I – O Tribunal da Relação de Lisboa tem o dever de acatar as decisões do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito de recursos para este interpostos de decisões por aquele proferidas;
II - Se a sentença penal estrangeira - cuja revisão e confirmação foi solicitada - tiver aplicado pena em medida superior ao máximo legal admissível, a decisão é confirmada, mas a pena aplicada converte-se naquela que ao caso coubesse segundo a lei portuguesa, ou reduz-se até ao limite adequado;
III- Tal conversão determina que o juiz do Estado da execução determine, designadamente, em função da sua própria lei e dos factos apurados, a natureza e o quantum da pena, bem como todas as consequências que dela decorrem;
III- Ao não indicar os motivos de facto e de direito que fundamentaram a aplicação da pena de 5 anos de prisão o acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal;
IV – Finalmente, tendo aplicado pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, o acórdão tinha a obrigação de se pronunciar relativamente à possibilidade de suspensão da execução dessa pena sendo que, não o tendo feito, incorreu na nulidade de omissão de pronúncia prevista na al. c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal.
Acordam em Conferência na 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
I - RELATÓRIO
1. Enquadramento
O Requerente, natural do... - República Federativa do Brasil (doravante “República do Brasil”), mas atualmente residente na ... - Portugal, foi condenado, no âmbito do processo n.°0006671- 43.2010.........8300, por sentença n° .../2011, proferida a 18 de março de 2011, pela 13ª Vara da Secção Judiciária de ... - transitada em julgado a 26.2.2019 –, na pena de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão, a ser cumprida em regime fechado, pela prática do crime continuado de recetação, previsto e punível pelos artigos 180º, §1° e 71º do Código Penal da República Federativa do Brasil.
Dado residir em Portugal e na sequência de pedido da República do Brasil, foi instaurado, na 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, o Processo de Extradição n.°553/23.5..., no qual foi deferido o pedido, através de acórdão proferido a 9 de maio de 2023, determinando-se a entrega do recorrente às autoridades brasileiras para, naquele país, cumprir a aludida pena.
Contudo, o AA solicitou o cumprimento dessa pena em Portugal, o que foi aceite pelas autoridades brasileiras.
Assim e por despacho de 12 de maio de 2023, do Juiz Federal da 36ª Vara Federal de ..., foi decidida a suspensão da entrega do arguido até ser decidido pelas autoridades judiciais portuguesas o pedido de cumprimento da pena em Portugal.
Em sequência, veio então o Ministério Público junto da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, por solicitação das autoridades brasileiras, requerer, no Tribunal da Relação de Lisboa, a revisão e a confirmação da acima referida sentença penal proferida pela 13ª Vara do Tribunal de Justiça Federal de ...
O pedido foi formulado ao abrigo dos artigos 95º e sgs. da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, aprovada pela Lei nº 144/99 de 31 de agosto (doravante LCJIMP), e dos artigos 234º a 240º do Código de Processo Penal.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 10 de janeiro de 2024, decidiu declarar como revista e confirmada a sentença revidenda, passando aquela a produzir todos os seus efeitos em Portugal, tendo, designadamente e para o que ora interessa decidido:
“Declarar revista e confirmada a sentença proferida pelo tribunal da República Federativa do Brasil, supra identificado, com vista à execução em Portugal da pena em que foi condenado o arguido AA”.
Inconformado com essa decisão veio o requerido interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão prolatado a 21 de maio de 2024, lhe deu razão, decidindo, também para o que ora interessa, o seguinte:
“Pelo exposto, julga-se o recurso procedente quanto à adaptação/conversão da pena de prisão solicitada, a efetuar no Tribunal recorrido nos termos atrás mencionados no ponto 3.2.4.”
* * * *
2. A decisão recorrida
Tendo o processo descido ao Tribunal da Relação de Lisboa veio este a decidir o Seguinte (transcrição integral da fundamentação e do dispositivo):
“II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Factos assentes
Com relevância para a decisão, baseados no teor dos documentos que integram os autos, consideram-se assentes os seguintes os factos:
1. O requerido sofreu a condenação transitada em julgado em 26.9.2019, junta ao requerimento inicial formulado pelo Ministério Público, nos autos da Ação Penal n° ....2010.........8300, de 08 (oito) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, a ser cumprida em regime fechado, em razão de condenação pela prática dos crimes tipificados no artigo 180, §1°, do Código Penal Brasileiro, c/c o artigo 71 do mesmo Código, melhor sintetizada no pedido de extradição:
Narra a sentença condenatória, transitada em julgado em 26/02/2019, que AA, BB, CC e DD, agindo em unidade de desígnios, de forma consciente e voluntária, adquiriram e revenderam, no exercício de atividade comercial, medicamentos desviados de hospitais públicos, durante, pelo menos, o período de 2005 a 2010.
