no dia 4 de Outubro de 2023, em coautoria material, de um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, previsto e punível pelo artigo 290.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de um ano de prisão, ao abrigo do disposto no artigo 45º, n.º 1, do Código Penal, substituída por uma pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco) euros, o que perfaz um total de € 600 ,00 (seiscentos) euros.
As arguidas BB e CC interpuseram recursos da sentença condenatória, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
No recurso da arguida BB:
1. No modesto entendimento da recorrente, e sempre com o devido respeito pela douta decisão proferida pelo tribunal a quo, a prova produzida em sede dos presentes autos não foi suficiente para dar como provada a factualidade constante das acima alíneas F), G) e H).
2. A Recorrente entende pela inexistência de prova para dar como provada a motivação / conclusão apresentada pelo tribunal a quo, mas também pela errónea apreciação do artigo 290.º, ou seja, pela inexistência de necessidade de verificação de perigo para a consumação do ilícito criminal previsto no artigo 290.º do Código Penal.
3. O presente recurso tem por objeto a nulidade da sentença, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º e a reapreciação da matéria de facto, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 410.º e n.º 3 do artigo 412.º do CPP, bem como a matéria de direito, quer em consequência da reapreciação da matéria de facto, quer, igualmente, quando conjugada, a decisão ora recorrida, com as regras da experiência comum, ex vi do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
4. A conjugação das passagens acima transcritas com a demais factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, nomeadamente auto de notícia por detenção, auto de apreensão a fls. 11 (tarja com inscrição “sabendo o que sabes o que vais fazer?”, fotografia da tarja a fls. 12 e documento junto com a acusação aonde se vê as fotografias das arguidas exibindo quer os coletes, quer as tarjas, não permite, salvo douta e melhor opinião, chegar à conclusão inequívoca resultante das regras da experiência comum elencadas pelo tribunal a quo no sentido de que a apreciação da matéria de facto dada como provada só poderá ter como desfecho o entendimento perfilhado pelo douto tribunal.
5. As arguidas trajavam cada uma delas uma t-shirt branca, um colete refletor cor de laranja, transportavam duas faixas, introduziram-se na via e sentaram-se ao longo da passadeira de peões, pelo menos 20 minutos, exibindo as faixas mencionadas e impedindo a circulação de veículos na referida via.
6. A explicação racional trazida pelas arguidas no sentido de pretenderem alertar a população para a grave crise climática que é do conhecimento geral, sendo certo que tomaram as providências necessárias para garantir a sua segurança e de terceiros, é plausível e descoincidente do desfecho apresentado pelo tribunal a quo, com recurso às regras da experiência comum, antevendo que tal comportamento praticado pelas arguidas não é de, per se, suficiente para se subsumir aos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime, p. e p., pelo artigo 290.º do Código Penal.
7. A única situação que resulta provada em função da atuação da(s) arguida(s) é que o comportamento da(s) arguida(s) causou filas de trânsito. Em conformidade, o comportamento da arguida a se traduzir num ilícito seria, no máximo, subsumível à estatuição prevista no n.º 2 do artigo 3.º do Código da Estrada e sancionada a título de contraordenação.
8. A norma jurídica prevista no artigo 290.º do Código Penal Atentado à Segurança de Transporte Rodoviário, configura um crime de perigo abstrato-concreto. E, para que se preencha tal ilícito criminal, é forçoso atentar contra a segurança de transporte rodoviário numa das modalidades previstas nas diferentes alíneas do n.º 1.
9. O tribunal a quo ao interpretar a norma ínsita no artigo 290.º do Código Penal no sentido em que o legislador prevê apenas o perigo concreto no seu n.º 2 e não prevê qualquer necessidade de verificação de perigo no seu n.º 1, obnubilou o seu raciocínio e respetivo silogismo ao não ponderar as restantes formas de perigo, perigo abstrato e perigo abstrato-concreto, subentenda-se premissas, para a verificação e subsunção dos factos ao ilícito criminal em apreço.
10. Seria imperioso exigir a comprovação no caso concreto, da aptidão genérica do comportamento da(s) arguida(s) para provocar um atentado da segurança de transporte rodoviário, e não como resulta provado in casu um embaraço de trânsito (causaram longas filas de trânsito), o qual em si não representa, nem se subsume, ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime do artigo 290.º do Código Penal.
11. A não ser assim, chegávamos à situação limite em que, qualquer atuação de um indivíduo que impeça ou embarace o trânsito ou comprometa a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, é sempre punida a título criminal não fazendo qualquer sentido a existência do ilícito contraordenacional previsto no artigo 3.º do Código da Estrada, esvaziando-o por completo.
12. A prova produzida impõe que se produza uma Decisão diversa da recorrida, com a consequente absolvição da arguida BB do crime de Atentado à Segurança de Transporte Rodoviário, p. e p., pelo artigo 290.º do Código Penal.
13. O tribunal a quo ao expressar que, “o direito de livre circulação tem de prevalecer sobre o direito de manifestação pela simples razão que a afetação daquele direito acarreta uma situação mais gravosa para o seu titular podendo inclusivamente impedir o exercício de outros direitos, o direito ao trabalho, o direito à deslocação para o local de trabalho, o direito à prestação de cuidados de saúde, pode impedir a deslocação de uma pessoa ao hospital” para fundamentar uma hierarquia entre direitos constitucionais, dando primazia ao direito de deslocação em detrimento do direito à manifestação efetua valoração contrária às regras processuais penais vigentes no nosso ordenamento jurídico na medida em que as presunções em processo penal nunca poderão ser realizadas em desfavor do arguido.
14. O tribunal a quo ao apelidar o comportamento de manifestação das arguidas de excessivo, quando, em bom rigor, o realizaram sob a salvaguarda do direito constitucional que lhes assiste, por um período de 20 (vinte) minutos, e por referência a uma matéria que diz respeito a todos os cidadãos e que visa acautelar o bem-estar e sobrevivência de todos, é no mínimo, e salvo o devido respeito, manifestamente desproporcional e inadequado.
15. O direito à manifestação reveste dignidade constitucional e não se extrai da prova produzida nos presentes autos que deva uma qualquer subserviência ou apresente uma menos-valia por comparação ao direito à deslocação previsto no artigo 44.º da Constituição da República Portuguesa.
16. O tribunal a quo ao fundamentar a hierarquia de direitos constitucionais com base em presunções e pressupostos subjetivos enfermou a douta sentença proferida do vício constante do artigo 379.º n.º 1 alínea c) in fine do C.P.P.
17. O exercício do direito constitucional em causa (direito à manifestação), ponderado em conjunto com os factos provados, tendo em conta que o exercício de tal direito reveste dignidade constitucional, terá como consequência operar a causa de exclusão de ilicitude prevista na alínea b), do n.º 2, do artigo 31.º do Código Penal, absolvendo-se em conformidade a arguida do crime de Atentado à Segurança em Transporte Rodoviário de que vinha acusada.
No recurso da arguida CC
A. O presente recurso incide exclusivamente sobre matéria de Direito e, subsidiariamente, por cautela de patrocínio, sobre a medida da pena aplicada, por se entender que a mesma se revela excessiva, desproporcional, desadequada e, por isso, ilegal, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto.
B. As Arguidas, entre as quais, a Recorrente, actuaram no exercício do direito fundamental de manifestação, que se encontra consagrado no artigo 45.º da Constituição da República Portuguesa e regulado pelo Decreto-Lei 406/74, de 29 de Agosto, e ainda no artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, igualmente aplicável no ordenamento jurídico português.
C. O tribunal a quo, não obstante enquadrar a acção das Arguidas no exercício do direito de manifestação, verificou que as mesmas restringiram o direito à livre circulação dos automóveis que circulavam na via pública, no dia 4 de Outubro e, por isso, no conflito e na ponderação dos direitos e interesses em causa, considerou que o direito à deslocação previsto no artigo 44.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa deveria prevalecer sobre o direito de manifestação.
D. Desta forma, considerou não ser de aplicar a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, concluindo que se encontravam preenchidos os elementos do tipo de crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, previsto e punido pelo artigo 290.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
E. Ora, é desta ponderação de interesses que a Arguida, e ora Recorrente, tem necessariamente de discordar e, consequentemente, terá também de discordar da não aplicação da causa de exclusão de ilicitude supra referida.
F. Entende a Recorrente que, de entre os direitos em causa, por um lado, o direito à manifestação e, por outro, o direito à deslocação, apesar de diferente natureza, não é possível estabelecer qualquer relação de hierarquia, pois, a avaliar quer pela respectiva inserção sistemática, no capítulo da Lei Fundamental dedicado aos “Direitos, liberdades e garantias pessoais”, quer pela sua submissão ao regime especial de protecção conferido pelo artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, ambos se revestem de idêntica dignidade constitucional.
G. No caso concreto, entende a Recorrente que, na ponderação de interesses a efectuar, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 18.º, 44.º e 45.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 335.º do Código Civil e o artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, ao fazer uma leitura abstracta dos acontecimentos e possíveis consequências, e não fazendo uma leitura concreta dos factos!
H. Considerando as circunstâncias em que se enquadraram os factos concretos, os factos dados como provados e aplicando um critério de proporcionalidade – não há nenhum facto provado que demonstre que houve o concreto bloqueio da circulação de automóveis que se destinavam ao hospital, pelo que não existem motivos validamente fundamentados para fazer prevalecer o direito de deslocação, in casu.
I. A actuação das Arguidas foi única e exclusivamente motivada pela defesa de um bem maior – o clima – tendo como objectivo simplesmente alertar para os danos no ambiente e a necessidade de actuar contra as alterações climáticas!
J. Não se deu o caso de nenhuma ambulância ou transporte de doentes ter exigido a sua passagem, muito menos o facto de as Arguidas terem bloqueado, particularmente, tal circulação, pelo que o bloqueio, por 20 minutos, do trânsito da Rua de São Bento, e paragem dos condutores por esse curto espaço de tempo não justifica, no caso concreto, a restrição ao exercício do direito de manifestação por parte das Arguidas!
K. Não é proporcional, nem legítimo, considerar que o direito constitucionalmente protegido no âmbito do qual a actuação das Arguidas se insere – o direito à manifestação – deve ceder perante o exercício do direito de deslocação dos condutores que circulavam na Rua de São Bento no dia 4 de Outubro de 2023.
L. A propósito da ponderação de interesses entre o direito à manifestação vs. O direito à deslocação, teve o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos oportunidade de se pronunciar.
M. Com referência aos casos PATYI AND OTHERS v. HUNGARY (5529/05), de 7 de Janeiro de 2009, e KÖRTVÉLYESSY v. HUNGARY (7871/10), de 5 de Abril de 2016, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos recorda que qualquer manifestação num local público pode causar um certo nível de perturbação da vida quotidiana.
N. Este Tribunal considerou que as autoridades de um determinado país, ao proibirem a manifestação e ao basearem-se apenas em considerações de tráfego, não conseguiram estabelecer um justo equilíbrio entre os direitos das pessoas que pretendem exercer a sua liberdade de reunião e os direitos das outras pessoas cuja liberdade de circulação poderia ter sido temporariamente frustrada, concluindo pela violação do artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (liberdade de reunião e de associação).
O. Comparando as situações analisadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, com a do presente concreto, forçoso será concluir que, no presente caso, existe, igualmente, violação do artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
P. Por todos estes motivos, entende a Recorrente que, no caso concreto, o tribunal a quo errou claramente ao considerar que o direito à deslocação prevalecia sobre o direito à manifestação e ainda ao considerar que não ser aplicável o disposto no artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, tendo violado o disposto nos artigos 18.º, 44.º e 45.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 335.º do Código Civil e o artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal.
Q. Termos em que, deve a decisão recorrida ser substituída por outra que considere que, no caso concreto, entre os direitos em conflito, é de prevalecer o direito à manifestação e, por isso, a actuação das Arguidas e da ora Recorrente é enquadrada no exercício de um direito, pelo que se exclui a ilicitude do facto, por referência ao disposto no artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, sendo, consequentemente, absolvidas do crime de que vêm condenadas.
R. É inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 44.º da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída do artigo 290.º, n.º 1, alínea b), e 31.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código Penal, na interpretação segundo a qual constitui ilícito penal a colocação de obstáculo ao funcionamento ou à circulação no exercício do direito à manifestação.
S. Subsidiariamente, sempre se alegará que a actuação da Recorrente é movida sem culpa, porquanto actuava sem consciência da ilicitude do facto, na medida em que actuava considerando que o fazia ao abrigo do exercício de um direito (de manifestação) sendo que tal erro não é, in casu, censurável, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do Código Penal.
T. Caso assim não se entenda, o que não se concebe, mas que se conjectura por cautela de patrocínio, sempre se dirá que a pena aplicada pelo tribunal a quo se revela excessiva, desproporcional e desadequada e – consequentemente – ilegal, desde logo tendo em conta os factos praticados, o seu enquadramento factual e jurídico, a postura adoptada pela Recorrente, que confessou os factos e assumiu que não iria adoptar o mesmo comportamento no futuro, o facto de se encontrar familiar, profissional e socialmente inserida, e de não ter nenhuma condenação no seu registo criminal.
U. Considerou o tribunal a quo justa a aplicação de 1 (um) ano de prisão, substituída, ao abrigo do disposto no artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal, por uma pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, o que perfaz um total de 600 euros.
V. De acordo com as disposições normativas aplicáveis, no que concerne à medida da pena de multa também se deverá atender às exigências de prevenção geral e especial, relevando o grau de culpa do agente na determinação da pena aplicável, representando aquela um limite à medida desta.
W. Ao aplicar a pena de multa de 120 dias, o tribunal a quo ultrapassou os limites da culpa da Arguida, ora Recorrente, violou as regras de determinação da medida da pena, consagradas nos artigos 40.º, n.º 1 e 2, 45.º, 47.º, e 71.º, n.º 1 e 2, alíneas a), c), d) e e), todos do Código Penal.
X. Deste modo, e atento os fundamentos acima expostos, requer-se a este douto Tribunal que conceda provimento ao presente recurso e, em consequência, altere a medida da pena de multa, fixando-a em período perto do limite mínimo legal, ou que seja substituída por admoestação.
Por todo o supra exposto, depois de realizada a audiência oral junto deste Venerando Tribunal, para discussão de todos os pontos constantes da motivação, e respectivas conclusões, nos termos do artigo 411.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, em particular, da ponderação de interesses em conflito e da aplicação de causa de exclusão de ilicitude, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve a decisão recorrida:
a) Ser substituída por outra que absolva a Arguida, ora Recorrente, do crime pelo qual veio condenada, ou, no limite,
b) Ser alterada a medida da pena aplicada, por outra que se encontre perto do limite mínimo legal aplicável, ou substituída por admoestação.
Admitidos os recursos, o Mº. Pº. apresentou respostas a ambos, nas quais concluiu:
Assim, na resposta ao recurso da arguida BB, o Mº. Pº. concluiu:
1. Nos presentes autos, foi a arguida BB, condenada pela prática, no dia 04 de Outubro de 2023, em coautoria material, de 1 (um) crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, p. e p. pelo artigo 290.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, substituída por uma pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros).
2. A douta sentença em crise não padece de quaisquer vícios, nomeadamente insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2, als. a) e c), do Código de Processo Penal).
3. Por um lado, as premissas da decisão, no que à matéria de facto concerne, são, efectivamente, suficientes para se alcançar a decisão condenatória que se alcançou e para a verificação de todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo.
4. Por outro lado, não houve qualquer erro de raciocínio nem foram contrariadas as regras da experiência comum por parte do tribunal a quo, que proferiu uma decisão clara e lógica, na qual todas as premissas se encontram concatenadas e concordantes entre si, não se vislumbram quaisquer contradições, discrepâncias ou ilegalidades probatórias.
