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EXPOSIÇÃO OU ABANDONO
ERRO SOBRE A ILICITUDE
“CULTURE DEFENSE” - RELEVÂNCIA
Sumário
I. O argumento de defesa denominado “culture defense” reveste em si, naturalmente, uma importância a que os tribunais não podem ficar, de todo, alheios, tanto mais que Portugal, além de ter sido, e ainda ser, um país de grande emigração, também é um local de destino forte de imigração. II. Excluir os referentes culturais da reflexão dos motivos dos indivíduos e do exercício de ponderação de valores que os tribunais fazem em qualquer caso concreto onde tal esteja presente, poderá traduzir-se numa violação do princípio da igualdade. De forma paradoxal, também, por referência àquele mesmo princípio [da igualdade] e à protecção dos direitos fundamentais das pessoas pertencentes a minorias, é que se justificam as objecções de fundo à culture defence e à admissibilidade de informação cultural em tribunal. III. Neste caso, a arguida é de nacionalidade angolana, vive em Portugal desde os seus 8 anos de idade [há mais de duas décadas], país onde estudou até ao 9.º ano de escolaridade, vivendo e convivendo com a comunidade portuguesa (e outras, certamente), razão por que é forçoso concluir que, decorrido todo este tempo, se encontra ciente e consciente das regras da sociedade portuguesa em que vive há tantos anos. IV. E tanto é assim, que o cidadão comum não ignora que é proibido deixar crianças de tenra idade sozinhas e sem qualquer adulto por perto que possa delas cuidar e proteger, sendo, por isso, censurável a conduta de as deixar à sua sorte, estando, pois, excluído qualquer erro sobre a ilicitude, nos termos previstos no art.º 17.º do CP.
Texto Integral
Acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
No processo comum singular n.º 344/20.5PGAMD do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Amadora – Juiz 3, consta da parte decisória da sentença datada de 18.12.2023, no que interessa, o seguinte: “Pelo exposto, julga-se a acusação procedente por provada e, em consequência, decide-se: 1. Condenar a arguida AA na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, pela prática de um crime de exposição ou abandono, previsto e punido pelo artigo 138.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal; 2. Suspender a execução da pena de prisão ora fixada, por igual período e sujeita a regime de prova, que inclua, entre o mais, programa destinado ao desenvolvimento das suas competências parentais.”
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Inconformado com a decisão condenatória, veio a arguida AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões[que se transcrevem]: «A) O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos autos identificados que condena a Arguida pela prática do crime de exposição ou abandono, previsto e punível pelo artigo 138.º, n.º 2 do Código Penal; B) O Tribunal considerou provados todos os factos constantes da acusação, à exceção que a varanda fosse aberta e que a menor, no momento em que ocorreram os factos se encontrasse a brincar com o irmão na varanda. C) A convicção do Tribunal assentou na prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e da documentação junta aos autos. D) Entende a arguida, que o Tribunal fez uma seleção criteriosa da prova produzida, partindo de pressupostos errados para induzir factos falsos, sem qualquer correspondência com a realidade. E) Assim não obstante o Tribunal ter a convicção de decidir, salvo a existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e com a sua livre convicção, a prova produzida, salvo melhor entendimento, in casu impunha uma decisão diferente. F) Deveria assim ter-se em conta que a Arguida desde 2019 que reside com os menores na morada em que ocorreram os factos, conforme melhor resulta do relatório social junto aos autos. G) Do mesmo modo, atendendo à prova documental junta aos autos, designadamente ao Auto de Interrogatório de Arguido o Tribunal não poderia deixar de atender ao facto de a Arguida se ter deslocado naquela data à Segurança Social por ter a convicção de que tinha uma marcação para aquele dia e que só mais tarde se apercebeu, que afinal, era para o dia 26/10/2020; H) Motivo pelo qual também não se pode concluir, conforme da sentença resulta, que a Arguida sabia que iria demorar muito tempo na Segurança Social, porque se esta tinha a convicção do agendamento, certamente pensou que seria atendida na hora ou em momento próximo da hora marcada. I) Nesta sequência, também não poderá considerar-se que a Arguida permaneceu fora de casa mais do que 1 hora e meia, uma vez que a mesma referiu ter saído de casa às 9h00 e os factos ocorreram às 9h36, donde apenas tinham decorrido 36 minutos. J) Sendo de realçar a este propósito que a Arguida chegou ao hospital, alegadamente às 11h36 e que o registo de entrada da Ofendida no mesmo é às 11h11, pelo que se pode concluir que a primeira chegou poucos minutos depois da segunda. K) De denotar ainda que a Arguida justificou a sua necessidade de se deslocar a segurança social para tratar do subsidio parental de forma a poder assegurar o sustento dos dois menos, cujo exercício das responsabilidades parentais lhe compete exclusivamente sem qualquer ajuda do outro progenitor que se encontra a cumprir uma medida de segurança em estabelecimento prisional. L) A este propósito a Arguida referiu: “sou mãe de dois filhos. Naquela altura eu estava sozinha e era pai e mãe dos meus meninos e pensava muito, como é que eu ia agir sozinha. Primeiro tinha o meu companheiro, depois deixei de o ter, então eu tinha fazer as coisas de forma a que protegesse a mim e aos meus filhos. – cfr. Registo Digital da Sessão de Julgamento do dia 20/11/2023 – “Defensor Oficioso: BB] – [minuto 15:58 e segs.] M) Sendo que do contexto em que as referidas declarações foram proferidas, salvo melhor entendimento, sempre será de considerar que a Arguida viu a sua ida à segurança social como uma necessidade e como uma forma de se salvaguardar a si e aos seus filhos. N) Carece ainda de se considerar erradamente provada a altura da queda, constante da sentença, uma vez que apesar de do Auto de Noticia resultar 5 metros, a bem da verdade a testemunha CC , esclareceu que a distância que vai desde a varanda da Arguida ao solo é de aproximadamente 2,70m – Registo Digital da Sessão de Julgamento de dia 14/12/2023 – Testemunha CC – [minuto 03:18 a 03:41] O) Sendo de realçar que, salvo melhor opinião, a testemunha acima referida oferece toda a credibilidade uma vez que vive no prédio desde que nasceu – Registo Digital da Sessão de Julgamento do dia .../.../2023 – [minuto 07:26 e seguintes]. P) Nesta sequência, nunca se poderá descorar que uma queda de uma altura de 5 metros mostra-se mais grave em termos de possíveis consequências do que uma queda de uma altura de 2 metros e tal poderá explicar a ausência de danos físicos maiores verificados pela Ofendida. Q) De considerar ainda que não se podem dar como provados os factos constantes dos pontos 10, 11 e 12 da sentença uma vez que: a) A Arguida não estava ciente que a menor e o irmão não poderiam ficar em casa sozinhos sem a supervisão de um adulto; b) A Arguida não tinha de todo ideia de que estes estariam expostos aos perigos decorrentes do alcance das janelas, parapeitos e varandas; e, c) A Arguida não agiu de forma deliberada, livre e consciente. R) Pelo que a propósito dos pontos anteriores a Arguida referiu que já havia deixado por três vezes as crianças em casa sozinhas sem que nada tivesseacontecido - Registo Digital da Sessão do dia 20/11/2023 – Arguido: AA – [minuto 10:02 a 11:46]; S) A Arguida mencionou ainda que trancou as portas de acesso à varanda antes de sair de casa – Registo Digital da Sessão de dia 20/11/2023 – Arguido: AA – [minutos 01:10 a 01: 45 e 4:35 a 05:04]7 T) Com efeito a Arguida trancou o botão de segurança existente nas portas de correr de vidro que dão acesso à varanda. As mencionadas portas, contrariamente ao que da sentença resulta não detém fechadura. U) A Arguida referiu que tinha por hábito, nas vezes anteriores que saiu e deixou as crianças sozinhas, e que também neste dia, adormece-las antes de sair de casa. – Registo Digital da Sessão do dia 20/11/2023 - [minuto 01:49 a 03:36] V) Tendo ainda a Arguida acrescentado que sempre que deixou as crianças sozinha, a sua ausência de casa apresentava-se como muito breve – Registo Digital da Sessão de dia 20/11/2023 – Arguido: AA - [minuto 11:40 e segs.] W) De realçar que a Arguida declarou que não sabia que era crime, à data, deixar os menores sozinhos em casa. – Registo Digital da Sessão do dia 20/11/2023 – Arguido: AA – [minuto 13:3 e seguintes 3 e 10:29 e seguintes. X) A supraidentificada declaração, com a devida vénia, só pode ser tida como credível atendendo a raiz cultural da Arguida e ao seu percurso de integração em Portugal até porque, conforme é consabido na Sociedade Angolana é banal que uma criança mais nova seja deixada aos cuidados e sobre a supervisão de uma criança mais velha. Embora ambas crianças, com discernimentos e com a capacidade de entendimento compatível com as suas idades, isto é aceitável e normal. Y) Não podendo ainda a este propósito desconsiderar-se que a Arguida cresceu, com diversas mudanças na sua vida, que as figuras de referência nem sempreforam os pais e que os valores que lhe foram transmitidos, nem sempre foram consentâneos com as normas sociojurídicas vigentes. Z) A Arguida revela-se ainda uma pessoa pouco instruída (abandonou a escola aos 16 anos, tendo apenas concluído o 9.º ano) e apresentava um défice cognitivo AA) Do discurso adotado pela Arguida é percetível a falta de instrução e ainda a falta de entendimento e capacidade em expressar-se, sendo que a própria refere não saber como designar os botões de fecho das janelas em português. BB) Ademais a Arguida nunca sequer concebeu que a Ofendida pudesse atirar-se ou cair da varanda. CC) Segundo a Arguida a parede da varanda (que faz parte da estrutura da fachada do prédio) é mais ou menos da altura da menor, pelo que seria difícil esta saltar – Registo Digital da Sessão de 20/11/2023 – Arguido: AA – [minuto 13:01 e seguintes] DD) De atender ainda ao depoimento da testemunha CC que a este propósito e quanto à configuração da varanda afirmou que a parede seria bem mais alta que a menor – Registo Digital da Sessão de 14/12/2023 – Testemunha CC – [minuto 08:18 e segs] EE) Em face do exposto, de a Arguida ter sempre adormecido previamente as crianças antes de sair, de ter trancado as janelas de acesso às varandas e de ser para esta inconcebível que a ofendida se conseguisse içar ou saltar da janela (por ter que previamente abrir as janelas de acesso à varanda e as próprias janelas que integram a marquise) esta nunca sequer teve a real perceção dos perigos a que as crianças foram expostas ao ficarem sozinhas em casa. FF) Além de que não poderá ter-se como necessariamente assente que as crianças aqui em causa não poderiam facilmente adormecer ou permanecer a dormir, porque já tinham dormido 11 horas, já haviam tomado o pequeno-almoço e feito a sua higiene e se encontravam num quarto inundado de luz. GG) Pois sempre será de considera que a Arguida nunca precisou o horário, realmente adotado pelas crianças na data a que se reportam os factos, tendo antes apenas referido os hábitos daquelas, sendo certo que na data em questão estavam em período de férias, em que é habitual, pela natureza das coisas, que os pais e as famílias não estejam sujeitos ao cumprimento das regras diárias. HH) Ademais a Ofendida e o irmão residem na referida morada desde 2019 e sempre dormiram na casa sem persianas, sem que tal lhe tenha até à data afetado o descanso, logo tal facto não seria necessariamente impeditivo a que aqueles não voltassem a adormecer. II) De referir ainda que nunca a Arguida referiu que os menores se levantaram e fizeram a sua higiene nas suas declarações e se referiu em sede de declarações finais, foi porque a resposta foi claramente induzida. JJ) De especial relevância entende-se que a Arguida, no caso em concreto agiu com erro sobre a ilicitude. KK) Este erro sobre a ilicitude não lhe pode ser censurável, conforme fundamentação acima aduzida, porquanto não existe aqui uma conduta desvaliosa da Arguida perante os bens jurídicos protegidos pela norma legal, aplicável a este caso em concreto. LL) No entanto e a considerar como censurável o erro, no caso em apreço sempre deverá a pena a aplicar a Arguida ser especialmente atenuada. MM) De referir ainda, que salvo melhor entendimento, também não assistimos à prática de qualquer crime de exposição ou abandono, por não se encontrar preenchido o elemento subjetivo da norma penal. NN) Uma vez que este tipo de crime só se preenche quando praticado com dolo, o qual tem que abarcar a criação de perigo para a vida da vítima, bem como a ausência de capacidade para esta se defender. OO) Neste caso, a Arguida nunca atuou dolosamente. Nunca quis criar qualquer perigo para a vida ou integridade física da sua filha, conforme bem resulta da sentença. PP) Além de que a Arguida nunca teve consciência que ao sair de casa e deixar os dois menores sozinhos criava o acima mencionado perigo. QQ) Sempre será de concluir, salvo melhor entendimento, que a Arguida atuou negligentemente, nos termos previstos na alínea b) do artigo 15.