DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
INDICAÇÃO DOS FACTOS INDICIADOS E OU NÃO INDICIADOS
IRREGULARIDADE DE CONHECIMENTO OFICIOSO
SUBSUNÇÃO JURÍDICO-PENAL CONTROVERSA
Sumário

I. No despacho de não pronúncia terá, pelo menos, de constar uma síntese autónoma e sistematizada da matéria factual que se considerou indiciada e não indiciada (salvo as situações de manifesta simplicidade da factualidade em que da própria fundamentação resulte claramente, sem necessidade de indicação expressa, a factualidade indiciada e não indiciada) e, também, naturalmente, uma apreciação crítica, concisa, mas completa da prova indiciária recolhida no inquérito (e na fase de instrução, caso tenha havido lugar à sua produção) que surge a respaldar a triagem efectuada.
II. O Sr. Juiz de Instrução não procedeu à especificação, nem sequer sumária, dos factos indiciados e dos não indiciados constantes do requerimento de abertura de instrução e nem sequer aludiu e muito menos procedeu à apreciação crítica da prova indiciária recolhida.
III. Quedou-se, antes, por uma decisão alicerçada, exclusivamente, na qualificação jurídica, sustentando a não pronúncia na impossibilidade da comissão do crime de burla por omissão e pela existência de um concurso aparente entre os crimes de usurpação de funções e de burla, concluindo, derradeiramente, pela consumpção do crime de burla pelo crime de usurpação de funções.
IV. Ante a panóplia de soluções plausíveis de direito, sempre seria, in casu, inadmissível a prolação de despacho de não pronúncia (alavancado exclusivamente em controversa subsunção jurídico-penal) pois que, desde logo, se mostra arredada a possibilidade de se concluir, nas descritas circunstâncias, pela maior probabilidade de absolvição do que de condenação.
V. O despacho de não pronúncia em causa mostra-se insuficientemente fundamentado o que, para além do mais, impossibilita a sindicância que se reclama ao Tribunal ad quem, e constitui irregularidade de conhecimento e declaração oficiosas, nos termos do art.º 123º, n.º 2 do C.P.P.
VI. Na senda da jurisprudência sedimentada, a falta ou insuficiência de fundamentação redundará em (mera) irregularidade, mas de conhecimento e declaração oficiosas pelo Tribunal ad quem, nas situações que assumem particular gravidade, designadamente as que sejam susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, aquando do encerramento do inquérito foi, pelo Ministério Público, proferido despacho de arquivamento relativamente aos denunciados crimes de burla, p. e p. pelos art.º 217º, n.º 1 e 218º, n.º 1 do C.P. e deduzida acusação contra a arguida AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de 3 (três) crimes de usurpação de funções, p. e p. pelo art.º 358.º, alínea b) do C.P., com referência ao art.º 70.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, em concurso aparente com 3 (três) crimes de procuradoria ilícita, p. e p. pelo art.º 7.º, n.º 1, als. a) e b) da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto.
2. Requerida, pela assistente ..., a abertura de instrução, pedindo a pronúncia da arguida AA pela prática (para além da acusação pública deduzida) de 2 (dois) crimes de burla, p. e p., respectivamente, pelos art.º 217º, n.º 1 e 218º, n.º 1 do C.P. e precedendo debate instrutório, o Sr. Juiz de Instrução Criminal, por decisão instrutória de 28 de Novembro de 2023, proferiu despacho de não pronúncia quanto aos indicados crimes de burla.
3. A assistente ... interpôs recurso daquele despacho de não pronúncia. Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«I – Enquadramento:
1º. Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de encerramento, deduzindo arquivamento no que respeita à prática de factos que, em abstracto, se poderiam subsumir à prática, pela arguida AA, de um crime de burla, porquanto considerou que a existir a prática de um crime de burla pela arguida, este teria sido cometido por omissão, aderindo à doutrina e jurisprudência que rejeitam a possibilidade da comissão por omissão do crime de burla.
Inconformada, a assistente, aqui recorrente, requereu a abertura de instrução pugnando pela pronúncia da arguida pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo Artigo 218º n.º 1, com referência ao Artigo 217º, ambos do Código Penal, na pessoa de BB e um crime de burla simples, previsto e punido pelo Artigo 217º n.º 1 do Código Penal, na pessoa de CC, em representação da assistente “...”, tendo, a final, sido proferido despacho de não pronúncia nesta parte.
3º. Em face ao disposto no Artigo 401º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal, a assistente apenas tem legitimidade para recorrer da parte da Decisão Instrutória que afecta ou prejudica os seus direitos, ou seja, relativamente à parte em que o Tribunal a quo não pronunciou a arguida pela prática de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217º do Código Penal, praticado na pessoa de CC, em representação da sociedade ..., aqui recorrente, pelo que o presente recurso se restringe apenas a essa parte.
II - Nulidade da Decisão Instrutória
4º. No seu requerimento, a assistente defendeu a comissão por omissão do crime de burla, seguindo a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça em sentido convergente com a posição doutrinal defendida por Almeida Costa, admitindo que o crime de burla pode ser praticado não só por acção, como também por omissão, nos termos gerais do disposto no Artigo 10º do Código Penal.
5º. Admitindo que a divergência existente nesta matéria, a assistente pugnou pela prática pela arguida de factos subsumíveis ao crime de burla simples, previsto e punido pelo Artigo 217º do Código Penal, cometido por acção, através da prática de actos concludentes.
6º. A decisão Instrutória é completamente omissa sobre a existência de indícios ou falta deles quanto à prática pela arguida de factos descritos no Requerimento de Abertura de Instrução, limitando-se o MMº Juiz de Instrução a considerar que sempre existiria um concurso aparente entre o crime de burla e o crime de usurpação de funções.
7º. Situação de concurso que não se equacionava no caso concreto por considerar inadmissível, no nosso ordenamento jurídico, a comissão do crime de burla por omissão.
8º. A assistente, baseando-se na prova indiciária recolhida em sede de inquérito, mas principalmente nos factos pelo quais o Ministério Público deduziu Acusação, defendeu que a arguida praticou actos concludentes que permitiam que lhe fosse imputada a comissão por acção de um crime de burla, tendo efectuado a descrição factual e respectivo enquadramento jurídico no seu Requerimento de Abertura de Instrução, nos termos do disposto no Artigo 283º n.º 3 alíneas b) e d) em cumprimento do Artigo 287º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
9º. O MMº Juiz de Instrução, na sua Decisão Instrutória não se pronunciou quanto a esta matéria, sendo tal decisão completamente omissa quanto à questão de tais factos se considerarem ou não actos concludentes, se estes estão ou não indiciados e, como consequência, se a arguida deve ser pronunciada pelo crime de burla, cometido por acção, previsto e punido pelo Artigo 217º do Código Penal.
