JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
DEVERES DO TRABALHADOR
DEVER DE ZELO
CUIDADOS EM SAÚDE MENTAL E PSIQUIATRIA
Sumário

1. O conceito de justa causa de despedimento corresponde a um comportamento do trabalhador violador dos seus deveres contratuais, gerador de uma crise contratual de tal modo grave e insuperável que provoca uma ruptura irreversível entre as partes contratantes de modo a não ser exigível a um empregador normal e razoável a continuação da relação laboral.
2. Integra justa causa de despedimento o comportamento da trabalhadora que, após a troca da fralda a uma utente do Réu que se encontrava medicada, não consegue falar e andar sozinha e é totalmente dependente de terceiros para a realização das actividades diárias, após ter tentado levantar a utente juntamente com uma colega, a fim de lhe vestirem as calças, o que não conseguiram, em acto contínuo, puxou pelos cabelos da utente, pela parte de cima da cabeça, forçando-a a levantar-se, o que conseguiu.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
AA veio, mediante a apresentação do formulário a que aludem os artigos 98.º- C e 98.º-D do Código de Processo do Trabalho (CPT), propor contra Instituto XX, acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, pedindo que seja decretada a ilicitude e irregularidade do seu despedimento com as consequências legais.
Realizou-se a audiência de partes não tendo sido obtida a conciliação.
Regularmente notificado, o Réu apresentou articulado motivador do despedimento invocando, em síntese, que a 27 de Novembro de 2012, foi a Autora contratada para trabalhar sob a autoridade e direcção daquele, exercendo as funções de Ajudante de Enfermaria de 2ª no Centro de Reabilitação YY, encontrando-se afecta à Unidade de Internamento ..., unidade esta que presta os seus serviços no âmbito da deficiência mental, moderada e grave, associada a doença psiquiátrica, ou multideficiências e com impossibilidade de inserção comunitária ou permanência em ambiente familiar e com necessidade de acompanhamento clínico e de enfermagem permanente; a 12 de Junho de 2023 a Direcção do Centro de Reabilitação YY tomou conhecimento, mediante denúncia anónima, que a Autora, reiteradamente, não dava as refeições aos utentes, chegando mesmo a deitar fora a comida, não dava banho aos utentes ou fazia-o de modo insuficiente, infligia hematomas nos utentes (beliscão), que criava mau ambiente no trabalho e saía uma hora mais cedo sem aviso ou justificação.
Acrescentou que, depois de, a 19 de Junho de 2023, o Réu ter dado início ao respectivo procedimento disciplinar, em 16 de Agosto de 2023 tomou conhecimento que a Autora, ao tentar levantar uma utente que estava deitada numa marquise e que, naquele momento, se encontrava medicada, apresentava um elevado grau de incapacidade cognitiva, o que a impedia de falar e andar, puxou os cabelos desta. Nessa sequência, em 17 de Agosto de 2023, o Réu instaurou novo procedimento disciplinar contra a Autora e, simultaneamente, procedeu à sua suspensão preventiva, mantendo o pagamento mensal da sua retribuição.
Concluiu que o comportamento da Autora viola os deveres de assiduidade e pontualidade, de respeito à sua empregadora e aos seus superiores hierárquicos, aos seus colegas e aos utentes, o dever de realizar o trabalho com zelo e de cumprir as ordens e instruções dadas pelo Réu respeitantes à execução ou disciplina do trabalho, tudo previsto nas alíneas a), b), c) e e) do nº 1 e nº 2 do artigo 128º do Código do Trabalho (CT), bem como viola os direitos de personalidade dos utentes assistidos no Réu e que, atenta a sua gravidade e reiteração, torna imediatamente impossível a subsistência da relação de trabalho, constituindo justa causa de despedimento.
O Réu ainda se opôs à reintegração da Autora.
Pediu, a final, que:
a) fosse reconhecida a justa causa invocada para o despedimento da Autora, nos termos do artigo 351º do CT;
b) em consequência, fosse julgada improcedente a presente acção;
c) fosse a Autora condenada a pagar as custas de parte e condigna procuradoria;
d) caso assim não se entendesse, se determinasse:
i) que o pagamento das retribuições intercalares devidas à Autora, após o decurso de 12 meses desde a apresentação do formulário referido no artigo 98.º- C até à notificação da decisão de primeira instância fosse efectuado pela entidade competente da área da segurança social, conforme previsto no artigo 98º-N do CPT; e
ii) que fossem deduzidas nas retribuições que a Autora venha a receber, as importâncias que esta auferiu com a cessação do contrato de trabalho e que não auferiria se não tivesse sido despedida e/ou os valores recebidos a título de subsídio de desemprego, conforme previsto nas alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 390º do CT.
A Autora contestou por excepção e por impugnação.
Por excepção, invocou a inexistência da decisão de despedimento por entender que esta é uma mera proposta de decisão elaborada pela instrutora do procedimento disciplinar, assinado e carimbado pela mesma, não tendo sido remetida à Autora, nem sequer transcrita a verdadeira decisão do Réu, alegadamente tomada por deliberação da sua Direcção.
Caso se entenda que existe decisão de despedimento, ainda assim, esta é nula por falta de deliberação por escrito dos órgãos do Réu e por não ter sido lavrada no livro de actas. E caso se venha a entender que a assinatura aposta na proposta de decisão de despedimento equivale à deliberação da Direcção do Réu a qual terá aderido àquela fundamentação, então a mesma padece de um vício de nulidade, por falta de convocatória ou por falta de ratificação da deliberação dos membros ausentes, conforme dispõe a al. a) do nº 5 do art.º 20º dos estatutos do Réu.
Por impugnação invoca a Autora serem falsos os factos que lhe são imputados e que nunca violou os deveres laborais.