5. O crime de atentado à segurança de transporte rodoviário imputado à arguida (p. e p. pelo art.º 209.º, n.º 1, b), do Código Penal), é um crime de perigo abstracto (e não de perigo abstracto-concreto como propugna a recorrente).
6. Nos crimes de perigo concreto, o perigo faz parte do tipo, já nos crimes de perigo abstracto, o perigo não é elemento do tipo legal, mas unicamente motivo/pressuposto da proibição/incriminação - o perigo é presumido pelo legislador (ou seja, a lei não exige que ocorra concretamente perigo de lesão, mas a mera actividade do agente), ficando desobrigada qualquer averiguação sobre a perigosidade do facto típico no caso concreto; ou seja, nos crimes de perigo abstracto, a perigosidade da acção é presumida (juris et de jure).
7. Por conseguinte, para o preenchimento do tipo do ilícito criminal imputado à arguida, apenas basta a existência de uma acção que vise colocar um obstáculo à circulação numa determinada via de trânsito, onde normalmente se efectuem transportes rodoviários.
8. Assim, no caso vertente, considerando a factualidade dada como provada – e admitida pelas arguidas -, facilmente se conclui pela verificação dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito criminal em causa, tendo o tribunal a quo decidido correctamente ao condená-las.
9. De todo o modo, sempre se dirá, ainda assim e à cautela, que, no caso em concreto, verificou-se aptidão genérica do comportamento da(s) arguida(s) para provocar um atentado da segurança de transporte rodoviário, porquanto as próprias admitiram que quiseram – e conseguiram - impedir a circulação de veículos e que se criaram filas de trânsito.
10. Acresce que, não estamos perante a prática de qualquer ilícito contraordenacional, designadamente o previsto no art.º 3.º, n.º 2, do Código da Estrada, tão só de índole criminal.
11. Contudo, e à cautela, caso se entenda que a conduta da recorrente também integra a prática do referido ilícito contraordenacional, denote-se que, como é consabido, quando a mesma conduta integra, simultaneamente, a prática de crime e de contra-ordenação, as regras do concurso impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contra-ordenação consumida - consunção impura - pela punição do ilícito penal, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação.
12. Outrossim, igualmente não se verifica a nulidade prevista no 379.º, n.º 1, al c), in fine, do Código de Processo Penal (excesso de pronúncia).
13. Só se pode afirmar que corre excesso de pronúncia quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso; não é esse o caso dos autos, nem nos parece que o desiderato da recorrente com isto se prendesse.
14. Parece-nos que a recorrente defende que, nos factos provados, teriam que estar elencados os factos que comprovassem a violação dos direitos daqueles que pretendiam circular nos seus veículos na artéria em causa, para, em situação de conflito de direitos, se decidir a favor de um, em detrimento de outro, nada referindo, curiosamente, quanto ao direito de manifestação.
15. A recorrida olvida-se, por completo, que, em situação de ponderação de direitos em conflito é feita uma apreciação jurídica, por referência à factualidade em apreço, que não pode ser confundida com a matéria de facto propriamente dita.
16. O tribunal a quo apenas elencou exemplos de direitos que podem ser violados por condutas como aquelas que as arguidas adoptaram – o que não se traduz numa conclusão ou numa presunção.
17. O direito de manifestação (art.º 45.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) e o direito de deslocação (art.º 44.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), são dois direitos fundamentais que, dada a sua relevância, mereceram consagração constitucional e pertencem à categoria dos direitos, liberdades e garantias pessoais.
18. Não obstante própria Lei Fundamental garantir a aplicabilidade directa dos direitos fundamentais, independentemente de intermediação de lei ordinária, também admite que, por meio desta, possam existir restrições.
19. A este propósito importa atentar no Decreto-Lei n.º 406/74, de 29/08, na versão que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30/11, que regulamenta e direito de reunião, e de onde sobressai, desde logo, a necessidade de estabelecer regras de exequibilidade dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, designadamente, aqueles que se queiram reunir e manifestar, bem como todos os restantes que não adiram ou não integrem eventual reunião ou manifestação, independentemente de anuírem ou não nos respectivos motivos ou conteúdos.
20. De acordo com a Constituição da República Portuguesa, os direitos em apreço têm o mesmo valor jurídico, inviabilizando-se qualquer princípio de hierarquia abstracta entre si, pelo que importa lançar mão do princípio da concordância prática ou da harmonização.
21. Porém, não sendo possível alcançar uma solução de harmonização, por forma a obter-se uma solução justa para a colisão de direitos, é imperativo proceder a uma ponderação de bens/interesses no caso concreto.
22. Sé é inegável que, às arguidas, assiste o exercício do direito de manifestação (art.º 45.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), também é verdade que assiste ao cidadão em geral o direito de circular/se deslocar livremente.
23. Assim, na tomada de decisão sobre qual dos direitos deve prevalecer, o juiz casuisticamente, e à luz do princípio da proporcionalidade, previsto no art.º 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e seus três subprincípios da adequação, da exigibilidade e da justa medida/proporcionalidade em sentido restrito, deve ponderar os fins prosseguidos pelas normas, os bens, interesses e valores em conflito, as medidas possíveis e os seus efeitos.
24. No caso dos autos, entendeu, e com propriedade, o Tribunal a quo que o direito à livre circulação teria que prevalecer sobre o direito de manifestação, porquanto a afectação de um interesse individual resultante daquele direito acarreta consequências mais gravosas para o seu titular (do direito de circulação), podendo impedir, inclusive, o exercício de outros direitos, como, por exemplo, o direito ao trabalho (por, designadamente, impedir a circulação/deslocação para o trabalho).
25. Ademais, concordamos com o tribunal a quo no entendimento de que, atenta a matéria de facto dada como provada, o direito de manifestação por parte das arguida foi exercido de forma excessiva - impedindo a liberdade de circulação dos transportes rodoviários- e podia ter-se realizado de outro modo (por exemplo, podiam as arguidas ter-se manifestado em cima do passeio ou numa praça e não causar qualquer embaraço/impedimento ao trânsito de viaturas na artéria em questão).
26. O exercício de um direito, verificados que estejam todos os seus pressupostos e requisitos, configura uma causa de exclusão da ilicitude e, portanto, afasta a punição da conduta dos agentes que assim procederam.
27. Não se olvida que as arguidas agiram com o intuito de alertarem para causa ambiental, mas, o exercício de tal direito não admite a compressão dos direitos que com a sua acção puserem em causa e comprimam, designadamente, o direito de livre circulação/deslocação, ao trabalho, etc.
28. Destarte, entendemos não estarem verificados todos os pressupostos do exercício do direito de manifestação, por tal ter ocorrido em contrariedade legal de índole, na medida em que tal direito não se impunha às arguidas por qualquer determinação legal, a qual somente admite que as mesmas possam prosseguir tal direito, mas dentro do quadro normativo existente e legalmente admissível.
29. Em suma, a douta sentença revidenda não é, portanto, merecedora de qualquer reparo.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido/recorrente, mantendo-se a decisão recorrida na íntegra.
Na resposta ao recurso interposto pela arguida CC, as conclusões do Mº.Pº. foram as seguintes:
1. Nos presentes autos, foi a arguida CC, condenada pela prática, no dia 04 de Outubro de 2023, em coautoria material, de 1 (um) crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, p. e p. pelo artigo 290.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, substituída por uma pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz um total de 600,00€ (seiscentos euros).
2. O crime de atentado à segurança de transporte rodoviário imputado à arguida (p. e p. pelo art.º 209.º, n.º 1, b), do Código Penal), é um crime de perigo abstracto (e não de perigo concreto como propugna a recorrente).
3. Nos crimes de perigo concreto, o perigo faz parte do tipo, já nos crimes de perigo abstracto, o perigo não é elemento do tipo legal, mas unicamente motivo/pressuposto da proibição/incriminação - o perigo é presumido pelo legislador (ou seja, a lei não exige que ocorra concretamente perigo de lesão, mas a mera actividade do agente), ficando desobrigada qualquer averiguação sobre a perigosidade do facto típico no caso concreto; ou seja, nos crimes de perigo abstracto, a perigosidade da acção é presumida (juris et de jure).
4. Por conseguinte, para o preenchimento do tipo do ilícito criminal imputado à arguida, apenas basta a existência de uma acção que vise colocar um obstáculo à circulação numa determinada via de trânsito, onde normalmente se efectuem transportes rodoviários.
5. Assim, no caso vertente, considerando a factualidade dada como provada – e admitida pelas arguidas -, facilmente se conclui pela verificação dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito criminal em causa, tendo o tribunal a quo decidido correctamente ao condená-las.
6. O direito de manifestação (art.º 45.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) e o direito de deslocação (art.º 44.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), são dois direitos fundamentais que, dada a sua relevância, mereceram consagração constitucional e pertencem à categoria dos direitos, liberdades e garantias pessoais.
7. Não obstante própria Lei Fundamental garantir a aplicabilidade directa dos direitos fundamentais, independentemente de intermediação de lei ordinária, também admite que, por meio desta, possam existir restrições.
8. A este propósito importa atentar no Decreto-Lei n.º 406/74, de 29/08, na versão que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30/11, que regulamenta e direito de reunião, e de onde sobressai, desde logo, a necessidade de estabelecer regras de exequibilidade dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, designadamente, aqueles que se queiram reunir e manifestar, bem como todos os restantes que não adiram ou não integrem eventual reunião ou manifestação, independentemente de anuírem ou não nos respectivos motivos ou conteúdos.
9. De acordo com a Constituição da República Portuguesa, os direitos em apreço têm o mesmo valor jurídico, inviabilizando-se qualquer princípio de hierarquia abstracta entre si, pelo que importa lançar mão do princípio da concordância prática ou da harmonização.
10. Porém, não sendo possível alcançar uma solução de harmonização, por forma a obter-se uma solução justa para a colisão de direitos, é imperativo proceder a uma ponderação de bens/interesses no caso concreto.
11. Sé é inegável que, às arguidas, assiste o exercício do direito de manifestação (art.º 45.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), também é verdade que assiste ao cidadão em geral o direito de circular/se deslocar livremente.
12. Assim, na tomada de decisão sobre qual dos direitos deve prevalecer, o juiz casuisticamente, e à luz do princípio da proporcionalidade, previsto no art.º 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e seus três subprincípios da adequação, da exigibilidade e da justa medida/proporcionalidade em sentido restrito, deve ponderar os fins prosseguidos pelas normas, os bens, interesses e valores em conflito, as medidas possíveis e os seus efeitos.
13. No caso dos autos, entendeu, e com propriedade, o Tribunal a quo que o direito à livre circulação teria que prevalecer sobre o direito de manifestação, porquanto a afectação de um interesse individual resultante daquele direito acarreta consequências mais gravosas para o seu titular (do direito de circulação), podendo impedir, inclusive, o exercício de outros direitos, como, por exemplo, o direito ao trabalho (por, designadamente, impedir a circulação/deslocação para o trabalho).
14. Ademais, concordamos com o tribunal a quo no entendimento de que, atenta a matéria de facto dada como provada, o direito de manifestação por parte das arguida foi exercido de forma excessiva - impedindo a liberdade de circulação dos transportes rodoviários- e podia ter-se realizado de outro modo (por exemplo, podiam as arguidas ter-se manifestado em cima do passeio ou numa praça e não causar qualquer embaraço/impedimento ao trânsito de viaturas na artéria em questão).
15. O exercício de um direito, verificados que estejam todos os seus pressupostos e requisitos, configura uma causa de exclusão da ilicitude e, portanto, afasta a punição da conduta dos agentes que assim procederam.
16. Não se olvida que as arguidas agiram com o intuito de alertarem para causa ambiental, mas, o exercício de tal direito não admite a compressão dos direitos que com a sua acção puserem em causa e comprimam, designadamente, o direito de livre circulação/deslocação, ao trabalho, etc.
17. Destarte, entendemos não estarem verificados todos os pressupostos do exercício do direito de manifestação, por tal ter ocorrido em contrariedade legal de índole, na medida em que tal direito não se impunha às arguidas por qualquer determinação legal, a qual somente admite que as mesmas possam prosseguir tal direito, mas dentro do quadro normativo existente e legalmente admissível.
18. Tampouco se pode afirmar que a arguida actuou sem consciência da ilicitude (art.º 17.º, do Código Penal).
19. O erro sobre a ilicitude deixa intocado o dolo do tipo, podendo, todavia, integrar, quando não censurável, uma forma de exclusão da culpa; o erro será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade indiferente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente, isto é, quando o agente revelar uma atitude de indiferença pelos valores jurídico-penais.
20. Estamos em crer que o comum dos cidadãos não ignora que é proibido sentar-se numa passadeira por forma a impedir a normal circulação de veículos.
21. A arguida sabia o que estava a fazer e quis fazê-lo, bem sabendo que tal lhe estava vedado por lei penal, conforme resultou da audiência de julgamento; ademais, a arguida é uma pessoa instruída, licenciada, e não revelou uma personalidade alheia aos valores jurídicos, tendo, pelo contrário, demonstrado ser dotada de consciência ética, pelo que, ainda que tivesse actuado sem consciência da ilicitude do facto – o que não se concebe – sempre lhe seria censurável o erro.
22. A pena aplicada à arguida revela-se adequada, justa e proporcional, pois o tribunal a quo sopesou todos factores – em seu favor e em seu desfavor - de forma irrepreensível, atendendo, nomeadamente, à ilicitude do facto, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados na prática do crime e à sua motivação, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior aos factos, assim respondendo às exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, não se descortinando qualquer razão válida para concluir que a pena que lhe foi aplicada é injusta, desadequada ou excessiva, devendo a mesma ser mantida.
23. Em suma, a douta sentença revidenda não é, portanto, merecedora de qualquer reparo.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido/recorrente, mantendo-se a decisão recorrida na íntegra.
Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Exmo. Sr. Procurador Geral da República emitiu parecer, no sentido da confirmação integral da sentença recorrida, por concordar com os argumentos aduzidos nas respostas do Mº. Pº. aos recursos das arguidas, que foram apresentadas na primeira instância.
Cumprido o preceituado no art.º 417º nº 2 do CPP, não foram apresentadas respostas.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
QUESTÃO PRÉVIA:
Do pedido de realização da audiência, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 411º nº 5 do CPP, formulado pela arguida CC
Desde a entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29 de Agosto que o art.º 411º nº 5 do CPP estabelece um ónus processual de carácter preceptivo – o recorrente que pretenda usar da faculdade de produzir alegações orais em sede de audiência de discussão e julgamento, na fase do recurso, terá de especificar quais os pontos da motivação do recurso que pretende debater com imediação e oralidade.
A sujeição do recorrente a este ónus processual foi o mecanismo encontrado pelo legislador para garantir mais eficácia e celeridade na tramitação processual penal, impedindo que a audiência de discussão e julgamento em fase de recurso se convertesse na mera reprodução verbal das motivações já apresentadas por escrito e em sintonia com o propósito de evitar a prática de actos inúteis e irrelevantes, quer para o exercício do direito ao recurso (que se cumpre plenamente, por via de regra, com as motivações e conclusões escritas – cfr. Acs. do TC nºs 352/98 e 215/2007 in www.tribunalconstitucional.pt), quer para a apreciação do seu mérito.
«A Lei n.º 48/2007, de 29.8, não só suprimiu as alegações escritas, como abandonou a regra da audiência no tribunal de recurso em processo penal», tendo o legislador considerado que a supressão da possibilidade de apresentação de alegações escritas se justificava, na medida em que aquelas acabaram por se revelar «actos processuais supérfluos», pois «a experiência demonstrou constituírem pura repetição das motivações» (motivação da proposta de lei n.º 109/X que deu origem à Lei 48/2007 de 29 de Agosto).
