RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA INCOMPETENTE
ERRO
PRAZO
Sumário

1 - Não é extemporânea a impugnação judicial que, dentro do prazo previsto na lei para a respetiva apresentação, erradamente foi remetida a autoridade incompetente, vindo a dar entrada na Autoridade para as Condições de Trabalho (competente) após o decurso do prazo legal.
2 - Não emergindo da lei processual aplicável norma que imponha a relevância do ato de envio nestas circunstâncias, o espírito do sistema permite que se conclua pela tempestividade na apresentação do ato.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:

XX, Lda.., Arguida nos autos à margem referenciados, e, neles, melhor identificada, notificada do despacho de não admissão de recurso, e não se conformando com o teor do mesmo, vem interpor recurso.
Pede a revogação do despacho de não admissão do Recurso.
Apresentou as seguintes conclusões:
1. O prazo que a Recorrente dispunha para intentar a impugnação judicial da decisão administrativa é de 20 dias a contar da notificação da decisão da ACT, nos termos do art. 33.º n.º 2 da Lei 107/2009.
2. Dúvidas não subsistem que o ato foi praticado pela Recorrente dentro de prazo, ou seja, no dia 03/04/2024, tal como ficou demonstrado pelo carimbo aposto pela ANSR.
3. Assim sendo, é a relevância do erro na morada a que foi remetida a impugnação judicial que compete julgar no caso sub judice, sendo manifesto que direito à impugnação judicial não pode ser retirado ao Recorrente.
4. É matéria pacífica na jurisprudência que o art. 249.º do CC se aplica aos atos processuais praticados pelas partes (p. ex. Ac. do TRL de 15/01/2013).
5. A consequência que daqui advêm, é a de se reconhecer que a recorrente tinha, e tem, direito à respetiva retificação do erro.
6. Ao não o fazer, a decisão proferida pelo tribunal a quo, violou o art. 249.º do CC.
7. Tal como consta da decisão recorrida, a impugnação judicial em apreço foi remetida à ACT por carta registada a 06/05/2024 – na data em que o Recorrente adquiriu conhecimento do erro (tendo procedido de imediato à retificação do mesmo).
8. Isto é: o erro, uma vez constatado, foi prontamente corrigido, tendo a ora Recorrente remetido a impugnação judicial para a entidade competente para o efeito, sem qualquer alteração ou aperfeiçoamento, de forma ao processo ser tramitado.
9. Deste modo, é de considerar validamente praticado o ato de impugnar judicialmente uma determinada decisão, se a parte, dentro do prazo legal para praticar o ato, apresenta a respetiva impugnação, dirigindo o requerimento às entidades competentes, muito embora o processo tenha sido remetido para a morada errada, desde que tal erro seja retificado pelo impugnante, nos termos do art. 249.º do CC.
No mais,
10. Ao abrigo do princípio da cooperação e lealdade no âmbito das relações inter-administrativas, assim que a ANSR tomou conhecimento de que a impugnação judicial não lhe era dirigida (mas sim à ACT), deveria, de imediato, ter remetido a missiva à entidade competente.
11. A inobservância do contraditório por parte do tribunal a quo constituiu uma omissão grave, representando uma nulidade processual, uma vez que tal omissão foi suscetível de influir no exame e decisão da causa.
12. Desta forma, padece de nulidade a decisão (surpresa) proferida pelo tribunal recorrido, na medida em que não foi dada ao Recorrente a possibilidade de se pronunciar quanto aos factos e respetivo enquadramento jurídico.
13. Por tudo o exposto, dúvidas deverá ser revogada a douta sentença recorrida e, em consequência, ser admitida a impugnação judicial apresentada, impugnação que em nada colidiu com o normal desenrolar do processo nem tampouco representa qualquer abuso, processual ou outro.
Não foi apresentada resposta.
Nesta Relação o MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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É o seguinte o teor do despacho recorrido:
A arguida XX, Lda., veio impugnar judicialmente a decisão administrativa da «ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho», que, em cúmulo material, a condenou no pagamento de uma coima única no valor de €22.113,00 pela prática de seis contraordenações laborais.
A arguida foi notificada dessa decisão, por via postal registada com aviso de receção assinado no dia 14.03.2024 (cfr. AR de fls. 127/128).
A impugnação judicial podia ser apresentada no prazo de 20 dias a contar dessa notificação (art.º 33º, n.º 2, da Lei n.º 107/99 de 14.09), sendo a contagem desse prazo contínua, não se suspendendo aos Sábados, Domingos ou feriados, como o referia desde logo a notificação dirigida à arguida (fls. 126) e decorre do disposto no artigo 138º do Código de Processo Civil, aplicável face às remissões vertidas nos artigos 6º, n.º 1, da Lei n.º 107/99 de 14.09, e 104, nº 1, do Código de Processo Penal, e como afirmado também no Acórdão de fixação de jurisprudência n° 5/2013, de 17 de Janeiro de 2013, publicado no Diário da República n.º 33/2013, Série I, de 15.02.2013.
