REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
LEGITIMIDADE PASSIVA
TUTOR
MENOR
CURADOR AD LITEM
Sumário

(Sumário da responsabilidade do relator)
I- No que respeita à legitimidade passiva a observar na acção de revisão de sentença estrangeira, nada se encontra legislativamente consagrado, quanto à intervenção, na mesma, de pessoas distintas e diversas daquelas que tenham sido parte na sentença revidenda
II- Nas acções em que está em causa o reconhecimento- e consequente eficácia em Portugal- de decisões que conferem poderes ao Autor ou Autora/Autores por decisão estrangeira enquanto tutor/a ou tutores de menores em processo de tutela relativos a menores ou e a maiores em situação de dependência, equivalentes ao nosso processo de maior acompanhado o Autor/a ou Autores- a quem esses poderes foram conferidos por aquelas decisões estrangeiras a produzir efeitos em território nacional, decisões essas cuja revisão é meramente formal e não de mérito como se sabe e nas quais não figuram como partes os pais biológicos-, têm legitimidade para, por si só, intentarem essas acções.
III- Os menores e os maiores acompanhados sujeitos a representação só podem estar em juízo por intermédio dos seus representantes, excepto quanto aos actos que possam exercer pessoal e livremente (art.º 16/1) e se o incapaz não tiver representante geral deve requerer-se a nomeação de ao tribunal competente sem prejuízo da imediata designação de um curador provisório pelo juiz da causa (art.º 17/1 do CCiv). Pela simples análise da decisão revidenda verifica-se que, em razão de problemas físicos e da incapacidade dos pais biológicos, foi nomeado tutora à Criança C … na pessoa da Autora, que é quem cuida da mesma, a qual, face ao direito guienense detém os poderes de representação, competindo-lhe “desempenhar e cumprir com todas as responsabilidades parentais que cabiam aos progenitores...”; assim sendo, em razão da decisão revidenda (que não evidencia qualquer situação de conflito entre os pais biológicos e a ora Autora)  quem passou a ter poderes de representação da menor foi a Autora, cessando os dos pais biológicos, que não têm que ser citados, mas não se vislumbra razão pela para que se nomeie um curador ad litem à mesma.

Texto Integral

I- RELATÓRIO
Acordam os juízes na 2.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A …, com os sinais dos autos (representada pelo ilustre advogado B …, com escritório em Lisboa, conforme  procuração de 17/7/2024 junta aos autos), propôs, acção declarativa com processo especial nos termos dos art.ºs 978 e ss. do Código de Processo Civil, pedindo a revisão e a confirmação da sentença estrangeira proferida no Proc. …/… em Acção de Tutela e que teve Sentença em 23/05/2024 com trânsito em Julgado em 12/08/2021, da República da Guiné Bissau, que reconheceu a Autora como tutora da menor C … já com titulo de residência emitido pelo SEF nº …), alegando que, do seu relacionamento com clientes pessoas amigas e de âmbito pessoal desenvolveu princípios de humanidade para com crianças desprotegidas nomeadamente de origem Africana, região onde de sobremaneira os cuidados básicos e necessidades de apoios clínicos são notoriamente escassos e rudimentares, em apoio a menores; a requerente conheceu a situação da menor C …, uma criança de três anos de idade, nascida em 11 de maio de 2019, na Guiné-Bissau, filha de D …, maior de idade, solteiro, natural da Guiné-Bissau e residente nesse mesmo país, e de E …, maior, solteira, também natural e residente na Guiné-Bissau, em maio de 2022 a criança viajou para Portugal, para receber tratamento médico adequado que não poderia ser proporcionado no seu país de origem, desde essa data a criança encontra-se em Portugal, e à guarda, cuidados e responsabilidade da requerente A …, devidamente autorizada por decisão judicial transitada em julgado e registada junto dos Tribunais da Guiné-Bissau. Face ao conhecimento da situação a requerente a pedido dos progenitores da criança e porque com a mesmo estabeleceu laços de afecto e carinho, disponibilizou-se em aceitar os cuidados da mesma como se sua filha fosse e que pretende manter, a requerente recebeu e tem consigo aos seus cuidados, garantindo-lhe o bem estar necessário tendo correspondência de afecto por parte da criança. Resultante do desconhecimento dos antecedentes pessoais e da escassez de recursos de saúde no seu país de origem, vem a necessidade da mesma continuar a ser vigiada por profissionais em Portugal e avaliada com periodicidade anual. Indicou as moradas dos progenitores para efeitos de contraditório.