º do Código Penal RR) Repare-se que se por mera hipótese, a Arguida considera-se ou representa-se os factos que constam dos autos como possíveis, que não representou sempre seria de entender que a mesma atuou sem se conformar com a sua realização – cfr, Registo Digital da Sessão de 20/11//2023 – Arguida: AA – [minutos 13:01 e segs] SS) Carecendo assim de entender-se que a conduta da Arguida, no limite poderá consubstanciar uma negligencia consciente na medida em que aquela poderá ter configurado ou tido a perceção que tais factos poderiam acontecer, no entanto confiou na sorte e na sua perícia (a estratégia de adormecer as crianças antes de sair e de trancar o acesso à varanda) para que o resultado não ocorresse. TT) Por fim, não sendo a Arguida condenada na prática do crime, deverá do mesmo modo ser absolvida do pedido de indemnização civil; UU) E a não ser absolvida deverá ser ponderada a redução da pena para o mínimo legalmente previsto com dispensa do regime probatório, atento o facto da Arguida já ter passado pelo último em sede de processo das responsabilidades parentais, tendo sido acompanhada por técnicas que identificaram e trataram eventuais riscos que a menor pudesse sofrer. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exa. doutamente suprirá deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser a recorrente absolvida na prática do crime de exposição ou abandono em que foi condenada, bem como no respetivo pedido de indemnização civil Ou caso assim não se entenda, Deverá a pena ser especialmente atenuada (em face do erro sobre a ilicitude) ou ser a mesma reduzida para o seu limite mínimo.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho datado de 10.04.2024, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, tendo formulado as seguintes conclusões [que se transcrevem]: «1. Inconformada com a douta sentença condenatória nestes autos proferida, dela interpôs recurso a arguida AA, sem, contudo, especificar quer na motivação de recurso, quer nas suas conclusões a existência dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, als. a) a c) do Código de Processo Penal, doravante com a abreviatura CPP; 2. Sem prejuízo, sempre se dirá que a impugnação da matéria de facto impõe o cumprimento do formalismo consignado no artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (diploma doravante designado por CPP) e este formalismo mostra-se ausente, não só nas conclusões, mas também nas motivações “stricto sensu”; 3. A recorrente não cumpre com todos os requisitos ali previstos ao impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal recorrido, resultando evidente da motivação e das conclusões que aquela não especificou, nos termos dos n.ºs 3, alínea c) e 4, as concretas provas que na sua perspectiva devem ser renovadas; 4. Apesar de ter especificado as concretas passagens das suas declarações e das testemunhas que considera relevante não indicou, contudo, as concretas provas que devem ser renovadas; 5. No nosso humilde entendimento, no caso em apreço não haverá lugar reformulação das conclusões uma vez que, constituindo o texto da motivação limite absoluto que não pode ser extravasado nas conclusões e sendo estas, logicamente, um resumo dos fundamentos porque se pede o provimento do recurso, há que concluir que o que não constar das motivações stricto sensu, não pode constar das conclusões; 6. No entanto, sempre se dirá que não obstante a recorrente não ter cumprido na integra com a especificação nos termos pormenorizados pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, ainda que o tivesse efectuado a sua pretensão será de naufragar; 7. Refira-se, desde já, que a matéria de facto dada como provada na sentença reproduz, com fidelidade, o teor da prova produzida em sede de audiência de julgamento – prova testemunhal, documental e pericial- estando devidamente fundamentada a convicção do julgador, em termos que subscrevemos inteiramente; 8. Numa leitura, minimamente atenta da decisão recorrida, nomeadamente da fundamentação de facto e a indicação das provas, não se vislumbra que ao assentar os factos provados (e os não provados) o julgador tivesse cometido qualquer erro de julgamento; 9. Pelo contrário, verifica-se ter a sentença seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas; 10. Tendo o Mmº Juiz a quo, na Motivação da Decisão de Facto, feito alusão aos depoimentos das testemunhas, às declarações da arguida e à prova documental constantes dos autos e apreciada em julgamento, de forma crítica e muito bem fundamentada, sustentando a razão da sua valoração dos pontos da matéria de facto colocada em causa pela recorrente, bem como relativamente à não valoração, cumprindo integralmente o dever de fundamentação que se impõe; 11. Com efeito, andou bem a Mmº Juiz a quo, “lendo” a prova de forma perspicaz e atenta, explicitando de forma bem clara as razões de não ter atribuído credibilidade à versão dos acontecimentos apresentada pela arguida, a qual, apesar de ter reconhecido que deixou os seus dois filhos menores sozinhos em casa, sem supervisão de um adulto, afirmou que não sabia ser proibido, no nosso país, deixar crianças sozinhas em casa, não obstante se encontrar a viver em Portugal há vários anos; 12. Alega a arguida, aqui recorrente, que face à prova produzida impunha-se uma decisão diversa daquela que foi proferida; 13. O erro na apreciação da prova é aquele que se mostra ostensivo, de tal modo chocante que não passa desapercebido ao comum dos observadores, ou seja, aquele erro de que o cidadão médio dele facilmente se dá conta; 14. Existe esse erro notório quando se dá como provado um facto que claramente não pode ter existido e que é perceptível a qualquer cidadão; 15. Da leitura de toda a matéria de facto provada e da sua fundamentação, não conseguimos vislumbrar a existência de qualquer erro, tendo os factos considerados provados pelo Tribunal a quo resultado de uma correcta apreciação e valoração crítica do conjunto da prova, designadamente a produzida em audiência, concatenada com a prova documental e pericial constante dos autos; 16. Não existe qualquer contradição entre os factos dados como assentes e estes mostram-se devidamente fundamentados, não se vislumbrando qualquer vício na formação da convicção do julgador. Na fundamentação de tal convicção estão suficientemente demonstradas as razões que levaram o Tribunal a considerar provados os factos assentes, designadamente os que são questionados pela recorrente e que implicam a sua responsabilização criminal. Esta foi a convicção do Tribunal e convicção contrária é apenas isso mesmo, uma convicção contrária à da arguida, que não se pode substituir à convicção do Juiz; 17. Alega a arguida/recorrente que agiu em erro sobre a ilicitude, o qual não lhe pode ser censurável por inexistir uma conduta desvaliosa da sua parte perante os bens jurídicos em apreço; 18. A nosso ver o facto de a arguida alegar que não tinha consciência da ilicitude dos factos e que nenhum desvalor jurídico era atribuído à sua conduta, de deixar a sua filha de 4 anos em casa, apenas acompanhada pelo seu irmão com apenas sete anos de idade, não pode servir como causa de exclusão da sua culpa; 19. Considerando que a factualidade dada como provada reproduz com fidelidade a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, deverá a questão suscitada pela recorrente improceder, na medida em que ficou demonstrado que a arguida agiu com dolo eventual e não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, incorrendo, assim, na prática do crime de exposição ou abandono p. e p. pelo artigo 138.º, n.º1, al. al b) en.º2 do CP; 20. Alega a arguida que não poderá ser condenada pela prática do crime de exposição ou abandono, o qual apenas é punível a título de dolo, ainda que eventual, na medida em que não actuou dolosamente, mas apenas de forma negligente por nem sequer ter representado a possibilidade da ocorrência dos factos. Mais alega, que mesmo que assim não se entenda e que se considere que representou, em algum momento a ocorrência de tais factos, agiu, contudo, sem se conformar com a sua realização; 21. Se atentarmos no teor da douta sentença recorrida verificamos que foi dado como provado que: “8. A arguida sabia que a sua filha menor tinha apenas quatro anos de idade e que dependia exclusivamente de si. 9. Estava ciente que aquela não era capaz de, por si só, ficar com o irmão menor de idade, sem qualquer supervisão. 10. Mais sabia que na residência existem os mais variados perigos, como parapeitos de janelas e de varandas que estão facilmente ao alcance das crianças, e que ao deixá-la ali sozinha sem supervisão, não impedia o risco de a menor delas se abeirar, caindo, e sofrendo ferimentos e até a morte. 11. Sabia que ao assim agir punha em perigo a vida da sua filha menor de idade, com tal se tendo conformado. 12. Com as descritas condutas a arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.” 22. Do exposto decorre, que a arguida admitiu, representando como possível e conformando-se que ao deixar a sua filha DD em casa, sem a supervisão de um adulto, na companhia do seu irmão com apenas 7 anos de idade, exposta aos mais variados perigos, colocava em perigo concreto a sua vida, como veio efectivamente a suceder, tendo a sua filha caída da varanda da residência, conformando-se com tal resultado que, como único garante do dever de vigilância lhe incumbia evitar; 23. Encontram-se, assim, preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em apreço, tendo a arguida atuado com dolo eventual relativamente ao perigo concreto para a vida da sua filha, com a sua conduta gravemente censurável de se ter ausentado de casa sem providenciar pela supervisão da mesma por um adulto, deixando a mesma à mercê de vários perigos, entre os quais, a queda de uma varanda facilmente acessível; 24. Por conseguinte, bem andou o Tribunal a quo ao considerar que a arguida agiu com dolo eventual e que podia e devia ter agido de modo diverso, mas não o fez, e por isso, a sua conduta é passível de um juízo de censura; 25. Alega a recorrente que, caso se venha a concluir pela verificação do crime pelo qual foi condenada, considera que “deverá reponderar-se a medida da pena aplicada, tendo em consideração o sofrimento pelo qual a arguida passou por ter estado privada do exercício das responsabilidades parentais da filha”; 26. Contudo, com o devido respeito por opinião contrária, cremos que não merece censura a medida da pena aplicada à arguida; 27. Da análise da decisão recorrida só podemos concluir que o Tribunal de primeira instância fez uma correcta aplicação dos critérios legais da determinação da medida da pena, plasmados nos artigos 40º, 50.º, 70.º e 71.º do Código Penal; 28. Perscrutando o teor da sentença condenatória, é possível verificar que a mesma analisa, reflectida e correctamente, as necessidades de prevenção geral, classificando as mesmas como “relevantes”, na medida em que os acidentes domésticos são uma das principais causas de morte de menores no nosso país. Verifica-se, de igual forma, que a decisão recorrida examinou as necessidades de prevenção especial existentes nos autos, considerando-a reduzidas dada a inexistência de antecedentes criminais; 29. Na determinação concreta da pena, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que depuserem a favor do agente ou contra ele, funcionando dentro desta moldura. No caso concreto, depõe contra a arguida: a intensidade da violação do seu dever de garante. A favor da arguida, a ausência de antecedentes criminais, a confissão parcial dos factos e a sua inserção social; 30. Assim, sopesando os factores de determinação da medida da pena, o Tribunal entendeu como justa e adequada a fixação da pena de 2 anos e 8 meses de prisão, a qual, considerando a moldura do crime em apreço e os critérios legais, afigura-se-nos ajustada e proporcional, optando o Tribunal de primeira instância por suspender a pena de prisão na sua execução, sujeita a regime de prova, por considerar que a “pena efectiva é desproporcional às necessidades de prevenção, as quais podem ser suficientemente satisfeitas com a suspensão da execução da pena de prisão, desde que acompanhada de regime de prova, que inclua, entre o mais, o desenvolvimento de competências parentais”; e 31. Face ao exposto, afigura-se-nos que todo o processo de escolha da medida da pena não merece qualquer reparo, quer pelo estrito cumprimento do preceituado na nossa lei penal, quer pela rigorosa análise do factualismo a que aplicou esses mesmos critérios legais, pelo que a recorrente não tem qualquer motivo para a reputar excessiva, desproporcionada ou inadequada, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo, em nenhum dos momentos da determinação da medida concreta da pena. Termos em que, decidindo pela manutenção da douta sentença recorrida, nos seus exactos termos e fundamentos, farão V. Exas., como sempre, JUSTIÇA!»
