RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário


I - O acórdão recorrido entendeu que, na previsão do art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, apenas estão incluídos os condenados que não tenham atingido os 30 anos de idade, na data da prática do crime, enquanto o acórdão fundamento entendeu que, na previsão da mesma norma estão incluídos os condenados que não tenham atingido os 31 anos de idade, na data da prática do facto.

II - Assim, acórdão recorrido e acórdão fundamento, decidiram em sentidos opostos, dando distinta interpretação ao segmento «(…) por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (…)», do n.º 2 do art. 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, cuja redacção não sofreu modificação, estando, pois, verificada a oposição de julgados.

III - Presentes que se mostram os requisitos formais e materiais do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, deve o mesmo prosseguir (art. 441.º, n.º 1, do CPP).

Texto Integral

RECURSO Nº 96/19.1.GBNLS-G.C1-A.S1

Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência

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Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação de Coimbra vem, nos termos e para os efeitos do art. 437º do C. Processo Penal, interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de ... de ... de 2024, proferido no processo nº 96/19.1...-G.C1, já transitado em julgado, por entender que o mesmo – ao considerar que o perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, de ... não é aplicável a arguido que, na data da prática do crime, já contava 30 anos de idade, relativamente a uma pena de sete meses de prisão – está em contradição com o acórdão da Relação de ... de ... de ... de 2024, proferido no processo nº 19/19.8...-E.E1, igualmente já transitado em julgado.

Para tanto, alegou, sem síntese:

- a Relação de Coimbra, por acórdão de ... de ... de 2024, decidiu não ser aplicável o perdão da Lei nº 38-A/2023, de ... a arguido que já havia completado 30 anos de idade na data do cometimento do crime;

- a Relação de ..., por acórdão de ... de ... de 2024, decidiu ser aplicável o referido perdão a quem, tendo feito 30 anos de idade, ainda não tenha atingido os 31;

- ambos os acórdãos transitaram em julgado, o trânsito do acórdão da Relação de Coimbra foi o último a verificar tal efeito e o mesmo não é susceptível de recurso ordinário;

- acórdão recorrido – Relação de Coimbra – e acórdão fundamento – Relação de ... – foram proferido no domínio da mesma legislação, que se mantém inalterada;

- verifica-se, assim, que as Relações, decidiram de modo diverso, e manifestamente contraditório, a mesma questão de direito;

- deve ser fixada jurisprudência no sentido de que, «No campo de abrangência do artigo 2º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023, de 2/08, cabe o universo de condenados que tenham 30 anos e até completarem os 31 anos de idade.».

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Foi cumprido o disposto no art. 439º, nº 1 do C. Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta pelo arguido interessado.

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Recebidos os autos neste Supremo Tribunal, por despacho do relator de ... de ... de 2024, foi solicitado ao Tribunal da Relação de ... informação sobre a data do trânsito em julgado do acórdão fundamento, informação que foi satisfeita em ... de ... de 2024 (referência 207711).

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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o nº 1 do art. 440º do C. Processo Penal, emitiu parecer no sentido de, relativamente aos pressupostos formais do recurso, estarem os mesmos verificados, por ter o Ministério Público legitimidade, por ter sido o recurso interposto tempestivamente, por estar identificado o acórdão fundamento e estar junta informação com nota do trânsito em julgado deste, anterior ao trânsito em julgado do acórdão recorrido, e no sentido de, relativamente aos pressupostos materiais do recurso, terem acórdão recorrido e acórdão fundamento, chamados a pronunciarem-se, expressamente, sobre o requisito da idade previsto no art. 2º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023, de ... que dispõe estarem abrangidas pela dita lei as sanções penais relativas a ilícitos praticados até às 00:00 horas de ... de ... de 2023 por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, decidido em sentidos opostos, tendo o primeiro entendido que apenas estão abrangidos os condenados que ainda não completaram 30 anos na data da prática do facto, e tendo o segundo entendido que estão abrangidos os condenados que tenham 30 anos naquela data e enquanto os tiverem, estando, pois, verificados os referidos pressupostos, incluindo, a oposição de julgados, e concluiu pelo prosseguimento dos autos, nos termos do art. 441º, nº 1, parte final, do C. Processo Penal.

Foi assegurado o contraditório relativamente ao parecer, não tendo havido resposta ao mesmo.

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Foi realizado o exame preliminar referido no nº 1 do art. 440º do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência, nos termos do nº 4 do mesmo artigo.