Ordenado o cumprimento do art.º 982 do C.P.C. a requerente sustenta a viabilidade do pedido e a Ex. Procuradora Geral Adjunta, pugnando pela notificação da requerente para suprir a excepção da ilegitimidade passiva ou dizer o que se lhe oferece sobre tal sustenta que “A legitimidade para a ação especial de revisão de sentença estrangeira afere-se em função das partes no processo que a originou e que são afetadas pelo pedido de revisão. No caso dos autos, o pedido visa a confirmação da sentença proferida em Bissau a 23/05/2024, transitada em julgado, que nomeou A … tutora da menor C … , a nosso ver, a ação tem também de ser instaurada contra os progenitores e contra a menor, representada por curador especial ou ad litem, nos termos do art.º 17.º do CPC, sendo certo que como está por reconhecer a sentença revidenda (a qual não tem por ora eficácia na ordem jurídica portuguesa) não poderá a menor estar em juízo representada pela Requerente, nos termos do art.º 16.º, n.º 2, do CPC, já que ainda não pode ser considerada, naturalmente, como sua legal representante. Uma vez que a ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário é uma exceção dilatória suprível, promovo se convide a autora para, no prazo de dez dias, a suprir ou dizer o que se lhe oferece, nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, e 590.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
Em resposta a Autora veio em suma dizer que “...não existe qualquer tipo de Exceção na Petição Inicial seja ela dilatória ou perentória, é errada a interpretação de ilegitimidade passiva      invocada pelo Ministério Publico. Caso assim não fosse por interpretação à contrário nunca este mesmo Tribunal se teria Confirmado anteriormente sentenças estrangeiras com forma e causa de pedir perfeitamente idênticos Processo nº 2558/21.1YRLDB- 2ª Secção com transito em julgado em 31/1/2022 Requerentes – F … e G … Requerida – H … Processo nº 1962/22.2YRLSB-2ª Secção com transito em julgado em 03/10/2022 Requerente – I … Requerido – J …
O Tribunal é o competente.
Questão da ilegitimidade: a Ex. procuradora-geral adjunta entende que ocorre ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário desde logo porque a Autora indica para efeitos de contraditório a morada dos progenitores e ainda porque a Autora não pode ser considerada legal representante da menor ao abrigo do disposto no art.º 16/2, porque a decisão que lhe atribui esses poderes de representação ainda não foi revista.
No que respeita à legitimidade passiva a observar na acção de revisão de sentença estrangeira, nada se encontra legislativamente consagrado, quanto à intervenção, na mesma, de pessoas distintas e diversas daquelas que tenham sido parte na sentença revidenda” (www.pgdlisboa.pt Sumário do Acórdão do STJ proferido a 26 de maio de 2009, na revista 204/09.0YFLSB).
Na decisão revidenda os pais biológicos não são parte assim como o não é a criança C …, de resto quem propôs a acção foi o Ministério Publico junto do Tribunal Judicial da Região da Guiné e a favor daquela.