10º. Termos em que a Decisão Instrutória está ferida nulidade insanável e de conhecimento oficioso, não obstante não se encontrar elencada no Artigo 119º do Código de Processo Penal por não se ter pronunciado sobre questões que deveria ter conhecido, bem como por omissão da indicação dos factos indiciados e não indiciados, nos termos e para os efeitos previstos no Artigo 308° n.º 2, com referência ao Artigo 283°, n.º 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal (cfr. a título de exemplo e entre outros, Ac. TRL de 07/01/2021, Processo n.º 418/16.7T9ALQ.L2-9, Ac. TRE de 01/03/2005, Processo n.º 1481/04, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
11º. Pelo que deverá ser declarada a referida nulidade da Decisão Instrutória e serem os autos serem devolvidos à 1a Instância a fim de ser proferida nova Decisão Instrutória conforme ao disposto no Artigo 308° n°1 e n°3 n°2 do CPP.
III - Da burla por actos concludentes
12º. Resulta dos autos e da própria Acusação, a prática pela arguida dos seguintes factos (em relação ao CC, na qualidade de legal representante da sociedade ...):
a. A arguida reuniu com CC no seu escritório, intitulando-se como advogada, prestando-lhe consulta e aconselhamento jurídico;
b. A arguida fazia constar das mensagens dirigidas ao representante legal da assistente o endereço de email apga.lawservices@gmail.com.
c. A arguida solicitou a outorga de procuração forense a seu favor a fim de contestar uma acção instaurada pela companhia de seguros “LOGO” contra a sociedade ...
d. A arguida solicitou à assistente o pagamento da quantia monetária 1.500,00 € a título de provisão de honorários para intervir como mandatária no referido processo;
e. A arguida emitiu e pediu à assistente o pagamento de um DUC referente a taxa de justiça devida pela contestação, no valor de 306,00€;
13º. Ao arrogar-se como advogada, ao prestar consulta jurídica e ao aceitar a outorga de mandato forense, a arguida praticou actos próprios da profissão de advogada, sabendo que não os podia praticar devido à suspensão da sua inscrição como advogada na Ordem dos Advogados, andou bem o MMº Juiz de Instrução em pronunciar a arguida nos termos da Acusação deduzida pelo Ministério Público, ou seja, pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo Artigo 358º alínea b) do Código Penal, com referência ao Artigo 70º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, em concurso aparente com o crime de procuradoria ilícita, previstos e punidos pelo Artigo 7º, n.º 1, alíneas a) e b) da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto.
14º. Mas a arguida não se limitou a tal. A arguida pediu e recebeu da assistente, a provisão de honorários e o pagamento da quantia titulada pelo DUC que emitiu, a título de taxa de justiça, de forma a convencer o representante legal da assistente que iria contestar a acção instaurada contra a sociedade pela LOGO,
15º. A prática destes factos serviram para assegurar e aprofundar o erro que que se encontrava o representante legal da assistente, pelo que terão que ser considerados como actos concludentes, na definição que lhes é dada por Almeida Costa, seguido de perto pela jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça, pois aprofundaram e criaram na assistente, a convicção que a arguida iria actuar na qualidade de advogada defendendo judicialmente os seus interesses, devidamente mandatada para o efeito.
16º. A arguida, desde o início que não pretendia levar a cabo os actos para os quais havia sido mandatada, maxime a apresentação da contestação à acção movida pela LOGO contra a sociedade ..., bem sabendo que estava inibida de praticar tais actos jurídicos, como, efectivamente, não os praticou.
17º. Ao não ter contestado a referida acção, a arguida não praticou tal acto, que é próprio e exclusivo da profissão de advogado, pelo que, nesta parte, não estão preenchidos todos os elementos objectivos do crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo Artigo 358º alínea b) do Código Penal.
18º. A arguida, ao arrogar-se ser advogada e criar na assistente a convicção errónea que irá praticar tais actos, que de antemão nunca teve intenção de praticar, actuando com a única intenção de obter vantagem patrimonial injustificada e causando prejuízo patrimonial à assistente, praticou factos passíveis de se subsumirem ao tipo legal de crime de burla, previsto e punido pelo Artigo 217º do Código penal, praticado através de actos concludentes, logo, cometido por acção.
19º. Do supra exposto resulta que, ao invés do decidido pelo MMº Juiz de Instrução, não existe concurso aparente entre o crime de usurpação de funções e o crime de burla, mas sim um concurso real e efectivo de ambos os tipos de crime, porquanto se reportam à prática de factos distintos.
20º. Do inquérito, e até da própria Acusação, resulta clara a recolha de indícios suficientes que a arguida praticou factos que se subsumem, de forma objectiva e subjectiva, ao crime de burla, previsto e punido pelo Artigo 217º do Código Penal, pelo que a assistente procedeu à narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis, que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais.
21º. O MMº Juiz de Instrução, na sua Decisão Instrutória, deveria ter proferido despacho de pronúncia da arguida quanto à prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso real e efectivo com os crimes de usurpação de funções, de um crime de burla previsto e punido pelo Artigo 217º do Código Penal, submetendo a arguida a julgamento pelos factos e disposições legais constantes do despacho de Acusação, em conjugação com a factualidade e disposições legais descrita no Requerimento de abertura de instrução.
22º. Ao proferir despacho de pronúncia quanto à factualidade e enquadramento jurídico descritos no Requerimento para Abertura de Instrução apresentado pela assistente, a Decisão Instrutória violou o disposto nos Artigos 307º e 308º, ambos do Código de Processo Penal.
23º. Por todo o exposto deverá a Decisão Instrutória sere substituída por outra que pronuncie a arguida, submetendo-a a julgamento, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla, previsto e punido pelo Artigo 217º, em concurso real e efectivo com a prática de 3 crimes de usurpação de funções, previsto e punido pelo Artigo 358º alínea b), todos do Código Penal de acordo com a factualidade e enquadramento jurídico vertidos no Requerimento para Abertura de Instrução da assistente e que aqui se dá por reproduzido»
4. O recurso foi admitido por despacho de 15 de Janeiro de 2024, a subir imediatamente, em separado, com efeito meramente devolutivo.