Assim, «com o mesmo objectivo de celeridade processual e ponderando que a audiência já constituía um direito renunciável, o legislador consagrou a audiência no tribunal de recurso como uma excepção» (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2009, p. 1118).
E, nessa conformidade, «a omissão do cumprimento de tal ónus processual impossibilita o julgador de proceder ao agendamento e realização de audiência de julgamento de recurso, mediante produção de alegações orais pelo recorrente. Porém, nenhuma norma processual penal comina a extinção do direito fundamental ao recurso, mas tão só a não realização de uma fase da tramitação processual, a qual não implica qualquer decisão de não admissão do recurso interposto, seja mediante decisão sumária do Relator (…), seja mediante acórdão de conferência (…). Pelo contrário, a falta de indicação dos pontos da motivação de recurso, de acordo com a interpretação normativa, apenas implica a não produção de alegações orais, mas exige sempre — desde que cumpridos os demais pressupostos processuais de conhecimento — a apreciação da motivação e respectivas conclusões de recurso, por parte do tribunal recorrido.» (Ac. do TC nº 163/2011, de 24 de Março de 2011, Diário da República, 2.ª série — N.º 211 — 3 de Novembro de 2011, p. 43853 e ss).
Ora, no caso vertente, a recorrente limitou-se a requerer a realização da audiência de discussão e julgamento para «para discussão de todos os pontos constantes da motivação, e respectivas conclusões», ou seja, toda a peça recursiva, indiscriminadamente.
Assim sendo porque esta pretensão não cumpre o ónus de especificação das motivações a submeter a alegações orais, indefere-se o pedido de realização da audiência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica e as conclusões dos recursos, as questões a decidir são as seguintes:
No recurso da arguida BB:
Se a sentença é nula, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP ao fundamentar a hierarquia de direitos constitucionais com base em presunções e pressupostos subjetivos;
Se houve erro de julgamento, nos termos do art.º 412º do CPP, na consideração como provados dos seguintes factos:
(i) Ao atuar do modo acima descrito as Arguidas AA, BB e CC, sabiam que a Rua de São Bento é uma artéria reservada à circulação de veículos automóveis públicos e particulares, com grande fluxo de trânsito não podendo ali permanecer, mas apenas proceder à sua travessia, sendo esta uma das principais vias de acesso ao centro da cidade, nomeadamente ao Largo do Rato.
(ii) Não obstante, as Arguidas em comunhão de esforços e de intentos, sentaram-se ao longo da via criando obstáculo à normal circulação de trânsito na referida artéria e áreas circundantes atentando, assim, contra a segurança dos transportes rodoviários, situação que representaram.
(iii) Ao atuar do modo acima descrito, as Arguidas, agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
Se a sentença recorrida padece dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada e do erro notório na apreciação da prova, nos termos das alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 410.º do CPP
Se não estão preenchidos os elementos constitutivos do tipo previsto no art.º 290º do CP, porque a única situação que resulta provada em função da atuação da(s) arguida(s) é que o comportamento da(s) arguida(s) causou filas de trânsito e, em conformidade, o comportamento da arguida a se traduzir num ilícito seria, no máximo, subsumível à estatuição prevista no n.º 2 do artigo 3.º do Código da Estrada e sancionada a título de contraordenação;
Se se verifica a causa de exclusão da ilicitude prevista no art.º 31º nº 2 al. b) do Código Penal, face ao exercício do direito constitucional de manifestação.
No recurso da arguida CC
Se houve erro de direito do Tribunal recorrido ao considerar que o direito à deslocação prevalecia sobre o direito à manifestação e ao considerar não ser aplicável o disposto no artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, tendo violado o disposto nos artigos 18.º, 44.º e 45.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 335.º do Código Civil e o artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal;
Se é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 44.º da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída do artigo 290.º, n.º 1, alínea b), e 31.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código Penal, na interpretação segundo a qual constitui ilícito penal a colocação de obstáculo ao funcionamento ou à circulação no exercício do direito à manifestação;
Se existiu falta de consciência da ilicitude nos termos do art.º 17º do CP.
Se houve desproporção e excesso na fixação concreta da pena aplicada, a qual deve ser antes fixada em período perto do limite mínimo legal, ou substituída por admoestação.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto fixada na sentença recorrida e a motivação da convicção do Tribunal são as seguintes:
Na sentença recorrida, como ponto prévio à fixação da matéria de facto relevante provada e não provada, foi decidido que não estavam preenchidos os elementos constitutivos do crime de desobediência porque não há, na acusação, qualquer alusão a que as arguidas foram advertidas de que estariam a cometer um crime de desobediência, logo, faltando o elemento objectivo do crime de desobediência previsto no art.º 304º nº 1 do CP, jamais as arguidas poderiam vir a ser condenadas por esse crime.
Também foi referido que a matéria de facto provada e não provada iria ser fixada a partir da leitura da acusação e não por simples remissão e bem assim que todas as demais afirmações proferidas na acusação, acerca das quais não fosse tomada posição, no sentido de serem consideradas factos provados ou não provados, deveriam ser consideradas expurgadas da decisão de facto, dada a sua irrelevância para a sentença a proferir.
Assim, foram considerados provados os seguintes factos:
Desde data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 04/10/2023 a arguida CC faz parte do grupo organizado Climáximo;
Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 04/10/2023, pelas 08h35m, as arguidas elaboraram um plano que passava por se deslocarem à Assembleia da República
Situação que não vieram a concretizar,
E por não terem conseguido manifestar-se, naquele local, decidiram deslocar-se para a artéria da cidade de Lisboa, correspondente à Rua de S. Bento;
A fim de impedirem a circulação de veículos, de forma a alertar a sociedade para a crise climática.
Então, em execução desse plano, no dia 04/10/2023, quarta-feira, as arguidas trajando cada uma delas uma t-shirt de cor branca com a estampagem “ELES DECLARAM GUERRA CONTRA A VIDA”, e um colete reflector de cor laranja com a estampagem “CLIMAXIMO”, transportando duas faixas onde era possível ler-se: “SABENDO O QUE SABES O QUE VAIS FAZER?” e “ESTÃO A DESTRUIR TUDO O QUE TU AMAS”, deslocaram-se para a aludida artéria.
Ali chegadas, cerca das 08h35m - hora de maior circulação automóvel, em virtude das deslocações habituais para trabalho e escolas - as arguidas sem efectuarem qualquer aviso prévio, introduziram-se na via e sentaram-se ao longo da passadeira de peões que se situa na referida artéria, junto ao nº 486, e ali se mantiveram por pelo menos 20 minutos, sentadas, exibindo as faixas mencionadas, e impedindo a circulação dos veículos na referida via;
Para a realização da referida manifestação não foi efectuado o devido aviso escrito ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa pelas arguidas, nem por ninguém a seu pedido;
Em resultado da conduta das arguidas, criaram-se longas filas de veículos ao longo da Rua de S. Bento e artérias circundantes, impedindo a circulação de qualquer tipo de viaturas;
Ao actuar do modo acima descrito, as arguidas AA, BB e CC sabiam que a Rua de S. Bento é uma artéria reservada à circulação de veículos automóveis públicos e particulares com grande fluxo de trânsito, não podendo ali permanecer, mas apenas proceder à sua travessia, sendo esta uma das principais vias de acesso ao centro da cidade, nomeadamente, ao Largo do Rato.
Não obstante, as arguidas em comunhão de esforços e de intentos, sentaram-se ao longo da via, criando obstáculo à normal circulação de trânsito, na referida artéria e áreas circundantes, atentando, assim, contra a segurança dos transportes rodoviários, situação que representaram.
Ainda, ao actuarem do modo acima descrito, as arguidas agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que cada uma das suas condutas era proibida e punida pela lei penal.
Factos não provados
Que também as arguidas AA e BB façam parte do grupo organizado Climáximo, desde data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 04/10/2023;
Que ao actuarem do modo acima descrito, no que concerne à situação do aviso prévio, as arguidas AA, BB e CC tenham agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela Lei Penal, sabendo que não tinham de efectuar o devido aviso escrito com a antecedência mínima de dois dias úteis à realização da mesma ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.
Motivação da decisão facto
A prova documental, o auto de notícia por detenção, documento que não foi infirmado por qualquer outro meio de prova produzido em audiência e que é representativo dos factos quanto à hora, ao dia, ao mês ao ano e ao local e ao facto de as arguidas terem sido detidas, no local em apreço dos autos;
Auto de apreensão, de fls. 11, documento que demonstra que foi apreendida uma tarja com os dizeres “SABENDO O QUE SABES O QUE VAIS FAZER?” e o documento de fls. 12 que é uma fotografia da tarja em apreço nos autos.
A Impressão junta com a acusação, na qual se veem as fotografias das arguidas, de joelhos, uma delas sentada, exibindo os coletes e as tarjas referidos nos factos provados.
Estes meios de prova documental seriam redundantes, na medida em que as arguidas confessaram todos os factos a que se referem os referidos documentos, mas estes documentos confirmam as declarações das arguidas.
As arguidas prestaram declarações, assumiram a sua participação nos factos, tal como eles resultam da descrição feita nos factos provados, deram a sua justificação explicaram que são amigas, umas das outras, sendo que as arguidas AA e BB refutaram serem membros do grupo Climáximo, apenas explicando que por efeito de já terem participado em workshops e palestras, são meras apoiantes e por se reverem nas posições assumidas pelo referido grupo e por isso é que praticaram os factos a que se refere o processo e a arguida CC, por ser membro do grupo Climáximo e pela mesma razão.
Quanto ao elemento subjectivo, por regras de experiência comum, em face dos factos praticados pelas arguidas que não levanta qualquer dúvida de que as arguidas sabiam o que estavam a fazer, nenhuma delas negou a autoria dos factos, todas ouviram as declarações que as outras prestaram e não as infirmaram, tais declarações complementam-se entre si e o depoimento da testemunha inquirida na audiência (DD), agente da PSP que se deslocou ao local e presenciou os factos, tendo declarado de forma muito espontânea que, naquele local, «a circulação não se podia fazer», tendo revelado que as arguidas não demonstraram saber que deveriam ter feito o pré aviso para esta acção de protesto, no caso das arguidas a AA e BB por total desconhecimento acerca da necessidade desse aviso (ambas declararam que nem sequer sabiam da existência ou necessidade do aviso), no caso da arguida CC (que conhece este aviso, até por já ter participado noutras acções anteriores) por não ter representado essa necessidade, em virtude de se tratar de uma acção que só iria ser levada a cabo por três pessoas.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DOS RECURSOS
Quanto à nulidade da sentença prevista no art.º 379º nº 1 al. c) do CPP.
Nos termos do art.º 379º nº 1 al. c) do CPP, a sentença é nula, sempre que se verifique a ausência de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.
Esta sanção da nulidade, exclusivamente prevista para as sentenças (atento o princípio da legalidade em matéria de nulidades, ínsito no art.º 118º nºs 1 e 2 do CPP), visa garantir a completude ou exaustividade da decisão, de acordo com o qual, uma sentença deve conter, de forma esgotante, a apreciação dos factos e o respectivo enquadramento jurídico, em estreita coerência com o que foi alegado pelos sujeitos processuais; com a prova produzida e com o direito aplicável, segundo as várias soluções jurídicas possíveis e segundo os seus poderes de cognição, resultantes das regras do processo ou dos temas pertinentes à decisão de mérito sobre o objecto do processo ou sobre a tramitação do mesmo, que tenham sido colocadas à apreciação do tribunal, pelos sujeitos processuais.
Trata-se de assegurar a coincidência significativa entre o que é pedido e o que é julgado.
De acordo com o preceituado no nº 2 do artigo 608º do Código Processo Civil, aplicável, ex vi do art.º 4º do CPP, o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
A expressão questões que devesse apreciar «deve ser entendida em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pág. 142).
«O juiz deve conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado» (Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 704).
E também «não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º/1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora reimp, 1984, pág. 143).
É, pois, neste sentido, que deve ser interpretada a palavra «questões» incluída na previsão do art.º 379º nº 1 al. c) do CPP, sentido este, que não se confunde com os simples argumentos, teses doutrinárias ou jurisprudenciais, razões, ou opiniões invocados pelos sujeitos processuais para sustentar a sua pretensão, reconduzindo-se antes a problemas concretos com incidência e influência directa no desfecho do processo, esteja em causa uma decisão de mérito sobre o seu objecto, ou apenas a aplicação de normas de direito adjectivo que obstem ao conhecimento do fundo da causa.
«A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. c) do n.º 1 do art.º 379.º), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.» (Ac. do STJ de 09.02.2012, processo 131/11.1YFLSB, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 24.10.2012, processo 2965/06.0TBLLE.E1; de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB; de 17.06.2015 processo 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1; de 02.05.2018, processo 736/03.4TOPRT.P2.S1; de 05.06.2019, processo 8741/08.8TDPRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt e Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1182).
Também não se verifica esta nulidade se, porventura, a falta de tomada de posição pelo Tribunal se deve à resolução de uma questão prévia ou prejudicial que torna inútil ou impossível qualquer decisão sobre aquela que não foi contemplada expressamente na decisão.
Já no que concerne ao excesso de pronúncia, o conhecimento é proibido porque resulta de decisão não compreendida pelo objecto do processo, nem pelos poderes de conhecimento oficioso do Tribunal.
Ouvidos os cerca de 59 minutos da gravação da audiência em que o Mmo. Juiz proferiu a sentença recorrida, o que pode concluir-se, sem margem para qualquer dúvida, é que, depois de ter fixado os factos provados e não provados, foram expostos os motivos da convicção, com menção dos meios de prova produzida, indicação das razões pelas quais foram credibilizados e em que termos, a que se seguiu o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, tendo sido analisados, quer os elementos constitutivos do tipo legal de crime tipificado no art.º 290º do CP, quer os direitos constitucionais de manifestação e de deslocação, a causa de exclusão da ilicitude da colisão de direitos, a análise do modo como as arguidas exerceram o seu direito fundamental de manifestação, no confronto com o direito de deslocação dos utentes da via pública em que as mesmas se manifestaram, quer à luz da referida causa de exclusão da ilicitude, quer do princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º da CRP, concluiu que as três arguidas se constituíram coautoras materiais do crime p. e p. pelo art.º 290º do CP, ainda analisou a coautoria, após o que fixou as penas por reporte aos critérios normativos previstos no art.º 71º do Código Penal.
Comparando tal gravação com o objecto do processo, tal como o mesmo resultou delimitado pela acusação (referência Citius 429503102) e com os requisitos de forma e de conteúdo que a decisão final condenatória deve reunir, de acordo com o que dispõe o art.º 374º e o art.º 389º-A do CPP, o que compete, nesta sequência, perguntar, afinal, é qual foi a questão acerca da qual o Tribunal recorrido não tomou posição expressa, ou qual foi o assunto sobre o qual se pronunciou e não podia tê-lo feito ?
Desconhece-se, pela simples razão de que da audição da sentença proferida e impugnada neste processo não se descortina nem excesso nem omissão de pronúncia e a recorrente também não lhe faz qualquer referência, antes fez depender a nulidade da sentença da sua visão divergente acerca da forma como na sentença recorrida foi abordado o problema da colisão de direitos entre o direito fundamental à manifestação e o direito fundamental à liberdade de deslocação e à hierarquia entre os dois direitos que ali ficou estabelecida para afastar a aplicação do preceituado no art.º 31º nº 2 al. b) do CP.
Ora, insurgência contra o conteúdo de uma sentença judicial não a torna nula por omissão nem por excesso de pronúncia. A questão poderá ser de erro de direito, mas não é, garantidamente de nulidade, nos termos previstos no art.º 379º nº 1 al. c) do CPP.