Temos vindo a entender que neste tipo de processos, em que está em causa o reconhecimento- e consequente eficácia em Portugal- de decisões que conferem poderes ao Autor ou Autora/Autores por decisão estrangeira enquanto tutor/a ou tutores de menores em processo de tutela relativos a menores ou em maiores em situação de dependência, equivalentes ao nosso processo de maior acompanhado (cfr decisões nossas proferidas nos processo1246/23.9YRLSB, 578/24.3YRLSB), o Autor/a ou Autores a quem esses poderes foram conferidos por aquelas decisões estrangeiras a produzir efeitos em território nacional, decisões essas cuja revisão é meramente formal e não de mérito como se sabe, têm legitimidade para por si só intentarem essas acções. De igual forma temos sustentado a legitimidade do Autor/Autora ou Autores de acções de revisão de sentença estrangeira que lhes atribuem poderes de representação, como adoptantes em relação aos adoptados sejam estes menores ou maiores circunstância em que o maior terá de figurar também do lado activo, seguindo-se o entendimento de que “...em cada processo concreto só deve, porém, ter lugar aquilo que estando na disponibilidade das partes for de sua vontade e aquilo que for útil (artigos 137º e 265º do CPC) e adequado (art.º 265-Aº do CPC) para a obtenção de uma decisão judicial sobre a pretensão deduzida (art.º 2º do CPC)... o acto formal de reconhecimento ou de exequatur não é outra coisa, no fundo, senão a condição necessária (conditio juris) para que a sentença estrangeira possa estender ao Estado do foro os efeitos que lhe competem: os seus efeitos de acto jurisdicional. Antes do exequatur, a sentença estrangeira não produz efeitos no Estado do foro, salvo aquele que se traduz na admissibilidade da própria acção de revisão: a sua eficácia encontra-se num estado de pendência. Quanto à sentença de confirmação, ela não tem valor constitutivo, a não ser na medida em que declara que todas as condições às quais a lex fori subordina o reconhecimento das sentenças estrangeiras se encontram preenchidas. O objectivo do processo de revisão não consiste, assim, na obtenção de uma sentença nacional idêntica à sentença estrangeira, mas de uma sentença nacional que permita que a decisão estrangeira opere na ordem jurídica do foro os efeitos que lhe são próprios, de acordo com a lei do estado de origem (Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado – Aditamentos, Coimbra, 1973, pg 45-46.) pelo que a relação jurídica processual haverá de ser moldada em função dessa finalidade e não em função dos direitos regulados na sentença revidenda, sendo uma sentença um acto pelo qual se definem direitos, a atribuição de eficácia a uma sentença estrangeira coloca aquele a quem ela atribui direitos numa posição de, no território nacional, a fazer impor a quem aquela sentença constitui na obrigação de reconhecer aqueles direitos. Daí que o pedido de revisão dessa sentença deva ser formulado no confronto com quem possa ser directamente atingido pelo deferimento de tal pedido (daí que o pedido deva ser formulado contra quem se pretenda fazer valer a acção – e não necessariamente o vencido na mesma – no tribunal da área da sua residência para a ela ser chamado por meio de citação, mas nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efectivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro, ora nesses casos a acção de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do MP enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública), o caso paradigmático dessa situação é o pedido de revisão de sentença estrangeira de divórcio formulado por ambos os ex-cônjuges, neste processo está em causa uma sentença que decreta a adopção sem que se vislumbre qualquer outra finalidade da atribuição de eficácia a tal sentença que não a de mero reconhecimento em Portugal do estado de pais e filho resultante daquela adopção. Pretende-se, assim, o mero reconhecimento da situação definida na sentença revidenda, sem que se pretenda fazer valer contra quem quer que seja em concreto. Daí que se nos afigure dever a acção ser proposta pelos directamente afectados no seu estado pela sentença: aqueles que em face dela ficam relacionados familiarmente como pais de um determinado filho. E tanto o poderão fazer em conjunto (por haver coincidência de interesses, como é natural que