Os denunciados AA e BB, sendo casados, foram proprietários e sócios-administradores da empresa C... Ltda. (CNPJ ...-96) e administradores e proprietários de fato das empresas ... F. C... (CNPJ 04.840.441/0001-52) e EE ... (CNPJ ...-45), empresas que usavam o nome fantasia M..., todas com objeto social que compreendia o comércio de medicamentos.
Conforme a acusação, por meio das citadas empresas, com auxílio consciente das funcionárias, ora denunciadas, CC e DD, eram receptados medicamentos desviados da rede pública de saúde, obtidos por meio de atravessadores, para posterior reinserção no mercado.
Para tal reinserção, por vezes teriam sido confeccionadas embalagens similares à original para acondicionar os medicamentos adquiridos sem caixa, com pretensa infração ao artigo 273, §1°, do Código Penal Brasileiro.
A associação dos denunciados seria de caráter permanente, tendo por finalidade a receptação dos medicamentos desviados da rede pública de saúde, para posterior reinserção no mercado.
A denúncia foi recebida em 27/05/2010. O réu AA apresentou defesa e foi interrogado. Contudo, do acervo probatório que se tem nos autos, que inclui diálogos interceptados com autorização judicial, restou comprovado que AA, com vontade livre e consciente, praticou o delito de receptação qualificada previsto no parágrafo primeiro, do artigo 180, do Código Penal Brasileiro.
2. Constando ainda do pedido:
Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, integralmente mantida nos Tribunais Superiores, foi deflagrada a execução definitiva da pena, com a expedição de mandado de prisão em desfavor do condenado, válido até 25/02/2031.
Em 27/07/2022, sobreveio a informação de que AA encontrava-se fora do território nacional, motivo pelo qual foi expedido alerta em Difusão Vermelha de Procurado Internacional.
Tipos penais:
As condutas narradas acima caracterizam a prática das infrações penais dispostas no artigo 180, §1°, do Código Penal Brasileiro, c/c o artigo 71 do mesmo Código, a seguir transcrito:
Código Penal Brasileiro - Decreto-Lei n. 2.848/1940
Receptação
Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Receptação Qualificada
§ 1° Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime. Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa.
Crime continuado
Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Prescrição:
De acordo com a legislação brasileira, a ação e/ou a(s) pena(s) relativas ao processo em epígrafe não estão prescritas.
3. Sua Excelência a Ministra da Justiça de Portugal considerou admissível o pedido de execução da sentença penal estrangeira, por despacho de 2.11.2023, que se transcreve:
Nos termos do disposto no artigo 95.º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, aprovada pela Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, verificados os requisitos previstos nos artigos 96.º, 98.º e 99.º da mesma Lei, e considerando a informação prestada pela Procuradoria-Geral da República, declaro admissível o pedido de execução de sentença penal estrangeira formulado pelas autoridades judiciárias do Brasil, proferida contra o cidadão AA pela 13ª Vara da Secção Judiciária de ..., Justiça Federal de Primeira Instância, transitada em julgado em 26 de fevereiro de 2019.
3. O arguido está em liberdade, em Portugal, sujeito ao termo de identidade que prestou e à obrigação de não se ausentar de Portugal, nos termos do artigo 200.º, n.º1, al. b) do Código de Processo Penal, por despacho proferido em 14.11.2023 no processo de extradição 553/23.5... que corre termos na 5ª secção deste Tribunal.
4. Nesse processo, por acórdão de 9.5.2023 foi autorizada “a extradição do cidadão brasileiro AA para a República Federativa do Brasil, para efeitos de cumprimento da pena de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão, que lhe foi imposta no processo-crime n.°...- 43.2010.........8300, da 13ª Vara da Secção Judiciária de ..., por sentença n° .../2011, de 18 de Março de 2011”.