Nesta parte, o recurso da arguida não merece provimento.
Quanto à impugnação da matéria de facto.
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art.º 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa, é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt) e porque não envolve um novo julgamento, em face da concepção do recurso penal como um mero remédio jurídico destinado à correcção de erros pontuais e não a uma substituição da convicção do tribunal de primeira instância pela convicção do tribunal do recurso.
Esses limites são os seguintes:
Em primeiro lugar, a imposição, como condição essencial, da reapreciação da actividade probatória realizada durante a audiência de discussão e julgamento, do cumprimento do ónus de impugnação especificada previsto no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP.
O cumprimento deste triplo ónus envolve: a especificação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados; a indicação expressa do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, sendo os excertos/segmentos/passagens das declarações ou depoimentos identificados por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º (nº 4 do artigo 412º do C.P.P.), ou através da identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados, a exposição das concretas razões da discordância, ou seja, dos motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo proposto, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 7 ao art.º 412º., pág. 1144).
Em segundo lugar, partindo da constatação de que fruto da natural falta de oralidade e de imediação em fase de recurso, com a consequente restrição do «contacto» do Tribunal da Relação com as provas, ao que consta das gravações, a convicção do Tribunal de primeira instância só não prevalecerá, se as concretas provas indicadas pelo recorrente e os argumentos por si aduzidos na análise das provas especificadas ilustrarem que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é arbitrária, impossível, ilegal ou desprovida de razoabilidade (Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253).
Em terceiro lugar, a forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os referidos princípios que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso penal como um mero remédio jurídico (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
Em quarto lugar, o limite que resulta do facto de o tribunal de segunda instância, no recurso da matéria de facto, poder alterar a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, se as provas indicadas pelo recorrente impuserem necessariamente uma decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art.º 412º).
Assim, a convicção do julgador, no tribunal do julgamento, só poderá ser modificada se, depois de cabal e eficazmente cumprido o triplo ónus de impugnação previsto no citado art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, se constatar que a decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados quando comparada com a prova efectivamente produzida no processo, deveria ter sido a oposta, seja porque aquela convicção se encontra alicerçada em provas ilegais ou proibidas, seja porque se mostram violadas as regras da experiência comum e da lógica, ou, ainda, porque foram ignorados os conhecimentos científicos, ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e «in dubio pro reo», assim como, as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso.
«A censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção (…)”.
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de 10.09.2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, por todos, Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, proc. 729/17.4GBVVD.G1 in http://www.dgsi.pt).
Para que possa ser dada por verificada, a arbitrariedade, a impossibilidade lógica e/ou a ilegalidade da decisão da matéria de facto recorrida em que se materializa o erro de julgamento, este terá necessariamente de resultar de se ter dado como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem que este o tenha presenciado ou, por outro motivo, não tenha razão de ciência que permita atribuir fidedignidade a esse depoimento; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; ou com fundamento em provas proibidas, dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido, ou o assistente ou parte civil não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram, ou que disseram o contrário e esses relatos terem sido desconsiderados, apesar de verdadeiros e credíveis; dar-se como provado um facto com base num documento, ou relatório pericial do qual não consta o que se deu como provado, ou consta o seu contrário; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições e pressupostos em que esta podia operar (neste sentido, Acs. da Relação do Porto de 04.02.2016, proc. 23/14.2PCOER.L1-9, da Relação de Lisboa de 04.05.2017, proc. 12/15.0JDLSB.L1-9, da Relação de Lisboa de 11.03.2021, proc. 179/19.8JDLSB.L1-9, da Relação de Lisboa de 26.10.2021, processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, da Relação de Coimbra de 25.10.2023, proc. 101/20.9T9GVA.C2, in http://www.dgsi.pt).
A arguida recorrente BB invocou as seguintes provas concretas:
Do segmento da gravação da audiência - Diligencia_1325-23.2PELSB_2023-10-20_11- 43-58 - declarações da Arguida AA passagem constante do minuto 02:10, que passamos a citar, - "o nosso objetivo não era afetar ninguém, nem colocar ninguém em risco''. O tribunal questiona a arguida, "Mas, representaram ou viram, aperceberam-se que isso criou filas de trânsito?" - A Arguida responde "Sim".
Do segmento da gravação da audiência - Diligencia_1325-23.2PELSB_2023-10-20_11- 55-06 - declarações da arguida BB passagem constante do minuto 03:10 inquirição do Tribunal "Levaram o tal colete refletor laranja com a estampagem "Climaximo"! Aonde é que arranjaram esses refletores?". A arguida responde "Fizemos". Tribunal questiona "Porque colocaram Climáximo e não outra coisa qualquer?". A Arguida responde "Porque é uma associação que se preocupa com o ambiente".
A instância da Defesa - passagem constante do Minuto 06:30 - é questionada a arguida, "se se revê em outras entidades ligadas ao meio ambiente?". A arguida responde "Sim, Já estive presente em palestras e workshops da greve climática estudantil, SOS racismo, da rede feminista e outras organizações que agora não me lembro". Questionada pela Defesa, "O que estuda?". A Arguida responde "Geologia". Mais se questiona, "Se o facto de estudar Geologia também leva a esta necessidade de se querer manifestar por esta questão ambiental? O Tribunal intercede e diz que a resposta é óbvia.! Por último a Defesa questiona a Arguida, "Se se revê nos princípios ou nas próprias atuações da Climáximo?". A Arguida responde, "Revejo, sim, nos princípios de pacifismo e de alerta à crise climática, mas não me revejo como é óbvio em todas as ações".
Do segmento da gravação da audiência - Diligencia_1325-23.2PELSB_2023-10-20_12- 20-22 - depoimento da testemunha DD, agente da PSP, passagem constante do Minuto 00:38 a instância do Ministério Público a testemunha é questionada, "Relativamente à questão das Arguidas se terem sentado na passadeira e terem impedido o trânsito (...) só queria confirmar se quando o senhor chegou lá se viu filas de trânsito?". A testemunha responde, "Sim". O MP questiona, "A circulação não se podia fazer normalmente devido às Arguidas estarem na passadeira?", a testemunha responde, "Sim". Mais questiona o Ministério Público, "Quando abordou as Arguidas perguntou se elas tinham autorização para se estar a manifestar naquele local?", a testemunha responde, "Perguntei e elas disseram que não.". O Ministério Público questiona, "E pareceram surpreendidas com a pergunta?" Testemunha responde, "Sim".
E em conjugação com estes segmentos das declarações das arguidas e do depoimento da testemunha DD, do auto de apreensão de fls. 11 e da fotografia de fls. 12 referente à tarja com os dizeres “SABENDO O QUE SABES O QUE VAIS FAZER?”, a recorrente BB pretende que se conclua que as arguidas não sabiam que a Rua de S. Bento é uma das principais vias públicas de Lisboa, por regra, frequentada por um número indiscriminado de veículos automóveis públicos e particulares, com grande fluxo de trânsito não podendo ali permanecer, mas apenas proceder à sua travessia, sendo esta uma das principais vias de acesso ao centro da cidade, nomeadamente ao Largo do Rato, que as arguidas não se concertaram entre si, nem combinaram sentar-se ao longo da via criando obstáculo à normal circulação de trânsito na referida artéria e áreas circundantes atentando, assim, contra a segurança dos transportes rodoviários, nem representaram tal situação e ainda que não agiram de forma livre, deliberada e consciente, nem sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Em primeiro lugar, cumpre referir que a informação relevante que é possível retirar, à luz do princípio da livre apreciação da prova que vigora em matéria de exame crítico e valoração de prova por declarações de arguidos e depoimentos de testemunhas, nos termos do art.º 127º do CPP, em que pontuam regras de experiência comum e critérios de razoabilidade lógica, é apenas a de que a motivação das arguidas foi sempre, em todos os momentos, a de lutarem por uma determinada causa, a da justiça climática e que o fizeram associadas ou em colaboração com a associação Climáximo por lhe reconhecerem credibilidade perante as suas preocupações com o ambiente e com os princípios que preconiza em defesa dessa causa.
A outra informação relevante que se pode retirar das referidas provas concretas, é a de que nenhuma das arguidas sabia ou lhe ocorreu a necessidade de cumprir o dever de comunicação prévia desta sua acção de sensibilização, ou protesto, em cumprimento do D.L. 406/74 de 29 de Agosto.
No mais, o que fluí daqueles excertos de declarações das arguidas e do depoimento da testemunha DD não neutraliza minimamente os factos de as arguidas conhecerem muito bem as características físicas da Rua de S. Bento, que, de resto, nem podiam ignorar, posto que foi ali que se manifestaram e as próprias reconheceram que se sentaram em plena faixa de rodagem, de resto, como também se pode ver nas imagens anexas à acusação e impressas do próprio site da internet da associação Climáximo.
Não consta de toda a prova produzida que alguém tenha escolhido por elas o local em que se iriam manifestar pela forma e com o método que resulta descrito na matéria de facto dada como provada, na sentença recorrida, nem, tão-pouco, que as arguidas tenham sido forçadas por terceira pessoa a manifestarem-se como o fizeram, naquele dia 04/10/2023, na Rua de S. Bento em Lisboa, nem que para ali tenham sido levadas à força e contra sua vontade por alguém.
Muito pelo contrário, o que os excertos das suas declarações transcritos no recurso da arguida BB evidenciam é que, não só agiram de forma livre, como o fizeram de modo deliberado e cientes do impacto na circulação na Rua de S. Bento que iriam causar ao se sentarem a ocupar a faixa de rodagem em toda a sua largura, como o fizeram.
Ora, sendo as arguidas cidadãs livres, dotadas de inteligência e discernimento, logo, penalmente capazes de avaliarem a ilicitude dos seus comportamentos e de se autodeterminarem de acordo com essa avaliação, como as suas declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento claramente revelam, o que se impõe concluir é que, mais do que não imporem decisão diversa da recorrida, as provas concretas invocadas pela arguida recorrente BB até corroboram a decisão de facto contida na sentença recorrida.
De resto, se não fosse para impedirem o trânsito de veículos automóveis de circular pela Rua de S. Bento, nem sequer teriam escolhido como exacto local para se manifestarem a própria faixa de rodagem destinada aos veículos automóveis e muito menos, teriam recorrido ao método de se sentarem no chão, ocupando e obstaculizando a via pública, em toda a largura desta, como o fizeram, pois sempre poderiam usar o passeio ou ter optado por exercerem o seu direito de se manifestarem, em movimento e transitando a pé por essa e, eventualmente, outras ruas de Lisboa.
Portanto, não há qualquer erro de julgamento e a impugnação ampla suscitada pela arguida recorrente BB está votada ao insucesso.
Quanto aos vícios decisórios da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada e do erro notório na apreciação da prova.
O art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
Trata-se de vícios estruturais cuja apreciação não envolve nem pode envolver qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque só o texto da decisão recorrida os pode evidenciar. Referem-se apenas à forma como a decisão se encontra redigida, pelo que a indagação da sua existência faz-se, exclusivamente, a partir da análise do respectivo texto, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo, com excepção das regras de experiência comum.
Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento (Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
A insuficiência da matéria de facto para a decisão, verifica-se sempre que a conclusão extravase as premissas, em virtude de a matéria de facto provada e não provada ser insuficiente para fundamentar a decisão, segundo as diversas soluções de direito potencialmente aplicáveis e de essa insuficiência ser resultante da inobservância dos princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material, ou seja, quando após o julgamento e por não se encontrarem esgotadas todas as possibilidades de investigação dos factos relevantes para a decisão final, persista uma incerteza sobre se os factos que resultaram exarados no texto da decisão preenchem ou não a descrição típica de um crime, ou de uma circunstância modificativa agravante ou atenuante, de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, de circunstâncias relevantes para a escolha e determinação concreta da pena, ou antes, se alicerçam um estado de dúvida gerador de uma absolvição, por aplicação do princípio in dubio pro reo (que assenta na insuficiência da prova produzida, mas não da actividade de investigação e recolha dessa prova, pois que pressupõe a plena observância do princípio da descoberta da verdade material quanto aos factos que integram o objecto do processo, logo, a realização de todas as diligências probatórias pertinentes e admissíveis).
«Quanto ao vício previsto pela al. a), do n.º 2, do art.º 410.º, do CPP - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - este só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorreta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.» (Ac. do STJ de 12.04.2018, processo 140/15.1T9FNC.L1.S1, in http://www.dgsi.pt).
«A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada tem lugar quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado» (Ac. da Relação de Coimbra de 24.04.2018, processo 1086/17.4T9FIG.C1, in http://www.dgsi.pt).
«Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal». (Ac. da Relação de Coimbra de 12.06.2019, processo 1/19.5GDCBR.C1. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 15.07.2020, processo 189/17.0PAAMD.L1-3, de 20.02.2021, processo 18/17.4PESXL.L1.-3 e de 03.03.2021, processo 257/18.0GCMTJ.L1-3, todos, in http://www.dgsi.pt).
A insuficiência tem de transparecer de forma clara e notória, do próprio texto da decisão, por si só, ou em conjugação com as regras de experiência comum e significa que os factos apurados, tal como são descritos na decisão recorrida não chegam para alicerçar a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções jurídicas possivelmente aplicáveis – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, – em virtude de o tribunal não se ter pronunciado sobre todos os factos que integram o objecto do processo, alegados pela acusação ou pela defesa, ou resultantes da discussão da causa e que possam e devam ser atendidos para a decisão nos termos consentidos pelos arts. 358º e 359º do CPP.
Verifica-se, em suma, quando a decisão de direito ultrapassa a decisão de facto.
Mas qual foi então a diligência probatória que ficou por realizar e que, sendo possível, era essencial ou relevante para a descoberta da verdade? E que factos teriam resultado demonstrados, se tal diligência tivesse sido realizada?
A recorrente não o disse e antes parece confundir insuficiência para a decisão da matéria de facto provada com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada.
Como se referiu, este vício só existe quando do acervo factual descrito na sentença se constata faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados e julgados (provados ou não provados), são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição; ou, ainda noutra formulação, quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo, tal como está configurado pela acusação e pela defesa.
Mas o que a recorrente impugna não é sequer o texto da decisão.
Nesta parte, o recurso é até ininteligível pois que, nem nas motivações, nem nas conclusões se vislumbra em que é que possa ter-se traduzido este vício.
Com efeito, não foi apresentado um único argumento retirado da análise do texto da sentença recorrida do qual tenha resultado especificado que facto ou factos eram essenciais ou, pelo menos, necessários para o sentido da decisão, que tenham ficado de fora da actividade investigatória do Tribunal e que este não indagou e devesse ter apurado e conhecido, como lhe competia.
O erro notório na apreciação da prova supõe que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, deflua de forma fácil, evidente e ostensiva, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, que a factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica mais elementar, a regras científicas ou de experiência comum, ou assenta na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis, sendo notórias as distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária e de todo insustentável, consequentemente incorrecta da matéria de facto.
«Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que está notoriamente errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando de um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (…)» (Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º.
«É o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» (Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol III, pág. 341), ou seja, a um juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.
«O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio» (Ac. do STJ de 06.10.2010 Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1.. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB, de 12.03.2015, proc. 724/01.5SWLSB.L1.S1, de 24.02.2016, proc. 502/08.0GEALR.E1.S1, de 07.06.2017, proc. 516/13.9PKLRS.L1.S1, de 06.12.2018, proc. 22/98.0GBVRS.E2.S1 e de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1, ambos in http://www.dgsi.pt).