ocorra as mais das vezes), caso em que não se pretende fazer valer a sentença contra ninguém em concreto; como o poderá fazer qualquer deles individualmente (quiçá por só a ele interessar a produção de efeitos no território nacional), caso em que, para além do simples reconhecimento da situação se pretende, igualmente, a imposição desses efeitos aos demais interessados, pelo que a pretensão haverá de ser deduzida contra eles. O que não se nos afigura correcto é que a relação processual se deva estabelecer entre o(s) pai(s) adoptivo(s) e o(s) pai(s) biológico(s). Com efeito, e desde logo, não se compreende porque se exclui da relação processual alguém com um manifesto interesse na causa – o adoptado. Mas, e fundamentalmente, porque tal posição concebe a relação jurídica processual a partir, não da finalidade do processo de revisão de sentença estrangeira, mas da própria relação jurídica por ela regulada e em termos que excedem essa mesma regulação. Com efeito, no ordenamento jurídico português, o processo de adopção plena, que é de jurisdição voluntária, não admite os pais biológicos como ‘parte contrária’, apenas estabelecendo a sua audição para prestação do seu consentimento (podendo, em certos casos, tal intervenção ser dispensada (cf. artigos 162º e seguintes da OTM). Ao que acresce ser tal posição incompatível com outras disposições legais; designadamente o chamamento do progenitor à acção de revisão de sentença de adopção é incompatível com as situações em que não pode ser revelada a identidade do adoptante (cf. art.º 1985º do CCiv)...[1]
Questão da representação da menor por curador ad litem nos termos do art.º 17 do C.P.C.
A tutelanda C … é menor de idade e a Autora ainda não viu reconhecidos os seus poderes atribuídos pela decisão estrangeira. Os menores e os maiores acompanhados sujeitos a representação só podem estar em juízo por intermédio dos seus representantes, excepto quanto aos actos que possam exercer pessoal e livremente (art.º 16/1) e se o incapaz não tiver representante geral deve requerer-se a nomeação de ao tribunal competente sem prejuízo da imediata designação de um curador provisório pelo juiz da causa (art.º 17/1 do CCiv). Pela simples análise da decisão revidenda verifica-se que, em razão de problemas físicos e da incapacidade dos pais biológicos, foi nomeado tutora à menor na pessoa da Autora, que é quem cuida da mesma, a qual, face ao direito guienense detém os poderes de representação competindo-lhe “desempenhar e cumprir com todas as responsabilidades parentais que cabiam aos progenitores...”. Por conseguinte, em razão da decisão revidenda (que não evidencia qualquer situação de conflito entre os pais biológicos e a ora Autora)  quem passou a ter poderes de representação da menor foi a Autora, cessando os dos pais biológicos, que não têm que ser citados, mas não se vislumbra razão pela para que se nomeie um curador ad litem à mesma. Assim também entendemos na nossa decisão proferida no processo de revisão de adopção plana proferida por Tribunal da Guiné Bissau (cfr. 508/23YRLSB.L1)
Assiste, assim, legitimidade processual à Autora que representa a tutelanda menor, não se verificam excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Resulta provado com relevo para a decisão:
O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Região de Bissau, Vara de Família Menores e Trabalho, em representação da menor C …, ao abrigo dos art.ºs 12 e 34/a do EAJM, conjugado com os art.ºs 1927 e 1928 do CCiv, instaurou acção de tutela a favor de A … relativamente à criança C …, nascida em Bissau aos 11/5/2019, filha de D … e de E …, ambos doentes auditivos; a avó da menor em representação do pai, no gozo do exercício do poder paternal decidiu livremente nomear como tutora a aqui Autora A … enquanto pessoa que cuidou da menor desde que chegou a Portugal para tratamento médico, a qual devido ao seu estado de saúde se encontra entregue aso cuidados da mesma A … que manifestou interesse em tuteara  menor, tornando-se necessário estabelecer o vínculo jurídico legal do exercício do poder paternal por forma a corresponder a situação de facto à situação de direito.
Por decisão proferida pelo mesmo Tribunal Judicial da Região de Bissau, Vara de Família Menores e Trabalho aos 23/5/2024 transitada em julgado em 31/5/2024 foi a A … nomeada tutora da menor C ….