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Cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

Âmbito do recurso

A questão objecto do recurso, tal como é configurada pelo Ministério Público recorrente consiste em saber se existe oposição de julgados entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido relativamente à delimitação da idade relevante, prevista no art. 2º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, de ..., para efeitos de aplicação do perdão estabelecido na mesma lei.

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Da verificação dos requisitos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência

1. O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, regulado nos arts. 437º a 448º do C. Processo Penal, pode configurar três distintas espécies: o recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio; o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada; e, o recurso no interesse da unidade do direito.

O caso dos autos integra a primeira espécie, pelo que, só dela cuidaremos.

O recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio radica na necessidade de compatibilizar a independência e liberdade do juiz na interpretação da norma, por definição, geral e abstracta, ao caso concreto, e a diversidade de interpretações, dando origem a que situações iguais obtenham diferentes soluções de direito.

Visa, em suma, alcançar uma interpretação uniforme da lei e, portanto, uniformizar a jurisprudência.

2. O recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio está regulado nos arts. 437º e 438º do C. Processo Penal.

Sob a epígrafe «Fundamento do recurso» dispõe o primeiro destes artigos:

1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 – O recurso previsto nos nºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

Por sua vez, dispõe o art. 438º, com a epígrafe «Interposição e efeito»:

1 – O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 – No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3 – O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.

Das normas transcritas retiram-se, como é entendimento pacífico, os requisitos formais e materiais deste recurso. Assim:

São requisitos formais de admissibilidade:

i) A legitimidade do recorrente – pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público;

ii) A tempestividade – deve ser interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

iii) A identificação no recurso do acórdão fundamento, com junção de cópia do mesmo ou a indicação do lugar da sua publicação;

iv) O trânsito em julgado do acórdão recorrido e do acórdão fundamento;

v) A justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

São requisitos materiais de admissibilidade:

i) A existência de julgamentos da mesma questão de direito por dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, por dois acórdãos de tribunal de relação ou por um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e por um acórdão de tribunal de relação;

ii) Assentarem os acórdãos em confronto, de modo expresso, e não meramente tácito, em opostas soluções de direito, partindo de idênticas situações de facto;

iii) Terem sido os acórdãos em confronto proferidos no domínio da mesma legislação, portanto, quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

Note-se, por último, que tendo o recurso de fixação de jurisprudência natureza excepcional, a interpretação das normas que o disciplinam deve ser feita de acordo com esta sua natureza, deste modo evitando que se transforme num recurso ordinário (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 201 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 2017, processo nº 175/14.1GTBRG.G1-A.S1, in www.dgsi.pt).

3. Vejamos se, in casu, estão ou não verificados os enunciados requisitos.

a. Relativamente aos requisitos formais de admissibilidade:

- O recorrente Ministério Público tem, obviamente, legitimidade para interpor o recurso (art. 437º, nº 5 do C. Processo Penal);

- O acórdão recorrido foi proferido em ... de ... de 2024, notificado electronicamente aos sujeitos processuais em ... de ... de 2024 e ao Ministério Público, na mesma data, por termo, tendo transitado em julgado em ... de ... de 2024. O recurso extraordinário foi interposto a ... de ... de 2024, sendo, pois, evidente, que esta interposição ocorreu depois do trânsito em julgado do acórdão recorrido e antes de decorridos 30 dias sobre o referido trânsito, pelo que, é tempestivo o mesmo [recurso] tempestivo (art. 438º, nº 1 do C. Processo Penal);

- O recorrente Ministério Público identificou o acórdão fundamento – acórdão do Tribunal da Relação de ... de ... de ... de 2024, proferido no processo nº 19/19.8...-E.E1 e indicou o lugar onde o mesmo se encontra publicado, em www.dgsi.pt;

- Acórdão recorrido e acórdão fundamento mostram-se transitados em julgado – em ... de ... de 2024 e ... de ... de 2024, respectivamente;

- O recorrente Ministério Público justificou a oposição de julgados que, no seu entendimento, causa o conflito de jurisprudência a dirimir.