5. A arguida AA respondeu ao recurso. Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«I - A Decisão Instrutória deve ser mantida por seus próprios fundamentos, até porque não enferma qualquer nulidade.
II - O inconformismo da assistente, ora recorrente, não se justifica, estando fadado ao fracasso.
III - O Ministério Público deduziu o Despacho de Acusação por considerar existirem indícios da prática de três crimes de usurpação de função, que não são sequer fortes indícios
IV – Até porque não está minimamente provada a prática do crime de burla pela arguida
V - Nesse sentido, a Decisão Instrutória deve ser prestigiada e mantida, tendo delimitado adequadamente os factos e o direito ao caso concreto»
6. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público na primeira instância respondeu, também, ao recurso, com a seguinte motivação (sem formulação de conclusões):
«Inconformado com a decisão instrutória proferida nos autos na parte em que não pronuncia a arguida DD pela prática dos crimes de burla simples p. e p. pelo art.º 217 e 10 nº 2 e de burla qualificada p. e p. pelos art.º 217, 218 nº 1 e 10 nº 2, todos do C.Penal, a assistente ... interpôs o recurso a que ora se responde, alegando, em suma, que a decisão instrutória nessa parte é nula, por ser omissa sobre a existência de indícios ou falta deles quanto à prática pela arguida de factos descritos no requerimento de abertura de instrução, limitando-se o J.I.C. a considerar que sempre existiria um concurso aparente entre o crime de burla e o crime de usurpação de funções, pelo qual esta se encontra acusada e pronunciada.
Defende a assistente, ora recorrente, que resulta da prova indiciária recolhida da fase de inquérito que a arguida praticou factos concludentes que permitiam imputar-lhe a comissão por acção do crime de burla, tendo efectuado a descrição factual e respectivo enquadramento jurídico no requerimento de abertura da instrução; sendo que a decisão instrutória é completamente omissa quanto à questão da indiciação de tais factos e se os mesmos constituem ou não actos concludentes que permitiriam que lhe fosse imputada a prática de tal crime.
A arguida pediu e recebeu da assistente a provisão de honorários e o pagamento da quantia titulada pelo DUC que emitiu, a título de taxa de justiça, de forma a convencer o legal representante da assistente que iria contestar a acção instaurada contra a sociedade pela LOGO.
Assim sendo, conclui a ora recorrente que tais factos serviram para assegurar e aprofundar o erro em que se encontrava o representante legal da assistente, pelo que terão de ser considerados como actos concludentes, pois aprofundaram e criaram na assistente a convicção que a arguida iria actuar na qualidade de advogada, defendendo judicialmente os seus interesses, devidamente mandatada para o efeito.
Conclui, assim, a recorrente que a arguida praticou factos que se subsumem, de forma objectiva e subjectiva, ao crime de burla, p. e p. pelo art.º 217º do C.Penal, pelo que não existe concurso aparente entre este ilícito penal e o de usurpação de funções, porquanto se reportam à prática de factos distintos e que a decisão instrutória se encontra ferida de nulidade insanável, por não se ter pronunciado sobre questões que deveria ter conhecido, bem como por omissão da indicação dos factos indiciados e não indiciados, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 308º nº2 com referência ao art.º 283º nº 3 al. b), ambos do C.P.Penal.
Contudo, não parece assistir razão à recorrente.
Senão vejamos:
Desde logo, e no que concerne à invocada nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art.º 379º nº1 al. c) do C.P.Penal, cumpre referir que nenhuma omissão de pronúncia se verifica, nem tão pouco tal nulidade é suscetível de ser apontada à decisão instrutória em análise.
A nulidade da omissão de pronúncia mostra-se prevista no art.º 379º do C.P.Penal que determina, sobre a nulidade da sentença:
«1- É nula a sentença:
- Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374° ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 389-A e 391-F;
- Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358° e 359º;
— Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.»
Como se pode concluir da leitura do C.P.Penal e designadamente do seu art.º 287º, não existe qualquer norma que determine a aplicação destas nulidades e seu regime à decisão instrutória de pronúncia/não pronúncia.
Vigorando no nosso sistema processual penal, como resulta de forma inequívoca do C.P.Penal, e bem explicitado pela doutrina e na jurisprudência processual penal, o regime da taxatividade das nulidades processuais penais, à decisão instrutória de pronúncia/não pronúncia apenas podem ser apontadas as que resultem, na parte aplicável, da violação do disposto nos art.º 119º, 120º e 309º nº1 do C.P.Penal.
Por outro lado, sempre se dirá que a decisão instrutória não incorreu em qualquer omissão de pronúncia, porquanto o Juiz de Instrução Criminal analisou e apreciou os factos descritos no requerimento de abertura de instrução que, no entender da assistente, consubstanciam a prática dos crimes de burla e de burla qualificada, antes tendo feito deles outra apreciação jurídica, qual seja, a de que os mesmos se traduziriam num comportamento omissivo por parte da arguida, ao ocultar ao assistente que não se encontrava habilitada ao exercício da função de advogada e, como tal, tais factos não integram a prática do crime de burla, por este ilícito não poder ser cometido por omissão (neste sentido, Prof. Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, pág. 851, onde se pode ler: «O crime de burla não pode ser cometido por omissão. O C.P. de 1982 afastou precisamente essa possibilidade ao suprimir a palavra «aproveitou» no tipo legal de burla previsto no projecto de C.P. de Eduardo Correia. Por outro lado, sendo um crime de execução vinculada, a invocação de um dever de garante está afastada nos termos da parte final do art.º 102 n.º 1»).
Entendeu, assim, o Tribunal «a quo» que não é burla a mera omissão baseada no aproveitamento astucioso do engano por parte da arguida, interpretação essa que acompanhamos face aos elementos objectivos integradores do crime de burla, p. e p. pelo art.º 217º do C.Penal, o qual pressupõe a prática de actos positivos e não o mero aproveitamento de erro em que o sujeito passivo já incorria.
Já no que respeita à invocada nulidade da decisão instrutória por falta de indicação de factos indiciados e não indiciados, cumpre referir que não se verifica tal nulidade, porquanto a discussão dos indícios no despacho instrutório não está incluída no art.º 308º n.º 2, conjugado com o art.º 283º nº 3, ambos do C.P.Penal.
Inexiste qualquer especial regime normativo — disciplinante quer da forma quer do conteúdo justificativo da decisão instrutória de não pronúncia, similar ao que o legislador reservou para as sentenças/acórdãos estabelecidas pelos art.º 374º, 375º nº 1 e 379º nº 1 al. a), todos do C.P.Penal.