A Autora ainda deduziu reconvenção invocando que, em consequência do despedimento, sentiu ansiedade, desgosto, tristeza e um profundo sentimento de injustiça, revelando-se esses sentimentos na perda de alegria, vontade constante de chorar, dificuldade em adormecer e na necessidade frequente em abordar e desabafar sobre este assunto nas conversas com as pessoas amigas, tendo tido necessidade de consultar a médica de família, passando a ser medicada.
Finalizou pedindo ao Tribunal para:
a) Julgar procedente, por provada, a excepção peremptória de inexistência de decisão de despedimento, julgando o despedimento da Autora como ilícito;
b) Não sendo procedente a excepção anterior, julgar procedente, por provada, a excepção peremptória por nulidade da decisão de despedimento da Autora, por violação do disposto na alínea c) do nº 5 do art.º 20º dos estatutos do Réu, julgando o despedimento da Autora como ilícito;
c) Julgar procedente, por provada, a excepção peremptória por nulidade da decisão de despedimento da Autora, por violação do disposto na alínea a) do nº 5 do art.º 20º dos estatutos do Réu, julgando o despedimento da Autora como ilícito;
d) Não sendo procedentes nenhuma das excepções, julgar improcedente, por não provada a matéria e a fundamentação constante da decisão final do procedimento disciplinar, julgando o despedimento da Autora como ilícito;
e) Julgar procedente, por provada, a reconvenção deduzida, condenando o Réu a pagar à Autora uma indemnização nos termos do disposto no art.º 391º do CT, a ser calculada por referência a 30 dias de vencimento base (790,00 €) e às diuturnidades devidas (49,88 €), por cada ano de antiguidade, até ao trânsito em julgado dos presentes autos;
f) Condenar o Réu a pagar à Autora todas as remunerações que lhe seriam devidas se não tivesse sido despedida em 17-10-2023, incluindo subsídio de férias, de Natal e férias não gozadas, até ao trânsito em julgado desta acção; e
g) Condenar o Réu a pagar à Autora uma indemnização no valor de 5.000,00 €, por danos não patrimoniais.
A Ré respondeu pugnando pela improcedência das excepções e da reconvenção.
Em 30 de Janeiro de 2024 foi dispensada a realização da audiência prévia na consideração de que a causa é simples, admitido o pedido reconvencional, dispensada a selecção da matéria de facto e proferido despacho saneador que apreciou a alegada inexistência e nulidade da decisão de despedimento nos seguintes termos:
“Do processo disciplinar – da inexistência e nulidade de decisão de despedimento
Em contestação a Autora Trabalhadora veio alegar que a decisão que lhe foi comunicada é uma mera proposta, elaborada pela instrutora, constando apenas uma assinatura e carimbo do Réu, inexistindo qualquer documento que demonstre expressamente que o Réu decidiu despedir a Autora. E não existe deliberação nos autos disciplinares. Mais alega que a Direcção, enquanto órgão colegial é que podia ter deliberado o despedimento, decisão que não foi transmitida.
Regularmente notificada, veio a Ré responder impugnando o alegado, uma vez que a cópia da decisão final remetida à Autora tem aposta rubrica da representante legal do Réu, bem assim a sua assinatura e carimbo, a qual é da sua Presidente. E esta decisão foi legitimamente tomada nos termos do estatuto.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do artigo 382º, n.º 2, do Código do Trabalho, “o despedimento por facto imputável ao trabalhador é ainda ilícito (…) se o respectivo procedimento for inválido” e “o procedimento é inválido se: a) Faltar a nota de culpa, ou se esta não for escrita ou não contiver a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador; b) Faltar a comunicação da intenção de despedimento junta à nota de culpa; c) Não tiver sido respeitado o direito do trabalhador a consultar o processo ou a responder à nota de culpa ou, ainda, o prazo para resposta à nota de culpa; d) A comunicação ao trabalhador da decisão de despedimento e dos seus fundamentos não for feita por escrito, ou não esteja elaborada nos termos do n.º 4 do artigo 357.º ou do n.º 2 do artigo 358.º”.
E nos termos do artigo 357º, n.º 4 e n.º 5, do Código do Trabalho, a decisão de despedimento deve ser escrita, fundamentada e fazer a ponderação das circunstâncias do caso.
Nos presentes autos, compulsado o articulado da Ré resulta a junção do processo disciplinar.
E deste consta que a proposta de decisão final foi levada à Presidente da Ré, que a carimbou e assinou, ou seja, validou-a e, inclusive, remete-a com carta de despedimento, assinada por si e em papel timbrado da Ré.
E de acordo com os estatutos juntos, no artigo 21º, conta que a representação legal da Ré compete à sua Presidente.
Anote-se ainda que, impôs o legislador sim uma decisão, formalizada na nota de culpa da empregadora, o que no caso sucede. E igualmente existe decisão final.
Pelo exposto, por falta de fundamento legal, improcedo ao requerido.”
A Autora não recorreu do despacho saneador.
Realizou-se a audiência de julgamento com observância do legal formalismo conforme decore das actas que antecedem.
A Autora optou pela indemnização em substituição da reintegração.
Após, foi proferida a sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos, tudo visto e ponderado, julgo a acção improcedente por não provada e, consequentemente, declaro lícito o despedimento da Autora, AA, por procedência da justa causa.
No mais, vai a Ré absolvida.
Valor: 16.758,32€.
Custas pela Autora.
Registe e notifique.”