«A existir erro notório (…), ele teria de ser evidente, detectável espontaneamente no texto da decisão, e resultar deste, ou do encontro deste com as regras da experiência comum. Pois o erro notório traduz-se em considerar provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74)» (No mesmo sentido, Acs. da Relação de Évora de 09.01.2018, proc. 31/14.3GBFTR.E1, da Relação de Coimbra de 10.07.2018, proc. 26/16.2GESRT.C1, da Relação de Lisboa de 10.11.2020, proc. 9/18.8GBALM.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
«A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.» (Ac. do STJ de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1 in http://www.dgsi.pt).
O erro notório na apreciação da prova tem de ser ostensivo, resultar de forma notória e evidente do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum e nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento, porque esta refere-se ao princípio da livre apreciação da prova, ao modo como o Tribunal valora as provas e forma a sua convicção a partir delas, em suma, ao erro de julgamento, nos termos previstos no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, o qual só poderá ser apreciado e conhecido, se no recurso for suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
O erro de julgamento refere-se à apreciação e valoração da prova produzida, enquanto que o erro notório é um vício estrutural da própria decisão, cuja verificação abdica da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, portanto, tem de ser feita sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo.
«O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.» (Ac. da Relação do Porto de 09.01.2020, processo 1204/19.8T8OAZ.P1, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 22.09.2020, proc. 3773/12.4TDLSB.L1-5, Ac. da Relação de Guimarães de 25.10.2021, proc. 870/18.6PBGMR.G1, Ac. da Relação de Évora de 25.01.2022, proc. 114/19.3T9STR.E2, na mesma base de dados).
Para aferir da existência do erro notório na apreciação da prova, é preciso ter presente, desde logo, a descrição dos factos provados e não provados e as correlações que possam estabelecer-se entre eles, do ponto de vista físico ou natural, à luz da possibilidade real da sua ocorrência e bem assim daquilo que geralmente acontece, em seu resultado (o chamado «id quod plerumque accidit»).
Complementarmente, é ainda necessário, analisar o texto da fundamentação da decisão de facto, quanto aos motivos da convicção, à espécie de meios de prova obtidos e valorados, bem como aos processos intelectuais em que assentam as conclusões formuladas.
Se depois de tudo visto, se puder afirmar a integridade do processo racional e lógico de formação da convicção sobre a prova, a consequência será a inexistência do erro notório. Se, ao inverso, resultar a irrazoabilidade, a arbitrariedade, ou impressionismo da convicção sobre os factos, haverá erro notório na apreciação da prova.
Da audição da gravação da sentença não resulta que se tenha retirado de qualquer dos factos uma conclusão inaceitável, à luz da lógica ou de critérios de razoabilidade, nem que tenha sido considerado provado algum facto de verificação notoriamente impossível, ou sido dado como não provado algo que resulta evidente que aconteceu, nem qualquer ambiguidade, ou contradição entre os factos ou entre os factos e a motivação ou entre algum destes items e a fundamentação de direito e a decisão, do mesmo modo que não se detecta a falta de realização de alguma das diligências probatórias tidas por necessárias para o apuramento da verdade dos factos constantes da acusação, ainda possíveis, mas pura e simplesmente omitidas.
Em contrapartida, das alegações e conclusões do recurso, antes se afigura que a recorrente misturou e confundiu o erro de julgamento com os vícios decisórios e todos estes com a sua divergente opinião em relação à apreciação da prova feita pelo Tribunal do julgamento.
Outra não pode ser a interpretação a retirar da circunstância de a arguida BB não ter feito qualquer alusão ao teor literal, por assim dizer, da sentença e, ao mesmo tempo, ter centrado a sua insurgência em excertos das declarações das arguidas e do depoimento da testemunha que transcreveu nas motivações do seu recurso, para com eles ilustrar a insuficiência da matéria de facto para a decisão e o erro notório na valoração da prova.
A indagação da existência de qualquer dos vícios decisórios não se confunde com uma eventual incongruência, contradição ou outro tipo de desconformidade entre a prova produzida e a decisão do tribunal, pois a verificar-se tal incongruência, contradição ou desconformidade, a mesma respeita ao mérito do julgamento da matéria de facto a ser aferido de acordo com o tríplice ónus de impugnação especificada previsto no art.º 412º nºs 3,4 e 6 do CPP e não a qualquer vício manifesto do texto da própria sentença.
Assim sendo, não será lícito recorrer à prova produzida para surpreender qualquer dos referidos vícios, exactamente porque não se pode confundir aqueles com erro de julgamento.
Erro vício e errada apreciação e valoração da prova são duas realidades distintas e inconfundíveis.
Daí que, no que se refere aos vícios decisórios, o recurso da arguida BB também improcede.
Em relação às questões de uma eventual hierarquização entre os direitos fundamentais à manifestação e à liberdade de deslocação e da verificação ou não da causa exclusão da ilicitude, elas estão interligadas e serão apreciadas em conjunto sendo que foram suscitadas em ambos os recursos.
As recorrentes invocaram que o seu comportamento não é ilícito, em virtude de se encontrar justificado pelo exercício do seu direito à manifestação.
O art.º 31º nº 1 do CP, ao referir que «o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade», consagra o princípio da unidade da ordem jurídica, segundo o qual as causas de justificação não se contêm nos limites da jurisdição criminal, antes podendo emergir de qualquer outro ramo de direito.
Este princípio está em harmonia com a natureza fragmentária, necessária e de «ultima ratio» do direito penal, do que resulta que jamais uma conduta poderá ser considerada ilícita pelo direito penal, se à luz de qualquer outro ramo de direito essa mesma conduta for lícita.
Cabem na previsão do nº 1 as causas de exclusão da ilicitude que não se integrem em alguma das enumeradas no nº 2 do mesmo art.º 31º, como, por exemplo, a adequação social, os comportamentos dirigidos a um fim lícito ou a prossecução de interesses legítimos.
Por seu turno, a enumeração contida no art.º 31º nº 2 do CP é meramente exemplificativa como a inclusão do advérbio «nomeadamente» evidencia.
Assim, ao contrário da incriminação das condutas humanas qualificadas como crimes em relação à qual vigoram os princípios da legalidade e da tipicidade criminais, no domínio das causas de exclusão da ilicitude, são outros os critérios de interpretação e integração dos tipos justificadores e a sua fonte, a ordem jurídica, considerada no seu conjunto.
«As causas de justificação não estão subordinadas ao princípio da legalidade, nos mesmos termos que os tipos incriminadores, (…), podendo admitir-se causas de justificação provenientes de outros ramos do direito, incluindo o direito da União Europeia. Os elementos objectivos da causa de justificação devem ser submetidos à teoria da causalidade adequada, isto é, devem ser previsíveis para o homem médio colocado na posição do agente, munido dos conhecimentos especiais deste. Para agir justificadamente, o agente tem de possuir um conhecimento actual dos pressupostos fácticos do tipo justificador (…). O tipo justificador não tem apenas elementos objectivos, mas também tem elementos subjectivos. A presença dos elementos subjectivos do tipo justificador afasta o desvalor da acção. A causa de justificação da prossecução de interesses legítimos não depende da existência de uma situação de perigo actual nem da sensível superioridade do bem jurídico a salvaguardar, mas depende da verificação dos princípios da proporcionalidade e da necessidade» (Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica, 5ª edição actualizada, Lisboa 2022, em anotação ao artigo 31.º. No mesmo sentido, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, volume I, edição da AAFDL, páginas 220 a 231; Eduardo Correia, Direito Criminal, 1971, volume II, P. 8, que admite o recurso à analogia para aplicação de normas penais negativas, distinguindo entre as causas de justificação que tornam lícita a ofensa a um direito fundamental e as causas de justificação que legitimam a inobservância dos limites impostos ao exercício de um direito fundamental, exemplificando como a colisão de direitos e o conflito de deveres são causas de exclusão da ilicitude cuja verificação pode exigir o recurso a princípios gerais de direito, para além do direito positivo).
Não é da essência do direito penal outorgar direitos, porque o que o carateriza é a imposição de sanções para o incumprimento de deveres de acção ou de abstenção.
Esta causa de exclusão da ilicitude emerge das chamadas normas jurídicas antitéticas – as que coexistem na mesma ordem jurídica e que em relação ao mesmo facto o qualificam como crime e como exercício de um direito ou cumprimento de um dever – e da necessidade de delimitar os respectivos âmbitos de aplicação em caso de concurso ou convergência, para dirimir a concorrência de efeitos jurídicos distintos ou mesmo contraditórios, que da sua aplicação possam resultar, resolvendo-se o concurso, por via do critério da especialidade, ou através do critério da subsidiariedade.
«Colocada a questão das causas de justificação, no plano das normas, os limites das normas incriminadoras podem encontrar-se em normas de todos os ramos da ordem jurídica, enquanto antitéticas das normas incriminadoras. Impossível, por isso, seria seriá-las exaustivamente ao lado das causas de justificação expressamente previstas e regulamentadas pelo Cód. Penal (…).
«Mas, no plano real, as causas de justificação são circunstâncias do facto em razão das quais é excluída a sua ilicitude. Não é a norma limitativa da norma incriminadora que entra na estrutura do facto justificado. Por isso, o Cód. Penal fala no “exercício” de um direito (…). O facto será um facto punível, que em razão da modalidade que reveste, da circunstância que nele concorre, se trasmuda em exercício de um direito (…).
«É mais imprecisa a identidade das circunstâncias justificativas, porque são referidas indirectamente enquanto condicionam o “exercício” do direito (…), em função não apenas dos direitos (…) em geral, mas relativamente a cada direito (…) a tomar em consideração, desde que possa revelar-se como limitativo da incriminação.
«Haverá, portanto, frequentemente, que atentar nos próprios limites no exercício do direito, intrínsecos e extrínsecos, como constam do Cód. Civil (…) e ainda, na faculdade excepcional do exercício coactivo de direitos que também o Cód. Civil prevê, denominando-o «acção directa», no art.º 336º» (Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, I, Editorial Verbo, 1987, p. 157).
Com efeito, também a acção directa e o estado de necessidade correspondem a «exercício de direitos», assim como a legítima defesa, pelo que o relevo e efeito útil da previsão contida no art.º 31º nº 2 al. b) do CP, radica no seu carácter residual e na sua virtualidade de aplicação fora e para além das causas de exclusão da ilicitude expressamente reguladas pelos diversos ramos de direito que integram a ordem jurídica portuguesa, em sintonia com a constatação da impossibilidade de catalogação das causas de justificação, dada a multiplicidade de fontes de que podem resultar (Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Livraria Almedina, 1988, p. 9 a 14).
Contra a tese das arguidas, o Tribunal recorrido considerou que a manifestação que levaram a cabo, nos termos descritos na matéria de facto provada não se encontra justificada, porque as arguidas afrontaram ilegitimamente o direito de livre circulação dos utentes da via pública, ao obstaculizarem o processamento do tráfego rodoviário através da Rua de S. Bento, sentando-se e ocupando com tarjas com determinadas expressões a faixa de rodagem em toda a largura da mesma e porque a violação desse direito criou risco de lesão de doutros direitos fundamentais como o direito ao trabalho e à prestação de cuidados de saúde.
De harmonia com o art.º 11º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Constituição da República Portuguesa consagra os direitos de reunião e de manifestação, no art.º 45º, o qual reconhece a todos os cidadãos o direito de se reunir e manifestar, desde que o façam de forma pacífica e sem armas.
São direitos individuais, mas de exercício coletivo, por natureza (Sérvulo Correia, O Direito de Manifestação — Âmbito de Proteção e Restrições, Ed. Almedina, Coimbra, 2006, p. 37; João Paulo Miranda de Sousa, O Direito de Manifestação, Boletim do Ministério da Justiça (375) Lisboa, 1988, p. 7 e seguinte; Ana Rita Pecorelli, Liberdade de reunião e de manifestação – Crime de desobediência, in Revista do Ministério Público, n.º 113, Lisboa, 2008, p. 145 e seguintes).
Os direitos de reunião e de manifestação são liberdades essenciais num Estado de Direito Democrático, dada a sua estreita conexão com a liberdade de expressão (art.º 37º da CRP) e afinidade com os direitos de associação (arts. 46º e 51º da CRP) e de participação na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país (art.º 49º da CRP), sendo importantíssimos mecanismos de reflexão colectiva e de formação e expressão da opinião pública.
«É por isso que esses direitos podem ser englobados entre os direitos fundamentais democráticos. Mas a sua inserção em sede de direitos, liberdades e garantias justifica-se pela dimensão comunicativa geral que a informa. A comunicação com os outros e reunir-se com os outros é um direito fundamental de liberdade comunicativa indispensável ao próprio desenvolvimento da personalidade. Esta dimensão será relevante quanto à delimitação das ingerências restritivas. A liberdade de reunião e manifestação é instrumento de garantia de outras liberdades, designadamente, a liberdade política (reuniões e manifestações políticas, comícios e desfiles eleitorais), a liberdade sindical (reuniões e manifestações laborais), a liberdade religiosa (reuniões e manifestações religiosas, procissões e cerimónias), a liberdade de associação e de organização colectiva em geral (reuniões e manifestações de associados)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição portuguesa revista, Coimbra Editora, 2007, p. 636).
Estes direitos de reunião e manifestação têm um conteúdo específico, necessariamente integrado pelas seguintes características: inexistência de impedimentos e desnecessidade de autorizações prévias para o exercício do direito de reunião com outrem e de se manifestar, seja para a convocar, seja para participar da reunião e/ou da manifestação; direito de não ser perturbado nem sofrer pressões ou ingerências abusivas de terceiros, designadamente, contramanifestantes ou opositores que condicionem ou impeçam o livre exercício do direito de reunião e de manifestação, incluindo um direito à protecção pelo Estado contra ataques ou ofensas de terceiros; direito de usar locais de livre acesso ao público, incluindo vias públicas, sem quaisquer limitações, que não sejam as necessárias para assegurar outros direitos fundamentais concorrentes; direito de escolha livre do dia, hora, local, forma e conteúdo e, em consonância, o de obter acesso a recintos, salas e outros espaços públicos para a realização da reunião e/ou da manifestação.
Para além desta componente positiva e à semelhança de outros direitos, a liberdade de reunião e de manifestação tem também uma vertente negativa: a de que ninguém pode ser forçado, sob ameaça, coacção, ou outras formas coercivas, a participar de reuniões e/ou manifestações.
«A participação compelida ou coagida em reuniões e manifestações é própria de regimes totalitários e atenta contra a dimensão primária de tais direitos: a liberdade. Constituem atos ilícitos de detenção ou outros modos abusivos de privação da liberdade, ao arrepio das garantias consignadas constitucionalmente no artigo 27.º.» (Parecer nº 11/2024 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, p. 13 https://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/pp2021011.pdf).
Há apenas duas restrições ao pleno exercício destas liberdades – as exigências constitucionais de que as reuniões e manifestações sejam levadas a cabo sem quaisquer armas (quer na acepção clássica do direito penal de armas de fogo, armas brancas e de arremesso, quer por referência a regras de experiência comum, retiradas da utilização recorrente de determinados objectos para praticar agressões físicas ou actos de destruição de coisas corpóreas como correntes, bastões, etc.) e de que sejam de carácter pacífico, exigência que não se confunde com a ausência do uso de armas ou objectos actuando como tal, designadamente, como acontece quando as manifestações ou reuniões descambam em tumultos, motins, saques, destruição de bens públicos e privados, ou confrontos físicos.
Dependendo da amplitude e do número de pessoas envolvidas, podem legitimar uma intervenção policial localizada, pontual e circunscrita à minoria de participantes envolvidos em actos violentos ou, simplesmente, conduzir à dissolução da reunião ou à dispersão dos manifestantes.
Do mesmo modo, não é pela circunstância de parte ou a maioria dos participantes cometer actos ilícitos, mesmo que penalmente relevantes, que confere carácter violento à reunião ou à manifestação.