III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A revisão de sentença estrangeira ou acto equiparado com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional é de natureza formal, envolvendo, tão-só, a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.
Atento o disposto no art.º 1096, do C.P.C, constituem requisitos de revisão:
. Ausência de dúvidas sobre a autenticidade e sobre a inteligibilidade do documento de que conste sentença;
. Trânsito em julgado da sentença;
. Sentença de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada com fraude à lei e que não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
. Que não possa invocar-se as excepções de litispendência ou caso julgado, com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
. Citação do réu, nos termos da lei do país de origem e observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes;
. Não conter a sentença decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português;
Sabendo-se que se impõe ao tribunal o conhecimento oficioso da verificação dos pressupostos a que se referem as alíneas a) a c) e f) do art.º 980 do C.P.C., há que concluir que na situação em apreço se verificam todas as condições exigidas pela lei para a revisão e confirmação da sentença estrangeira.
Não se suscitam dúvidas quanto à autenticidade e inteligibilidade dos documentos juntos pelos requerentes; por outro lado, ainda, a decisão do tribunal estrangeiro não conduziu a um resultado incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado português, como se explicará.
No que concerne aos restantes pressupostos, ou seja, o cumprimento dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, inexistência de situação de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a um tribunal português, trânsito em julgado da sentença revidenda, face aos elementos documentais juntos aos autos é de entender que estão verificados. Não existe fundamento para considerar que a competência do Tribunal Judicial da Região de Bissau, foi determinada em fraude à lei.
Resulta da decisão recorrida que os pais biológicos sofrem de deficiência física que os impede de cuidar da sua filha C … razão pela qual desde cedo foi pela avó confiada aos cuidados da ora requerente enquanto se encontra a realizar tratamentos médicos em Portugal o Tribunal guineense fundamentou a sua decisão na circunstância de os pais não exercerem o poder paternal, situação com paralelo no art.º 1921/1/c. A revisão é meramente formal como resulta da lei e é reconhecido pela doutrina e jurisprudência.
Verificam-se, pois, os pressupostos legais da revisão e de confirmação da sentença em análise, procedendo a acção.

IV- DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão de revisão de sentença, pelo que se confirma a sentença do Tribunal Judicial da Região de Bissau, Vara de Família Menores e Trabalho proferida aos 23/5/2024 transitada em julgado em 31/5/2024 pela qual foi a A … nomeada tutora da menor C ….
Valor da acção: 30.000,01 euros. Cumpra oportunamente o disposto no art.º 78 do CRgC.

Lisboa, 24-10-2024
Vaz Gomes
João Paulo Raposo
Ana Cristina Clemente que vota vencido, voto que segue

Voto de vencido - processo nº 2202/24.5YRLSB
Acompanhei o acórdão no que concerne à improcedência da exceção de ilegitimidade passiva, na medida em que a contraparte no processo que culminou na prolação da sentença revidenda foi tão só o Ministério Público, em representação da menor, por ponderar que não se justifica que seja demandado  na ação de revisão e confirmação por ter intervenção ao abrigo do artigo 982º nº 1 do Código de Processo Civil e dos poderes atribuídos no artigo 4º nº 1 alíneas i) e j) da Lei nº 68/2019 de 27 de Agosto[2].
Contudo, afigura-se-me que não se encontra preenchido o requisito previsto na alínea e) do artigo 980º do Código de Processo Civil.
Resulta da sentença revidenda que o Magistrado do Ministério Público, em representação da menor C …, ao abrigo dos artigos 12º nº 2 e 34º alínea a) do EAJM conjugados com os artigos 1.927º e 1.928º do Código Civil, intentou ação de tutela “a favor de” A …, aqui Autora.
Sucede que os progenitores da menor não foram identificados como Requeridos, nem se menciona a sua audição, referindo a sentença que são deficientes auditivos e que a avó da menor “no gozo do exercício do poder paternal decidiu nomear livremente como tutora da sua neta a senhora A … enquanto pessoa que cuidou da menor desde quando chegou a Portugal para tratamento”.