Resta, assim, concluir que, sob a perspectiva dos requisitos formais, nada obsta à admissão do recurso.

b. Relativamente aos requisitos materiais de admissibilidade:

- Estão em causa, um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, o acórdão recorrido, proferido em ... de ... de 2024, no processo nº 96/19.1...-G.C1, transitado em julgado em ... de ... de 2024, e um o acórdão do Tribunal da Relação de ..., o acórdão fundamento, proferido em ... de ... de 2024, no processo nº 19/19.8...-E.E1, transitado em julgado em ... de ... de 2024. Nem o acórdão recorrido [que julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, do despacho de ... de ... de 2023, proferido pelo Mmo. Juiz titular nos autos, no qual decidiu não ser aplicável ao recorrente o perdão da Lei nº 38-A/2023, de ..., por ter mais de 30 anos de idade à data da prática do facto (detenção de arma proibida)], nem o acórdão fundamento [que julgou procedente o recurso interposto pelo arguido (A), do despacho de ... de ... de 2023, proferido pelo Mmo. Juiz titular dos autos, não ser aplicável ao recorrente o perdão da Lei nº 38-A/2023, de ..., por já ter perfeito 30 anos de idade à data da prática do facto (tráfico de menor gravidade), e, revogando o despacho recorrido, determinou que a 1ª instância observe os procedimentos necessários à aplicação do regime decorrente dos arts. 2º, nº 1, 3º, nº 1, 7º à contrario sensu e 14º, todos da referida lei], eram susceptíveis de recurso ordinário, atento o disposto no art. 400º, nº 1, c) do C. Processo Penal;

- Acórdão recorrido e acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação, uma vez que a Lei nº 38-A/2023, de ... se mantém inalterada;

- Atentemos agora na afirmada existência de oposição de julgados, portanto, na questão de saber se os acórdãos em confronto assentam, de modo expresso, em opostas soluções de direito, partindo de idênticas situações de facto.

Resulta do acórdão recorrido que:

- O arguido AA nasceu a ... de ... de 1989 e foi condenado, por acórdão de ... de ... de 2021, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo Central Criminal de Viseu – J2, transitado em julgado em ... de ... de 2021 do mais, pela prática, em ... de ... de 2020, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro;

- Na vigência da Lei nº 38-A/2023, de ..., por despacho de ... de ... de 2023, do Juiz titular do processo, foi decidido:

«Todos os arguidos tinham à data dos factos mais de 30 anos de idade relativamente aos crimes praticados e que não se encontram excluídos pelo artigo 7.º da Lei nº 38-A/2023 de ..., pelo que não será de aplicar ao presente caso, a nenhum dos arguidos, quer a amnistia, quer o perdão previstos naquele diploma, uma vez que só se aplica aos indivíduos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos – cfr. art.º 2.º, n.º 1, nos termos definidos nos art.º 3.º e art.º 4.º da referida Lei.»;

- Inconformado com o decidido, o arguido AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra peticionando a aplicação, quanto à pena relativa ao crime em referência, das medidas de clemência previstas na Lei nº 38-A/2023, de ...;

- O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de ... de ... de 2024 – acórdão recorrido – negou provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido, com o entendimento segundo o qual,

«Deste modo, a expressão “entre 16 e 30 anos de idade” pode ter como sinónimo “entre os 16 e os 30 anos de idade”, resultando excluído o período temporal que ultrapasse o limite máximo fixado, situado nos 30 anos de idade: até que complete os 30 anos de idade. No entanto, admitimos, ainda que com reserva, que a expressão poderá ser objeto de interpretação ambígua do elemento literal, suportando aqueloutra significação de até ao final dos 30 anos de idade.

O recurso aos demais elementos de interpretação é, assim, determinante.

No que concerne ao elemento histórico, há que ter em devida conta o âmbito de aplicação definido na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1ª (7), onde se lê o seguinte:

“Considerando a realização em ... da JMJ em ..., que conta com a presença de Sua Santidade o BB, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a ... do representante máximo da ... justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.

Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.” (sublinhado nosso).

Sem dúvida que do elemento histórico se extrai a clara intenção do legislador em abranger exclusivamente os jovens entre a maioridade penal (dia em que completam 16 anos de idade) e o dia em que completem os 30 anos de idade.

O art. 2º da Proposta de Lei que acompanhou aquela exposição de motivos, no segmento em causa, não foi objeto de proposta de alteração (8), não restando dúvida que o legislador, ao aprovar aquela Lei, pretendeu que a mesma abrangesse os jovens a que as JMJ se destinavam, a saber, jovens até aos 30 anos.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, este é o sentido mais consentâneo com o uso corrente da língua portuguesa.