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Nesta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de «manutenção da sentença recorrida, pugnando pela improcedência do recurso».
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Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJECTO DO RECURSO
Conforme é jurisprudência assente(1)“é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o art.º 410.º do CPP(2), o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respectiva motivação.
Pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras”(3).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr. art.º 412.º, n.º 1 do CPP).
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Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, cumpre apreciar:
1. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto/erro de julgamento;
2. Do enquadramento jurídico-criminal: inexistência do ilícito em causa;
3. Do erro sobre a ilicitude;
4. Da medida da pena aplicada.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação e determinação da pena: “Instruída a causa, resultaram com interesse para a boa decisão da mesma, os seguintes factos provados e não provados: A. FACTOS PROVADOS. A1. DA ACUSAÇÃO 1. A arguida é mãe da ofendida DD, nascida no dia 23/12/2015. 2. Desde data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 16/09/2020, a arguida reside na habitação sita na ..., ... Amadora, com a sua mãe, EE, e com ambos os filhos, DD e FF, este último nascido em 19.08.2013. 3. A arguida sempre exerceu as responsabilidades parentais relativas à vítima DD, cabendo-lhe, assim, suprir pelas necessidades básicas da criança, como, preparar e prover as refeições, cuidar da sua higiene pessoal e vestuário, vigiá-la, supervisioná-la e educá-la, promovendo o seu bem-estar e segurança. 4. No dia 16/09/2020, a hora não concretamente apurada, mas cerca das 9h, a arguida saiu da referida habitação, trancou a porta de entrada à chave e deixou DD juntamente com FF, sozinhos no seu interior, sem qualquer supervisão durante cerca de uma hora e trinta minutos, para se deslocar à Segurança Social, para resolver questões relacionadas com o subsídio parental. 5. Cerca das 9h36, a ofendida DD deslocou-se à zona da varanda, fechada em marquise, com janelas a toda a volta, cujo acesso se pode fazer ou pela sala ou pelo quarto, e de forma não concretamente apurada caiu para fora desta, na via pública, de uma altura de cerca de cinco metros. 6. DD ficou sentada no chão, a sangrar da boca e foi transportada para o Hospital de Santa Maria – Centro Hospitalar de Lisboa Norte, E.P.E., local onde deu entrada às 11h10m com pulseira laranja – muito urgente, acompanhada por um agente da PSP, uma vez que a progenitora não se encontrava no local para a acompanhar no momento da deslocação e que só ali chegou às 11h35m.. 7. Com consequência directa e necessária da queda, DD, sofreu um traumatismo, apresentando-se com incontinência esfíncteres, suja de fezes, hemorragia vaginal, pequena lesão de freio superior na orofaringe, dor ligeira à palpação do maléolo lateral e região do LPAA e traumatismo na região lombo-sagrada. 8. A arguida sabia que a sua filha menor tinha apenas quatro anos de idade e que dependia exclusivamente de si. 9. Estava ciente que aquela não era capaz de, por si só, ficar com o irmão menor de idade, sem qualquer supervisão. 10. Mais sabia que na residência existem os mais variados perigos, como parapeitos de janelas e de varandas que estão facilmente ao alcance das crianças, e que ao deixá-la ali sozinha sem supervisão, não impedia o risco de a menor delas se abeirar, caindo, e sofrendo ferimentos e até a morte. 11. Sabia que ao assim agir punha em perigo a vida da sua filha menor de idade, com tal se tendo conformado. 12. Com as descritas condutas a arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. A2. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL 1. Na sequência dos eventos, a ofendida foi transportada ao Hospital de Santa Maria, onde foi observada nos serviços de urgência, onde ficou internada, do dia 16.09.20 ao dia 18.09.20, momento em que foi transferida para o Hospital Dr. Fernando da Fonseca. 2. Os cuidados de saúde e o internamento importaram o valor total de €838,60. Mais se provou: 1. A menor foi transferida do Hospital de Santa Maria para o Hospital Dr. Fernando da Fonseca, onde deu entrada no dia 18.09.20, às 19h27m e ali permaneceu, para resolução social até ao dia 30.09.20. 2. A arguida não sofreu qualquer condenação. 3. Admitiu parcialmente os factos, negando, todavia, o conhecimento da ilicitude. 4. Mostrou-se arrependida. 5. AA é a penúltima de uma fratria de oito elementos, nascidos em Angola (Luanda). 6. Desde tenra idade AA e os irmãos eram cuidados por uma tia paterna no período de tempo em que os pais exerciam actividade profissional, a progenitora como enfermeira chefe em hospital público e o progenitor como motorista de automóveis para a empresa TAP. 7. A arguida veio para Portugal com a mãe e o irmão mais novo após o divórcio dos pais. 8. Pouco tempo após chegar a este país a progenitora encetou uma relação amorosa, tendo o padrasto se assumido como figura parental para a arguida e para o irmão. 9. Estudou até ao 9.º ano, que conclui com dezasseis anos, altura em que se iniciou no mercado de trabalho, em regime de part-time como assistente de pessoas invisuais. 10. Entre os vinte e os vinte e três anos de idade trabalhou como ajudante de cabeleireira, e de seguida, como auxiliar de acção médica. 11. Ficou desempregada após o nascimento da filha, tendo começado a trabalhar passados cerca de três anos, altura em que foi contratada para exercer funções de lavadeira no .... 12. Viveu em união de facto com o pai dos filhos, ficando com estes a cargo, após a separação, em 2019. 13. O progenitor das crianças encontra-se em cumprimento de medida de segurança e não contribui para o seu sustento. 14. Após a separação, a arguida passou a residir com a mãe. 15. Após os factos que deram origem ao presente processo, DD ficou aos cuidados do irmão da arguida, GG, que assumiu o papel de responsável legal. 16. Os rendimentos do agregado são constituídos pela reforma da progenitora, no valor de €300, e pelo salário da arguida, no valor de €785. 17. Em termos de despesas, com água, luz, internet, passes sociais, refeições, gás e renda de casa, o agregado regista cerca de 830€. B. FACTOS NÃO PROVADOS 1. Que a varanda seja aberta. 2. Que a menor estivesse a brincar na varanda com o irmão quando os factos sucederam. C. MOTIVAÇÃO O Tribunal fundou a sua convicção, no apuramento dos factos objecto dos presentes autos, no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e na documentação junta aos autos, analisando uma e outra de forma crítica e de acordo com as regras da experiência comum. Assim, para demonstração das circunstâncias de tempo e lugar, teve-se em atenção o auto de notícia de fls. 4, uma vez que os agentes da PSP foram chamados ao local de imediato, em conjugação com a data e hora de entrada da menor nos serviços de urgência do Hospital de Santa Maria, para onde foi encaminhada, pelos bombeiros, chamados ao local. A menor foi então observada, apresentando as lesões que se descreveram no ponto 7, conforme documentação clínica de fls. 43 e ss e 60 e ss. Os cuidados que lhe foram prestados e que ali se encontram discriminados, suportam a emissão da factura, no valor de 836,60€, junta aos autos com o pedido de indemnização civil. O Tribunal teve ainda em atenção o motivo da alta administrativa após o internamento, constante da documentação clínica, a saber a transferência externa para o Hospital Dr. Fernando da Fonseca, onde permaneceu até ao dia 30, data em que obteve alta médica. A duração posterior do internamento relacionou-se não com as queixas, mas antes com a sinalização de perigo da menor, ficando-se a aguardar uma resposta social e a decisão do Tribunal. Para prova da filiação e idade da menor e do seu irmão teve-se em atenção os assentos de nascimento de fls. 13 e 110. Das declarações da arguida, mas também do relatório social, resulta que efectivamente que até à data dos factos, os menores se encontravam ao cuidado desta que assumia de forma exclusiva as responsabilidades parentais, até porque o pai daqueles se encontram em cumprimento de uma medida de segurança. O local onde residiam tem, como referido pela arguida e pela sua vizinha HH, uma varanda fechada em marquise, o que é igualmente visível através do fotograma retirado do google maps, com que aquela foi confrontada em julgamento e cuja junção se ordenou. Explicou a arguida que o acesso à varanda, se faz através das portas-janelas do quarto e da sala, e que as mesmas não têm qualquer persiana, contrariamente ao que sucede com as outras fracções do mesmo prédio. Assim, o único dispositivo de segurança é a fechadura das portas e das janelas da marquise. Os menores brincavam habitualmente na marquise, conforme referiu a testemunha HH, não se tendo apurado, todavia, se tal sucedia no momento em que os factos ocorreram. A arguida não negou que deixou os menores sozinhos, trancando a porta da residência atrás de si. Tal explica que tenham sido accionados os bombeiros para retirar o irmão da ofendida do interior da residência, por este não ter conseguido aceder ao pedido do agente da PSP II para a abrir. Os bombeiros, conforme resulta do auto de notícia, entraram pela janela da marquise, que se encontrava aberta. Considerando que a marquise acompanha toda a fachada da fracção, que a ofendida caiu na via pública em frente ao prédio, e que a porta da residência se encontrava fechada à chave, necessariamente se conclui que foi pela janela daquela que a menor caiu. Negou a arguida que na varanda se encontrasse qualquer objecto que permitisse à mesma se içar, o que se duvida. Com efeito, a vantagem de fechar uma varanda em marquise é o acréscimo de espaço coberto útil, o que explica que ali sejam habitualmente guardados um conjunto de bens que, de outro modo, não o poderiam ser. Por outro lado, embora a arguida igualmente o tenha negado, a verdade é que os menores eram ali habitualmente vistos por HH a brincar, não lhes sendo, por isso, um espaço vedado ou proibido. Também esta circunstância faz supor que ali se encontrassem brinquedos ou outros objectos por aqueles utilizado. Não se vislumbra porque HH haveria de mentir a tal propósito, registando-se aliás o cuidado em precisar que embora os pudesse avistar ali, não podia asseverar que não estivessem sob a supervisão de um adulto, que se encontrasse no interior da sala, o que igualmente se afigura verosímil atendendo ao fotograma atrás referido. É verdade que não se apurou de que modo concreto é que a ofendida caiu, pois sobre tal não foi feita qualquer prova, já que JJ apenas a viu em movimento descendente e que HH só assomou à janela em momento posterior. E não se afigurou que as testemunhas tenham, a tal propósito faltado à verdade, omitindo voluntariamente factos de que tivessem conhecimento. Na realidade, neste ponto, como nos demais, afiguraram-se absolutamente credíveis. Cumpre lembra que a menor tinha 4 anos de idade, de onde resulta que a sua altura não era superior ao parapeito da varanda fechado em marquise. Todavia, uma criança ágil não teria dificuldade, ainda que sem apoio, de se alçar sobre a mesma, perdendo o equilíbrio e caindo. A menor, aparentemente, caiu sentada, porque foi assim