Coloca-se a questão de saber se o ordenamento jurídico guineense prescinde da audição dos pais nos processos que limitam o exercício do poder paternal. 
O EAJM corresponde ao Estatuto de Assistência Jurisdicional aos Menores do Ultramar, aprovado pelo DL nº 417/1971, publicado no Diário do Governo Português a 29 de Setembro do referido ano, que se mantém em vigor[3].
De igual forma, no que diz respeito à matéria em causa, o Código Civil em vigor continua a ser o da era colonial, ou seja, o DL nº 47.344 de 25 de Novembro de 1966, tornado extensivo às Províncias Ultramarinas pela Portaria nº 22869 de 4 de Setembro de 1967[4].
O artigo 1.921º nº 1 desse diploma prevê que o menor está obrigatoriamente sujeito a tutela se os pais houverem falecido, se estiverem inibidos do poder paternal quanto à regência da pessoa do filho, se estiverem há mais de seis meses impedidos de facto de exercer o poder paternal e se forem incógnitos, dispondo o nº 2 que, havendo impedimento de facto dos pais, o Ministério Público deve tomar as providências necessárias à defesa do menor, independentemente do decurso do prazo de seis meses, podendo para o efeito promover a nomeação de pessoa que, em nome do menor, celebre os negócios jurídicos que sejam urgentes ou de que resulte manifesto proveito para este.
Os artigos 1.927º e 1928º estipulam, por sua vez, que o cargo de tutor recairá sobre a pessoa designada pelo pai ou mãe, pela lei ou pelo Tribunal de Menores, cabendo a designação, em primeiro lugar, ao pai, no exercício do poder paternal, por testamento ou documento autêntico, para a o caso de falecimento ou incapacidade e que, na sua falta ou impedimento, tal faculdade cabe à mãe.
A aplicação dos artigos 1.930º e 1.931º, que contemplam a instituição da “tutela legítima” e no âmbito da designação pelo Tribunal de Menores, é supletiva dependendo da não designação pelo pai e pela mãe ou da não confirmação das indicadas.
O artigo 1.915º estatui que fora dos casos de inibição de pleno direito[5], a inibição total ou parcial pode ser decretada pelo tribunal de menores, a requerimento do Ministério Público, de qualquer parente do menor ou de pessoa a cuja guarda ele esteja confiado, de facto ou de direito, nos termos e com os fundamentos designados em legislação especial.
O artigo 108º do EAJM dispõe que a inibição, parcial ou total, do poder paternal pode ser requerida quando:
a) os pais faltem habitualmente ao dever de defender e educar os filhos, com grave prejuízo de ordem moral ou material para estes;
b) os filhos se encontrem em grave perigo moral, em razão da incapacidade moral, física ou económica dos pais para cumprirem os deveres de defesa e educação;
c) os pais maltratem gravemente os filhos, os privem de alimentos e do mais indispensável à vida quotidiana ou os sujeitem a trabalho perigoso para a vida ou para a saúde moral ou física;
d) os pais excitem os filhos ao crime ou à corrupção de costumes;
e) seja notório o porte imoral e escandaloso dos pais ou do cônjuge de algum deles;
f) os pais tenham sido condenados em qualquer pena como autores, cúmplices ou encobridores de crimes cometidos contra os filhos ou, como reincidentes, por crimes cometidos contra menores;
g) os pais sujeitem os filhos ao convívio de pessoas em relação às quais se verifique alguma das circunstâncias mencionadas nas alíneas c) a e);
h) os pais revelem manifesta inaptidão para administrar os bens dos filhos.
O artigo 109º deste último diploma ocupa-se da tramitação estabelecendo expressamente a citação do Réu para contestar.