Seguimos o entendimento de que a falta de fundamentação constitui uma irregularidade processual (art.º 97° nº5 e 123º do C.P.Penal) que no caso afecta o valor do acto e poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente.
No caso concreto, entende-se não se encontrar verificada a irregularidade abrangida pela estatuição do art.º 123º do C.P.Penal, uma vez que não se verifica omissão dos reais fundamentos da decisão de não pronunciar a arguida pelos factos referenciados no requerimento de abertura de instrução.
A decisão de não pronúncia da arguida pelos crimes de burla simples e qualificada explica e exterioriza no respectivo texto os fundamentos de facto e de direito que sustentam o respectivo juízo indiciário, encontrando-se suficientemente fundamentada, pois remete para os factos que o assistente imputa à arguida no requerimento de abertura de instrução, apesar de decidir que os mesmos não preenchem os tipos de ilícito criminal pelos quais a assistente pretende a sua pronúncia.
A fundamentação da decisão instrutória, ao mover o seu juízo crítico probatório entre os factos constantes do requerimento de abertura de instrução da assistente, não deixou de indicar que os mesmos se encontram indiciados e no final extraiu a consequência jurídica de que os mesmos não constituem o crime de burla, por esta não ser passível de ser cometida por omissão.
Em suma, a decisão instrutória recorrida encontra-se devidamente fundamentada, admitindo como indiciados os factos constantes do requerimento de abertura de instrução, o que inclusivamente pode ser feito por remissão (art.º 307º n°1 do C.P.Penal), o que permite a sua apreensão no juízo de indiciação, a partir das provas obtidas e a sindicância da correção do raciocínio efectuado sobre estas por referência aos factos que constituem o objecto do processo.
Assim, o despacho de não pronúncia não padece de falta de fundamentação, nem se encontra ferido de qualquer irregularidade.
Por último, e relativamente à questão do alegado concurso efectivo de crimes de burla e de usurpação de funções que a recorrente entende verificar-se, cumpre referir o seguinte:
A arguida DD vem acusada da prática de três crimes de usurpação de funções, p. e p. pelo art.º 358° al. b) do C.Penal, com referência ao art.º 70º n°1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, em concurso aparente com três crimes de procuradoria ilícita, p. e p. pelo art.º 7° n°1 al. a) e b) da Lei 49/2004 de 24 de Agosto.
A decisão instrutória proferida nos autos pronuncia a arguida nos precisos termos de facto e de direito enunciados na acusação do Ministério Público.
Como refere Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, III, pág.438, o preceito contido no art.º 358º b) do C.Penal abarca as situações em que o agente exerce uma função alheia, própria de quem possui determinadas qualidades, títulos ou condições, aparentando possuí-los. Trata-se, no fundo, de um falsum, de uma falsidade funcional, com uma gravidade superior à contemplada no art.307º, uma vez que desta feita a conduta não se esgota na falsificação da aparência, mas inclui também a prática de actos próprios dessa função ou profissão que se finge ter.
Neste tipo legal pune-se alguém que engana outrem quanto à sua habilitação legal para exercer actos próprios de funcionário ou de certa profissão, não por causa desse outrem (ou mesmo de modo indirecto), mas porque o Estado entende que deve exigir uma fidelidade inquebrantável do sistema de reconhecimento de competências (necessariamente formal) que ele próprio instituiu. Concluindo a citada Autora que o bem jurídico que norteia este tipo legal consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público.
É elemento constitutivo do crime de usurpação de funções, na modalidade de exercício ilegal de profissão, que o agente se arrogue possuir o título ou condições exigidas por lei para o exercício da profissão, bastando, porém, que o faça implicitamente, ou seja, praticando os actos próprios da profissão, convencendo as pessoas para quem pratica os actos que tem condições legais para os praticar.
Como defende Cristina Líbano Monteiro, ob. citada, fls. 446, «O arrogar-se pode ter lugar explícita ou implicitamente e pode, portanto, deduzir-se das circunstâncias», bastando por vezes o simples exercício das funções.
Resulta suficientemente indiciado que, com a sua conduta a arguida, em virtude de não ser advogada e, ao agir como descrito na acusação, para a qual remete o despacho de pronúncia, actuou com o objectivo de enganar deliberadamente a assistente, fingindo exercer profissão de advogada, induzindo-a em erro acerca da sua legitimidade para o efeito e determinando-a, a que por causa desse engano, praticasse actos que lhe acarretaram prejuízos patrimoniais.
Contudo, a circunstância de a arguida ter omitido à assistente que não poderia aceitar mandato nem praticar qualquer acto próprio dos advogados, não integra a prática do crime de burla, como bem entendeu o Tribunal «a quo», por este ilícito criminal exigir um comportamento activo e determinado à indução de engano ou erro.
Contudo, e ao contrário do defendido pela recorrente nas suas alegações de recurso, mesmo que se entendesse encontrarem-se indiciados os crimes de burla simples e qualificada que este imputa à arguida no seu requerimento de abertura de instrução, sempre estaríamos perante um concurso aparente e não real entre tais crimes e o de usurpação de funções.
Como ensina Eduardo Correia, Direito Criminal, 1965, I1, pág. 204, o concurso legal ou aparente de infrações verifica-se quando normas de direito criminal estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente em que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade cumulativa de outras. De onde resulta que a pluralidade de tipos que se podem considerar preenchidos quando se toma isoladamente cada uma das respectivas disposições penais, vem no fim de contas em muitos casos, olhadas tais relações de mútua exclusão e subordinação, a revelar-se inexistente.
O crime de usurpação de funções pune já quem engana outrem quanto à sua habilitação legal para exercer actos próprios de funcionário ou de certa profissão, não por causa desse outrem (pelo menos de modo imediato), mas porque o Estado deve exigir uma fidelidade inquebrantável ao sistema de reconhecimento de competências que ele próprio instituiu. Como refere Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., pág. 440, «no horizonte último do legislador não podem deixar de estar tantos bens jurídicos pessoais, patrimoniais, supra-individuais que devem ser acautelados. Mas a construção deste ilícito-típico faz-se em torno de um bem jurídico-meio, que leva em certos casos a quase perder de vista os bens jurídicos-fim que o legitimam».
O que vale por dizer que o engano típico do crime de burla, que neste caso é um engano funcional, é já punido pelo crime de usurpação de funções.