5. Em face da suspensão do pedido de extradição por despacho proferido pela Sra. Juiz Federal da 36ª Vara Federal de Pernambuco, até ser decidido pelas autoridades judiciais portuguesas o pedido de cumprimento da pena em Portugal, foi decidida a suspensão da execução da entrega do Requerido ao Estado requerente por despacho de 12.5.2023.
6. À ordem do processo no qual foi condenado, o requerido esteve detido entre 29.4.2010 e 25.5.2010.
7. O requerido esteve detido à ordem do processo de extradição n.° 553/23.5..., que correu termos nesta Relação de Lisboa, 5.ª Secção, entre 16 de Fevereiro de 2023 e 17 de Fevereiro de 2023; e entre 31 de Março de 2023 e 14 de Novembro de 2023.
4. O requerido solicitou o cumprimento da pena em Portugal, a fim de aqui cumprir o remanescente daquela pena, que não se mostra extinta por prescrição, amnistia ou outro motivo.
5. As autoridades brasileiras, concordando com o deferimento do pedido do arguido, solicitaram às autoridades portuguesas o prosseguimento da execução da pena que àquele foi imposta.
6. É em Portugal que se encontra actualmente a família e amigos do arguido, aqui vivendo e trabalhando até ser detido no processo de extradição e, conforme factos provados no processo de extradição:
O extraditando veio para Portugal com a sua mulher em Abril de 2019 onde ambos residem desde então, tendo o filho de ambos se juntado a eles há cerca de 2 anos. A sua esposa e filho têm nacionalidade portuguesa.
O extraditando tem autorização de residência em Portugal válida até 26 de Julho de 2027 e trabalha numa empresa como motorista de pesados desde 1.02.2023.
A esposa do extraditando trabalha como empregada de escritório e aufere o salário mínimo. Ambos suportam o pagamento de todas as despesas essenciais e da renda da casa onde vivem, que é de 550,00€ por mês. Ambos apresentam, conjuntamente, declaração para efeitos de IRS e têm empréstimos a bancos portugueses.
O extraditando toma regularmente medicação para a diabetes e hipertensão.
A mulher e filho do extraditando não têm meios económicos que lhes permitam visitar o extraditando no estabelecimento prisional no Brasil, no caso de extradição do mesmo.
B) Enquadramento jurídico
Estabelece o art. 95º nº 1, da Lei 144/99 que as sentenças penais estrangeiras, transitadas em julgado, podem ser executadas em Portugal e o artigo 100º nº 1 do mesmo diploma dispõe que a força executiva da sentença estrangeira depende de prévia revisão e confirmação, segundo o disposto no Código de Processo Penal, que no seu artigo 235º nº 1 contém disposição semelhante.
O art. 237º do Código de Processo Penal define várias condições que são necessárias para a confirmação de sentença penal estrangeira e no seu 240º determina que neste procedimento se sigam os trâmites da lei do processo civil em tudo quanto a lei especial não prevê, o que nos remete para o art. 1096º que, por seu turno, também, define vários requisitos necessários para a confirmação.
Mas, nesta matéria, há que ter, ainda, em conta o disposto no art. 96º nº 1 da Lei 144/99 que prevê várias condições especiais de admissibilidade do pedido de execução, em Portugal, de uma sentença penal estrangeira. Pedido de execução que, sendo admitido, implica o cumprimento da pena em Portugal1, sendo então aplicável o disposto nos art.s 95º a 103º, 114º a 116º e 122º a 125.º daquele diploma legal.