«O carácter pacífico e sem armas das reuniões e das manifestações é um imperativo de liberdade: de liberdade dos que se reúnem, de modo a impedir a sujeição a qualquer forma de coacção, e de liberdade de terceiros, não ameaçados por qualquer reunião.
«Também aqui a ordem pública aparece como corolário das justas exigências do respeito dos direitos das pessoas (artigo 29.º/2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem)» (António Clemente Lima, Reuniões, Manifestações e Actuação Policial, notas para uma conferência, Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, Lisboa, 25 de Maio de 2006, http://www.igai.pt/publicdocs/Disc_IG25Mai2006.pdf).
«Para além da exigência do carácter pacífico e da ausência de armas, nenhum outro limite substancial existe para a liberdade de reunião ou de manifestação (ressalvadas porventura as reuniões e manifestações de índole racista ou fascista quando elas forem expressões de organizações da mesma natureza: cfr. art.º 46º nº 4, in fine). Designadamente, não é possível estabelecer qualquer controlo sobre o objecto ou assunto da reunião ou sobre a mensagem ou objectivos da manifestação (não havendo, neste aspecto, mais limites do que os da liberdade de expressão)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição portuguesa revista, Coimbra Editora, 2007, p. 636).
A circunstância de a Constituição da República Portuguesa proibir a sujeição das reuniões e manifestações a prévia autorização de quem quer que seja não é incompatível com a exigência legal de comunicação prévia da sua realização ao Presidente da Câmara Municipal que for a do local da manifestação.
Mais, a exigência legal dessa comunicação, nos termos previstos e regulados no DL 406/74 de 29 de Agosto, é até necessária para a prossecução de diversas finalidades, entre as quais avultam duas essenciais: a de assegurar o exercício pleno e em condições de segurança e liberdade para os próprios participantes do direito de reunião e de manifestação; a de compatibilizar esses direitos com outros direitos fundamentais potencialmente concorrentes e/ou conflituantes dos não participantes.
Nos termos do artigo 2.º do DL 406/74 de 29 de Agosto, segundo a redacção da Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro, as pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos devem avisar, com antecedência mínima de dois dias úteis, o presidente da câmara municipal competente. O aviso deve ser assinado por três dos promotores, devidamente identificados e, por imposição do art.º 3º, o aviso deverá ainda conter a indicação da hora, do local e do objeto da reunião e, quando se trate de manifestações ou desfiles, a indicação do trajeto a seguir.
Claro que a alusão ao objecto da reunião destina-se a aferir se o tema da reunião ou a mensagem que se visa difundir com a manifestação versa sobre algum dos proibidos pelo art.º 46º nº 4 da CRP (v.g. racismo e ideologia fascista) ou contrários ao objecto pré definido no art.º 45º da CRP e no art.º 1º do DL 406/74 de 29 de Agosto (violência e /ou uso de armas), que serão os únicos casos em que será possível proibir o exercício do direito de reunião, dado o seu carácter ilícito e sempre com estrita observância dos princípios da legalidade e da proporcionalidade das medidas de polícia, conforme exigido pelo art.º 272º nº 2 da CRP.
Com efeito, é a imposição legal da obrigação de aviso prévio, nos termos previstos naqueles arts. 2º e 3º que permite o subsequente cumprimento de um conjunto de disposições normativas contidas naquele D.L. 406/74 de 29 de Agosto, de que se destacam as regras dos arts. 4º, 5º, 6º, 7º, 12º, 13º e 15º que versam sobre questões como as da garantia da ordem e tranquilidade públicas, da regulação alternativa do tráfego rodoviário, da protecção e segurança individual e colectiva dos participantes em matérias como a das contramanifestações que podem criar riscos para a saúde, a integridade física, ou até a vida dos intervenientes e/ou para bens patrimoniais de elevado valor, assim como de interrupções e de ocupação de órgãos de soberania e de edifícios públicos.
«A comunicação prévia pode ser um instrumento para assegurar a dimensão prestacional ou o dever estatal de prestação positiva deste direito».
«As autoridades públicas estão obrigadas a tratar as reuniões e manifestações “de forma amistosa” dentro do quadro das suas competências e a colaborar positivamente segundo padrões de razoabilidade e adequação na efetivação destes direitos (proteção de manifestantes, utilização de ruas, utilização de edifícios, mas já não subsídios para participar em reuniões ou dispensa do serviço público para esse efeito)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra Ed., 2007, p. 640).
Assim:
Os cortejos e desfiles só podem ter lugar aos domingos e feriados e, aos sábados, a partir das 12h. Nos restantes dias, podem realizar-se a partir das 19h30 (art.º 4º), o que bem se compreende, como forma de compatibilizar a liberdade de manifestação com o direito ao descanso dos outros cidadãos e também para permitir a quem pretenda participar, que o faça sem constrangimentos decorrentes, por exemplo, da necessidade de cumprir compromissos laborais e/ou académicos.
As autoridades podem alterar itinerários, se tal for indispensável, para assegurar o bom ordenamento do trânsito. As alterações devem ser comunicadas por escrito aos promotores (art.º 6º), o que é igualmente razoável para compatibilizar o direito de manifestação com o livre arbítrio de movimentos de que são titulares as pessoas residentes no local do trajecto da manifestação e, em geral, todos os utentes das vias públicas que estejam incluídas nesse trajecto, impondo-se assegurar a fluidez do tráfego de veículos e de pessoas, numa cidade, enquanto liberdade de circulação incluída na zona de protecção do direito de deslocação consagrado no art.º 44º da CRP.
As manifestações podem ser obrigadas a cumprir uma distância de 100 metros de sedes de órgãos de soberania, instalações militares, prisões, embaixadas ou consulados e sedes de partidos (art.º 13º) e não é permitida a realização de reuniões, comícios ou manifestações com ocupação abusiva de edifícios públicos ou particulares (art.º 12º), previsões que estão em linha com um dos princípios basilares do Estado de Direito Democrático que é o do regular funcionamento das instituições que o integram e garantem a legalidade democrática.
Compete às autoridades assegurar que reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos decorrem sem a interferência de contramanifestações que possam perturbar o livre exercício dos direitos dos participantes (art.º 7º), os contramanifestantes que interfiram, impedindo ou tentando impedir o livre exercício do direito de reunião podem ser punidos com penas de 3 a 10 anos de prisão (art.º 15º).
«Do conteúdo objetivo das normas que enunciam direitos fundamentais de defesa, faz parte o dever de proteção. Sobre o Estado de Direito democrático incide um dever geral de proteção (allgemeine Schutzpflitch) dos direitos fundamentais, incluindo o dever de proteção dos direitos de liberdade em face de terceiros que os ofendam ou se aprestem para o fazer. (…) O bem protegido pelo direito de manifestação é um bem carecido de proteção, relativamente ao qual se podem evidenciar ofensas físicas por terceiros na posição de contramanifestantes» (Sérvulo Correia, O Direito de Manifestação: Âmbito de Proteção e Restrições, Ed. Almedina, Coimbra, 2006, p. 53).
As autoridades só podem interromper uma manifestação (notificada ou não) se forem praticados actos contrários à lei que perturbem a ordem e a tranquilidade públicas, e o livre exercício dos direitos das pessoas. Para isso têm de apresentar auto da interrupção, justificando a decisão e entregar uma cópia aos promotores (art.º 5º).
Estas normas acabadas de enunciar revelam bem, como à semelhança de todos os direitos, liberdades e garantias, a liberdade de reunião e manifestação não é um direito absoluto, no sentido de ilimitado, mas, sendo um direito fundamental, tem a força jurídica prevista no art.º 18º da Constituição, o que envolve a aplicabilidade directa e vinculação das entidades públicas e privadas, a possibilidade de restrição legal, embora limitada ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e apenas nos casos expressamente previstos na CRP.
Por seu turno, a liberdade de deslocação está especificamente consagrada no art.º 44º nº 1 da CRP e é uma das diferentes dimensões de constitucionalidade em que se manifesta a liberdade individual genericamente reconhecida, no art.º 27º da CRP, como um direito universal à liberdade.
A liberdade individual está consagrada no art.º 27º da CRP, com o sentido de «liberdade física, entendida como liberdade de movimentos corpóreos, de “ir e vir”, a liberdade ambulatória ou de locomoção (...)» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I – Artigos 1.º a 79.º; 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010; pág. 638), bem assim, na dimensão de «direito a não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar» (Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa anotada – Artigos 1º a 107º, Coimbra Editora, 2007; pág. 478 e, ainda, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 479/94, 663/98, 471/2001, 71/2010, 181/2010, 362/2011, 54/2012, 204/2015, 463/2016, 424/2020, 88/2022, 464/2022, 466/2022, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
A Constituição da República Portuguesa consagra, no art.º 44º nº 1, o direito à deslocação e a liberdade de escolha do local de residência, no território nacional, sob uma dupla vertente: «por um lado, (o direito) a não ser impedido de deslocar-se para certa região (ou dentro de certa região) ou de nela ir fixar residência; por outro lado, o não ser obrigado a confinar-se em certo local ou região ou aí fixar residência (proibição de «desterro» ou de «residência fixa»). Trata-se de garantir o direito de deslocação interterritorial, sendo óbvio que o seu âmbito normativo se estende à deslocação inter-regional, bem como à deslocação intermunicipal (interlocal) sem limitações, interdições ou fronteiras internas» (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 632).
Em sentido amplo, a liberdade de deslocação é uma das manifestações da liberdade ambulatória, na medida em que envolve o livre arbítrio de movimentos, mas com a particularidade de que se constituir como uma forma de tutela cujo referente é o espaço territorial de todo o país – cidades, localidades ou outras circunscrições administrativas (distritos, concelhos, freguesias, etc.) – e não só o núcleo essencial do direito à liberdade de movimentos que é o da liberdade física ou corporal da pessoa humana, sobre o qual a liberdade de deslocação também incide, mas de forma indirecta.
O direito é consagrado por referência ao espaço nacional e é através dele que se proíbem barreiras ao livre trânsito de pessoas no interior do território e se interdita a criação de fronteiras intranacionais.
Daí que liberdade individual e liberdade de deslocação tenham âmbitos de aplicação diversos.
«Por sua vez, quando no enunciado do artigo 44.º se diz que “a todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional” (n.º 1) e que a todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar (n.º 2), parece óbvio que a dimensão relevante do programa normativo deste direito já é a da liberdade de deslocação e de fixação, de emigração e de regresso, com relação ao domínio territorial do Estado português ou às diferentes partes do território nacional. Essa liberdade de movimentação territorial, entre as diferentes partes do território nacional ou, quanto à liberdade de emigrar e de regressar, relativamente a todo o território, vem expressamente realçada no enunciado normativo», ou seja, a liberdade prevista no art.º 44º nº 1 da CRP apenas protege os cidadãos contra proibições de movimentos de deslocação territorial.
«Nesse ponto, não parece haver dificuldades de qualificação: as proibições ou restrições daqueles movimentos, embora afectem a liberdade pessoal, respeitam especificamente, de facto, ao direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional (garantido no artigo 44.º da Constituição)» (Jorge Reis Novais, em Direitos Fundamentais e inconstitucionalidade em situação de crise – a propósito da epidemia COVID-19, publicado em e-Pública – Revista Eletrónica de Direito Público, vol.7, n.º 1, Lisboa, abril de 2020, p. 97 e 98, in https://e-publica.pt/article/34308. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 464/2022 e 466/2022, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
«No caso do artigo 27.º, (…), parece acertado o entendimento segundo o qual a Constituição aí protege um direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, ou seja, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar, autorizando simultaneamente, nos nºs 2 e 3 do mesmo preceito, a privação desse direito, definindo os termos e os limites que deverão respeitar-se. Por esta razão, as limitações à liberdade “que se traduzam na sua privação total ou parcial não podem ser outras que as ali expressamente previstas, sendo vedado à lei criar outras restrições para além daquelas - princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade” (Acórdão n.º 479/94, ponto V-3).
«Já não é assim, no caso do direito à liberdade de deslocação, previsto no n.º 1 do artigo 44.º da CRP. Este direito fundamental, que configura, tal como o direito consagrado no artigo 27.º, um direito, liberdade e garantia pessoal, inclui o direito de livre passagem e permanência em qualquer lugar público, bem como o direito de circulação pelas vias públicas. Corresponde, pois, em termos genéricos, a um direito a livremente entrar e sair de locais públicos ou privados, sem que as autoridades públicas possam interferir ou impedir essas deslocações. Assim, encontramos no n.º 1 do artigo 44.º da CRP um corolário do direito à liberdade, sendo significativa a vontade do legislador constituinte de individualizar esta dimensão, consagrando-a como direito fundamental autónomo, e diferenciando-a, no que ao regime jusconstitucional diz respeito, do previsto no artigo 27.º da Constituição, do qual as faculdades acima referidas sempre decorreriam. Deste modo, esta liberdade pode ser restringida, desde que observadas as normas constitucionais aplicáveis às restrições de direitos fundamentais, designadamente as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade.» (Ac. do Tribunal Constitucional nº 490/2022, in http://tribunalconstitucional.pt).
Na distinção dos âmbitos de aplicação das liberdades previstas no art.º 27º e no art.º 44º da CRP, a «relevância desta determinação parece ser a seguinte: o direito de deslocação não prevê qualquer restrição expressa, mas também não a exclui, pelo que a mesma seria em princípio admissível; pelo contrário o direito à liberdade física do artigo 27.º da Constituição apenas prevê restrições nos casos nele previstos, não se incluindo aí a quarentena, ou o confinamento de pessoas suspeitas de contágio epidémico. Nessa medida, seria possível entender que o direito à liberdade não é suscetível de restrição pelo legislador para estes efeitos e, nessa medida, pode apenas ser suspenso mediante declaração de estado de emergência ou de sítio». Por esta razão, (…) «o âmbito de proteção da liberdade protegida pelo artigo 27.º parece ser apenas a liberdade de movimento em face de ameaças físicas que visem impedi-las. Assim, a proibição de abandonar um lugar, bem como a obrigação de se manter nele, surge apenas como uma restrição à liberdade do artigo 27.º quando for acompanhada do recurso à força ou da sua ameaça» e que «se limita à proteção da pessoa perante qualquer supressão ou redução da sua liberdade de movimento de âmbito penal, caindo os restantes casos de movimento da pessoa sob a proteção do artigo 44.º. De resto, é esta inserção do artigo 27.º no âmbito dos direitos fundamentais de âmbito penal que justifica a rigidez do respetivo regime. A liberdade do artigo 27.º é a liberdade que pode ser decretada por um tribunal, ou tendo em vista a sua confirmação por uma decisão judicial» (Miguel Nogueira de Brito, «Pensar no estado da exceção na sua exigência», in Observatório Almedina, 7 de abril de 2020, disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/02/pensar-no-estado-da-excecao-na-sua-exigencia/).
As arguidas recorrentes pretendem que, por se encontrarem no exercício do seu direito de reunião e manifestação, não está preenchida a materialidade típica do crime de atentado à segurança de transporte rodoviário p. e p. pelo art.º 290º nº 1 al. b) do Código Penal, por que foram condenadas.
Não obstante a amplitude com que a CRP consagra o direito de reunião e de manifestação, condicionando-o apenas a um exercício pacífico e sem armas e, quanto aos temas da reunião, aos limites da liberdade de expressão, a prática de actos ilícitos civil ou penalmente relevantes não está coberta por qualquer privilégio ou imunidade decorrente da liberdade de reunião e de manifestação.