Daí que conclua a citada Autora, ob. cit., pág. 448 e 449, «como é próprio de uma norma que se destina a proteger um bem jurídico-meio, o art.º 358° entra muitas vezes em concurso aparente com outros preceitos criminais que acautelam os interesses-fim que o justificam. Assim acontecerá com crimes contra o património, especialmente a burla».
Existindo uma situação de concurso aparente entre o crime de burla e o crime de usurpação de funções, nunca poderia a arguida ser punida autonomamente pela prática dos crimes de burla que a assistente lhe imputa no requerimento de abertura de instrução, pelo que bem andou o Tribunal «a quo», ao não a ter pronunciado pelos mesmos.
Nesta conformidade, não se encontrando a decisão instrutória ferida de qualquer nulidade ou irregularidade, e por ser correcta a interpretação do Tribunal «a quo» quanto à não verificação dos crimes de burla simples e qualificada, deverá ser negado provimento ao recurso interposto e confirmada a douta decisão instrutória proferida, na parte em que não pronuncia a arguida por tais crimes, que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução.
7. Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta é de parecer que recurso deverá ser julgado improcedente. Pondera, ademais e em síntese, nos seguintes termos:
«I – O recurso incide sobre a decisão instrutória que não pronunciou a arguida AA pela prática de um crime de burla simples, p.p. pelos arts. 217.º e 10.º, n.º 2, e de um crime de burla qualificada, p.p. pelos artigos 217.º, 218.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2, todos do Código Penal (CP), tendo-a pronunciado, para julgamento em processo comum, perante tribunal singular, ao abrigo do disposto no art.º 307.º, n.º 1, 2.ª parte do Código de Processo Penal (CPP), nos termos de facto e de direito enunciados na acusação do Ministério Público, que deu por reproduzida.
II – A assistente não concorda com tal decisão, pugnando pela sua revogação por violação dos artigos 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, uma vez que entende que a mesma padece de nulidade por omissão de pronuncia e omissão de indicação dos factos indiciados e não indiciados, nos termos do art.º 308.º n.º 2, com referência ao art.º 283.º n.º 3 alínea b), do CPP.
Mais defende que a arguida deveria ter sido pronunciada também pela prática dos crimes de burla em concurso efetivo com o crime de usurpação de funções, por se ter arrogado ser advogada, criando a convicção errada de que iria praticar atos judiciais, com intenção de obter vantagem patrimonial em prejuízo de outrem.
III – Na resposta ao recurso, o Ministério Público equacionou de forma bem estruturada e completa as questões a resolver, defendendo a manutenção da decisão recorrida, em termos de facto e de direito que, pelo rigor e propriedade, suscitam total adesão.
IV - Compulsada a matéria em análise entendemos que à assistente/recorrente não assiste qualquer razão, face ao disposto no artigo 308.º n.º 2 e 283.º n.º 3 alínea b), que se restringe aos elementos que deve conter o despacho de pronuncia, assim como não merece censura o enquadramento jurídico da conduta que o tribunal efetuou, afastando o concurso efetivo.
Assim, acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público, emite-se parecer consonante, no sentido de que o recurso em apreço deve ser julgado improcedente»
8. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P., nada mais sobreveio aos autos.
9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, importa fazer exame das questões de saber se o prolatado despacho de não pronúncia é nulo por falta de fundamentação e/ou omissão de pronúncia e, em caso negativo, se existem indícios suficientes para a prolação de despacho de pronúncia.
2. O despacho revidendo é do seguinte teor:
«Declaro encerrada a instrução.
*
O Tribunal é competente.
O processo é próprio.
A assistente “...” tem legitimidade para requerer a abertura da instrução.
Inexistem quaisquer questões prévias ou incidentais ou nulidades de que cumpra conhecer.
*
Findo o inquérito, o Ministério Público, a fls. 368 a 373 dos autos, deduziu despacho de arquivamento/acusação, tendo proferido despacho de arquivamento, por ausência de indiciação, no que respeita à prática de factos que, em abstracto, se poderiam subsumir à prática, pela arguida AA, de um crime de burla, e tendo deduzido acusação, imputando a prática à arguida, em autoria material e em concurso efectivo, de três crimes de usurpação de funções, previstos e punidos pelo art.º 358.º, alínea b) do Cód. Penal, com referência ao art.º 70.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, em concurso aparente com três crimes de procuradoria ilícita, previstos e punidos pelo art.º 7.º, n.º 1, als. a) e b) da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto.
Inconformada com o teor do despacho de arquivamento deduzido, a assistente “...” requereu, a fls. 438 a 444, a abertura da instrução, alegando para o efeito, em síntese, que sobre a arguida AA impendia o dever jurídico de informar o ofendido BB e o representante legal da assistente “...” de que não poderia intervir como advogada junto dos tribunais, o que a arguida bem sabia, e que ao violar tal dever de informação, a arguida incorreu na prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de burla qualificada por omissão, p.p. pelos arts. 217.º, 218.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2, na pessoa de BB, e de um crime de burla simples por omissão, p.p. pelos arts. 217.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2, ambos do Cód. Penal, na pessoa de CC, em representação da assistente “...”.
Procedeu-se a debate instrutório.
O Ministério Público formulou conclusões no sentido da pronúncia da arguida relativamente à prática dos crimes que lhe são imputados na acusação, no que foi acompanhada pela assistente “Ordem dos Advogados”, mantendo a assistente “...” a posição defendida no requerimento de abertura de instrução, e formulando a arguida conclusões no sentido de dever ser proferido despacho de não pronúncia.
No decorrer do debate não foi requerida a produção de prova indiciária suplementar.
*
O objecto da presente instrução é o de determinar se existem indícios suficientes da prática, por parte da arguida AA, para além dos três crimes de usurpação de funções, previstos e punidos pelo art.º 358.º, alínea b) do Cód. Penal, com referência ao art.º 70.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, em concurso aparente com três crimes de procuradoria ilícita, previstos e punidos pelo art.º 7.º, n.º 1, als. a) e b) da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que o Ministério Público lhe imputa na peça acusatória, dos crime de burla qualificada por omissão, p.p. pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 1, na pessoa de BB, e de burla simples por omissão, p.p. pelo art.º 217.º, n.º 1, todos do Cód. Penal, na pessoa de CC, em representação da assistente “...”, que a assistente lhe imputa no requerimento de abertura da instrução.
A instrução é uma fase de carácter facultativo que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. art.º 286.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal).
O juiz de instrução criminal profere despacho de pronúncia com a consequente submissão da causa a julgamento se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança; caso contrário, profere despacho de não pronúncia (cfr. art.º 308.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal).