O prazo de impugnação terminava assim no dia 03.04.2024.
Mais referia a notificação remetida à arguida que a impugnação deveria ser dirigida ao trabalho de trabalho competente e apresentada nos serviços da ACT que efetuaram a notificação (cfr. fls. 126), como previsto no artigo 33º da Lei n.º 107/99 de 14.09.
No entanto, a impugnação judicial em apreço apenas foi remetida à ACT por carta registada em 06.05.2024 – cfr. envelope a fls. 201.
O facto da arguida ter enviado inicialmente a impugnação para a ANSR, onde deu entrada em 03.04.2024 – como evidencia o carimbo aposto a fls. 145 – não pode ser atendido para efeitos de cumprimento do prazo de impugnação pois que para tal efeito o que releva é o seu envio à ACT e não o envio a uma entidade absolutamente incompetente para o efeito, que é exclusivamente imputável à arguida pois que a própria notificação a informava onde a impugnação devia ser apresentada, além de que desde a apresentação na ANSR até ao envio à ACT acabou por decorrer ainda novamente um prazo superior ao próprio prazo de impugnação.
Por tudo o exposto, cumpre considerar que a impugnação judicial apresentada pela arguida é extemporânea pelo que vai a mesma rejeitada - art.º 38 n° 1, da Lei n° 107/2009, de 14 de Setembro.
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Do disposto no Artº 412.º/ do CPP, aplicável por força dos Artº 41.º/1 do RGCO (DL 433/82 de 27/10) e 60º do RPACOL (Lei 107/2009 de 14/09), a motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Daqui resulta que as conclusões da motivação constituem o limite do objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim sendo, é a seguinte a questão a apreciar:
- A impugnação judicial deve admitir-se?
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O DIREITO:
Antes mesmo de entrarmos no âmago da questão trazida a recurso, uma palavra para a invocação de violação do princípio do contraditório resultante de quanto se fez constar das concussões 11. e 12..
O recurso à invocação da violação deste princípio vem sendo recorrente, olvidando-se que, sendo este um princípio basilar do sistema processual civil e penal, o juiz não tem que, a cada passo, consultar as partes para proferir decisão.
Na verdade, tal como afirmado pelo STJ, o princípio do contraditório não implica o recurso sistemático e banalizante, quiçá mesmo dilatório, à audição das partes (Ac. 13/04/2021, Proc.º 2019/18.6T8FNC).
O caso concreto é disso exemplo.
Conforme adiante melhor explicaremos, a Arguida introduziu nos autos um requerimento no qual alega a razão de apresentação da peça no momento em causa. Sobre esse requerimento pronunciou-se a ACT. E, chegado o processo ao Tribunal, estava, obviamente, cumprido o contraditório. Qualquer audição neste momento traduziria um ato dilatório, cuja prática está proibida (Artº 130º do CPC).
Não há, pois, na atitude do Tribunal recorrido qualquer inobservância do contraditório consubstanciando nulidade processual.
Centremo-nos, então, na questão a decidir – a admissibilidade da impugnação judicial!
Conforme emerge do relatório que supra deixámos explanado, notificada a Arguida da decisão proferida pela ACT – AUTORIDADE PARA AS CONDIÇÕES DE TRABALHO, dispunha a mesma de prazo para a impugnar, prazo esse que terminava em 3/04/2024.
A impugnação deu entrada na ACT em 6/05/2024.
A Arguida enviou inicialmente a impugnação para a ANSR, onde a mesma deu entrada em 3/04/2024.
Por se tratar de factualidade decorrente do despacho recorrido e expressamente admitida pela Arguida, será da mesma que partiremos.
Compulsados os autos, cumpre ainda, tendo em vista melhor enquadramento, dar nota do seguinte:
Com a apresentação da impugnação judicial junto da ACT é junto um requerimento onde a Arguida afirma que, por lapso, havia enviado à ANSR a peça em falta, juntando comprovativo, mas não explicando como é que se apercebeu do lapso no envio.
A ACT, em presença do mesmo, profere despacho no qual é afirmada a extemporaneidade, e, concomitantemente, que em 2/04/2024 a Arguida enviou a peça à ANSR e não apresentou qualquer documento de devolução, “entendendo-se que a mesma foi devolvida nos 8 dias seguintes à sua receção”.
Não explica a ACT a razão de assim concluir!
Porém, afirma-se ainda ali que isto significa que durante a primeira quinzena do mês de Abril a Arguida já estava na posse da informação de que tinha enviado impugnação à entidade incompetente. Não obstante, a ACT não se opôs à admissibilidade da impugnação, considerando o princípio da defesa.