Inconformada, a Autora recorreu e formulou as seguintes conclusões:
“A) A Recorrida é uma pessoa colectiva canónica e tem como órgão representativo a sua Direcção;
B) A Direcção da Recorrida é um órgão colegial, formado por cinco membros e é neste órgão que se forma e emana a vontade da Recorrida;
C) A Presidente da Direcção tem apenas poderes de representação da instituição junto de terceiros, não substituindo a forma de formação da vontade da pessoa colectiva, isto é, através da Direcção;
D) Enquanto órgão colegial, a Direcção tem deliberar e redigir as suas deliberações em ata;
E) A decisão de despedimento da Trabalhadora não foi sujeita a deliberação da Direcção da instituição, mas é apenas uma proposta elaborada pela sua instrutora do procedimento, com a assinatura da presidente da direcção;
F) A comunicação de despedimento deveria conter a cópia da deliberação da Direcção da Recorrida ou a transcrição da mesma deliberação, violando o disposto no art.º 357º do CT;
G) Violação legal que implica necessariamente a ilicitude do despedimento;
H) O único facto dado como provado e com relevância disciplinar é aquele que consta nos pontos 14, 15 e 16 dos factos provados na sentença.
I) Esse facto é por si só e de forma objectiva motivo de censurabilidade da Recorrente, violando dos deveres de zelo e diligência;
J) O despedimento-sanção só deve ser aplicado quando a razoabilidade, objectividade do facto e a subjectividade das circunstâncias permitam concluir que é insuportável e injusto exigir à entidade patronal a manutenção daquela relação de trabalho;
K) A Recorrente tinha praticamente uma antiguidade de doze anos de serviço, sem qualquer registo disciplinar;
L) A Recorrida atribuiu elevadas notas de desempenho ao trabalho prestado pela Recorrente entre os anos de 2019 a 2022, designadamente no que toca à prestação de cuidados junto das pessoas assistidas e também na integração da equipa de trabalho;
M) A Recorrente era vista como uma trabalhadora esmerada, diligente, zelosa e que queria sempre executar o seu serviço;
N) A sentença recorrida reconhece que a Trabalhadora executou o acto lesivo junto da utente tendo em vista apressar e concluir as suas tarefas laborais;
O) Não ficou provado que a Recorrente pretendia magoar ou molestar dolosamente a utente por si só, pois apenas pretendia cumprir as suas funções;
P) As colegas da Recorrente reconhecem as elevadas competências e zelo da Trabalhadora, sendo certo que a acolheriam bem no regresso ao trabalho;
Q) O bom paterfamilias ponderaria sobre a aplicação da sanção máxima de despedimento a uma trabalhadora exemplar, com doze anos de serviço e sem registo disciplinar, cometendo um erro após tanto tempo de serviço;
R) O bom paterfamilias daria uma segunda hipótese de reintegração de uma trabalhadora exemplar que cometeu um erro ao fim de 12 anos de serviço e aplicaria uma sanção disciplinar inferior à sanção de despedimento;
S) O princípio da proporcionalidade no direito sancionatório não foi adequadamente aplicado na presente causa, estando demonstrado que a aplicação de uma sanção de suspensão à Recorrente pudesse fazê-la compreender a gravidade do seu acto;
T) Bem como a sanção de suspensão não se tornaria injusta e insuportável para a Recorrida na manutenção da relação jurídico-laboral, havendo a possibilidade de se recuperar a confiança agora abalada;
U) Razões que permitem concluir que o despedimento foi determinado sem justa causa e, por isso, ilicitamente;
V) Devendo substituir-se a sentença recorrida por outra que determine a condenação da Recorrida nos diversos pedidos constantes da petição inicial.
Nestes termos e demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se por outra que condene a Recorrida nos pedidos constantes da Petição Inicial, como é de JUSTIÇA!”
O Réu contra-alegou e apresentou as seguintes conclusões:
“I- O Recorrido “...é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPPS), sob a forma de fundação de solidariedade social…” (cfr., artigos 1º e 2 dos Estatutos do Instituto XX), é representado pela sua Presidente (cfr., artigo 29º dos sobreditos Estatutos) e presta cuidados diferenciados e humanizados em saúde mental e psiquiatria.
II- A excepção peremptória “inexistência e nulidade da decisão de despedimento”, oferecida pela Recorrente na sua contestação, foi, a 31 de Janeiro de 2024, objecto do despacho saneador, que a julgou improcedente.
III- A Recorrente não interpôs o competente recurso autónomo e, não o tendo feito, tal decisão transitou em julgado, formando-se, consequentemente, caso julgado (cfr., alínea b) do nº 1 do artigo 79º-A e do nº 2 do artigo 80º, ambos do CPT).
IV- A presente impugnação da decisão constante do despacho saneador não é legalmente admissivel, por intempestiva, assim devendo ser declarada.
V- Por outro lado, ainda que assim não fosse, não se verifica a ocorrência de qualquer das omissões taxativamente elencadas no nº 2 do artigo 382º do Código do Trabalho.
VI- Acresce que a Recorrente, nos termos constantes da defesa apresentada no procedimento disciplinar, não manifestou quaisquer dúvidas e, em nenhum momento, viu ser cerceados ou limitados os seus direitos de defesa.
VII- A decisão proferida pelo Tribunal a quo relativamente à excepção peremptória invocada não merece qualquer censura, devendo, como tal, assim ser mantida.
VIII -A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo nos presentes autos mostra-se devidamente fundamentada, explicitando claramente, conforme a prova documental e testemunhal produzida, as regras da experiência comum e a lógica, a convicção do Julgador, adquirida no decurso dos presentes autos.
IX- O Recorrido, no âmbito da actividade desenvolvida, tem a obrigação de assegurar aos Utentes que recebe o acesso a cuidados de saúde mental adequados, de qualidade e com segurança e com integral respeito pela sua individualidade.
X- É essencial para o Recorrido garantir a qualidade e segurança ao nível da prestação de cuidados de saúde e dos seus recursos humanos, para que os serviços sejam prestados em condições que não lesem os direitos, nem os interesses dos seus Utentes.