que a testemunha JJ a veio a encontrar quando, no momento da pausa para o cigarro do café onde trabalhava, situado em frente ao prédio, se apercebeu de um vulto em queda. Tal explica a feliz ausência de consequências mais gravosas. DD foi transportada para o Hospital, onde deu entrada às 11h10 sendo acompanhada por um elemento policial, uma vez que a arguida ainda não se encontrava no local (cfr. auto de notícia, fls. 5), ali apenas tendo comparecido às 11h35m. A arguida não negou que deixou os dois filhos sozinhos, sem supervisão, tendo os mesmos à data, 4 e 7 anos de idade. Segundo AA, estes acordaram, como habitualmente, por volta das 7h da manhã, tendo tomado o pequeno almoço, feito a sua higiene e regressado para a cama para dormirem mais um pouco, tendo então aproveitado para ir à Segurança Social, que dista cerca de 10 minutos a pé para resolver questões relativas com o subsídio parental. A arguida afirmou que saiu por volta das 9h e que ainda se encontrava na Segurança Social quando teve conhecimento do acidente, pela sua mãe. Resulta da experiência de qualquer utente de serviços públicos, em particular da Segurança Social, que o atendimento nem sempre é rápido, até pela muita afluência que normalmente registam. Deslocando-se após o horário de abertura de tais serviços1, não podia a arguida supor ser atendida rapidamente, porque necessariamente outras pessoas seriam atendidas antes de si. A arguida tão pouco gozava de qualquer prioridade no atendimento, como poderia, eventualmente, suceder, se os menores a acompanhassem. Aliás, a arguida não conseguiu adiantar nenhuma explicação credível para os não ter levado consigo. Contando com o tempo despendido no percurso de ida e volta para casa, o expectável tempo do atendimento e de espera, a ausência da residência nunca seria breve. Aliás na segunda data, ouvida em últimas declarações, a arguida admitiu que já se encontrava fora da residência há cerca de uma hora e meia quando teve conhecimento da queda da filha. Vendo o tempo a passar, a arguida não regressou a casa, antes se mantendo naquele local. Explicou a arguida que julgava que os meninos permaneceriam a dormir. Todavia, de acordo com as suas declarações, os menores deitam-se habitualmente às 8h30, o que significa que dormem habitualmente 10h30m/11h. Qualquer mãe de crianças pequenas compreende que depois de quase 11 horas de sono muito dificilmente uma criança volta a dormir duas horas depois, sobretudo se, entretanto, se levantou, fez a sua higiene e tomou pequeno-almoço. Todos estes actos acordam as crianças, tornando extremamente difícil que voltem a dormir, sobretudo numa casa inundada de luz (atenta a falta alegada de persianas), como necessariamente sucederia entre as 9h e 10h30 de uma manhã de Setembro. A arguida afirmou que trancou a porta da sala, mas como igualmente resultou da prova atrás referida, à varanda é possível igualmente aceder pelo quarto. Acresce que, a tranca de uma porta, habitualmente colocada a meio da altura da mesma, não é obstáculo suficiente a uma criança de 7 ou 4 anos, como as regras da experiência comum igualmente corroboram. Mas mais, não é credível que a arguida não tenha avisado os filhos que se ia ausentar, saindo de casa enquanto estavam a dormir. Qualquer criança pequena quando acorda procura os pais, pelo que seria de supor que aquela ficasse preocupada que estes, acordando, não a vissem e, por essa razão, ficassem assustados. Se não os avisou, então é porque estava segura da reacção destes, o que indicia que os deixou sozinhos em mais do que as três ocasiões por si admitidas… A fracção da arguida fica num primeiro andar elevado, conforme resulta do fotograma, e que é explicado pelo pé direito de cada apartamento (2,70m, conforme referido pela testemunha HH), o que permitiu concluir que a queda se deu de uma altura de 5 metros. Como se referiu, apenas por um feliz acaso não foram mais graves as consequências da queda da menor de tal altura. E, aqui chegados, cumpre compreender se a arguida era capaz de antecipar e representar o risco a que expôs a filha. E não vemos porque não fosse capaz de o fazer. A arguida não podia ignorar que a filha tinha apenas 4 anos de idade e que não a podia deixar sozinha, sem supervisão, apenas na companhia do irmão, ele próprio menor de idade e com apenas 7 anos. Numa casa existem vários perigos, desde fontes de energia, detergentes, facas e objectos afiados, janelas, instrumentos de combustão, etc. E o perigo reside na falta de maturidade de uma criança para compreender, por um lado, os cuidados que são necessários na manipulação daqueles objectos ou na exposição a lugares elevados e, por outro, para antever as consequências que tais comportamentos podem advir. Maturidade e capacidade que a arguida indiscutivelmente possui. Ademais, qualquer pessoa que tenha crianças pequenas a cargo, pode asseverar que estas, estranhando a demora do progenitor ou ansiando pelo seu regresso, frequentemente se deslocam ao local onde melhor podem apreciar o momento da chegada. Esta experiência que a arguida indubitavelmente também tem, necessariamente a deveria ter prevenido quanto ao risco real e objectivo da filha se aproximar da varanda e de se içar sobre o parapeito, para daí avistar a rua, sendo esta a única forma de o fazer considerando a sua altura. A arguida conhecia o dever que sobre si incidia de cuidar e proteger a filha, de si dependente, a manifesta incapacidade desta de, por si só, compreender o perigo que o abeirar da varanda importava. A arguida ausentou-se e ao fazê-lo deixou de exercer a vigilância que a idade da menor exigia, não afastando a situação de perigo da qual podia advir risco para a vida desta. Ora, não podia deixara mesma de prever como consequência possível e eventual da sua conduta a criação desse perigo. É que na previsão de tal risco não é necessário qualquer esforço especial de imaginação, mas apenas e, tão somente, bom senso. Afirmou a arguida que não sabia ser proibido no nosso país deixar as crianças sozinhas, sem supervisão. Apesar de não ser portuguesa, a arguida encontra-se no nosso país há vários anos, tendo passado grande parte da sua infância aqui, estudando, inclusivamente, no sistema de ensino público. Ora, as escolas são dotadas não só de professores, mas também de auxiliares de acção educativa, que velam pelo bem-estar e segurança dos menores, exactamente porque estes não podem ser deixados sozinhos, nas pausas lectivas. Qualquer pessoa que não viva isolada do mundo, mas que antes mantenha interacções sociais, tem conhecimento de que os menores não devem ser deixados sem vigilância. E tal não ocorre apenas em virtude das campanhas de prevenção de acidentes domésticos (sobretudo no Verão quanto aos riscos de afogamento) ou das advertências realizadas pelas enfermeiras nos centros de saúde no acompanhamento pediátrico a partir do momento em que os menores se começam a locomover, mas também, e desde logo, pela proliferação de sinalética nesse sentido em espaços públicos. É o que sucede, por exemplo nas escadas rolantes e elevadores, advertindo que as crianças nelas não devem viajar sozinhas, nos trocadores de fraldas instalados em equipamentos públicos, alertando o risco de quedas dos mesmos, etc. Por outro lado, a protecção da infância, da saúde e bem-estar das crianças é uma preocupação primeira da nossa sociedade, concretizando-se, desde logo, nos apoios sociais que a arguida procurava receber nessa manhã, quando se deslocou à Segurança Social. Um Estado Social que, não obstante as dificuldades financeiras que atravessa, procura garantir que aos menores não falte o mínimo à sua subsistência, fá-lo porque tal é não só uma expectativa, mas antes uma exigência da sociedade. Se o Estado não deixa o menor desvalido, é natural que censure o progenitor que o entrega à sua própria sorte, por não exercer de forma adequada os deveres de supervisão que lhe incumbem. Assente que se encontra a previsibilidade do risco criado, resta descobrir como é que a arguida relativamente ao mesmo se posicionou. A acusação a tal propósito nada diz. Mas, não tem o Tribunal qualquer razão para duvidar do amor por si professado em relação aos filhos, não se compreendendo que tenha desejado tal resultado ou representado como consequência necessária da sua conduta. Mas, de igual modo, não se concebe que, representando o risco, sendo este tão evidente, tenha agido sem se conformar com a sua realização. Não está em causa uma simples incúria ou negligência. É que só uma casualidade, não dependente da sua actuação, naquelas circunstâncias poderia evitar a densificação do perigo. A arguida seguramente desejou que nenhum dano do perigo por si criado adviesse. Não é isso, aliás, que está em causa. À arguida não é imputada a previsão e aceitação do resultado morte. A acusação é deficiente na sua redacção, no que tange à adesão da arguida à eventualidade da verificação de tal resultado de perigo, contrariamente ao que sucede à previsibilidade do mesmo, em que se estende, aliás, de forma algo repetitiva. No passado, rejeitamos acusações em que a intenção que preside à actuação do agente não se encontrava expressa, por entendermos que as mesmas eram nulas por falta da narração do elemento volitivo do dolo, o qual não podia ser integrado nos termos do disposto no art.º 358.º, n.1 e 359.º do CPP, considerando o AUJ 1/2015. Todavia, de tais decisões foram interpostos sistematicamente recursos que, de forma maioritária2, mas não unânime, foram procedentes, entendendo o Tribunal recorrendo que a conduta voluntária é necessariamente intencional, e que tal menção é suficiente. Ora, considerando tal entendimento, bem como o disposto no art.º 8.º, n.º 3, do CC, teremos que concluir que a adesão à criação de um perigo é algo substancialmente diverso de desejar e intencionalmente provocar aquele. Ou seja, se previu que a sua conduta omissiva era objectivamente idónea a perigar a vida da filha, e, ainda assim, agiu da forma descrita, é porque, pelo menos, se conformou com tal possibilidade. Assim, a instrução da causa demonstrou algo que fica aquém do facto imputado, ou seja, não a vontade de criação de um perigo, mas antes a conformação com a sua verificação. Por esta razão se aditou tal facto, nos termos do disposto no art.º 358.º, n.º 1, do CPP. Nada nos autos nos permite concluir que a arguida não tivesse a capacidade para compreender a ilicitude da sua conduta e para se determinar de acordo com esse conhecimento ou que, de algum modo, tivesse a sua liberdade de actuação coarctada. Os factos são uma emanação da sua vontade livre e consciente, estando desta dependentes porque por ela controlados, razão pela qual se deu como provado que agiu de forma livre, voluntária e consciente. Os factos que se deram como provados quanto à situação económica e pessoal da arguida resultaram das suas declarações e do teor do relatório social junto. A postura da arguida, a admissão parcial dos factos, aliadas às consequências já produzidas, com a colocação dos filhos aos cuidados do irmão, no âmbito do processo de promoção e protecção instaurado (cfr. certidão do processo 1236/20.2T8AMD, de fls. 102 e ss) e, mais do que isso, a compreensão demonstrada de que aquelas constituem um menor à desgraça que se poderia ter produzido, permitem-nos concluir que o arrependimento professado é genuíno e sincero. Do CRC da arguida nada consta, o que permitiu concluir pela ausência de condenações.”