O formalismo, designadamente o de natureza administrativa previsto no artigo 99º da Lei 144/99, mostra-se cumprido e estão reunidos os requisitos de forma:
• o pedido de execução foi submetido pela Autoridade Central (PGR) a apreciação do Ministro da Justiça, que o considerou admissível e autorizou a transferência do condenado para Portugal a fim de aqui cumprir a pena;
• o condenado é cidadão estrangeiro que reside habitualmente em Portugal (art. 96º nº 1 al. f) da Lei 144/99);
• as penas em que foi condenado o arguido respeitam a crime da competência dos tribunais do Estado estrangeiro, já que cometidos em território brasileiro, por cidadão brasileiro (art. 96º nº 1 al. a) da Lei 144/99 e art. 1096º al. c) do Código de Processo Civil);
• nada indica que os mesmos factos tenham sido objecto de procedimento penal em Portugal (artigo 96º nº 1 al. d) da Lei 144/99);
• esses mesmos factos, em Portugal, também são penalmente punidos, constituindo crime de receptação, previstos e puníveis pelo art. 231º nº 1 do Código Penal (art. 96º nº 1 al. e) da Lei 144/99 e art. 237º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal);
• o pedido não contraria princípios fundamentais do ordenamento jurídico português (art. 96º nº 1 al. c) da Lei 144/99 e art. 1096º al. f) do Código de Processo Civil);
• existe lei e convenção que permitem que a sentença tenha força executiva em território português (art. 237º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal);
• os referidos ilícitos penais não são qualificáveis, segundo a lei portuguesa, como crimes contra a segurança do Estado (art. 237º nº 1 al. e) do Código de Processo Penal);
• o processo criminal decorreu com intervenção do arguido, com observância dos princípios do contraditório e do duplo grau de jurisdição (tendo sido exercido o direito ao recurso) e nada permite fazer duvidar que as garantias de defesa do mesmo tenham sido respeitadas e este foi assistido sempre por defensor (art. 237º nº 1 al. d), do Código de Processo Penal);
• a sentença condenatória, de acordo com a lei brasileira, está transitada em julgado (art. 1096º al. b) do Código de Processo Civil).
Ainda em matéria de requisitos de forma, importa sublinhar:
• a duração da pena imposta na sentença é superior a um ano (art. 96º nº 1 al. i) da Lei 144/99) e a duração da condenação que tem ainda de cumprir é superior a um ano (art. 3º da Convenção sobre a Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa);
• a transmissão da execução de sentença não depende do consentimento do condenado, já que foi este quem a solicitou;
• não há motivo para duvidar da autenticidade dos documentos com que foi instruído o pedido, nomeadamente dos documentos de que consta a sentença, que são perfeitamente inteligíveis.
*
Os interesses que presidem a esta forma de cooperação judiciária em matéria penal são, sobretudo, os do condenado, por razões de natureza humanitária: dificuldades de comunicação devidas a barreiras linguísticas; a alienação da cultura e dos costumes locais; a falta de contactos com a família.
O pressuposto ou justificação material da transferência de pessoas condenadas radica na circunstância de a reinserção social do delinquente poder aconselhar o cumprimento da pena em país diverso do da condenação.
Uma das funções primordiais da pena é a reinserção social do delinquente e é tarefa do Estado proporcionar as condições para que não haja reincidência criminosa.
A família é por todos reconhecida como a instituição de socialização mais importante na vida de uma pessoa.
O condenado residia na ... e aí tem os seus familiares mais próximos.
Dadas a deslocação do agregado familiar para Portugal, é patente que é francamente menos relevante a ligação ao país da condenação e que é em Portugal que encontra a sua estabilidade familiar, como o próprio invoca no requerimento em que requereu a sua transferência para Portugal.
Por isso é legítimo concluir que o cumprimento da pena em Portugal permitirá uma melhor reinserção social do condenado2.
*
(…) Ainda assim, apesar de, na forma, a sentença ser diferente das sentenças prolatadas no nosso país, é bem clara na descrição da factualidade que permitiu a imputação ao requerido do crime em causa, ao assentar que o requerido e mulher eram apenas “administradores e proprietários de fato das empresas ... F. C... (…) e EE ...” (sublinhado do relator), que “por meio das citadas empresas; com auxílio consciente das funcionárias, ora denunciadas, CC e DD; eram receptados medicamentos desviados da rede pública de saúde, obtidos por meios atravessadores, para posterior reinserção no mercado”. “Para tal reinserção, por vezes teriam sido confeccionadas embalagens similares à original para acondicionar os medicamentos adquiridos sem caixa”. “A associação dos denunciados seria de caráter permanente, tendo por finalidade a receptação dos medicamentos desviados da rede pública de saúde, para posterior reinserção no mercado”. Bem assim, relativamente à prova pericial, também a sentença consigna a existência de “cópia de laudo de exame de produto farmacêutico” e afirma “ademais, as provas técnicas e de apreensão, mesmo quando produzidas na fase inquisitória, possuem o caráter de prova, e não de meros indícios, pela presença do contraditório, ainda que postergado para a ação penal”.(…)
*
(…) Por força da decisão do Supremo tribunal de Justiça, apenas importa determinar se a pena aplicável em Portugal integra o crime qualificado previsto no nº 4 do art. 231º do Código Penal e punível com pena máxima de oito anos de prisão ou o crime de receptação previsto no art. 231º nº 1 do Código Penal, punível com pena até cinco anos de prisão.