Por indiciação suficiente entende-se a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável, por força deles, e em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – cfr. artigos 283.º, n.º 2, 298.º e 308.º, n.º 1, todos do Cód. Processo Penal e Ac. R.L. de 24/10/90, C.J. XV, T. 4, pp. 185. Tais indícios devem ser apreciados em face da prova produzida.
Entende-se que são bastantes os indícios quando se trata de um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados. Por indícios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado. Trata-se da «probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou uma medida de segurança criminal...» - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., 1999, pp. 99 e 100.
Como bem refere a este propósito o Prof. Figueiredo Dias, “...a simples dedução da acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição” – Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1984, pp. 133 e ss. E, após salientar que “a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação, tem de aferir-se no plano fáctico e não no plano jurídico”, mais adiante, a pp. 213, ao analisar o princípio in dubio pro reo, escreve: “...todos os factos relevantes...que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se provados”. Salientando a vinculação do tribunal à necessidade e dever de reunir todas as provas, acrescenta: “...logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova ... tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo. E adianta: «Tem pois razão Castanheira Neves quando afirma que na exigência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão do dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação». Já Luís Osório, Comentário ao Código Penal Português, IV, 441, afirmava que «devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado».
Pode dizer-se, a final e em súmula, que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado – Sobre o conceito de “indícios suficientes”, cfr., também com especial interesse, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., 1999, pp. 99 e 100, e os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 388/99, in DR, II, 08/11/99, pp. 16764 e ss., e n.º 583/99, de 20.10.99, in DR, II, 22/02/2000, pp. 3599 e ss..
Vejamos, então, se existem indícios suficientes da prática, pela arguida AA, de factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de burla qualificada por omissão, p.p. pelos arts. 217.º, 218.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2, na pessoa de BB, e de um crime de burla simples por omissão, p.p. pelos arts. 217.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2, todos do Cód. Penal, na pessoa de CC, em representação da assistente “...”, que a assistente lhe imputa no requerimento de abertura da instrução.
Relembre-se que, na acusação deduzida, o Ministério Público imputou à arguida AA a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de três crimes de usurpação de funções, previstos e punidos pelo art.º 358.º, alínea b) do Cód. Penal, com referência aos arts. 70.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Nos termos desta disposição legal, incorre na prática do crime em questão “quem exercer profissão ou praticar acto próprio de uma profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenchê-las, quando o não possui ou não as preenche”, sendo a pena aplicável de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Com a incriminação em questão visa-se a tutela da integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público, como é inequivocamente a profissão de advogado, para o exercício da qual a lei exige especiais condições, designadamente a vigência de inscrição na Ordem dos Advogados – art.º 66.º, n.º 1 do Estatuto da ordem dos Advogados.
Como é próprio de uma norma que se destina a proteger um bem jurídico-meio, o art.º 358.º do Cód. Penal entra muitas vezes em concurso aparente com outros preceitos criminais que acautelam os interesses-fim que o justificam, designadamente com crimes contra o património, especialmente o crime de burla, existindo entre estas normas concorrentes uma relação de consumpção, critério este que tem a sua aplicação quando as normas concorrentes tenham, quanto à realidade de facto que incriminam, campo de aplicação inteiramente diverso, sendo, quanto ao respectivo campo de aplicação, normas que se encontram em relação de total independência. Tal como no critério de subsidiariedade, o afastamento da aplicação da norma consupta só pode averiguar-se em concreto, não respeitando à interpretação, mas à aplicação das normas no caso concreto. Tudo isto a significar que nunca poderá existir um concurso de crimes entre o crime de usurpação de funções, previsto no art.º 358.º, e o crime de burla, p.p. pelo art.º 217.º ou de burla qualificada, p.p. pelo art.º 218.º, todos do Cód. Penal, por se verificar entre ambos os crimes um concurso (aparente) de normas – neste sentido, cfr., com interesse, Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pps. 448 e 449.
Mas se, em tese, é esta a realidade das coisas, no caso vertente não só não se verifica um concurso efectivo de crimes, entre os crimes de usurpação de funções imputados à arguida na acusação pública, e os crimes de burla e/ou de burla qualificada, imputados à arguida no requerimento de abertura da instrução, como não se verifica, tão pouco, um concurso aparente entre os referidos tipos legais, porquanto, ao contrário do entendimento da assistente, o crime de burla não pode ser cometido por omissão, tendo o Código Penal de 1982 afastado precisamente essa possibilidade ao suprimir a palavra “aproveitou” no tipo legal de burla previsto no projecto de CP de Eduardo Correia. Por outro lado, sendo um crime de execução vinculada, a invocação de um dever de garante está afastada nos termos da parte final do artigo 10.º, n.º 1 do Cód. Penal – neste sentido, cfr., com interesse, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, pp. 601, e jurisprudência aí indicada.
Resulta, pois, de tudo o que antecede, impor-se, nesta parte, ou seja, relativamente ao crime de burla simples, p.p. pelos arts. 217.º e 10.º, n.º 2, e relativamente ao crime de burla qualificada, p.p. pelos arts. 217.º, 218.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2, todos do Cód. Penal, a não pronúncia da arguida AA, por falta de fundamento bastante – art.º 308.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.
***
Por todo o exposto:
A) Não pronuncio a arguida AA pela prática de um crime de burla simples, p.p. pelos arts. 217.º e 10.º, n.º 2, e pela prática de um crime de burla qualificada, p.p. pelos arts. 217.º, 218.º, n.º 1 e 10.º, n.º 2, todos do Cód. Penal;
B) Em processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, decido pronunciar a arguida AA, e, nos termos do disposto no art.º 307.º, n.º 1, 2.ª parte do Cód. Processo Penal, remeto para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação do Ministério Público, que integra fls. 368 a 373 dos autos, dando-a aqui por reproduzida.
*
Nos termos do disposto no art.º 515.º, n.º 1, al. a) do Cód. Processo Penal, impõe-se a condenação da assistente “...” nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C.’s.
*
Prova:
- a indicada na acusação (fls. 371).
*
Nos termos do art.º 40.º, al. b) do Cód. Processo Penal, declaro-me impedido de participar no julgamento deste processo, por ter presidido ao debate instrutório.