XI- Os Utentes do Recorrido, mercê das patologias que os afectam, são pessoas particularmente vulneráveis e absolutamente dependentes dos cuidados prestados pelos seus colaboradores.
XII- Esta particular vulnerabilidade é, por exemplo, traduzida no facto de muitos destes Utentes não conseguirem sequer falar, pelo que estão objectivamente impossibilitados de responder, retorquir, reclamar, protestar, queixar-se, isto é, estão objectivamente impossibilitados de se defender.
XIII- O que é bem conhecido pela Recorrente (Ajudante de Enfermaria de 2ª), porquanto ali trabalhou tempo suficiente para apreender devidamente tais vulnerabilidades, e limitações, e as regras aplicáveis à execução do trabalho, limites estes inultrapassáveis mesmo que a pretexto de “despachar serviço” ou de “stress”.
XIV- A 16 de Agosto de 2023, a Recorrente, não conseguindo levantar a Utente BB, que se encontrava deitada numa marquise, simplesmente puxou os cabelos desta (cfr., factos provados na douta decisão judicial sob os pontos 14,15 e 16).
XV- Esta Utente apresenta um elevado grau de incapacidade cognitiva, não fala, nem anda, para além de, naquele momento, se encontrar medicada (cfr., Anexo I, a fls. 70; fls 81 a a 89).
XVI- O comportamento assumido pela Recorrente foi presenciado pela colega CC, a qual, por estar a substituir férias e ali não trabalhar habitualmente, não se deixou intimidar por aquela, relatando, de forma credível, o ocorrido aos seus superiores hierárquicos e, posteriormente, ao Tribunal a quo.
XVII- A Recorrente não cometeu um “erro” – ao invés, praticou uma agressão, intencional e dolosa, tanto mais grave por cometida contra quem não se pode defender, como bem o sabe a Recorrente e afecta, de forma indelével, a organização do Recorrido, até mesmo ao nível da sua disciplina interna.
XVIII- Os colaboradores do Recorrido, com idêntica categoria profissional da Recorrente, fazem o mesmo trabalho e estão sujeitos ao mesmo “stress” que aquela diz sofrer, e respeitam a integridade física e moral dos Utentes e bem assim cumprem as regras relativas à execução do trabalho.
XIX- O comportamento assumido pela Recorrente representa uma violação grosseira do dever de zelo e do dever de diligência a que estava adstrita.
XX- As funções desempenhadas pela Recorrente tinham por base uma relação de confiança que não mais existe, nem é expectável, nem exigível, ao Recorrido que venha a recuperar tal confiança.
XXI- Afinal, a partir de quantos “erros” mais é a confiança susceptível de ser quebrada? Tem o Recorrido o dever de seguir cada um dos passos dados pela Recorrente para se assegurar que este e outros “erros” não se voltam a repetir?
XXII-A subsistência da relação de trabalho é assim impossível pelo que o despedimento com justa causa é a única sanção adequada e proporcional à gravidade da infracção praticada e à culpabilidade da Recorrente - tal como foi decidido pelo Tribunal a quo.
XXIII- Pelo que, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que decidiu julgar o despedimento lícito, por ter considerado procedente a justa causa invocada pelo ora Recorrido, não merece quaisquer reparos ou censura, devendo, como tal, ser mantida.
Assim se fazendo Justiça.”
Foi proferido despacho que admitiu o recurso, na espécie, modo de subida e efeito adequados.
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
Não houve resposta ao Parecer.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º n.º 2 do CPC).
No presentes recurso foram colocadas à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:
1-Da admissibilidade/inadmissibilidade da impugnação do despacho saneador na parte em que julgou improcedente as excepções peremptórias deduzidas pela Recorrente.
2- Se, no caso, inexiste justa causa de despedimento.
Fundamentação de facto
A sentença considerou provada a seguinte factualidade:
1. A Autora trabalhadora foi contratada pela Ré a 27.11.2012.
2. E exerce as funções de ajudante de enfermaria de 2ª, no Centro de Reabilitação YY da Ré, no ....
3. A Autora trabalhadora encontrava-se afecta à unidade de tratamento ... (Instituto XX).
4. A unidade de internamento ... presta os seus serviços no âmbito da deficiência mental, moderada e grave, associada a doença psiquiátrica ou multideficiências e com impossibilidade de inserção comunitária ou permanência em ambiente familiar e com necessidade de acompanhamento clínico e de enfermagem permanente.
5. A Autora auferia o salário ilíquido mensal de 790€, acrescido de subsídio de alimentação por cada dia de trabalho no valor de 6€.
6. A 19 de Junho de 2023, a Ré determinou a abertura de processo disciplinar à Autora trabalhadora.
7. A 16 de Agosto de 2023, a Ré instaurou contra a Autora novo procedimento disciplinar e procedeu à suspensão da Autora trabalhadora.
8. A Ré empregadora remeteu à Autora trabalhadora nota de culpa a 15.09.2023.
9. A Autora trabalhadora apresentou resposta a 03.10.2023.
10. Por decisão da Ré empregadora de 17 de Outubro de 2023 a Ré empregadora aplicou à Autora trabalhadora a sanção disciplinar de despedimento com justa causa.
11. A 24 de outubro de 2023, a Ré procedeu ao pagamento à Autora trabalhadora dos créditos salariais vencidos pela cessação do contrato de trabalho, no valor de 2.959,37€.
12. O que a Autora trabalhadora recebeu.
13. A Autora trabalhadora, nas conversas com as suas colegas, refere-se à utente DD como a “Wlaking Dead”.
14. A 16 de Agosto de 2023, a Autora trabalhadora acompanhada da colega CC, após o almoço, na casa de banho, trocaram a fralda da utente BB, que se encontrava deitada numa marquise.