O crime pelo qual o AA foi condenado no Brasil é o de receptação qualificada, pelas seguintes circunstâncias: “§ 1° Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime. Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa”.
As circunstâncias qualificativas referidas não são as mesmas que operam no art. 231º nº 4 do Código Penal do ordenamento jurídico português.
Efectivamente, fazer da receptação modo de vida – entendida como “uma representação de estabilidade ligada, sem margem para dúvidas, a um comportamento que, em princípio se traduz em benefício pessoal e social”3 - não é o mesmo que ter as condutas que integram a factualidade típica do crime “no exercício da actividade comercial ou industrial”. Poderão ocorrer de correspondência entre as refeidas circunstâncias qualificativas mas não se pode afirmar a existência de uma relação directa entre ambas e in casu, não existe na factualidade elementos que permitam, com a segurança necessária, considerar verificada a circunstância qualificativa “modo de vida”.
Assim, a pena a cumprir é a correspondente ao limite máximo da pena pelo crime de receptação previsto e punido pelo art. 231º nº 1 do Código Penal que face ao decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nestes autos, se mostra ser a pena adequada aos factos e sua qualificação jurídica, em observância dos ditames do nosso ordenamento jurídico.
Quanto à pena de multa, conforme afirma o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, nos autos, “por requerimento de 14 de maio de 2024, foi junto ao processo documento, atestando que, por despacho datado de 8 de abril de 2024, a 36ª Vara Federal – Privativa de Execuções Penais e Crimes Dolosos Contra a Vida, concedeu indulto da pena de multa imposta a AA, no valor de R$ 17.331,13 (dezassete mil, trezentos e trinta e um reais e treze centavos)” pelo que a pena de multa não há lugar ao cumprimento de tal pena em Portugal.
III. DECISÃO
Acordam, em conferência, os juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em obediência ao acórdão do Supremo tribunal de Justiça proferido nestes autos, em:
• Indeferir as pretensões formuladas pelo Requerido nas suas alegações;
• Declarar revista e confirmada a sentença proferida pelo tribunal da República Federativa do Brasil, supra identificado, com vista à execução em Portugal da pena em que foi condenado o arguido AA, ficando este condenado pelo crime de receptação p. e p. pelo art. 231º nº 1 do Código Penal Português e adaptando-se a pena à lei portuguesa, fixando-se em cinco anos a pena que o condenado tem de cumprir.
Determina-se que, no cumprimento da pena de prisão, seja levado em conta todo o tempo de detenção do arguido no Brasil e o tempo de detenção à ordem do processo de extradição 553/23.5..., que corre termos nesta Relação de Lisboa, 5.ª Secção.
Sem tributação (art. 26º da Lei 144/99 de 31.8).
Após trânsito em julgado, comunique à Procuradoria-Geral da República e ao proc. 553/23.5..., da 5.ª Secção.
Oportunamente, cumpra-se o disposto no art. 103º nº 3 da Lei 144/99 de 31.8.”
* * * *
1. O recurso
Inconformado com essa decisão, dela veio interpor novo recurso AA, terminando as suas motivações com as seguintes conclusões (transcrição Integral):
“III
- CONCLUSÕES –
1. O arguido, ora recorrente, foi condenado por sentença proferida em 18 de novembro de 2011 e transitada em julgado em 26/02/2019, proferida pela 13.º Vara do Tribunal de Justiça Federal de ..., e confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça do Estado de ..., República Federativa do Brasil, na pena de 8 anos e 4 meses, pela prática de 1 crime de receptação qualificada, previsto e punido pelos artigos 180.º, parágrafo 1.º e artigo 71.º, do Código Penal da República Federativa do Brasil, crime este que encontra correspondência no artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal Português .
2. Conforme resulta do acórdão recorrido, os factos que motivaram a condenação do requeridosão puníveispela leiportuguesa, nostermosdo artigo 231.º, n.º1 do Código Penal Português, cuja pena máxima é de 5 anos de prisão.
3. O Tribunal recorrido declarou revista e confirmada a sentença revidenda, após o reenviodos presentesautospelo Supremo Tribunal de Justiça, adaptando a pena à lei portuguesa, fixando-se em cinco anos a pena que o condenado tem de cumprir.