*
Oportunamente, remetam-se os autos à distribuição para julgamento ao Juízo Local Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, por se entender ser este o Tribunal competente – arts. 16.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e 19.º, n.º 1, ambos do Cód. Processo Penal»
3. Do recurso interposto
3.1. Da invocada nulidade por falta de fundamentação e/ou omissão de pronúncia do despacho de não pronúncia
Neste conspecto, invoca a recorrente, em suma, que:
«6º. A decisão Instrutória é completamente omissa sobre a existência de indícios ou falta deles quanto à prática pela arguida de factos descritos no Requerimento de Abertura de Instrução, limitando-se o MMº Juiz de Instrução a considerar que sempre existiria um concurso aparente entre o crime de burla e o crime de usurpação de funções.
7º. Situação de concurso que não se equacionava no caso concreto por considerar inadmissível, no nosso ordenamento jurídico, a comissão do crime de burla por omissão.
8º. A assistente, baseando-se na prova indiciária recolhida em sede de inquérito, mas principalmente nos factos pelo quais o Ministério Público deduziu Acusação, defendeu que a arguida praticou actos concludentes que permitiam que lhe fosse imputada a comissão por acção de um crime de burla, tendo efectuado a descrição factual e respectivo enquadramento jurídico no seu Requerimento de Abertura de Instrução, nos termos do disposto no Artigo 283º n.º 3 alíneas b) e d) em cumprimento do Artigo 287º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
9º. O MMº Juiz de Instrução, na sua Decisão Instrutória não se pronunciou quanto a esta matéria, sendo tal decisão completamente omissa quanto à questão de tais factos se considerarem ou não actos concludentes, se estes estão ou não indiciados e, como consequência, se a arguida deve ser pronunciada pelo crime de burla, cometido por acção, previsto e punido pelo Artigo 217º do Código Penal»
Atentemos.
Indubitavelmente - é pacífico e decorre do texto da decisão instrutória proferida - o Sr. Juiz de Instrução não procedeu à especificação, nem sequer sumária, dos factos indiciados e dos não indiciados, com referência à factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução (em jeito de acusação alternativa e com descrição factual diversa e mais ampla do que a facticidade descrita na acusação pública deduzida).
Isto é, a questão coloca-se, pois, como aduz a recorrente, previamente à dissensão indiciária.
Ou seja, singelamente, cumpre, então, indagar se a decisão instrutória proferida e objecto do presente recurso se encontra suficientemente fundamentada e se é (ou não) válida.
Na verdade, num Estado de Direito, os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão1.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva o objectivo de tal dever de fundamentação, imposto pelos sistemas democráticos, é permitir «a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina
Como referia Alberto dos Reis, uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas.2
No âmbito da fundamentação exigida às decisões instrutórias, em particular nos despachos de não pronúncia, no que concerne à enumeração dos factos suficientemente indiciados e dos não indiciados, como no que respeita à motivação, a jurisprudência não é uniforme.
Tal como referido no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 9/11/2023, processo n.º 6339/21.4T9LSB.L1-9, in www.dgsi.pt. «Há quem considere que basta uma narração de forma sintética dos factos indiciados e não indiciados, outros que se exige uma enumeração de cada um dos factos indiciados e não indiciados, outros ainda que não se justifica a exigência de uma narração completa dos factos suficientemente indiciados e não indiciados quando a decisão instrutória de pronúncia é proferida em instrução requerida pelo arguido, e há também quem entenda que não se exige a narração dos factos indiciados e não indiciados ou que não se exige a descrição de quaisquer factos, mas apenas a fundamentação prevista no n.º 4 do artigo 97º do CPP.
Quanto às consequências da “deficiência” de “motivação/fundamentação” de facto do despacho de não pronúncia, também existem divergentes posições na jurisprudência, sendo várias as soluções jurídicas apontadas: nulidade insanável de conhecimento oficioso, nulidade sanável dependente de arguição perante o tribunal a quo, irregularidade de conhecimento oficioso do artigo 123º, n.º 2 do Código de Processo Penal, mera irregularidade»
Quanto a nós, estamos convictos que, no despacho de não pronúncia terá, pelo menos, de constar uma síntese autónoma e sistematizada da matéria factual que se considerou indiciada e não indiciada (salvo as situações de manifesta simplicidade da factualidade em que da própria fundamentação resulte claramente, sem necessidade de indicação expressa, a factualidade indiciada e não indiciada) e, também, naturalmente, uma apreciação crítica, concisa, mas completa da prova indiciária recolhida no inquérito (e na fase de instrução, caso tenha havido lugar à sua produção) que surge a respaldar a triagem efectuada.
No caso, deduzida que foi a acusação pública e requerida a abertura da instrução, o objecto do processo passou a ser definido pela factualidade que naquelas foi narrada, o que determina, em sede de decisão instrutória, designadamente em sede de despacho de não pronúncia, que a delimitação da matéria fáctica suficientemente indiciada e da não indiciada assume, outrossim, particular relevância na aferição dos efeitos do caso julgado.3
Como já antes se disse, o Sr. Juiz de Instrução não procedeu à especificação, nem sequer sumária, dos factos indiciados e dos não indiciados constantes do requerimento de abertura de instrução (não inteiramente coincidentes com os descritos na acusação pública, como também atrás se consignou) e nem sequer aludiu e muito menos procedeu à apreciação crítica da prova indiciária recolhida.
Quedou-se, antes, por uma decisão alicerçada, exclusivamente, na qualificação jurídica, sustentando a não pronúncia na impossibilidade da comissão do crime de burla por omissão e (mesmo a entender-se de modo diverso), pela existência de um concurso aparente entre os crimes de usurpação de funções e de burla, concluindo, derradeiramente, pela consumpção do crime de burla pelo crime de usurpação de funções.
Vejamos, então, se estaria em causa situação em que, irremediavelmente e independentemente da indiciação dos factos narrados, sempre a decisão teria de redundar num despacho de não pronúncia, pelos motivos atinentes à qualificação jurídica e ao concurso de crimes, apontados no despacho revidendo.
Relativamente à admissibilidade do crime de burla por omissão, tal como refere a recorrente, a doutrina e a jurisprudência não são uniformes.
Em sentido contrário à posição assumida pelo Sr. Juiz de Instrução, Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, Tomo II, pág. 301 e sgs., defende que o crime de burla pode assumir três modalidades: (a) quando o agente provoca o erro de outrem descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas, uma falsa representação da realidade; (b) quando o agente provoca o erro por via, não de palavras ou declarações expressas, mas por actos concludentes; (c) e quando o agente não provoca o erro, mas aproveita o erro em que o sujeito passivo já se encontra, no que podemos denominar como burla por omissão.