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APRECIAÇÃO DO RECURSO
Nos termos do disposto no art.º 428.º do CPP os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Como consabido, a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2 do CPP, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6.
Enquanto no primeiro caso estamos circunscritos ao exarado na sentença proferida, no segundo a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do CPP. 1. Da impugnação da matéria de facto/erro de julgamento:
Relativamente à “impugnação ampla” da matéria de facto, fundada numa má e/ou errada avaliação das provas, diremos que esta que conduz a uma deficiente apreciação da matéria de facto.
O fundamento daquelas imposições legais é a necessidade da delimitação objectiva do recurso da matéria de facto, dado que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efectuado na 1.ª instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico.
Havendo gravação das provas, a especificação deve ser feita com referência ao que consta da acta, com indicação concreta das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412.º, do CPP).
O cumprimento deste ónus implica, ainda, a explicitação das razões pelas quais essas provas, cujo conteúdo foi especificado, impõem decisão diversa da recorrida. Não basta ao recorrente formular genericamente a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto e apontar o sentido que deve ser dado à prova, sendo necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham uma decisão diversa da proferida (parte final da al. b), do n.º 3, do citado art.º 412.º).
A “impugnação ampla” está também condicionada à circunstância de o “contacto” com as provas ser realizado com base nas gravações, daí resultando a limitação decorrente da falta de oralidade e de imediação das provas produzidas em audiência. “A oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do principio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal”(4).
Por estas razões, a reponderação “ampla” da matéria de facto pela Relação não constitui um novo julgamento, mas apenas numa intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente e, ainda assim, terá de ser parcimoniosa, em respeito do princípio da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.
Trata-se, apenas, de um remédio jurídico para colmatar erros de julgamento.
Como se refere no Ac. do TRL(5), “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de factos impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente”.
São exemplos clássicos da necessidade de alterar a matéria de facto quando a convicção do julgador se mostrar contrária às regras da experiência comum ou às regras da lógica ou aos conhecimentos científicos tidos por adquiridos.
Ademais, esta “impugnação ampla” da matéria de facto não pode ser confundida com a simples discordância na apreciação da prova realizada pelo tribunal recorrido, dentro do espaço da livre apreciação da prova previsto no art.º 127.º do CPP, de acordo com as regras de experiência e livre convicção do julgador.
Tal liberdade não é discricionária, estando intimamente ligada ao dever de apreciar a prova com base em critérios de motivação objectivos e terá de ser sempre orientada pelo dever de perseguir a verdade material.
Assim, o princípio da livre apreciação da prova encerra em si duas ideias: numa dimensão positiva, traduzida na inexistência de critérios legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, numa dimensão negativa, traduzida na ideia de que não é permitida uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida.
A livre convicção do julgador terá de ser pessoal, mas também objectivável, com base em critérios de valoração racionais, lógicos e entendíveis pela comunidade pública.
Adoptados estes critérios, a verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável, resultará do convencimento do julgador, de acordo com a sua consciência e convicção, com base em regras técnicas e de experiência.
Seguindo tais critérios de apreciação da prova, nada obsta a que o juiz, para formar a sua convicção, valorize particularmente o depoimento de uma testemunha, em detrimento de testemunhos contrários, tenham, ou não, ligações ou ausência delas, com o arguido.
Como corolário do que se deixou dito, de acordo com a jurisprudência mais avalizada, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou quando viole, de forma manifesta, as regras de experiência comum ou o principio in dubio pro reo.
No caso, pese embora a recorrente não tenha cumprido, de forma rigorosa, o ónus que se lhe impunha, a verdade é este Tribunal conseguiu, do conjunto das conclusões, extrair com a certeza necessária quais são as questões que a recorrente pretende ver submetidas à apreciação deste Tribunal e alcançar as razões da sua discordância.
Antes do mais, cumpre-nos dizer que este Tribunal ouviu toda a prova gravada, constantes das duas sessões de julgamento e, inclusivamente, as alegações orais e últimas declarações da arguida.
Regressando, agora, aos fundamentos recursivos, a recorrente impugna os pontos 2, 4, 5, 6, 10, 11 e 12 da matéria de facto provada.
Assim:
i. quanto ao ponto 2 da matéria de facto provada, diz-se o seguinte: «2. Desde data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 16/09/2020, a arguida reside na habitação sita na ..., ... Amadora, com a sua mãe, EE, e com ambos os filhos, DD e FF, este último nascido em 19.08.2013.»
Alega a recorrente que o tribunal a quo não considerou o que consta do relatório social no sentido de que a arguida vive na habitação da progenitora desde 2019.
Em primeiro lugar, diremos que tal facto – a sua manutenção ou alteração - é absolutamente inócuo para a solução do caso em apreço.
Porém dito isto, mas tendo sido questionada a veracidade do mesmo, cumpre-nos dizer o seguinte.
Lido o relatório social e contrariamente ao alegado pela recorrente, em parte alguma se diz que esta mudou de habitação no ano de 2019. Ao invés, são aí mencionados os problemas por que passava o seu então companheiro, situação que a levou a mudar-se – ela e os seus filhos – para a casa da sua progenitora, desconhecendo-se, contudo, a data exacta em que tal ocorreu. Daí que o tribunal a quo - e bem - tenha concluído no sentido de que a arguida reside na habitação, sita na ..., ... Amadora, com a sua progenitora, “desde data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 16.09.2020”, data em que ocorreram os factos aqui em discussão.
Não há, consequentemente, qualquer razão para dar como não provado este facto, neste excerto.
ii. relativamente ao ponto 4, refere-se o seguinte: «4. No dia 16/09/2020, a hora não concretamente apurada, mas cerca das 9h, a arguida saiu da referida habitação, trancou a porta de entrada à chave e deixou DD juntamente com FF, sozinhos no seu interior, sem qualquer supervisão durante cerca de uma hora e trinta minutos, para se deslocar à Segurança Social, para resolver questões relacionadas com o subsídio parental.»
Diz a recorrente que a este ponto que “sempre será de considerar que da documentação junta aos autos, designadamente do Auto de Interrogatório de Arguido, que a Arguida foi à Segurança Social na data a que se reportam os factos, porque tinha a convicção de ter uma marcação para aquele dia, quando afinal era apenas para dia 26/10/2020” e que a conclusão que o tribunal a quo retirou no sentido de que “resulta da experiência de qualquer utente dos serviços públicos, em particular da segurança social, que o atendimento nem sempre é rápido, até pela muita afluência que normalmente registam. Deslocando-se após horário de abertura de tais serviços, não podia supor ser atendida rapidamente, porque necessariamente outras pessoas seriam atendidas antes de si. A arguida tão pouco gozava de qualquer prioridade no atendimento, como poderia eventualmente suceder, se os menores a acompanhassem. (…) Contando com o tempo despendido no percurso de ida e volta para casa, o expectável tempo de atendimento e de espera, a ausência da residência, nunca seria breve. Aliás na segunda data, ouvida em últimas declarações a Arguida admitiu que se encontrava fora da residência a cerca de uma hora e meia quando teve conhecimento da queda da filha”, concluindo que tal fundamentação se mostra “desprovida de sentido, por desconsiderar o engano referido pela Arguida em sede de primeiro interrogatório não judicial”.
Ora, desde já se avança que, pelas razões que abaixo se dirão, não assiste, uma vez mais, qualquer razão à recorrente.
Na verdade, ouvidas as declarações da arguida nas audiências de discussão e julgamento (as primeiras, na sessão de 20.11.2023, e as últimas, na sessão de ........2023), a mesma nunca reportou tal “suposto engano”.
Vejamos.
O auto de interrogatório a que a recorrente se refere foi prestado a ........2021 e decorreu perante órgão de polícia criminal.
Ora, dispõe o art.º 357.º, n.º 1, al a) que “A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida: A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas”.
Ouvidas as gravações, de forma integral, e lidas as actas de audiência de discussão e julgamento de 20.11.2023 e ........2023, para além de não ter relatado tal “engano”, em lado nenhum consta que a arguida tenha requerido a leitura de tais declarações (ou o que quer que fosse, aliás).
Assim, estava vedado ao tribunal a quo, como, por identidade de razões, também está vedado a este Tribunal atender e valorar o que aí consta.
Aliás, se tal alegação tivesse de facto ocorrido, a arguida nunca deixaria de dizê-lo e repeti-lo de forma reiterada, o que, como vimos, não sucedeu de todo.
Assim, não tendo o tribunal a quo tido conhecimento de “tal justificação(?)” nem lido o referido auto de interrogatório não judicial – como não podia, já que constituiria valoração de prova proibida -, a conclusão que a Mm.ª Juiz a quo extraiu e que fundamentou devidamente não merece qualquer censura, já que decorre das regras da experiência comum e da normalidade do suceder que há longas filas na Segurança Social, principalmente nas grandes cidades.
Termos em que se conclui carecer de razão à recorrente, mantendo-se inalterado tal matéria de facto provada.
iii. no que toca ao ponto 5, está escrito o seguinte:
«5. Cerca das 9h36, a ofendida DD deslocou-se à zona da varanda, fechada em marquise, com janelas a toda a volta, cujo acesso se pode fazer ou pela sala ou pelo quarto, e de forma não concretamente apurada caiu para fora desta, na via pública, de uma altura de cerca de cinco metros.»
Duas questões foram aqui colocadas pela recorrente:
a) o espaço de tempo em que a recorrente esteve ausente de casa e o tempo em que demorou a chegar ao hospital onde foi assistida a sua filha; e,
b) a altura entre a varanda da sua habitação e do solo da via pública.
a) Comecemos pela primeira questão.
A recorrente afirma que “apenas estava fora há 36 minutos” quando os factos ocorreram, “tendo regressado a casa assim” que deles teve conhecimento, tendo demorado nunca menos de 13 minutos a pé a regressar, tendo apenas permanecido 17 minutos na Segurança Social… “o tempo de verificar o engano no agendamento e de entretanto ser contactada para regressar a casa”.
Ora, quanto ao suposto “engano”, nada mais se nos oferece dizer para além do que ficou dito supra.
Já no que se refere ao espaço de tempo de “49 minutos” (cfr. ponto 14.º da motivação) que a recorrente afirma que esteve ausente, tal não tem correspondência à realidade, tanto mais que tal se mostrar infirmado pelas próprias declarações desta, já que declarou que soube do que sucedera pela sua mãe, passadas “1h30m a 1h40m”– cfr. resulta dos minutos 00:06:30 a 00:06:46 das declarações que prestou na primeira sessão de julgamento.
De todo o modo, mesmo que fossem 49 minutos ou ainda menos, tal não teria a relevância que a recorrente pretende atribuir-lhe.
No que respeita à hora em que deu entrada no serviço de urgência do hospital para ver o estado da sua filha, não se consegue compreender qual o alcance que a recorrente lhe quer conferir, pois que tal é absolutamente irrelevante para a decisão da causa.
A arguida ausentou-se da sua habitação e deixou ambos os filhos menores de idade – um com 4 e outro com 7 – sozinhos e entregues à sua sorte, sendo que a DD acabou por cair da varanda para a via pública.
b) E quanto à altura entre a varanda e o solo da via pública?
O que se nos oferece dizer a este respeito, em face do que consta do auto de notícia, conjugado com as declarações da própria arguida e os depoimentos prestados pelas testemunhas II e HH.
Vejamos.
Para demonstração das circunstâncias de tempo e lugar, diz o tribunal a quo, na sua motivação, que «teve-se em atenção o auto de notícia de fls. 4, uma vez que os agentes da PSP foram chamados ao local de imediato, em conjugação com a data e hora de entrada da menor nos serviços de urgência do Hospital de Santa Maria, para onde foi encaminhada, pelos bombeiros, chamados ao local».