4. É entendimento do recorrente que o tribunal “a quo” deveria ter-se pronunciado acerca da medida da pena, designadamente a sua substituição pela suspensão da execução da pena de prisão, nos termosdo artigo 50.º do Código Penal, por remissão dos artigos 3.º, n.º 1 e 2 e 101.º, n.º 1, 2 e 6, ambos da Lei 144/99, de 31 de agosto (LCJIMP), não o tendo feito.
5. Porquanto, segundo decisão do Supremo Tribunal de Justiça nestesautos, a execução de sentença penal estrangeira constitui uma forma de cooperação judiciária internacionalemmatéria penalque se rege, nos termosdo disposto nos artigos1.º, n.º 1, alínea c) e 3.º da LCJIMP, pelas “normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma
6. Com efeito, Portugal não está vinculado a qualquer tratado, convenção ou acordo internacionalnocasoemapreço, vistoque efectivamenteorecorrentejá seencontrava em Portugal.
7. Pelo que, as normasaplicáveisa estecaso são as constantesnosartigos95.º a 103.º, da Lei 144/99 de 31 de agosto.
8. O artigo 101.º da lei n.º 144/99, estatui no n.º 1 que “a execução de uma sentença estrangeirafaz-seemconformidadecomalegislaçãoportuguesa” e, non.º2, “que as sentenças estrangeiras executadas em Portugal produzem os efeitos que a lei portuguesa confere às sentenças proferidas pelos tribunais portugueses”, o que, salvo melhor opinião significa que a execução da pena se faz de acordo com a lei portuguesa.
9. Efectivamente, o artigo 100.º, n.º 2, alíneas a) e b) da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, estatui que o tribunal português está vinculado à matéria de facto considerada provada na sentença estrangeira e não pode converter uma pena privativa de liberdade em pena pecuniária, contudo o n.º 6 do artigo 101.º desse mesmo artigo estabeleceque “o indultoe o perdão genérico parciaisou a substituição da pena por outra são levados em conta na execução”.
10. Na realidade, a suspensão da execução pena de prisão corresponde a uma pena substitutiva, não correspondendo a uma pena pecuniária.
11. Ora, conformeAcórdãodo SupremoTribunal de Justiça, de 11/02/2021, proferido no âmbitodo processo762/19.1GBAGD.P1.S1, “não obstanteacircunstânciade formalmente o legisladorportuguêsnunca terconsagradoa suspensão da execuçãoda pena como uma"pena autónoma", é indubitável, quer a nível doutrinal, quer jurisprudencial, ter a suspensão emergido como uma espécie de pena de substituição.”
12. O facto de Portugal ter a possibilidade de aplicar penas substitutivas, nos termos da sua legislação, por remissão do artigo 101.º, n.ºs 1, 2 e 6 da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, não significa que altere a matéria de facto considerada provada na sentença estrangeira, motivo pelo qual está assegurado o previsto no artigo 100.º, n.º 2, alíneas a) e b), dessa mesma lei, desdeque não converta uma pena privativa de liberdade em pena pecuniária, o que não é o caso.
13. Por outro lado, podemos ainda afirmar com segurança que o regime de execução de sentenças penais estrangeirasestabelecido nos artigos 95.º e ss. da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, reproduz o dos artigos 89.º e ss. do DL n.º 43/91, de 22-01 (revogado pelo art. 166.º da Lei n.º 144/99), tem por fonte, nomeadamente, os artigos 42.º e 44.º da Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais (não obstante nunca ratificada ainda), pelo que a ordem de execução é precedida da conversão das sanções penais impostas no estrangeiro nas correspondentes da lei portuguesa, com as limitaçõesimpostas pelo n.º 2 do art. 100.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto e pelo n.º 3 do art. 237.º do CPP.
14. De acordo com o artigo 44.º desta Convenção, e segundo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de fevereiro de 2022, no âmbito do Processo n.º 1626/21.4YRLSB.S1, cujo relator foi o Sr.º Dr.º Juiz Conselheiro Lopes da Mota, “se o pedido de execução for aceiteo tribunaldo Estado de execução deve substituira pena privativa da liberdadeimposta no Estado da condenação por uma pena previstana lei interna do Estado de execução para o mesmo crime, a qual, não podendo agravar a situação do condenado (proibiçãoda reformatioinpejus)e estandovinculada aos factosescritosna condenação (artigo 42º), pode ser de duração diferente da imposta no Estado da condenação. Como se refere no respetivorelatórioexplicativo, este artigoconfere aoEstado de execução o direitode adaptar a sanção ao seu próprio sistema penal (…).”