Também o Supremo Tribunal de Justiça, em sentido convergente com a posição doutrinal exposta, tem invariavelmente sustentado que o crime de burla pode ser praticado por omissão, e também que, na perspectiva do crime de burla por acção, relevam não só as declarações expressas como também os actos concludentes, maxime as condutas praticadas no domínio da negociação e da contratação que, violando as regras da boa-fé negocial, ocultem a (real) vontade, por parte do agente, de não cumprir a obrigação assumida (Acórdãos do S.T.J. de 29/2/1996, proc. n.º 46740, de 22/5/2002, proc. n.º 576/02 - 3.ª, de 20/3/2003, proc. n.º 241/03 - 5.ª, de 27/4/2005, proc. n.º7 52/05 - 3.ª, de 12/10/2006, proc. n.º 4220/2006 - 5.ª, de 25/10/2006, proc. n.º 2667/06 - 3.ª, e de 31/10/2007, proc. n.º 3218/07 - 3.ª, todos in www.dgsi.pt.) 4
No que respeita ao propugnado, pelo Sr. Juiz de Instrução, concurso aparente entre os crimes de usurpação de funções e de burla, tendemos a considerar, sem desdouro para a posição por aquele assumida, que sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção, nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível, que, à semelhança do que ocorre relativamente aos crimes de falsificação e de burla, verificar-se-á um concurso real5.
Mas mesmo que assim não se entenda, isto é, que se concluísse pela existência de um concurso aparente, sempre se teria de cerrar pela consumpção do crime meio (usurpação de funções) pelo crime fim (burla) e não pelo inverso, como é sustentado no despacho recorrido.
Aliás, e salvo o devido respeito, é exactamente esse o entendimento sufragado por Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo III, 2001, p. 448/449, quando a propósito refere «Como é próprio de uma norma que se destina a proteger um bem jurídico-meio, o art.º 358º entra muitas vezes em concurso aparente com outros preceitos criminais que acautela, os interesses-fim que o justificam. Assim acontecerá com o homicídio, as ofensas à integridade física, crimes contra o património (burla, especialmente), etc.»
Vale tudo por dizer que, ante a panóplia de soluções plausíveis de direito, sempre seria, in casu, inadmissível a prolação de despacho de não pronúncia (alavancado exclusivamente em controversa subsunção jurídico-penal) pois que, desde logo, se mostra arredada a possibilidade de se concluir, nas descritas circunstâncias, pela maior probabilidade de absolvição do que de condenação.6
Sintetizando e sumariando:
O despacho de não pronúncia em causa mostra-se insuficientemente fundamentado o que, para além do mais, impossibilita a sindicância que se reclama ao Tribunal ad quem, e constitui irregularidade de conhecimento e declaração oficiosas, nos termos do art.º 123º, n.º 2 do C.P.P. 7
Na senda da jurisprudência sedimentada, a falta ou insuficiência de fundamentação redundará em (mera) irregularidade, mas de conhecimento e declaração oficiosas pelo Tribunal ad quem, nas situações que assumem particular gravidade, designadamente as que sejam susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais8.
Neste sentido, entre muitos outros, para além do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/11/2023, processo n.º 6339/21.4T9LSB.L1-9 (acima citado), os Acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra de 22/11/2023, processo n.º 3397/20.2T9LRA.C1, da Relação de Guimarães de 27/5/2019, processo n.º 134/17.2T9TMC.G1 e da Relação do Porto de 23/10/2017, processo n.º 781/14.4GBGMR), todos in www.dgsi.pt.
Termos em que se conclui que se impõe a prolação de nova decisão instrutória pelo Sr. Juiz de Instrução, na qual sejam supridas as apontadas omissões de fundamentação, ficando, pois, prejudicado o conhecimento da segunda questão suscitada no recurso, isto é, a de se saber se existem (ou não) indícios suficientes para a prolação de despacho de pronúncia, nos termos propugnados pela assistente, ora recorrente.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Julgar verificada a irregularidade do art.º 123º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P. e, em consequência, declarar inválido o despacho de não pronúncia e todos os actos posteriores dele dependentes;
b) Determinar que seja proferida nova decisão instrutória, na qual sejam supridas as omissões atinentes, por um lado, à enunciação dos factos indiciados e não indiciados, por referência ao requerimento de abertura, e, por outro, à análise crítica dos meios de prova produzidos no inquérito e indicados na acusação pública deduzida.
Notifique.

Lisboa, 24 de Outubro de 2024
Ana Marisa Arnêdo
Diogo Coelho de Sousa Leitão
Rosa Maria Cardoso Saraiva
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1. O Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que: «A fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a transparência do processo e da decisão» cf. Acórdãos n.º 55/85, 135/99 e 408/2007.
2. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/3/2015, processo n.º 863/11.4GAFAF.G1, in www.dgsi.pt.
3. A propósito, refere o Acórdão do T.R.P. de 22/9/2021, in www.dgsi.pt., que «(…) o despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito que tem força vinculativa dentro e fora do processo onde foi proferida, constituindo caso julgado e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre os factos a que é relativo. Para se definir o alcance desse caso julgado, é óbvio que deverão ser descritos os factos que não se consideram suficientemente indiciados (porque é em relação a eles que não poderá ser reaberta tal discussão)»
4. Neste sentido, também, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/4/2016, processo n.º 725/12.8GBVFR.P1, in www.dgsi.pt.
5. A respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2013, D.R. n.º 131, Série I de 10.07.2013, que expressamente manteve a jurisprudência fixada nos anteriores acórdãos de 19 de Fevereiro de 1992 e de 4 de Maio de 2000.
6. À semelhança do que se verifica a respeito da inadmissibilidade legal de rejeição da acusação quando a qualificação jurídica dos factos naquela insertos é controversa e ainda defensável, segundo as várias soluções plausíveis de direito. A respeito, os Acórdãos dos Tribunais da Relação do Porto de 11/7/2012, proc. n.º 1087/11.6PCMTS.P1 e de Lisboa de 18/10/2017, proc. n.º 1212/15.8PBAMD.L1-3, in www.dgsi.pt e Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 644).
7. Para além do mais já referido, assentes os pressupostos, por um lado, de que o princípio da tipicidade/legalidade vigora no regime geral das nulidades em processo penal (art.º 118º, n.º 1 e 2, do C.P.P.), e, por outro, que o dever de fundamentação não se queda na tutela dos interesses concretos dos sujeitos processuais.
8. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 15ª ed., Coimbra, 2005, pág. 306 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/1/2013, processo n.º 13/11.7GAGMR-A.G1, in www.dgsi.pt.