Por seu turno, analisado o auto de notícia subscrito pela testemunha II (agente da PSP), verifica-se que do mesmo, além do mais, fez constar o seguinte: «Na tentativa de perceber o sucedido, contactei com a Sra. HH, associada em campo próprio como testemunha, que me informou que a DD e o seu irmão FF, associado em campo próprio como vítima, ficam em casa sozinhos e trancados quando a sua mãe sai de casa, e que hoje, a DD caiu da varanda da sua residência, que se situa no primeiro andar, com cerca de 5 metros de altura para a via pública».
Mais disse esta testemunha que se deslocou até ao 1.º andar para ir buscar o menor (irmão da vítima) que se encontrava no interior da habitação, o que não logrou dado a porta “estar trancada”, sendo que daí foi retirado pelo ... mediante o recurso a uma escada. Mais esclareceu que acompanhou a vítima até ao hospital.
Daqui se infere, desde logo, que esta testemunha não procedeu à medição da altura (entre a varanda e a via pública), a qual ficou, no entanto, a constar do auto por indicação da testemunha que ouviu e identificou como sendo HH.
Aqui chegados e antes de prosseguirmos para a análise do depoimento prestado, em audiência de julgamento, pela arguida e pela testemunha HH, importa descortinar qual o valor probatório a atribuir ao auto de notícia, já que a doutrina e jurisprudência se dividem quanto a tal questão.
Como se diz no sumário do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.11.2022, cujo entendimento sufragamos: «I – (…) há quem entenda que se integra no âmbito do artigo 169º do Código de Processo Penal, de forma a atribuir-lhe um valor qualificado por via da sua equiparação a documento autêntico, nos termos dos artigos 363º, n.º 2, e 369º do Código Civil, e quem entenda que não tem a força probatória que o artigo 169º do Código de Processo Penal confere aos documentos autênticos e autenticados extra processo, é tão só um documento intra-processo, fundamental no processo penal porque traz a notícia de um crime, mas com um valor probatório muito limitado e sujeito à livre apreciação do julgador; II – O auto de notícia, exarado com as formalidades legais, por autoridade pública nos limites da competência que lhe é atribuída por lei constitui um documento autêntico (art.º 363º, n.º 2, do Código Civil). Não pode, porém, confundir-se a natureza do documento com o problema da sua fé em juízo, no específico âmbito do processo penal e por força dos princípios acolhidos no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, atinentes às garantias da defesa. Isto, naturalmente, sem prejuízo de os documentos autênticos só fazerem prova plena dos factos atestados com base nas perceções do documentador e dos que se passam na sua presença (art.º 371º, n.º 1, do Código Civil) e de, no que se refere ao processo penal, ser admitido o contraditório (artigos 165º, n.º 2, e 327º, n.º 2, do Código de Processo Penal). III - Inquestionável, portanto, é que o valor probatório do auto de notícia, como documento autêntico nos termos das disposições conjugadas dos artigos 169º do Código de Processo Penal e 371º, n.º 1, do Código Civil, se circunscreve aos comportamentos presenciados e ao que foi percecionado diretamente pela autoridade policial, não se estendendo a outros contributos, mormente às declarações de terceiros aí eventualmente vertidas, nomeadamente as referentes ao relato dos eventos, por parte do queixoso, do suspeito ou de testemunhas. De resto, a valoração de declarações e depoimentos (formalmente) produzidos, na qualidade de lesado, de arguido ou de testemunha, antes da audiência de julgamento, e aqui reproduzidos, apenas pode ocorrer nos casos expressamente previstos e desde que verificados os necessários pressupostos, conforme estipulado nos artigos 355º, 356º e 357º do Código de Processo Penal.»(6) (sublinhado nosso).
Aderimos, na íntegra, à argumentação aqui aduzida.
Isto significa que, tendo a altura sido indicada pela testemunha HH, mas que não se relacionam directamente com o relato do evento, que aliás esta não presenciou, e tendo o subscritor do auto de notícia estado presente e visto o local, não obsta à conclusão que o tribunal a quo retirou.
Dito de outo modo, pese embora o Sr. Agente, II não tenha procedido à medição da altura existente entre a varanda e o solo, a verdade é que esteve presente tendo, pois, uma noção aproximada da mesma, situação que o levou a dar como certa aquela aproximação aos cinco metros de altura.
Donde se conclui que o tribunal a quo podia, como devia e fez, valorar o auto de notícia, do qual consta a altura aproximada.
Mas mais.
Do fotograma retirado do Google maps, que se mostra junto aos autos e foi exibido à arguida na audiência - cfr. resulta da acta de 14.12.2023 e se encontra sob a Ref.ª ... da mesma data -, vê-se, nitidamente, a habitação da arguida e a respectiva varanda fechada em marquise, bem como a habitação da testemunha HH que, de facto, se situa a um nível bem superior do solo, apresentando-se, assim, como devidamente justificada a altura referida e considerada no auto de notícia.
Além disso, vejamos o que nos trouxeram as declarações da arguida e o depoimento da testemunha HH ouvidas na audiência de julgamento e que, como já se disse anteriormente, ouvimos integralmente.
A arguida afirmou que a DD tinha, à data dos factos, cerca de 1 metro de altura.
Tratando-se de uma habitação antiga, previa o art.º 65.º, n.º 1, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) no seu então Capítulo III - Decreto-Lei n.º 38382(7) – que “A altura mínima, piso a piso, em edificações destinadas à habitação é de 2,70 m (27M), não podendo ser o pé-direito livre mínimo inferior a 2,40 m (24M)”.
Sendo que há muito está previsto que uma guarda segura para varandas deve ter, pelo menos, 110 cm de altura, desde o solo até ao topo da guarda, medida essa que dificulta a transposição da guarda por crianças com menos de 4 a 5 anos, e simultaneamente, aumenta a protecção contra eventuais quedas por desequilíbrio para adolescentes e adultos mais altos(8).
Ora, como disse a testemunha HH, o rés-do-chão da sua habitação fica num nível superior à via pública e é “recolhido …recuado” [minutos 00:04:34 a 00:05:37], sendo que os tectos das habitações todas - que conhece por ter nascido no prédio [minutos 00:07:30 a 00:07:32] -, têm uma altura de 2,70 metros, por se tratarem de “habitações antigas” – o que, aliás, se coaduna como supra mencionado fotograma.
No que toca à varanda da habitação da arguida esclareceu que a mesma está fechada com uma marquise de vidro [minutos 00:06:25 a 00:06:46], local onde as crianças brincam (“atrás do vidro”). Mais disse que a parede que constitui a guarda para a varanda (antes de ser fechada com a marquise de vidro) é mais alta que a DD, dada também a altura dos tectos. Mais afirmou que qualquer criança “com agilidade conseguia empoleirar-se, fazer força e subir” [minutos 00:08:10 a 00:08:57].
Ora, do que se acaba de dizer, é manifesto que a conclusão da recorrente que a varanda se situava a 2,70m do solo da via pública (cfr. art.º 26.º da motivação) não tem qualquer correspondência à realidade e é desprovida de sentido, até face ao que consta do auto de notícia e do fotograma supra referido, sendo certo que a frase que a recorrente transcreveu está totalmente desgarrada da parte do restante relato.
Na verdade, a testemunha afirmou:
i. residir no rés-do-chão “alto” em relação à via pública, desconhecendo, no entanto, qual a altura concreta, mas assegurou que não fica junto ao solo da via pública;
ii. cada tecto de cada habitação – que conhece - tem 2,70 metros de altura;
iii. a estrutura da parede da varanda (onde se encontra aposta a marquise de vidro) é mais alta do que a altura da DD (à data dos factos);
iv. mesmo com a marquise e, desde que a janela estivesse aberta, qualquer criança ágil lograria empoleirar-se e subir.
Concluindo, diremos que, se cada tecto de cada habitação tem 2,70 metros, se a guarda varanda tem, pelo menos, 1,10 metros e se a habitação da testemunha HH, que reside no rés-do-chão “alto” por baixo da casa da arguida (levando-se em conta, também, a altura do seu tecto), tudo nos leva a crer – em conjugação com o fotograma - que a percepção que as testemunhas HH e KK tiveram se mostra acertada (“cerca de 5 metros”).
Argumenta, ainda, a recorrente que a queda só pode ter ocorrido a 2,70 metros de altura e não a 5 metros, já que consequências advenientes para a DD seriam “mais gravosas” (cfr. art.º 28.º da motivação).
Esta argumentação é falaciosa.
Por um lado, por tudo quanto já expusemos supra.
Mas mais.
Tudo depende, na verdade, da forma como a criança caiu, onde caiu e que parte do corpo foi em primeira-mão atingida.
É que, dizem-nos a regras da experiência comum e da normalidade do suceder, que a resposta não é assim tão simples e óbvia.
Na verdade, cada queda tem as suas próprias particularidades e cada corpo também, podendo quedas algo semelhantes terem resultados totalmente distintos, mais ou menos gravosos.
Ademais, no caso que nos ocupa, só a testemunha JJ observou a queda de “um vulto”, não tendo visto a queda na sua totalidade, ou seja, junto ao solo, pois que decorriam obras, situação que limitou, naturalmente, a sua observação e a levou a contornar as obras e inteirar-se do que tinha acabado de ver.
Dito isto, não se nos afigura descabido, como adiantou a testemunha HH que, algo ali colocado possa até ter amortecido o corpo da DD, já que decorriam obras de requalificação naquele mesmo local, o que, no entanto, não se logrou apurar.
Nestes termos, a prova indicada pela recorrente não tem a virtualidade de impor decisão diversa da recorrida.
iv. em relação ao ponto 6, diz-se o seguinte: «6. DD ficou sentada no chão, a sangrar da boca e foi transportada para o Hospital de Santa Maria – Centro Hospitalar de Lisboa Norte, E.P.E., local onde deu entrada às 11h10m com pulseira laranja – muito urgente, acompanhada por um agente da PSP, uma vez que a progenitora não se encontrava no local para a acompanhar no momento da deslocação e que só ali chegou às 11h35m..»
No que respeita a este facto, cumpre dizer que o mesmo é absolutamente inócuo para o resultado pretendido pela recorrente.
De todo o modo, o mesmo resulta do auto de notícia – sendo que, por razões de economia processual, remetemos para as considerações supra tecidas quanto ao seu valor probatório - e foi percepcionado pela testemunha II que acompanhou a menor ao Hospital, como afirmou na audiência, e que anotou a hora de chegada da arguida, pois que teve, forçosamente, de proceder à sua identificação, por estar em causa a eventual prática de um crime.
De todo o modo, a sua hora de chegada – inscrita ou não nos registos clínicos - é absolutamente irrelevante para a decisão da causa.
Termos em que este facto se mantém inalterado.
v. finalmente, no que respeita aos pontos 10, 11 e 12, entende a recorrente que não podem ser dados como provados. Segue-se, pois, a transcrição de tais pontos:
«10. Mais sabia que na residência existem os mais variados perigos, como parapeitos de janelas e de varandas que estão facilmente ao alcance das crianças, e que ao deixá-la ali sozinha sem supervisão, não impedia o risco de a menor delas se abeirar, caindo, e sofrendo ferimentos e até a morte. 11. Sabia que ao assim agir punha em perigo a vida da sua filha menor de idade, com tal se tendo conformado. 12. Com as descritas condutas a arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.»