15. Após a troca da fralda da utente, a Autora trabalhadora e a colega pretendendo vestir as calças à utente, tentaram levantá-la e não o tendo conseguido, a Autora trabalhadora, em acto contínuo, puxou pelos cabelos da utente, pela parte de cima da cabeça, forçando-a a levantar-se, o que conseguiu.
16. Na ocasião, a utente encontrava-se medicada e esta não consegue falar e andar sozinha, encontrando-se totalmente dependente de terceiros para a realização das actividades diárias.
*
A sentença ainda considerou que a demais factualidade resultou como não provada que a restante matéria alegada nos articulados constitui matéria de direito, de impugnação, conclusiva ou irrelevante para a decisão da causa, pelo que não respondeu à mesma.
Fundamentação de direito
Comecemos, então, por apreciar a questão da admissibilidade/inadmissibilidade da impugnação do despacho saneador na parte em que julgou improcedente as excepções peremptórias deduzidas pela Recorrente.
Nas conclusões A a G a Recorrente invoca, em suma, que o Recorrido é uma pessoa colectiva canónica e tem como órgão representativo a sua Direcção, a qual enquanto órgão colegial tem de deliberar e redigir as suas deliberações em acta. Sucede que a decisão de despedimento da Trabalhadora não foi sujeita a deliberação da Direcção da instituição, sendo apenas uma proposta elaborada pela instrutora do procedimento, com a assinatura da presidente da direcção, sendo certo que a comunicação de despedimento deveria conter a cópia da deliberação da Direcção do Recorrido ou a transcrição da mesma deliberação, o que não sucedeu, pelo que o despedimento é ilícito.
Ora, conforme refere o Recorrido nas contra-alegações, esta questão já foi apreciada no despacho saneador que a julgou improcedente.
O despacho saneador foi proferido a 30 de Janeiro de 2024, pelo que, atento o disposto nos artigos 79.º-A n.º 1 al.b) e 80.º n.º 2 do CPT, a Recorrente tinha 15 dias para interpor recurso do mesmo.
Não o tendo feito dentro do referido prazo legal, o recurso, no que respeita à mencionada questão, é manifestamente extemporâneo, não podendo, pois, este Tribunal admiti-lo.
*
Debrucemo-nos, agora, sobre a questão de saber se, no caso, inexiste justa causa de despedimento.
Sobre a existência de justa causa de despedimento, após debruçar-se sobre tal conceito, pronuncia-se a sentença recorrida nos seguintes termos:
“(…).
Em causa nos presentes autos estará a violação do dever de realização do trabalho com zelo e diligência, cumprindo as ordens e instruções respeitantes à execução do trabalho, conforme previsto no artigo 128º, n.º 1, alíneas c) e e), do Código do Trabalho.
A violação destes deveres consubstancia as justas causas de despedimento tipificadas nas alíneas a), d) e e), do n.º 2, do artigo 351º, do Código de Trabalho, de desobediência ilegítima às ordens, desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, das obrigações e de lesão de interesses sérios da empresa.
O dever de zelo e diligência exige que o trabalhador execute as suas tarefas com um esforço e vontade ao nível daquilo de que é capaz e para o que está habilitado e actue de forma a cumprir as suas obrigações do modo mais correcto e adequado.
Por seu lado, o dever de obediência é a repercussão mais significativa da subordinação jurídica, sendo esta um dos elementos caracterizadores do contrato de trabalho e pode contender directamente com a prestação de trabalho ou integrar-se na dimensão organizacional que implica a observância de outros deveres.
Com a celebração do contrato de trabalho o empregador fica investido numa posição de autoridade e passa a ter o direito de orientar, programar, dirigir e fiscalizar a prestação de trabalho, ficando o trabalhador sujeito às ordens, directivas e disciplina por aquele estabelecidas. São as necessidades de organização do trabalho e o normal funcionamento da empresa que postulam e justificam um poder directivo que impeça o trabalhador de, com uma eventual conduta desviante e censurável, colocar em risco a normal execução do contrato (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 1999, BMJ 484, 258 mencionado por Paula Quintas e Helder Quintas, Código do Trabalho Anotado e Comentado, 3ª edição revista e aumentada, 2004, pág. 297).
Assim, “(...) o trabalhador deve obediência não apenas às directrizes do empregador sobre o modo de desenvolvimento da sua actividade laboral (ou seja, o poder directivo), mas também às directrizes emanadas do poder disciplinar prescritivo, em matéria de organização da empresa, de comportamento no seu seio, de segurança, higiene e saúde no trabalho, ou outras” (RAMALHO, Maria do Rosário Palma; - Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, pág. 350).
Na aferição da existência de justa causa e no confronto dos deveres exigidos ao trabalhador face ao comportamento por este adoptado há que ponderar que “a necessidade natural de colaboração no interior da empresa entre trabalhador e empregador tem como imediato corolário a afirmação, entre outros, dos deveres de respeito, de urbanidade e de lealdade, que em última análise se radicam, por um lado, no princípio, ainda mais geral, da boa fé no cumprimento dos contratos e, por outro lado, na necessidade da manutenção de confiança que o trabalhador carece de garantir ao empregador sobre a idoneidade, presente e futura, da sua conduta. É que o contrato de trabalho, enquanto contrato sinalagmático de execução duradoura, carece de ser regido pelos princípios da boa fé, do respeito mútuo e da lealdade e da honestidade recíprocas, sem as quais a relação laboral fica à deriva e sem norte que garanta a sua manutenção” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Outubro de 2002, CJ 2002, IV, 146).
No caso em apreço e conforme consta da nota de culpa e resultou provado que a 16 de Agosto de 2023, a Autora trabalhadora acompanhada da colega CC, após o almoço, na casa de banho, trocaram a fralda da utente BB, que se encontrava deitada numa marquise. E após a troca da fralda, a Autora trabalhadora e a colega pretendendo vestir as calças à utente, tentaram levantá-la e não o tendo conseguido, a Autora trabalhadora, em acto contínuo, puxou pelos cabelos da utente, pela parte de cima da cabeça, forçando-a a levantar-se, o que conseguiu.