Assim, pese embora o legislador não tenha utilizado a proposição “até” na letra da lei, fê-lo na exposição de motivos da proposta de lei, elemento fundamental para a interpretação de um texto legal ambíguo (o que, como se referiu, admitimos poder suceder com a expressão em causa, embora com alguma dificuldade). Ou seja, a lei é aplicável até ao dia anterior àquele em que o condenado complete 30 anos de idade.

Prosseguindo,

Os factos em causa nos autos foram praticados pelo recorrente desde o início de ... até ........2020 (tráfico de estupefacientes) e em ........2020 (detenção de arma proibida).

O arguido cumpriu os 30 anos de idade no dia ........2019.

O crime de tráfico de substâncias estupefacientes do art. 21º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, por cuja prática o recorrente foi condenado, encontra-se excluído do benefício do perdão, como expressamente estatui o art. 7º, n.º 1, al. f)-ix) da Lei n.º 38-A/2023.

Assim, o único crime a considerar o crime de detenção de arma proibida.

Assente está ter o arguido praticado os factos criminosos quanto contava 30 anos de idade – a saber, a ........2020.

Em consequência, não reúne as condições objetivas para beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, motivo porque se torna inútil o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso interposto.».

Resulta do acórdão fundamento que:

- O arguido (A) nasceu a ... de ... de 1989 e foi condenado por acórdão de ... de ... de 2020, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Central Criminal de Setúbal – J1, transitado em julgado, pela prática, entre ... e ..., de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, a), do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-A e I-B, anexas;

- Na vigência da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, por despacho do Juiz titular do processo, foi decidido:

«O condenado (A) requereu que lhe fosse aplicado o regime instituído pela Lei 38-A/2023, de 02 de agosto, que prevê a aplicação em determinadas circunstâncias previstas na lei de amnistia e perdão para jovens imputáveis que tenham praticado delitos antes de completarem os 30 anos.

O Ministério Público promoveu indeferimento da pretensão em promoção a que se adere na íntegra.

Com efeito o arguido nasceu no dia ... de ... de 1989 e foi condenado nos presentes autos pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade previsto e punido pelo artigo 25.º do Decreto-lei 15/93 de 22 de janeiro. Trata-se de um crime de trato sucessivo que se consuma com o último ato de execução que neste caso foi praticado no dia ... de ... de 2019, mais de um mês depois do arguido completar os 30 anos de idade.

Termos em que indefiro ao requerido.»;

- Inconformado com o decidido, o arguido (A) interpôs recurso para o Tribunal da Relação de ..., peticionando a aplicação, quanto à pena relativa ao crime em referência, do perdão de um ano de prisão, previsto na Lei nº 38-A/2023, de ...;

- O Tribunal da Relação de ..., por acórdão de ... de ... de 2024 – acórdão fundamento – concedeu provimento ao recurso, com o entendimento segundo o qual,

«Ao que se pensa, é aqui que emerge a diferente leitura do campo de abrangência – o tribunal a quo, secundado pelo Digno Mº Pº, assenta que a normação em causa quer dizer 16 anos e até perfazer 30, excluindo-se assim pessoas já com 30 anos feitos; o arguido recorrente, por seu lado, opina que se devem incluir todos os cidadãos que tenham 30 anos de idade.

O que exubera, na verdade, é apenas e tão-só, crê-se, uma questão interpretativa do preceito, neste preciso troço, devendo por isso operar tendo em mente o que demanda o artigo 9º do CCivil.

Este inciso legal, ao que parece, não tomou posição na controvérsia entre a linha subjetivista e a objetivista pois, do seu texto nada decorre que ilustre um arrimo quer à vontade do legislador, quer à vontade da lei, mas sim um estribo na descoberta do pensamento legislativo. Esta expressão, propositadamente anódina/incolor, significa exatamente o não comprometimento do legislador em determinado sentido.

Na verdade, adianta o referido texto, que a interpretação não deve cingir-se à letra, mas reconstituir a partir dela o pensamento legislativo. Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a atividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela.

E, face a tal, a letra (o enunciado linguístico) sendo o ponto de partida, exerce também a função de um limite, já que de acordo com o nº 2 do dito dispositivo, entre os sentidos possíveis da lei, aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) há que seguir aquele tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Diga-se, também, que por vezes pode ser necessária uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação corretiva, se a fórmula verbal foi infeliz/confusa/imprecisa. Todavia, mesmo nesta última hipótese, será necessário que do texto falhado dimane, ainda que subtilmente, uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação.