Alega a recorrente que “a Arguida não estava ciente de que a menor e o irmão não poderiam ficar sozinhos sem casa qualquer supervisão… não tinha, de todo, ideia que estes estariam exposto aos perigos decorrentes do alcance das janelas, parapeitos e das varandas… também não agiu de forma deliberada, livre e consciente bem sabendo que a sua conduta era punida por lei”, até porque“antes dos acontecimentos em causa, já havia deixado por três vezes as crianças em casa sozinhas, sem que nada tivesse acontecido; adotando sempre o procedimento / estratégia de as adormecer previamente para que não dessem pela sua falta…”, tendo trancado as portas de acesso à varanda antes de sair de casa, sendo que “a sua ausência de casa era muito breve”.
Mais alegou que “não sabia que era crime, à data, deixar os menores sozinhos em casa”…”atendendo à raiz cultura da Arguida, porquanto na sociedade angolana é normal e natural as crianças mais novas fiquem aos cuidados das crianças mais velhas”.
Quanto ao argumento de defesa sócio-cultural ou “culture defense”(9)(10), há que dizer que se este reveste em si, naturalmente, uma importância a que os tribunais não podem ficar, de todo, alheios – tanto mais que Portugal, além de ter sido, e ainda ser, um país de grande emigração, também é um local de destino forte de imigração.
No caso, porém, se é verdade que a arguida é de nacionalidade angolana, o certo é que a mesma vive em Portugal desde os seus 8 anos de idade, onde estudou até ao 9.º ano de escolaridade, vivendo e convivendo com a comunidade portuguesa (e outras, certamente), estando, por isso, ciente e consciente da regras da sociedade em que vive há tantos anos (cfr. nota de rodapé 10).
Além do mais, há que dizer que, pese embora a arguida tenha afirmado tal “ignorância” em sede de audiência, a verdade é que, no final, acabou por manifestar o seu arrependimento e abalo pelo resultado, dizendo que “foi um grande erro deixá-la em casa…nunca mais deixei as crianças sozinhas em casa”, o que nos leva a concluir que tem bem consciência do perigo que criou aos filhos.
Ou seja, de tudo quanto resultou da prova, aliadas às próprias declarações da arguida, no que respeita à forma como actuou, que esta tem, naturalmente, consciência dos actos que praticou, e fundado em presunção judicial decorrente das circunstâncias que envolveram sua a actuação e das regras da normalidade e experiência comuns, consideradas no âmbito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127.º do CPP, como o fez o tribunal a quo.
Aliás, diga-se que, de forma absolutamente transparente e clara, o tribunal a quo chegou a tal conclusão, que - acrescentamos nós - não poderia ser outra, ou seja, no sentido de que a arguida (…)previu que a sua conduta omissiva era objectivamente idónea a perigar a vida da filha, e, ainda assim, agiu da forma descrita, é porque, pelo menos, se conformou com tal possibilidade” - obviamente que a arguida - como também salienta, o tribunal a quo - não quis magoar a filha; no entanto, estava ciente do perigo que lhe criou, deixando-a com o irmão, também menor de idade, e a quem não competia, de todo, cuidar.
Donde se conclui que a recorrente estava bem ciente de que a sua conduta era idónea a criar perigo para a vida da filha – como de facto sucedeu – e conformou-se com o resultado, cuja possibilidade previu.
Temos em que, também, soçobra o recurso nesta parte. 2. Enquadramento jurídico-penal: inexistência do crime de exposição ou abandono, p. e p. pelo art.º 138.º, n.ºs 1, al. b) e 2 do Código Penal (doravante CP):
Assente que se mostra, definitivamente, a matéria de facto provada nos presentes autos, importa averiguar do preenchimento – ou não - dos elementos objectivos e subjectivos do crime de exposição ou abandono e, em caso afirmativo, se se verifica a existência de um erro sobre a ilicitude, como alega a recorrente.
Diz-nos a sentença, em termos de enquadramento jurídico-penal, que [transcrição]: «(…) Nos termos do citado normativo, quem colocar em perigo a vida de descendente ou ascendente, adoptante, ou adoptado, abandonando-o sem defesa, é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos, sempre que sobre o agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir. Trata-se de um crime de perigo concreto, sendo o bem ameaçado a vida. Para que o tipo seja preenchido, necessário se torna que a vida seja colocada em perigo com a conduta do agente. Dito de outra forma, “o perigo deve autonomizar-se da conduta do agente, sendo um resultado desta.”- cfr. Fernando Silva, Direito Penal Especial, Os crimes Contra as Pessoas, Quid Iuris, 4.ª Edição, pág. 180. A verificação de um perigo concreto não se cumpre com a circunstância de existirem pessoas ou coisas na “zona de perigo” criada pelo agente ou não por este removida. Não basta, assim, que a conduta seja abstracta e objectivamente perigosa e nessa medida idónea a provocar uma lesão. É essencial que a sua potencialidade lesiva se revele nas circunstâncias do caso. Os maiores problemas surgem, porém, quando se coloca a questão de saber como há-de configurar-se ou como deve comprovar-se esse resultado de perigo concreto, devendo seguir-se a posição assumida por Roxin de que “existe um perigo concreto quando o resultado lesivo não se produz só por casualidade”, devendo entender-se esta “não como o inexplicável segundo as ciências naturais, mas sim como uma circunstância em cuja produção não se pode confiar”. ( Acórdão da Relação de Lisboa de 31.10 2006, processo n.º 5794/2006-5, Relatora- Filomena Cunha in www.dgsi.pt, negrito nosso). Entre o resultado de perigo e a conduta deve existir um nexo de causalidade adequada, assente nas regras da experiência e no normal acontecer dos factos. Como refere Marta Rodrigues, citada por Miguês Garcia e Castela Rio, a previsibilidade do resultado deve ser efectuado através “de um juízo social comum à cerca do perigo. O perigo pressupõe que a probabilidade do dano seja inteligível pela consciência colectiva. Haverá perigo “quando na contextualidade concreta a comunidade, representada pelo julgador, no momento a que se reporta o juízo de perigo- o momento da entrada do objecto do bem jurídico no horizonte causal da acção do agente, e de acordo com um observador dotado de todas as circunstâncias de facto e de todas as leis cognoscíveis por um “homem plenamente informado” nesse momento, e que assim valora aquelas dimensões que densificam o conceito de perigo, faz um juízo sobre a ocorrência do dano”. Por outro lado, a “norma desenha-se, ademais, como um crime de perigo singular (por oposição a um crime comum): só a pessoa abandonada ou exposta é visada pelo perigo.”- Cfr. Miguês Garcia e Castela Rio, Código Penal, Parte Geral e Especial, Almedina, 3.ª Edição, pág. 625. Centremo-nos agora sobre os diferentes modos de execução do crime. Pela exposição, o agente submete a vítima a uma situação perigosa, deslocando-a de uma situação onde está segura, ou pelo menos onde a sua vida não se encontrava ameaçada (deslocação espacial). Ou seja, a “vida da vítima, anteriormente à conduta do agente não se encontra em perigo, o qual apenas surgequando o agente a submete perante aquela situação de facto.”. Mas essa exposição também pode ocorrer com a deslocação não da vítima, mas dos meios de salvamento. Essencial é que a vítima fique efectivamente em perigo, pelo que há que ter em atenção não só o local para onde é deslocada (perigosidade objectiva), mas também as concretas características e capacidades desta para afastar aquele (perigosidade subjectiva). Já o abandono consiste na omissão doas actos adequados a salvara a vítima, quando o omitente tenha um dever de garante. Aqui, o perigo já existe, criado pela vítima, pelo terceiro, ou pelo acaso, mas exacerbado pela conduta do agente, que o não remove, apesar de ter o dever de o fazer atenta a relação especial que com a vítima mantém, traduzido no dever de guardar, vigiar ou assistir. Neste sentido, trata-se de um crime específico próprio. Assim, enquanto no primeiro modo de execução a tónica se centra na debilidade da vítima para, por si só, debelar o perigo em que entra, no segundo a censurabilidade reside na violação do dever de garante. De acordo com Damião da Cunha, em anotação ao preceito (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág.120 e 121), aquele dever “tem de ser pré-existente à situação de abandono (e consequente colocação em perigo) e deve estar em directa conexão com a ausência de defesa da vítima.” Dever esse que, no caso da existência de uma relação familiar, em virtude da filiação ou adopção, implica um juízo de maior censurabilidade da conduta, por ser mais desvaliosa, atenta a solidariedade natural e cuidado que deve existir no âmbito de tais relações. Existe entre pais e filhos uma posição de garante, por força de deveres de protecção e assistência. Sem prejuízo da “necessidade de que os filhos gozem, segundo a idade e condição, de um âmbito de liberdade e responsabilidade na condução da vida”, os pais têm em relação a estes um dever de garante pessoal, de protecção e assistência (cfr. Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Gestlegal, página 1093 e 1094). Trata-se igualmente de um crime doloso, bastando para o seu preenchimento o dolo eventual, mas apenas quanto ao perigo criado, extravasando o âmbito de tal dolo a aceitação do resultado morte (pois nesse caso o que esta em causa é um dolo homicida, não enquadrável no tipo em referência). Para que o crime se verifique é necessário que o agente represente que do abandono ou exposição resulta a concretização de um perigo para a vítima. Revertendo ao caso dos autos, temos que a arguida deixou a filha DD em casa, sem qualquer supervisão, na companhia do irmão, ele próprio um menor de 7 anos de idade. A arguida não desconhecia que os filhos, pela sua idade, não tinham a maturidade necessária para ficarem sozinhos, atento o risco de assumirem comportamentos objectivamente perigosos, quer esteja em causa a manipulação de objectos cortantes ou fontes de combustão, quer, como no caso vertente, o abeirar-se de uma janela e o inclinar-se sobre uma varanda. E esse perigo já existia em termos abstractos, mas densificou-se quando a arguida se removeu voluntariamente do local onde a menor se encontrava, com a consequente preterição do dever de vigilância que sobre si incidia. AAnão pôde ter deixado de representar, como aliás fez, que deixou a filha sem supervisão, num local onde vários perigos se encontram à espreita, entre os quais a queda de uma varanda facilmente acessível. Perigos que nem a menor, nem o seu irmão, também uma criança, seriam capazes de reconhecer. É essa diferença de intelecto e experiência que fundamenta, em grande medida, o dever de vigilância e de garante que sobre aquela, como mãe, incide. Apenas a sua supervisão, ou aquela efectuada por um adulto, lograria a admoestação certeira e oportuna contra o aproximar de uma janela e contra a tentativa de trepar ou de se içar sobre um parapeito. A vigilância do comportamento da menor, que apenas a proximidade física garantiria, era adequada a evitar o risco da assunção de comportamentos temerários por esta. A produção do resultado de perigo é objectivamente previsível, assentando nas mais elementares regras da experiência comum, estando para o mesmo alertado uma pessoa minimamente avisada. Dos pais, responsáveis pelo surgimento de uma nova vida, espera-se que dela cuidem, criando e mantendo um ambiente securizante, protegendo-a até ter meios de, por si só, e fora da asa materna e paterna, singrar. Todavia, a arguida agiu da forma descrita e com o seu comportamento pôs efectivamente em perigo a vida e da sua filha, o que representou, conformando-se, não obstante, com tal resultado. Agiu, assim, a arguida com dolo eventual (artigo 14.º, n.º 3, do CP). A arguida podia e devia ter agido de modo diverso, mas não fez, e por isso, é passível de um juízo de censura. Não se verificam aqui quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. Pelo exposto, cometeu a arguida o crime de abandono agravado, p. e p. pelo art.º 138.º, n.º 1, al. b) e 2 do CP.»
Perante tão assertiva análise concreta dos factos e aplicação do direito aos mesmos, que damos aqui por integralmente reproduzida, pouco mais há a dizer, a não ser que se verificam, de facto, todos os elementos do tipo em causa, estando, forçosamente, afastada uma actuação negligente consciente por banda da arguida, como esta alega (sendo certo que até já havia actuado, desta forma, em três outras ocasiões distintas).