Ora, na ocasião, a utente encontrava-se medicada e esta não consegue falar e andar sozinha, encontrando-se totalmente dependente de terceiros para a realização das actividades diárias.
A Autora trabalhadora exerce as funções de ajudante de enfermaria de 2ª, no Centro de Reabilitação YY da Ré, no ... e encontrava-se afecta à unidade de tratamento ... (Instituto XX). Esta unidade presta os seus serviços no âmbito da deficiência mental, moderada e grave, associada a doença psiquiátrica ou multideficiências e com impossibilidade de inserção comunitária ou permanência em ambiente familiar e com necessidade de acompanhamento clínico e de enfermagem permanente.
Ou seja de pessoas especialmente vulneráveis, pois que atentas as suas limitações na sua maioria não são capazes de reportar o que sentem ou sentiram, equivalentes a crianças de tenra idade.
Do comportamento descrito resulta à saciedade, por dedução lógica, que a Autora trabalhadora admitiu, no mínimo atingir o corpo de utente, causando dor (inerente a um puxão de cabelos para levantar o tronco), e se conformou com tal resultado com vista a alcançar, de forma rápida e expedita o seu intento, vestir e levantar a utente (artigo 349º, do Código Civil).
Sabia que atentas as suas funções estava incumbida de cuidar, vigiar e garantir pela guarda e cuidados dos utentes, pessoas especialmente vulneráveis face às suas características, e apesar de informada e consciente das suas funções, deveres e obrigações praticou os factos.
E esta, quer pelas suas funções, quer pela antiguidade no seu exercício, detinha especial conhecimento acerca do meio em que desenvolvia a sua actividade, bem como sabia que assim não podia proceder, tanto mais que a Ré responde pela segurança, saúde e guarda dos utentes que a ela são entregues.
A Autora ao invés, pelo seu conhecimento e antiguidade, actuou convencida de que a sua conduta passaria impune.
A Autora trabalhadora não provou qualquer facto que permitisse concluir pela licitude da sua conduta, sendo que, ao invés se apuraram factos que não permitem vislumbrar qualquer justificação plausível para o seu comportamento.
E o comportamento descrito, revela que a Autora trabalhadora não foi capaz de assegurar perante a sua entidade patronal, que é merecedora da confiança que nela foi depositada.
Com efeito, não pode deixar de ser considerado grave o comportamento de um trabalhador que, tendo conhecimento das regras existentes e do trabalho destinado, não se coíbe de satisfazer os seus intentos pessoais, que no caso era meramente se despachar, admite-se.
É certo que as funções desenvolvidas pela Autora trabalhadora são deveras exigentes, quer física quer mentalmente, sendo que o ambiente de trabalho será certamente difícil, nomeadamente face às dificuldades com o pessoal, mas tal por si não justifica o sucedido, nem o mesmo se mostra aceitável.
Dir-se-á que o dano terá sido de pouca monta, uma dor na cabeça, mas está em causa, sim, a valoração do comportamento, a qual implica um juízo negativo quer pela conduta em si, isolada, porque integradora, sem sombra de dúvidas, de desprezo pela vida, quer pela circunstância de, perante os condicionalismos proporcionados pela entidade patronal no que respeita à realização do serviço, tal se revelar ainda mais merecedor de censura.
Compete ao trabalhador agir correctamente, com o zelo e diligência necessários a obstar a que ocorra qualquer facto que possa colocar em causa o corpo e a vida destes utentes, altamente vulneráveis, bem como cumprir com zelo e diligência o trabalho destinado.
Com efeito, há que ter em conta que “se está perante uma relação jurídica duradoura, cuja prossecução indefinida pode causar um prejuízo sério ao empregador no futuro. Por isso, não interessa só o efectivo dano que o comportamento culposo do trabalhador causou ao empregador, sendo também necessário averiguar da existência de um potencial prejuízo que a subsistência do vínculo lhe pode causar” (MARTINEZ, Pedro Romano, - Incumprimento Contratual e Justa Causa de Despedimento, in Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, volume II – Justa Causa de Despedimento, pág. 115).
A manutenção da relação laboral, quebrada a confiança face à «infidelidade» do trabalhador, o qual não pode ser alheio de este tipo de situações não ser tolerada, afigura- se inviável não sendo legítimo impô-la à entidade patronal.
O comportamento que traduz um incumprimento por parte do trabalhador de um dever contratual que lhe assiste presume-se culposo, presunção essa, porém, que não abrange o comportamento culposo grave a que alude o artigo 351º, n.º 1, do Código do Trabalho.
À luz das circunstâncias descritas e que resultaram demonstradas, entende-se que o despedimento é sanção adequada à culpabilidade da Autora trabalhadora (artigo 357º, n.º 4 do Código do Trabalho).
Na verdade, era exigível à Autora trabalhadora, assim como a qualquer outro trabalhador com as suas funções e colocado naquelas circunstâncias, que tivesse orientado a sua conduta desde logo no sentido de cumprir o serviço destinado.
O ambiente de trabalho, a relação entre os próprios trabalhadores e a relação de confiança entre a Autora trabalhadora e a Ré empregadora ficam necessariamente comprometidos perante esta atitude posto que é legítimo duvidar sobre a capacidade futura desta trabalhadora para desempenhar as suas funções.
O comportamento da Autora trabalhadora torna, em termos objectivos e ponderando qualquer outra entidade patronal colocada perante essa situação, impossível a subsistência da relação laboral já que a manutenção desta, com o juízo de prognose de continuação de tal conduta, determinaria, eventualmente, o receio sistemático de que viessem a ocorrer novas faltas.