Acresce que no que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correto das expressões utilizadas[5].

Considerando todo o expendido e todo o elemento literal da normação em causa, salvo melhor e mais avisada opinião, o entendimento tido pelo tribunal recorrido, extravasa completamente o texto da norma. Escrever-se entre 16 e 30 anos de idade, ainda que apelando ao significado desta preposição entre - situação ou espaço em meio ou dentro de, limite temporal - não afasta o patamar dos 30 anos de idade, antes o inclui. Ou seja, enquanto a idade se mantiver nos 30 anos, ao que se entende, está dentro desse limite/marco/patim.

Aliás o legislador não usou a preposição até – aqui efetivamente se fixaria o limite/espaço para além do qual se não pode ir –, nem afastou quem tivesse já 30 anos de idade, usando uma forma excludente como cristalinamente o fez no DL nº 401/82, de ... - Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes – no seu artigo 1º, nº 2 É considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos.

Diga-se, também, que contrariamente ao que se deixa antever pelo decidido em 1ª instância, que quem tiver trinta anos e uns meses de idade já não se encontra no marco dos 30 anos, parece não fazer muito sentido. Tem-se .../.../50 anos de idade, no espaço temporal de 12 meses, desde a data que os atinge, até perfazer .../.../51. É o que parece advir da normalidade da vida quotidiana[6].

Anote-se ainda que a leitura ensaiada no tribunal a quo - até perfazer 30 anos de idade -, colocaria sempre a questão de saber como calcular esse exato momento da exclusão - nos 29 anos, 11 meses e 29 dias, sendo o último dia visto até às 24 horas, ou já nos 30 anos, precisos, considerados estes na data e hora de nascimento do indivíduo.

Face a todo o expendido, crê-se que, na verdade, assiste razão ao arguido recorrente e que, no campo de abrangência do dispositivo em ponderação, cabe o universo de condenados que tenham 30 anos e enquanto os tiverem, medidos em tempo de 365 dias nesse estatuto/marco, à data da prática dos factos[7].

E, considerando todo este relatado, bem como o plasmado nos preceitos conjugados dos artigos 2º, nº 1, 3º, nº 1, 7º à contrario sensu e 14º da Lei nº 38-A/2023 de ..., deverá o tribunal de 1ª instância, como sendo o da condenação, desencadear os procedimentos necessários à aplicação do regime aqui consagrado.».

Evidencia o que antecede, a inquestionável identidade das situações de facto com que foram confrontadas as ... e de ....

Em ambas, os respectivos arguidos foram condenados pela prática de crimes – detenção de arma proibida e tráfico de menor gravidade, respectivamente – não previstos em qualquer das alíneas do nº 1 do art. 7º da Lei nº 38-A/2023 de ... e, portanto, em relação aos quais não se mostra excluída a aplicação do perdão previsto na referida lei, quando já haviam completado 30 anos de idade e antes de atingirem os 31 anos.

Como bem diz o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer emitido, [t]endo esta realidade como pano de fundo, os dois acórdãos foram chamados a pronunciar-se expressamente acerca do requisito da idade previsto no art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de ..., que estabelece estarem abrangidas pela Lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de ... de ... de 2023 «por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto».

O acórdão recorrido entendeu que na previsão do art. 2º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023, de ... apenas estão incluídos os condenados que não tenham atingido os 30 anos de idade, na data da prática do crime. Enquanto o acórdão fundamento entendeu, contrariamente, que na previsão da mesma norma estão incluídos os condenados que não tenham atingido os 31 anos de idade, na data da prática do facto.

Vale isto dizer que acórdão recorrido e acórdão fundamento, decidiram em sentidos opostos, dando distinta interpretação ao segmento «(…) por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (…)», do nº 2 do art. 2º da Lei nº 38-A/2023, de ..., cuja redacção, conforme já referido, não sofreu modificação.

Está, pois, verificada a oposição de julgados.

4. Em conclusão, verificados que estão os requisitos formais e materiais do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, deve o mesmo prosseguir (art. 441º, nº 1, do C. Processo Penal).

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em julgar verificada a oposição de julgados e, em consequência, nos termos do disposto no art. 441º, nº 1 do C. Processo Penal, determinam o prosseguimento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo Ministério Público.

Recurso sem custas.

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 17 Outubro de 2024

Vasques Osório (Relator)

Celso Manata (1º Adjunto)

Luís Teixeira (2º Adjunto)