No limite, o que esses actos ilícitos não poderão, por si só, é conduzir à proibição, interrupção ou dispersão da reunião e ou da manifestação pela força, na medida em que essas medidas restritivas de proibição ou dispersão, atenta a sua severidade e grau de intrusão no exercício da liberdade de reunião só lhe poderão ser opostas quando sejam justificadas para garantir outros fins constitucionais fundamentais de natureza e ordem pública, como é o caso da liberdade e segurança das pessoas, participantes da manifestação ou daquelas outras que com ela entrem em contacto ou interacção, da segurança das representações diplomáticas, dos estabelecimentos prisionais e de outros edifícios públicos e a liberdade de acção e decisão dos órgãos de soberania e respectivos titulares.
Em contraponto, fora deste âmbito, a liberdade de reunião e de manifestação não legitima, nem justifica que o seu exercício se faça mediante a prática de actos proibidos e legalmente qualificados como crimes.
De resto, porque a própria previsão contida no art.º 31º nº 2 al. b) do CP – só será uma verdadeira e própria causa de justificação, se o exercício do direito foi feito de forma regular, o que exige que a conduta seja, obrigatoriamente, conforme ao ordenamento jurídico vigente, a começar pelos princípios constitucionais e infraconstitucionais.
Por isso, para que o exercício de um direito seja regular e exista exclusão da ilicitude, não podem ser ultrapassados os limites com que o ordenamento jurídico faculta o seu exercício de forma válida e eficaz.
Ora, no caso vertente, se a ausência de comunicação prévia nem sequer tinha a virtualidade de impedir a realização da manifestação, tão-pouco, a de a fazer cessar, conduzindo à dispersão das manifestantes, já a violação da liberdade de deslocação dos potenciais utentes da Rua de S. Bento, tinha.
Resultou provado que, naquele dia 04/10/2023, as arguidas se deslocaram à Rua de S. Bento em Lisboa, a fim de impedirem a circulação de veículos, de forma a alertar a sociedade para a crise climática e ali chegadas, cerca das 08h35m - hora de maior circulação automóvel, em virtude das deslocações habituais para trabalho e escolas - as arguidas sem efectuarem qualquer aviso prévio, introduziram-se na via e sentaram-se ao longo da passadeira de peões que se situa na referida artéria, junto ao nº 486, e ali se mantiveram por pelo menos 20 minutos, sentadas, exibindo as faixas com as frases “SABENDO O QUE SABES O QUE VAIS FAZER?” e “ESTÃO A DESTRUIR TUDO O QUE TU AMAS”, e impedindo a circulação dos veículos na referida via.
E também se provou que em resultado da conduta das arguidas, criaram-se longas filas de veículos ao longo da Rua de São Bento e artérias circundantes, impedindo a circulação de qualquer tipo de viaturas.
Tal como referido pelo Mmo. Juiz durante a prolação da sentença, a restrição do direito à livre deslocação representa um sério e eminente risco de compressão ou mesmo de privação de vários outros valores fundamentais, igualmente com consagração constitucional, como é o caso do direito ao trabalho e à prestação de cuidados de saúde.
De nada serve o argumento de que a manifestação durou apenas 20 minutos.
O que consta da matéria de facto provada é que a manifestação levada a cabo pelas arguidas durou, pelo menos, vinte minutos, e foi quanto bastou para que se tivessem gerado longas filas de veículos ao longo da Rua de São Bento e artérias circundantes, impedindo a circulação de qualquer tipo de viaturas.
E a verdade é que vinte minutos são tempo mais do que suficiente para que, na eminência da necessidade de percorrer a Rua de S. Bento, por exemplo, em concretização de um transporte em missão urgente de socorro, pudesse ter ficado inviabilizada a assistência médica ou hospitalar a quem dela necessitasse e, no limite, o comprometimento irremediável e com consequências imprevisíveis, da saúde e/ou da vida de um número indiscriminado de pessoas. Tantas quantas as que necessitassem de ser levadas a algum estabelecimento hospitalar através daquela rua ou das ruas circundantes afectadas pelas longas filas de trânsito geradas em resultado do comportamento das arguidas.
Os exemplos de outras situações concretas de necessidade, mais ou menos urgente, de transitar de veículo automóvel pela Rua de S. Bento poderiam replicar-se, uma e outra vez.
Porém, juízos hipotéticos e especulativos à parte, o que a matéria de facto provada revela é que houve uma real violação da liberdade de movimentos das pessoas que naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que as arguidas decidiram ocupar, sentando-se nela, toda a largura da faixa de rodagem, também pretendiam usá-la para as suas deslocações.
E nem vale pena argumentar com a natureza do tema.
Em primeiro lugar, porque não está em causa a suprema importância que a justiça climática e a sustentabilidade do planeta Terra têm para toda a humanidade.
Em segundo lugar, porque a liberdade de reunião não é mais nem menos importante, consoante o tema sejam as alterações climáticas ou outro qualquer (desde que não preconize o racismo, a ideologia fascista ou veicule ideias apologéticas de violência, qualquer assunto é potencialmente passível de ser debatido em reunião ou de ser objecto de uma manifestação), nem o tema concretamente escolhido tem o efeito de alterar ou derrogar as regras contidas no art.º 44º da CRP e no D.L. 406/74 de 29 de Agosto que são iguais para todos.
Por fim, porque ao contrário do que parece ser o pressuposto de que partem os recursos das arguidas BB e CC, a liberdade de reunião e de manifestação não é um direito absoluto, nem ilimitado, antes está condicionado, na forma do seu exercício, a uma série de regras cuja lógica é a da adopção das medidas necessárias para que a reunião e/ou a manifestação decorra sem incidentes, como, por exemplo, a regularização do trânsito, a prevenção de contramanifestações e a garantia da própria segurança da reunião ou manifestação.
E também podem ser limitados ou restringidos na sua amplitude se em concurso com outros direitos com a mesma dignidade constitucional.
Considerando a inserção sistemática dos arts. 44º e 45º da CRP, ambas as liberdades de reunião e manifestação e de deslocação são direitos, liberdades e garantias e tanto o art.º 44º como o art.º 45º são normas deliberadamente abertas e com uma vocação de plenitude.
Como é próprio de um estado de direito democrático alicerçado nos princípios da dignidade humana e da igualdade, a Constituição da República portuguesa assume em diversas normas, como é o caso dos arts. 18º a 22º, uma intenção clara de conferir a todos os direitos, liberdades e garantias o máximo de efectividade.
Porém, não se segue que os direitos fundamentais sejam absolutos ou ilimitados.
«Não o são na sua dimensão subjectiva pois que os preceitos constitucionais não remetem para o arbítrio do titular a determinação do âmbito e do grau de satisfação do respectivo interesse (…), já que (…) os direitos fundamentais (cada um dos direitos e os direitos de cada um) tinham como limite a necessidade de assegurar aos outros o gozo dos mesmos direitos.
«Não o são também enquanto valores constitucionais, visto que a comunidade não se limita a reconhecer ao valor da liberdade: liga os direitos a uma ideia de responsabilidade social e integra-os no conjunto dos valores comunitários. Assim, além dos limites “internos” que resultam do conflito entre os valores que representam as diversas facetas da dignidade humana, os direitos fundamentais têm também imites “externos” pois têm de conciliar as suas naturais exigências com as exigências próprias da vida em sociedade: a ordem pública, a ética ou mora social, a autoridade do Estado, a segurança nacional, etc.» (João Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, Coimbra, 1983, p. 213 - 214. Cf. Também art.º 29º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948).
Segundo o art.º 18º nº2 da Constituição, a lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos nela expressamente previstos, devendo as restrições limitar-se ao limite do necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Este artigo preconiza o princípio material da proporcionalidade, nos seus três subprincípios: da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).
Tal envolve, para os tribunais, a obrigação de interpretar e aplicar os preceitos sobre direitos, liberdades e garantias de modo a conferir-lhes a máxima eficácia possível, dentro do sistema jurídico, e a obter equilíbrio, a concordância prática, se possível, a realização simultânea dos direitos, liberdades e garantias, por um lado, e da iniciativa privada, por outro, ou no limite e mediante as circunstâncias concretas do caso, através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos sacrifícios de cada um dos valores constitucionais em confronto, na justa medida necessária e adequada à menor compressão possível de cada um dos valores em causa, de acordo com o peso relativo que tenham em concreto, por referência à intensidade e extensão com que a sua compressão em cada caso afecta a protecção que lhe é atribuída pela Constituição (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pp. 152, 156 e 157; João Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, Coimbra, 1983, p. 220 a 224 e Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 3º Edição, 1983, p. 466 - 468).
«(…) As colisões de princípios são solucionadas através da formulação e/ou aplicação de leis de colisão e, por outro lado, (…) as possibilidades jurídicas de cumprimento de um princípio são limitadas pelos outros princípios. O que significa que os direitos prima facie são restringidos pela existência de outros direitos prima facie, de tal forma que o conteúdo do direito definitivo é igual ao do direito prima facie após a aplicação das restrições.» (Elsa Vaz Sequeira “Responsabilidade civil e liberdade de expressão”, in Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 3, 2021, pp. 72-73).
Não são, pois, lícitos juízos apriorísticos e abstractos de hierarquização de valores constitucionais.
E, na ponderação concreta dos dois valores constitucionais potencialmente conflituantes – o direito de reunião e manifestação das arguidas e o direito de deslocação de todos os condutores e demais utentes das vias públicas obstaculizadas que por elas precisassem de transitar em veículos automóveis – o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal do julgamento está absolutamente correcto e merece inteira concordância.
Não está nem pode estar posto em crise o inegável direito das arguidas se reunirem, de se manifestarem, de desenvolverem todas as campanhas de activismo pela defesa da justiça climática que assumiram para si como uma causa.
Só se trata de censurar jurídico penalmente o método concreto que utilizaram, pela simples razão de que para darem concretização ao seu direito de manifestação, acabaram por cometer um crime que é o crime de atentado à segurança de transporte rodoviário.
E precisamente porque o direito de manifestação não é um direito ilimitado antes está, como todos os outros direitos, liberdades e garantias com consagração constitucional sujeito a limites quer, os que decorrem da função modeladora do legislador infraconstitucional na regulamentação das condições do seu exercício, que do concurso com outros direitos fundamentais dos cidadãos e da necessidade da sua conformação prática é que nada tem de inconstitucional a norma extraída do artigo 290.º, n.º 1, alínea b), e 31.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código Penal, na interpretação segundo a qual constitui ilícito penal a colocação de obstáculo ao funcionamento ou à circulação no exercício do direito à manifestação.
Não há violação alguma dos artigos 18º nº 2 e 44º da Constituição da República Portuguesa, pela simples razão de que nenhum direito é exercido legitimamente, quando esse exercício se traduza na prática de um crime e, em simultâneo, há várias outras alternativas lícitas para o seu exercício em iguais condições de plenitude, como teria acontecido, neste caso, se as arguidas tivessem optado por outras formas de fazerem a demonstração da mensagem que queriam transmitir aos seus concidadãos, exibindo as tarjas com os dizeres a que se refere a matéria de facto provada, até na mesma rua, mas noutro concreto local, ou seja, sem terem colocado quaisquer entraves ao regular processamento do trânsito de veículos automóveis.
É que a forma concreta como as arguidas ocuparam toda a largura da faixa de rodagem, criando longas filas de viaturas quer na Rua de S. Bento, onde se manifestaram, quer nas ruas circundantes, a ponto de nenhuma circulação ser possível, preenche na íntegra o tipo objectivo p. e p. pelo art.º 290º nº 1 al. b) do Código Penal, segundo o qual a colocação de obstáculo à circulação de veículos automóveis, pelas vias públicas é punível com pena de prisão, cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, um e cinco anos.
Com efeito, da comparação entre a redacção que esta norma incriminadora tinha, antes das alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 59/2007 de 04.09., e aquela com que ficou após a entrada em vigor dessa Lei, resulta inequívoco que o crime de atentado à segurança de transporte rodoviário na modalidade prevista no n.º 1 do citado art.º 290º, é um crime de perigo abstracto, sendo as previsões dos números 2, 3 e 4 modalidades de crime de perigo concreto (quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos, a vida, a integridade física, ou bens patrimoniais de valor elevado) (cfr. nesse sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed., pág. 213 e Miguez Garcia, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. II, pág. 425 e, ainda, em relação à redação antiga, Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 1071).
Com efeito, diversamente das previsões contidas nos nºs 2 e 3 do art.º 290º, o seu nº 1 limita-se a descrever nas suas als. a) a d), diversas modalidades de comportamento típico sem lhes atribuir um resultado específico como elemento constitutivo do tipo, prescindindo a consumação da efectiva lesão de um bem jurídico ou a sua colocação em risco real e concreto, o que corresponde à definição dogmática dos crimes de perigo abstracto (cfr. Ribeiro de Faria, O Perigo em Direito Penal (Contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas), reimpressão, Coimbra Ed., 2000, pág. 312; Rui Pereira, O Dolo de Perigo (Contributo para uma Dogmática da Imputação Subjectiva nos Crimes de Perigo Concreto), Lex, Lisboa, 1995, pág. 31 e ss.).
Nos nºs 2 e 3, a execução do tipo envolve necessariamente a criação de um perigo concreto para a vida, a integridade física, ou bens patrimoniais de valor elevado, que nem sequer são mencionados no nº 1.
Ou seja, para o preenchimento dos nºs 2 e 3 do art.º 290º do CP, é necessário que entre a lesão da segurança do transporte rodoviário e a criação do perigo concreto exista uma relação de causa e efeito, à luz da teoria da causalidade adequada (art.º 10º do CP), de tal forma, que se possa afirmar a existência do risco de lesão da vida, da integridade física ou de bens patrimoniais de valor da vítima, como a consequência de uma perturbação do tráfego rodoviário provocada pela intervenção do agente.
Partindo dos critérios hermenêuticos de que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento e consagrou as soluções mais justas e adequadas no texto da lei e de que pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, não pode ser extraído pelo intérprete, conforme imposto pelo art.º 9º do CC, mas aplicável em todos os ramos de direito, se a intenção do legislador fosse a de configurar o crime de atentado à segurança rodoviária como um crime de dano e/ou de perigo concreto exclusivamente, nem sequer tinha alterado a redacção do art.º 290º do CP, através da Lei 59/2007 de 04.09.
De facto, a redacção original do art.º 290º do CP, era a seguinte:
1 - Quem atentar contra a segurança de transporte rodoviário:
a) Destruindo, suprimindo, danificando ou tornando não utilizável via de comunicação, material circulante, obra de arte, instalação ou sinalização;
b) Colocando obstáculo ao funcionamento ou à circulação;
c) Dando falso aviso ou sinal; ou
d) Praticando acto do qual possa resultar desastre;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Ou seja, na redacção original do art.º 290º do CP acabada de reproduzir, o crime de atentado à segurança rodoviária já era um crime de perigo concreto, pois que o risco de lesão da vida, da integridade física de outrem, ou de bens patrimoniais alheios de valor elevado era elemento constitutivo do tipo.
No actual art.º 290º nº 1 o perigo resultante de conduta típica não está individualizado em qualquer bem jurídico nem em pessoa alguma e não constituí elemento integrante do crime, mas tão só motivo da incriminação, ao passo que nas previsões dos nºs 2 e 3, já o risco de lesão dos bens jurídicos neles mencionados faz parte do tipo e, portanto, o perigo é concreto.
E isto foi expressamente assumido pelo legislador na proposta de Lei n.º 98/X, que deu origem à lei 59/2007 de 04.09 quanto à parte em que alterou a redação do art.º 290º do CP ao referir que «os crimes contra a segurança das comunicações são modificados, passando a comportar condutas que dispensam, para efeitos de consumação, a criação de perigo para a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado» (p. 14, in https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path).
E assim se conclui pelo acerto do enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, feito na sentença recorrida.