Conclui-se, assim, que os factos apurados e relativos ao comportamento da Autora trabalhadora constituem justa causa de despedimento pelo que este é lícito.
Face à reconhecida licitude do despedimento fica precludida a apreciação dos demais pedidos, nomeadamente de pagamento dos salários vencidos e vincendos até à decisão final, o direito à indemnização e danos alegados, dado que não há lugar a estes.”
A Recorrente, por seu turno, não põe em causa que os factos provados nos pontos 14, 15 e 16 ocorreram e que o comportamento em causa é, por si só e de forma objectiva, motivo de censurabilidade e que integra a violação do dever laboral de zelo e diligência.
Sendo assim, não restam dúvidas e a própria Recorrente aceita que o comportamento descrito nos factos 14 a 16 são censuráveis e violam o dever laboral de zelo e de diligência, o que equivale a dizer que a Recorrente praticou um facto ilícito e culposo consubstanciado numa infracção disciplinar.
Mas como é sabido, nem todas as infracções disciplinares constituem justa causa de despedimento.
Defende a Recorrente que, não obstante a verificação dos mencionados factos, no caso, não há justa causa de despedimento fundamentando a sua argumentação, essencialmente, no seguinte:
-A Recorrente tinha praticamente uma antiguidade de doze anos de serviço, sem qualquer registo disciplinar;
-A Recorrida atribuiu elevadas notas de desempenho ao trabalho prestado pela Recorrente entre os anos de 2019 a 2022, designadamente no que toca à prestação de cuidados junto das pessoas assistidas e também na integração da equipa de trabalho;
-A Recorrente era vista como uma trabalhadora esmerada, diligente, zelosa e que queria sempre executar o seu serviço;
-A sentença recorrida reconhece que a Trabalhadora executou o acto lesivo junto da utente tendo em vista apressar e concluir as suas tarefas laborais;
-Não ficou provado que a Recorrente pretendia magoar ou molestar dolosamente a utente por si só, pois apenas pretendia cumprir as suas funções;
-As colegas da Recorrente reconhecem as elevadas competências e zelo da Trabalhadora, sendo certo que a acolheriam bem no regresso ao trabalho;
-O bom paterfamilias ponderaria sobre a aplicação da sanção máxima de despedimento a uma trabalhadora exemplar, com doze anos de serviço e sem registo disciplinar, cometendo um erro após tanto tempo de serviço;
-O bom paterfamilias daria uma segunda hipótese de reintegração de uma trabalhadora exemplar que cometeu um erro ao fim de 12 anos de serviço e aplicaria uma sanção disciplinar inferior à sanção de despedimento;
- A sanção é desproporcionada ao caso, estando demonstrado que a aplicação de uma sanção de suspensão à Recorrente pudesse fazê-la compreender a gravidade do seu acto;
Vejamos:
Nos termos do artigo 98.º do CT “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.”
E conforme decorre do disposto no artigo 328.º do CT, no exercício do poder disciplinar, o empregador pode aplicar qualquer uma das sanções previstas nas diversas alíneas do n.º 1, bem como as estabelecidas nos IRCT. Contudo, a aplicação das sanções deve respeitar os limites a que se refere o n.º 3 do mesmo artigo.
Como refere João Leal Amado, in “Contrato de Trabalho”, 3.ª Edição Reimpressão, Coimbra Editora, pag.210 “ii) O empregador não dispõe, nesta matéria, de quaisquer poderes criativos unilaterais, não podendo «inventar» (p.ex., em sede de regulamento interno) aplicar sanções disciplinares distintas das previstas na lei e/ou nos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho;”
Acresce que a aplicação das sanções disciplinares ainda está sujeita ao princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 330.º n.º 1 do CT, norma que determina que a sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não podendo aplicar-se mais de uma sanção pela mesma infracção. Assim, a aplicação de sanção disciplinar terá sempre de atender ao binómio gravidade da infração e culpabilidade do infractor.
E porque o poder disciplinar do empregador não é um poder absoluto, para além dos limites legais a que está sujeito, pode ser sindicado pelo Tribunal. Assim, cabe ao empregador escolher, de entre o leque legal, a sanção que, no seu critério, entende adequada ao caso e ao Tribunal cabe apreciar se a sanção aplicada ponderou o princípio da proporcionalidade.
Obviamente que a análise dessa ponderação sempre seguirá a par com a análise do conceito de justa causa de despedimento na medida em que, apurando-se um quadro de justa causa, a conclusão a retirar é a de que o despedimento é a sanção adequada e proporcional ao caso.
Sobre a justa causa de despedimento dispõe o artigo 351º do CT: “Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a relação de trabalho”.
O nº 2 do mesmo artigo enuncia, a título exemplificativo, os casos que constituem justa causa de despedimento.
Por seu turno, o nº 3 do mesmo artigo estatui que “Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes”.
Assim, como esclarece o Acórdão do STJ de 12.09.2012, Proc. n.º 656/10.6TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt, já na linha de anterior jurisprudência e que temos acompanhado, “os factos integrativos do conceito de justa causa hão-de materializar um incumprimento culposo dos deveres contratuais por parte do trabalhador, numa dimensão susceptível de ser considerada como grave, quer a gravidade se concretize nos factos em si mesmos quer ocorra nas suas consequências.
Para além disso, exige-se que essa dimensão global de gravidade torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, a que a Doutrina vem chamando elemento objectivo da justa causa.
A subsistência do contrato é aferida no contexto de juízo de prognose em que se projecta o reflexo da infracção e do complexo de interesses por ela afectados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma.