Pelo que, improcede, nesta parte, o recurso. 3. Do erro sobre a ilicitude:
Defende a recorrente que “a arguida, no caso em concreto, agiu com erro sobre a ilicitude” [conclusão JJ] e que tal erro não é censurável [art.º 110.º da motivação], situação que “deve afastar o dolo”.
Ora, desde já se adianta que, pelas razões que já expusemos supra e face à fixação definitiva da factualidade provada, não assiste qualquer razão à recorrente, porquanto a arguida quis actuar da forma por que o fez, conformando-se com o resultado, cuja possibilidade representou, e fê-lo, de modo consciente, bem sabendo que a sua conduta era - e é - proibida por lei.
Vejamos, no entanto, o que se nos oferece dizer.
Antes do mais, há que salientar que a recorrente, nas suas motivações, confunde o erro sobre as circunstâncias do facto, previsto no art.º 16.º do CP(11) e o erro sobre a ilicitude, estabelecido no art.º 17.º do mesmo diploma legal.
Uma vez que nas conclusões a recorrente apenas se reporta ao segundo, limitar-nos-emos a abordar este último (“erro”), porquanto, como dissemos inicialmente “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso”.
Estabelece o art.º 17.º do Código Penal que: “1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável. 2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.”
Ora, sem grandes considerações, até por serem desnecessárias por tudo quanto explanámos anteriormente, diremos que o comum dos cidadãos não ignora que é proibido deixar crianças de tenra idade sozinhas e sem qualquer adulto por perto que possa deles cuidar e proteger.
E reitera-se que a arguida já vive em Portugal há mais de duas décadas – ou seja desde o século passado, mais propriamente dito, desde o ano de 1997), bem sabendo e conhecendo as regras que regem esta sociedade.
E no caso, mesmo que, por mera hipótese – o que não sucede, como vimos - fosse considerado erro sobre a ilicitude, este seria sempre censurável (sendo certo que, uma eventual atenuação especial da pena, seria sempre facultativa e não de imposição legal – cfr. n.º 2 do normativo em causa).
Do que decorre, também aqui, a improcedência do recurso. 4. Da medida da pena de prisão aplicada:
Importa, agora, apreciar da medida da pena graduada em 1.ª instância, por a recorrente a considerar excessiva, devendo ser especialmente atenuada em razão do erro sobre a ilicitude ou, assim não se entendendo, ser reduzida a mínimo legal sem regime de acompanhamento.
No que respeita à eventual aplicação de uma atenuação especial da pena, o conhecimento de tal questão ficou irremediavelmente prejudicado face ao decidido no ponto anterior.
Em matéria de escolha e determinação da medida da pena, a sentença recorrida discorreu o seguinte: «O crime de exposição ou abandono agravado, p. e p. pelo artigo 138.º, n.º 1, al. b) e 2, do CP é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos. Na ponderação da medida concreta da pena, o Tribunal tem em atenção as necessidades de prevenção geral, as necessidades de prevenção especial, a medida da culpa e as demais circunstâncias agravantes e atenuantes que no caso se verifiquem. Vejamos então. As necessidades de prevenção especial não deixam de ser relevantes. Com efeito, os acidentes domésticos são uma das principais causas de morte de menores no nosso país. Importa consciencializar os perigos a que os menores, sem supervisão, ficam expostos em casa, dissuadindo a prática de comportamentos similares àqueles que constituem objecto dos presentes autos. As necessidades de prevenção especial são reduzidas. Com efeito, a arguida encontra-se integrada, não lhe é conhecida a prática de qualquer crime, pelo que tudo leva a crer que se trata de um facto isolado na sua vida, sendo reduzido o risco de repetição futura de comportamentos simulares. Convicção que surge reforçada pela confissão pronta da generalidade dos factos e, sobretudo, o seu genuíno arrependimento. A culpa traduz um juízo de censura por o agente não se ter motivado na norma quando podia e deveria tê-lo feito, sendo o substrato ético da punição e o seu limite (artigo 40.º, n.º 2, do CP). O juízo de censura de que é merecedora não se pode desligar do período de tempo que esteve ausente e que era já previsível quando resolveu deixar a filha, sem supervisão, sozinha em casa, acompanhada apenas do irmão, uma criança de apenas 7 anos, se considerarmos o motivo da deslocação. A favor da arguida, a ausência de antecedentes, a confissão e o facto de se encontrar integrada. Contra, a intensidade da violação do seu dever de garante. Tudo ponderado, o Tribunal entende fixar a pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão. A pena de prisão deve ser aplicada como última ratio. Nos termos do disposto no art.º 50.º, n.º1, do CP, “ o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Na determinação da suspensão da pena de prisão, “o Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” (Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, em anotação ao art.º 50.º, Editora Reis dos Livros). Acrescenta o n.º 2 que o Tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova. O período da suspensão pode ser fixado entre 1 ano e cinco anos (art.º 50.º, n.º 5). Vejamos então. São conhecidos os efeitos criminogéneos do cumprimento de pena de prisão efectiva. A arguida encontra-se integrada, trabalha e tem dois filhos que precisam e dependem de si. Afigura-se, face ao supra exposto, que o cumprimento de pena de prisão efectiva é desproporcional às necessidades de prevenção, as quais podem ser suficientemente satisfeitas com a suspensão da execução da pena de prisão, desde que acompanhada de regime de prova, que inclua, entre o mais, o desenvolvimento de competências parentais. Com efeito, apesar de não termos dúvidas sobre o amor que tem pelos filhos, nem do arrependimento que sente, a verdade é que a falta de uma confissão integral (no caso quanto à consciência da ilicitude), faz recear que a mesma não se encontre totalmente capacitada do alcance e extensão do seu dever de garante e dos cuidados que mercê deste, deve prestar aos filhos. Pelo exposto, suspendo a execução da pena de prisão acompanhada por regime de prova (artigo 53.º e 54.º, do CP), por igual período, não se justificando uma maior dilação da mesma.»
De acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa – art.º 40.º, n.ºs 1 e 2 do CP) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – art.º 71.º, n.º 1 do CP), deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.
Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os fatores do caso, previstos nomeadamente no n.º 2 do referido art.º 71.º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da acção e culpa do agente.
Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena, princípio este tendencial uma vez que podem apresentar incompatibilidade.
Sopesando todos os factores enunciados pelo tribunal a quo, considera-se adequado, crendo que assim se satisfazem as finalidades de tutela dos bens jurídicos, sem desatender ao máximo que nos é fornecido pela culpa da arguida a pena que lhe foi aplicada.
E como se diz, de forma translucida e clara, no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.10.2024(12) desta 9.ª Secção «(…) fixados os factos, o tribunal de recurso, em sede de determinação da pena, não decide como se inexistisse uma decisão de primeira instância, isto é, não é de um re-julgamento aquilo de que aqui se trata, donde resulta que pode e deve o tribunal de recurso intervir na pena, alterando-a, quando são detetadas incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância ou na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide o tribunal de recurso, destarte, como se o fizesse ex novo, não podendo assim deixar de reconhecer-se alguma margem de atuação ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar. No fundo, a medida concreta da pena apurada em primeira instância é passível de alteração quando se mostre que foram desrespeitados os princípios gerais e as operações de determinação impostas por lei, a indicação e a consideração dos fatores de medida da pena, mas não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada (…)».
Neste sentido, veja-se, ainda, o que refere a Sr.ª Juíza Conselheira, Dr.ª Ana Barata Brito, no sumário do Acórdão do STJ de 31.05.2023(13): «I - O recurso mantém o arquétipo de “remédio jurídico” também em matéria de pena, não cabendo julgar ex novo e proferir uma nova decisão sobre a pena, como se inexistisse a de primeira instância. II - Daí que o Supremo tenha vindo a considerar, na esteira da doutrina de Figueiredo Dias, que a sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, que desacate operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”» (sublinhado nosso).
Face ao exposto a pena aplicada será integralmente mantida, bem como o regime de prova a que ficou sujeita, improcedendo, consequentemente, o recurso.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UCS (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e arts. 8.º, n.º 9, do RCP, com referência à Tabela III), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Lisboa, 24 de Outubro de 2024
Marlene Fortuna
Paula Cristina Bizarro
Isabel Maria Trocado Monteiro
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1. cfr. Acórdão do STJ, de 15.04.2010, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
2. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão n.º 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28.12.95.
3. Cfr. Pereira Madeira, art.º 412.º/nota 3, in “Código de Processo Penal Comentado”, Coimbra, Almedina, 2021, 3.ª Ed., pág. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
4. Alberto dos Reis, in “Código Processo Civil Anotado,” Vol. IV, págs. 566 e segs.
5. Referente ao processo n.º 224/13.0PTFUN.L1-5, disponível em www.dgsi.pt/jtrl.
6. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/d7c35421dee5c1988025890800393f07?OpenDocument&Highlight=0,crime,de,viola%C3%A7%C3%A3o,de,domic%C3%ADlio,artigo,190%C2%BA
7. Diário do Governo n.º 166/1951, 1º Suplemento, Série I de 1951-08-07 (entretanto revogado).
8. http://www.adurbem.pt/content/view/746/208/
9. Ebook do Centro de Estudos Judiciários: “Multicultural e Direito - Janeiro de 2022”, págs. 41 e segs., publicado inhttps://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=vhSIKXCQrc8%3d&portalid=30
10. Cfr. projecto interdisciplinar e Investigação “InclusiveCourts – Igualdade e diferença cultural na prática judicial portuguesa: Desafios e oportunidades na edificação de uma sociedade inclusiva” -, cuja sessão de encerramento, a 28.10.2022, teve a participação, como oradora, na parte “A jurisprudência multicultural em matéria penal”, a ora relatora, e no qual se discutiu a relevância das questões sócio-culturais na área criminal e em que termos - acessível na internet - sem nunca esquecer os direitos humanos. Na verdade, como se diz na obra indicada na nota 9 págs. 44-45 “Excluir os referentes culturais da consideração das motivações dos indivíduos e do exercício de ponderação de valores que os tribunais fazem em qualquer caso concreto, seja multicultural ou monocultural, pode, por isso, representar uma violação do princípio da igualdade (…). Paradoxalmente, é também por referência ao princípio da igualdade e à proteção dos direitos fundamentais das pessoas pertencentes a minorias que os críticos justificam as suas objeções de fundo à culture defence e à admissibilidade de informação cultural em tribunal. A culture defence foi inicialmente pensada para ajudar sobretudo os imigrantes recém-chegados a justificar comportamentos tidos como lícitos e até obrigatórios nas suas comunidades de origem, mas considerados crime na sociedade de acolhimento. Cultura, neste contexto, designava apenas os quadros de referentes e as práticas dos outros, estando à partida excluído que os membros da cultura maioritária fizessem uso de argumentos culturais e sendo de prever que os imigrantes deixassem de poder fazer uso destes argumentos logo que tivessem assimilado os valores da sociedade de acolhimento.”
11. Como se diz no Ac. do TRP de 25.02.2015, referido em anotação ao art.º 17.º do CP, na página https://www.pgdlisboa.pt: “I. O erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade que exclui o dolo (art.º 16º 1 do CP) apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos. II. Aos crimes cuja punibilidade se pode presumir que seja conhecida por todos os cidadãos, o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao art.º 17º CP, em caso em que a culpa só é afastada se a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável. III. A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social.”
12. Referente ao processo n.º 563/23.2PZLSB.L1 desta 9.ª Secção.
13. Publicado em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/008771ac650c108e802589c1002e86a9