Diga-se, ainda, que os argumentos tirados dos casos PATYI AND OTHERS v. HUNGARY (5529/05), de 7 de Janeiro de 2009, e KÖRTVÉLYESSY v. HUNGARY (7871/10), de 5 de Abril de 2016, em que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos recordou que qualquer manifestação num local público pode causar um certo nível de perturbação da vida quotidiana, não têm a relevância que as arguidas lhe pretendem atribuir, desde logo, porque o direito de reunião e de manifestação não suspende nem derroga os demais direitos humanos fundamentais de outras pessoas que optem livremente por não participar das reuniões ou manifestações convocadas e levadas a cabo por outras.
Precisamente porque é da essência das manifestações serem aptas a causar várias alterações no quotidiano da vida colectiva, é que lhes estão associadas regras que regulam o seu exercício, desde logo, as do art.º 45º da CRP e as que integram o DL 406/74 de 29 de Agosto, cujas linhas orientadoras são precisamente a procura de um justo equilíbrio entre a necessidade de garantir o pleno exercício do direito de manifestação em condições de liberdade e segurança dos manifestantes e dos restantes cidadãos, bem como a conciliação entre o direito de manifestação e outros direitos com ele conflituantes também constitucionalmente protegidos, de harmonia com os princípios de que nenhum direito fundamental é absoluto e de que não é possível estabelecer qualquer hierarquização geral e abstracta entre direitos, liberdades e garantias, como é próprio do Estado de Direito Democrático que é a República Portuguesa.
De resto e a propósito, a jurisprudência do TEDH em matéria de direito de reunião e de manifestação, também vem afirmando, entre outros princípios, os seguintes com relevo em matéria de direito de reunião e manifestação e dos limites em que o seu exercício corresponde, efectivamente, ao exercício de um direito:
Os Estados-partes da Convenção têm, acima de tudo, a obrigação negativa de se abster de qualquer ingerência nos direitos protegidos no artigo 11º da CEDH, a menos que essa interferência esteja de acordo com o artigo 11º § 2, mas a liberdade genuína e efectiva de reunião pacífica não pode ser reduzida a um mero dever por parte do Estado de não interferir: uma concepção puramente negativa não seria compatível com o objeto e propósito do artigo 11º;
Que certas formas de regulamentação, como a exigência de dar aviso prévio da realização de uma reunião ou de uma manifestação, ou de obter uma permissão para tal efeito, não constituem uma interferência abusiva no direito à liberdade de reunião pacífica e não precisam ser justificadas nos termos do Artigo 11º § 2 da CEDH, desde que não imponham restrições excessivas e não representem um obstáculo oculto à liberdade de reunião pacífica protegida pela Convenção;
Se as condições para a autorização prévia forem muito gerais ou restritivas, ou disserem respeito a uma ampla categoria de reuniões ou excluírem um ou mais grupos ou indivíduos, elas terão de ser justificadas sob as normas contidas no artigo 11º § 2 da CEDH;
Que a lógica de permitir tal regulamentação é reforçada pelo facto de as autoridades serem obrigadas a garantir que a reunião pacífica não seja interrompida, na medida em que informar as autoridades em tempo útil sobre uma manifestação planeada permite que elas garantam a presença da polícia para proteger o carácter pacífico da manifestação,
Que a notificação prévia serve não apenas o objetivo de conciliar, por um lado, o direito à reunião pacífica e, por outro lado, os direitos e interesses legítimos (incluindo a liberdade de movimento) de outros, mas também a prevenção da desordem ou do crime e que entre as medidas públicas que é lícito às autoridades públicas adoptar, contam-se a recusa de autorização ou permissão para a reunião; a dispersão; evacuação do local da reunião; proibições e penalidades pós-reunião (administrativas e criminais) ( cfr., v.g., os casos Rassemblement jurassien et Unité jurassienne v. Switzerland, no. 8191/78, Commission decision of 10 October 1979, DR 17, p. 93, Wilson, National Union of Journalists and Others v. the United Kingdom, nos. 30668/96, 30671/96 e 30678/96, § 41, ECHR 2002-V, Cisse v. France, no. 5134 6/99, § 50, ECHR 2002‑III, Ziliberberg v. Moldova, no. 61821/00, 4 May 2004, Oya Ataman v. Turkey, no. 74552/01, §§ 7 and 30, ECHR 2006‑XIII, Makhmudov v. Russia, no. 35082/04, 26 July 2007, Bukta and Others v. Hungary, no. 25691/04, § 41, ECHR 2007‑IX, Balçık and Others v. Turkey, no. 25/02, 29 November 2007, Hyde Park and Others v. Moldova, no. 33482/06, §§ 9, 13, 16, 41, 44 and 48, 31 March 2009, Rai and Evans v. The United Kingdom, nos. 26258/07 and 26255/07, 17 November 2009, Alekseyev v. Russia, nos. 4916/07, 25924/08 and 14599/09, 21 October 2010, Berladir and Others v. Russia, no. 34202/06, 10 July 2012, Kasparov and Others v. Russia, no. 21613/07 de 3 October 2013, https://hudoc.echr.coe.int/).
Tudo, para concluir, como a sentença recorrida, que o método escolhido pelas arguidas para se manifestarem foi excessivo, na acepção da proibição do excesso característica do princípio constitucional da proporcionalidade consagrado no art.º 18º nº 2 da CRP, já que para sensibilizarem consciências para a premência das alterações climáticas, os seus efeitos nocivos para o ambiente e para as populações e para a necessidade de mudar hábitos de vida em ordem a conter ou inverter o processo de destruição do planeta, era indiferente fazerem-no no passeio destinado à circulação dos peões e sem terem criado qualquer obstáculo à liberdade de movimentos de quem quer que fosse, ou fazerem-no, como fizeram, a ocupar toda a largura da Rua de S. Bento e, desde modo, impedindo a circulação de toda e qualquer viatura, em resultado das filas de trânsito que se criaram quer naquela rua, quer nas ruas circundantes.
A grande diferença e o que motivou esta forma de se manifestarem e a concreta escolha do local, foi precisamente, a intenção de todas as arguidas de impedirem a circulação de veículos, a acrescer à sua vontade de sensibilizarem a população para as alterações climáticas.
E por essa exacta razão é que não só excederem os limites do direito de reunião e manifestação impostos pela Lei e pela Constituição, como ainda praticaram o crime de atentado à segurança rodoviária p. e p. pelo art.º 290º nº 1 al. b) do CP.
Os recursos de ambas as arguidas improcedem na parte relativa à causa de exclusão da ilicitude que invocaram.
A recorrente CC veio ainda invocar a sua falta de consciência da ilicitude nos termos do art.º 17º do CP.
Mas sem razão.
Nos termos do art.º 17º nº 1 do CP, o erro sobre a ilicitude, quando a ausência da consciência acerca do desvalor da acção, do resultado e/ou da imposição da acção ou sobre a proibição da omissão não for censurável, excluí a culpa, ou se, no confronto com o erro sobre a proibição legal a que se refere o art.º 16º nº 1 do CP, a conduta não foi suficientemente grave (do ponto de vista da natureza e importância do bem jurídico tutelado) e o conhecimento da proibição legal é uma condição essencial da tomada de consciência da ilicitude, determinando a exclusão do dolo do tipo (embora por si só, o art.º 16º não exclua a punição a título negligente, a punibilidade resulta totalmente excluída da segunda parte do nº 1 do art.º 17º).
Assim, em relação a uma conduta axiologicamente neutra, se o autor dessa conduta desconhece a sua proibição legal, nem chega a alcançar a consciência da ilicitude do facto. Essa falta de conhecimento, motivada por falta de informação ou de esclarecimento, é uma falta de ciência, não um engano na sua consciência, pelo que o que está em causa é um erro sobre a proibição, relevante, que excluí o dolo, nos termos do art.º 16º nº 1 do CP.
Porém, à luz da previsão contida no nº 2 do art.º 17º, a desresponsabilização penal já não acontecerá, se o erro traduzir uma atitude do agente de desinteresse pela espécie e valor do bem jurídico violado ou de indiferença perante o dever ser jurídico-penal.
O art.º 17º nº 1 do CP tem o seu âmbito privilegiado de aplicação aos factos e comportamentos cuja proibição legal ainda não está suficientemente enraizada na consciência ético-social colectiva, como sucede nos direitos penais especiais ou no direito penal secundário.
«O agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume. E quando o facto, para além de ser uma infração do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável, já que a valoração normativa pode surgir do próprio sentimento jurídico com um maior ou menor esforço da consciência» (Teresa Beleza, Problemática do erro sobre a ilicitude, p. 71).
«Isto é, quando a falta de consciência da ilicitude do facto praticado não for reveladora de uma atitude ético-pessoal de indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, tal falta ou erro tem o efeito de uma causa de exclusão da culpa. Quando, pelo contrário, o erro sobre a ilicitude (dada a gravidade do facto ilícito e a consciência ético-social dessa gravidade) for censurável, isto é, for revelador de uma personalidade ou atitude ético-pessoal de indiferença perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo, então há culpa (culpa dolosa) e o agente é punível pelo respectivo crime doloso. Digamos que é a própria falta de consciência da ilicitude que é culposa» (Taipa de Carvalho, Direito Penal Parte Geral Questões Fundamentais Teoria Geral do Crime, 3ª edição, 2016, Universidade Católica Porto, p. 489).
Para além de ser evidente para a generalidade dos cidadãos que obstaculizar o espaço disponível de uma via pública para o trânsito de veículos de circulação terrestre, para mais, numa tua tão movimentada como a Rua de S. Bento em Lisboa, é uma actividade proibida, perigosa e potencialmente geradora de danosidade social relevante e que constituí a prática de um crime, o que a matéria de facto provada revela, é que ambas as arguidas agiram com perfeito conhecimento de que os seus comportamentos eram proibidos e puníveis pela Lei penal.
Os factos desmentem a invocada falta de consciência da ilicitude, pelo que, sem necessidade de mais argumentos, se impõe concluir que, nesta parte o recurso da arguida CC também não merece provimento.
Quanto à invocada desproporção e excesso na fixação concreta da pena aplicada, a qual deve ser antes fixada em período perto do limite mínimo legal, ou substituída por admoestação (recurso da arguida CC).
Dos fins das penas anunciados no art.º 40º do Código Penal e do princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (na sua tripla vertente, necessidade da pena, adequação e proporcionalidade em sentido estrito e nas suas manifestações de proibição do excesso e de proibição de protecção deficiente), as linhas orientadoras em matéria de escolha e determinação concreta da pena são as seguintes:
As penas servem finalidades exclusivas de prevenção geral e especial;
A pena concreta tem como limite máximo inultrapassável, a medida da culpa;
A medida da culpa constituí o fundamento ético da pena;
Tendo por referência esse limite máximo inultrapassável da culpa, a pena concreta é fixada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e as exigências mínimas de defesa da ordem jurídica penal, correspondendo às exigências básicas e irrenunciáveis de restabelecimento dos níveis de confiança por parte da sociedade, na validade da norma incriminadora violada;
Dentro desta moldura de prevenção geral positiva ou de integração, a dosimetria concreta da pena terá de resultar do que se mostrar necessário e ajustado às exigências de prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, ou em casos excepcionais, negativa, de intimidação ou de segurança individual (Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, págs. 65-111 e na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187. No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e ss., Claus Roxin, Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal, p. 113; Eduardo Correia, BMJ nº 149, p. 72 e Taipa de Carvalho, Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal, p. 96 e ss.).
É função da pena salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes, introduzir um efeito de confiança, no seio da comunidade, acerca da validade e eficácia das correspondentes normas jurídicas incriminadoras e produzir um efeito dissuasor da criminalidade, nos cidadãos em geral, induzindo-lhes a aprendizagem da fidelidade ao direito.
Também é função da pena assegurar, no âmbito da prevenção especial, em regra, positiva ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade, excepcionalmente negativa ou de intimidação, prevenindo a reincidência.
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25).
No que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são novos julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de penas, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
A actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento. O tribunal de recurso só alterará a pena aplicada, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância revelarem incorrecções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reacções criminais. Não decide como se o fizesse ex novo, como se não existisse uma decisão condenatória prévia.
E sendo assim, é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume a sua margem de actuação e de livre apreciação, sendo como é uma componente essencial do acto de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange, pois, exclusivamente, a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais previstos nos arts. 40º e 71º do CP, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas já não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime 1993, §254, p. 197; Acs. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, da Relação do Porto de 13.10.2021, proc. 5/18.5GAOVR.P1 in http://www.dgsi.pt).
«Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar» (Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. 10/18.1PELRA.S1. No mesmo sentido Ac. do STJ de 3.11.2021, proc. 206/18.6JELSB.L2.S1, ambos in http://www.dgsi.pt).
«A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
A moldura penal abstracta prevista para o crime de atentado à segurança rodoviária, na modalidade prevista no art.º 290º nº 1 al. b) do Código Penal é punível com pena de prisão cujos limites mínimo e máximo são, respectivamente, um ano e cinco anos de prisão.
Ora, o Tribunal começou por fixar a pena de prisão, no limite mínimo da moldura penal abstracta e, justamente, porque a arguida confessou os factos por que vinha acusada, não tem antecedentes criminais, está social, familiar e laboralmente inserida é que foi decidida a substituição desta pena pela multa de 120 dias, de harmonia com o princípio da preferência por medidas não privativas da liberdade, sempre que estas assegurem os fins de prevenção geral e especial das penas, como previsto nos arts. 40º, 45º e 70º do CP.
Importa sublinhar que a intensidade dolosa tem carácter agravante, na medida em que a arguida agiu como dolo directo que é, entre as modalidades previstas no art.º 14º do CP, a mais intensa.
É certo que ao nível do desvalor da acção, a ilicitude resulta mitigada pela importância da mensagem que as arguidas pretendiam difundir, mas ao nível do desvalor do resultado já a ilicitude resulta mais intensa, em virtude da constatação de que em apenas vinte minutos de ocupação da via pública, as arguidas conseguiram congestionar completamente a circulação rodoviária, na Rua de S. Bento e nas ruas próximas, num local de Lisboa densamente povoado e de que só por mero acaso, durante esse período, não foi necessário acudir a qualquer emergência, como por exemplo, um incêndio, ou prestação de cuidados de saúde urgentes e inadiáveis.
Acrescem as razões de prevenção geral, em face da preocupante multiplicação de fenómenos deste género que, em vez de exaltarem a importância da mensagem e a bondade da causa, geram descontentamento e revolta nos cidadãos que se veem confrontados com súbitas restrições à sua liberdade de movimentos e à possibilidade e prosseguirem os seus compromissos de vida quotidiana.
E ainda, porque, a pretexto do exercício de um direito, no caso, o de reunião e de manifestação, comportamentos como os que são objecto deste processo, se materializam, afinal, em verdadeiras afrontas ao Estado de Direito Democrático, em cujo domínio todos devem ter a possibilidade de exercer os direitos, liberdades e garantias que a Constituição da República Portuguesa consagra e reconhece, mas com respeito pelos direitos fundamentais dos outros.
Por conseguinte, a escolha e determinação concreta da medida da pena, porque teve todos estes factores em consideração, sendo certo que a arguida recorrente não invocou quaisquer outros que não tenham sido sopesados e fixou as penas com equilíbrio e ponderação, portanto, em total sintonia com as previsões normativas contidas nos arts. 40º, 45º, 47º, 70º e 71º do Código Penal e 18º nº 2 da CRP, não merece qualquer reparo e não será alterada.
III – DECISÃO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Negar provimento aos recursos interpostos pelas arguidas BB e CC e, em consequência, confirmam integralmente a sentença recorrida.
Custas pelas arguidas recorrentes fixando a Taxa de Justiça devida por cada uma delas, em 4 UCs – art.º 513º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelas Juízas Adjuntas.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 23 de Outubro de 2024
Cristina Almeida e Sousa
Maria Elisa Marques
Maria da Graça dos Santos Silva