(…)”
E quanto à impossibilidade de subsistência da relação de trabalho escreve António Monteiro Fernandes, na obra “ Direito do Trabalho”, 16ª edição, Almedina, pág. 480 “não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, gerada por factos ou circunstâncias que impeçam definitiva e irremediavelmente a prestação de trabalho e o pagamento da retribuição - como a morte do trabalhador ou do empregador ou a destruição do estabelecimento. Trata-se, essencialmente, de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença – fundamentalmente o da premência da desvinculação e o da manutenção do vínculo (...). Basicamente, preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante a realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiem tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo”.
Ainda segundo António Monteiro Fernandes, pag.482 da mesma obra, “o que significa a referência legal à «impossibilidade prática» da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objectivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador. Nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador”.
E de acordo com o ensinamento plasmado no Acórdão do STJ de 8.05.2012, Proc. 263/06.8TTCSC.L1.S1, in www.dgsi.pt, cujo entendimento também temos perfilhado, “(…)II - No âmbito da apreciação da justa causa de despedimento, na ponderação sobre a gravidade da culpa e das suas consequências, importará considerar o entendimento de um “bonus pater familias”, de um “empregador razoável”, segundo critérios de objectividade, em função das circunstâncias de cada caso em concreto, sendo que, o apuramento da “justa causa” se corporiza, essencialmente, na impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho.”
Em suma, podemos concluir que o conceito de justa causa de despedimento corresponde a um comportamento do trabalhador violador dos seus deveres contratuais, gerador de uma crise contratual de tal modo grave e insuperável que provoca uma ruptura irreversível entre as partes contratantes de modo a não ser exigível a um empregador normal e razoável a continuação da relação laboral.
Regressando ao caso verificamos que ficou provado que: a Autora trabalhadora foi contratada pela Ré a 27.11.2012 (facto 1); E exerce as funções de Ajudante de Enfermaria de 2ª, no Centro de Reabilitação YY da Ré, no ... (facto 2); A Autora trabalhadora encontrava-se afecta à unidade de tratamento ... (Instituto XX) (facto 3); A unidade de internamento ... presta os seus serviços no âmbito da deficiência mental, moderada e grave, associada a doença psiquiátrica ou multideficiências e com impossibilidade de inserção comunitária ou permanência em ambiente familiar e com necessidade de acompanhamento clínico e de enfermagem permanente (facto 6); A 16 de Agosto de 2023, a Autora trabalhadora acompanhada da colega CC, após o almoço, na casa de banho, trocaram a fralda da utente BB, que se encontrava deitada numa marquise (facto 14); Após a troca da fralda da utente, a Autora trabalhadora e a colega pretendendo vestir as calças à utente, tentaram levantá-la e não o tendo conseguido, a Autora trabalhadora, em acto contínuo, puxou pelos cabelos da utente, pela parte de cima da cabeça, forçando-a a levantar-se, o que conseguiu (facto 15); e na ocasião, a utente encontrava-se medicada e esta não consegue falar e andar sozinha, encontrando-se totalmente dependente de terceiros para a realização das actividades diárias.
Contrariamente ao que refere a Recorrente, não consta dos factos provados que o Recorrido atribuiu elevadas notas de desempenho ao trabalho prestado pela Recorrente entre os anos de 2019 a 2022, designadamente no que toca à prestação de cuidados junto das pessoas assistidas e também na integração da equipa de trabalho, nem que a Recorrente era vista como uma trabalhadora esmerada, diligente, zelosa e que queria sempre executar o seu serviço. Também não consta dos factos provados que a trabalhadora executou o acto lesivo junto da utente tendo em vista apressar e concluir as suas tarefas laborais o que, adianta-se, não diminui o grau de censurabilidade da sua conduta. Não consta dos factos provados que as colegas da Recorrente reconhecem as elevadas competências e zelo da trabalhadora e que a acolheriam bem no regresso ao trabalho.
É certo que não ficou provado que a Recorrente pretendia magoar ou molestar dolosamente a utente, mas naturalmente que sabia que, ao puxar os cabelos à utente nas circunstâncias em que o fez, necessariamente, causar-lhe-ia dor, o que constitui, manifestamente uma ofensa corporal.
Também é certo que a Recorrente tinha uma antiguidade de 11 anos e que não consta dos autos que tenha passado disciplinar.
Sucede, porém, que, trabalhando numa unidade de pessoas altamente vulneráveis, frágeis e indefesas, a antiguidade da trabalhadora não tem a virtualidade de anular a gravidade da infração; pelo contrário, os anos de experiência exigiam e ditavam que a trabalhadora tivesse lidado com a situação de modo diverso, sem causar qualquer ofensa à utente que é completamente incapaz de se defender ou até de falar e, logicamente, de poder se queixar da situação de que foi alvo. Era-lhe exigível proteger a utente e não agredi-la como fez, independentemente das razões que pudessem estar na base do seu comportamento e que nem constam dos factos provados.
Ora, considerando as características do Réu, os fins que prossegue e o serviço que a própria comunidade exige que preste aos seus utentes, é indubitável que a actuação da Recorrente, como bem considerou a sentença recorrida, é grave e quebra a confiança necessária à subsistência da relação laboral. Na verdade, é legítimo a qualquer empregador minimamente diligente e razoável, colocado na posição do Réu, duvidar da idoneidade futura da Autora para continuar a prestar o seu trabalho com empenho, zelo e dedicação, numa unidade que reveste características tão especiais. E quebrada que está a confiança, como está, não se pode exigir ao Réu que mantenha a Autora ao seu serviço, pelo que o despedimento constitui a sanção adequada e proporcional à sua actuação.
Não merece, pois, qualquer reparo a sentença recorrida que deverá ser confirmada, improcedendo o recurso.

Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Não admitir o recurso do despacho saneador, por extemporâneo.
- Julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 23 de Outubro de 2024
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
António José Alves Duarte
Paula Pott