Ora, nada nos autos nos permite retirar as conclusões da autoria da ACT, acima enunciadas, desconhecendo-se mesmo se ocorreu ou não devolução da peça por parte da ANSR.
Sustenta agora a Arguida, Recrte., que é de considerar validamente praticado o ato de impugnar judicialmente uma determinada decisão, se a parte, dentro do prazo legal para praticar o ato, apresenta a respetiva impugnação, dirigindo o requerimento às entidades competentes, muito embora o processo tenha sido remetido para a morada errada, desde que tal erro seja retificado pelo impugnante, nos termos do art. 249.º do CC.
Ou seja, assume a Recrte. que não dirigiu o ato à entidade competente, pretendendo valer-se da retificação –esta traduzida na remessa subsequente à ACT- que funda em erro de cálculo ou escrita.
O Artº 249º do CC dispõe que o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através de circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta. E o próprio CPC, no Artº 146º admite a retificação de erros de cálculo ou de escrita revelados no contexto da peça processual apresentada.
Não se constata, no caso, nem erro de cálculo, nem erro de escrita pela simples razão de que não estão aqui em causa quaisquer cálculos e a impugnação mostra-se dirigida a quem de direito, tendo, antes, ocorrido um erro na remessa à entidade competente.
Logo, o que se nos configura é um ato de remessa para entidade sem competência para o ato, mas, ainda assim, uma entidade pública.
Nestas circunstâncias será lícito concluir como concluiu o Tribunal recorrido?
A resposta, não se retirando diretamente da lei processual aplicável – nem da civil1, nem da processual penal ou contraordenacional- afigura-se-nos poder ser encontrada no espírito do sistema.
Na verdade, desde logo o Artº 146º/2 do CPC impõe ao juiz a admissibilidade, a requerimento da parte, da correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva reputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa.
Para além disso, numa circunstância que pode ter-se por equiparável, em caso de incompetência territorial, declarada esta, o processo é remetido para o tribunal competente (Artº 105º/2 do CPC).
Já no âmbito do procedimento administrativo, dispõe o Artº 41º do CPA (DL 4/2015 de 7/01) que quando seja apresentado requerimento, petição, reclamação ou recurso a órgão incompetente, o documento recebido é enviado oficiosamente ao órgão titular da competência, disso se notificando o particular (nº 1) e nos casos previstos nos números anteriores, vale a data da apresentação inicial do requerimento para efeitos da sua tempestividade (nº 2).
Por último, o princípio da cooperação, explícito no Artº 7º do CPC.
Tudo normas a partir das quais se nos afigura poder relevar o erro detetado no caso concreto e considerar o ato como tempestivo.
Na jurisprudência, e tal como adiantado pela própria Arguida em sede de alegações, a RC, numa situação que se pode ter como semelhante, em Ac. de 27/09/2005, Proc.º 2160/05, já decidiu que:
1.Na contestação deve o réu individualizar a ação.
2. É de considerar validamente praticado o ato de contestar, se a parte, dentro do prazo legal, apresenta a contestação em Tribunal identificando erradamente nessa peça o Juízo e o número do processo, mas o sobrescrito remetido pelo correio, contendo a contestação, é dirigido ao Juízo e processo respetivo.
3. Apesar de a contestação ter sido junta pela secretaria ao processo indicado na contestação, e não ao processo mencionado no sobrescrito, a errada individualização da ação nessa peça constitui mera irregularidade processual imputável à parte, decorrendo de simples erro de escrita que jamais pode implicar a perda do direito de praticar o ato.
E, por sua vez, na RG, no Ac. de 28/11/2013, Proc.º 116/22.2T9MGD, foi decidido que:
- Se um requerimento foi tempestivamente apresentado noutro Tribunal, por erro, o caso deve ser tratado de forma semelhante aos casos de incompetência territorial do Tribunal.
- Deve o referido requerimento ser enviado ao Tribunal competente e neste e independentemente da sua data de entrada aqui, deve o mesmo ser considerado tempestivo.
Afigura-se-nos, assim, que, embora não prevista na lei diretamente aplicável, todo o sistema inculca no sentido de se relevar o erróneo ato de remessa a entidade incompetente para o efeito e não extrair daí a drástica consequência da extemporaneidade, pelo que deve a lacuna detetada ser integrada nos termos do disposto no Artº 10º do CC.
Termos em que procede o recurso.
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Não são devidas custas (Artº 92º e 93º/3 do DL 433/82 aplicável ex vi Artº 60º da Lei 107/2009 de 14/09)
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, ordenando-se a prossecução dos autos tendo por admissível a impugnação judicial.
Notifique.

Lisboa, 23/10/2024
MANUELA FIALHO
PAULA POTT
MARIA JOSÉ COSTA PINTO
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1. Aplicável ex vi ex vi Artº 60º da Lei 107/2009 de 14/09, 41º do RGCO e 4º CPP