O artigo 113º do DL nº 417/71 prevê, como preliminar ou como incidente da ação de inibição do poder paternal, a suspensão desse poder e o depósito do menor em casa de família idónea, com preferência pelos parentes obrigados a prestar alimentos, ou, não sendo isso possível, em colégio ou em instituto de assistência, se um inquérito sumário mostrar que o pai é manifestamente incapaz, física ou moralmente, de cuidar do filho, ao passo que o artigo 115º, sob a epígrafe “providências no caso de exercício abusivo do poder paternal ou da tutela” estipula “quando no exercício do poder paternal ou das funções de tutela se ponha em perigo a saúde, a segurança, a formação moral ou a educação de um menor e não seja caso de inibição do poder paternal ou de remoção das funções tutelares nem de devolução à assistência pública, o tribunal pode decretar a providência que repute mais conveniente para os interesses do menor”, providência essa que, nos termos do artigo 116º, pode consistir na imposição, pelo Tribunal, às pessoas que exercem o poder paternal ou as funções de tutela, entre outros, dos deveres de (a) aceitar as prescrições do tribunal e as indicações que sob a sua orientação forem fixadas pelo serviço de assistência social, (b) submeter-se às diretrizes pedagógicas ou médicas de um estabelecimento de educação ou de saúde, (c) fazer com que o menor frequente com regularidade qualquer estabelecimento de ensino, (d) confiar o menor ao outro progenitor, a terceira pessoa ou a um estabelecimento de educação ou de assistência.
Embora a tramitação desses dois processos não esteja expressamente prevista, o artigo 75º afirma “os processos jurisdicionais de menores de natureza cível são considerados, para todos os efeitos, como processos de jurisdição voluntária”, sendo certo que o artigo 1.419º nº 1 do Código de Processo Civil, que Decreto-Lei nº 44.129 de 28 de Dezembro de 1961  - acessível em https://fecongd.org/pdf/crianca/CodigoProcessoCivil.pdf -, que é o mesmo diploma que vigorou entre nós, com alterações até à reforma de 1995, manda aplicar-lhes as disposições dos artigos 302º a 304º, importando destacar o artigo 303º que prevê a oposição ao pedido, quando admissível, a deduzir dentro do prazo de oito dias. Importa ter presente que o artigo 3º do mesmo diploma estipula que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição e que só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
Podemos concluir que, segundo o ordenamento jurídico da Guiné-Bissau, a limitação do exercício do poder paternal com a atribuição a terceiros do poder-dever de tomar decisões respeitantes ao menor, designadamente, quanto a tratamentos médicos, educação, fixação de residência, viagens para o estrangeiro, obriga à citação dos progenitores para deduzirem oposição.
No âmbito da atividade oficiosa do Tribunal, prevista no artigo 984º do Código de Processo Civil, cabe-lhe negar a confirmação quando, pelo exame do processo, apure que falta o requisito exigido pela alínea e) do nº 1 do artigo 980º, ou seja, como no caso, que os Réus não foram regularmente citados para a ação – não foram sequer indicados como sujeitos processuais – , nos termos da lei do país do tribunal de origem e/ou não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
 Nestes termos, votei a improcedência da ação.
 
Ana Cristina Clemente
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[1] Decisão singular de Rijo Ferreira de 4/10/2011, proferida no processo 529/11.5YRLSB, disponível on line www.dgsi.pt.
[2] Estatuto dos Magistrados do Ministério Público.
[3] Como se extrai de um estudo de Dezembro de 2012 denominado “Estudo sobre a aplicação das Convenções n.º 138 e n.º 182 da OIT e suas recomendações na legislação nacional dos países da CPLP” acessível em https://www.cplp.org/Files/Billeder/MIC_CTI/PALOP_Studies_Guinea_Bissau_PT_Web.pdf.
[4] Acessível in https://gicjucaj.org/codigo-civil/.
[5] Por via de condenação que tenha esse efeito, de interditação, inabilitação por anomalia psíquica e ausência após nomeação do curador provisório nos termos do artigo 1910º.