15. Mais, no caso de sentenças penais estrangeiras“exige-se a revisão e confirmação da sentença estrangeira, para que possa produzir efeitos em Portugal, segundo a tradição do direito português, reafirmada no Código de Processo Penal vigente.”
16. Assim,segundo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 21/05/2024, nos presentesautos, processo n.º 3540/23.0YRLSB.S1, cujo relator foi o Sr. º Dr.º Juiz Conselheiro Celso Manata “a decisão estrangeira será assim modificada num dos seus aspetos essenciais, e, por via disso, a medida tomada pelo juiz do Estado da execução, mesmo quando aceitar a decisão estrangeirana parte relativaa declaração de responsabilidade do condenado, determina, em função da sua própria lei, a natureza e o quantum da pena, bem como todas as consequências que dela decorrem”.
17. Ora, a Legislação Portuguesa prevê a possibilidade da suspensão da execução de penas em medidas não superiores a 5 (cinco) anos, porquanto nos termosdo n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidadedo agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
18. Contudo, o Tribunal recorrido ao não ter justificado a aplicação ou não da pena suspensa, olvidou-se que o artigo 101.º, n.º 1 e 2 da lei n.º 144/99, de 31 agosto estabelece que “a execução de uma sentença estrangeira faz-se em conformidade com a legislação portuguesa” e “as sentenças estrangeiras executadas em Portugal produzem os efeitos que a lei portuguesa confere às sentenças proferidas pelos tribunais portugueses.”
19. Significa isto, salvo melhor entendimento, que em matéria de execução da pena e prevenção geral e especial da pena, devem valer as regras do Estado de Execução da sentença.
20. Porquanto, embora as necessidades de prevençãogeral variam consoanteos Estados, para as exigências de prevenção geral e especial deve-se relevar não só a personalidade do arguido, bem como as regrasdo Estado onde o arguido se encontra e ondecumprirá a pena deprisão, designadamentepara efeitosderessocialização. Ou seja, tendo sempre em conta o artigo 71.º do Código Penal.
21. Por esse motivo, o recorrente requereu ao Tribunal “a quo” a elaboração do seu relatório social.
22. Ademais, nostermosda ConvençãoRelativa à Transferência de PessoasCondenadas, que entrou em vigor em Portugal a 1 de outubro de 1983 e na República do Brasil a 1 de outubro de 2023, apesar de não se aplicar a este caso, todavia, poderá servir de fonte interpretativa na localização do espírito dos Estados contratantes e face às reservas de Portugal, existe uma “diferença fundamental entre o procedimento de "continuação da execução", previsto no seu artigo 10.º, e o procedimento de "conversão da condenação", previstonoartigo11.º, é que, no primeirocaso, o tribunalde execução continua a executar a sentença proferida pelo tribunal de condenação (eventualmente adaptada nos termos do n.º 2 do artigo 10.º), enquanto no segundo caso, a sanção é convertida numa sanção do Estado de condenação, o que tem por resultado que a pena executada já não se baseiadiretamentena sançãoimpostanoEstado de condenação” (Acórdãodo Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 23/05/2024, processo n.º 2681/23.8YRLSB.S1, cujo relator foi Sr. º Dr.º Juiz Conselheiro Agostinho Torres).
23. Com efeito, no caso em apreço, estamos perante uma “conversão da condenação” e não uma “continuação da execução”.
24. Assim sendo, o Tribunal “a quo”, por ser Órgão do Governo com Soberania, sob a óptica do recorrente, tem plena competência para aplicar ao caso presente a Legislação Portuguesa.
25. Uma vez que o Governo Português admitiu o pedido de execução em Portugal da Sentença Brasileira que condenou o recorrente, sendo ela inteligível e não contendo disposições contrárias ao ordenamento jurídico Português, deve aplicar-se o constante na legislação portuguesa.
26. Com efeito, o recorrente, nos presentes autos de revisão, foi condenado a uma pena de 5 (cinco) anos de prisão.
27. O recorrente é primário, sem antecedentes criminais.
28. O recorrente trabalha e está bem integrado socialmente.
29. Desde que se iniciou o procedimento judicial contra sua pessoa, o recorrente demonstrou um alto respeito pelas autoridades judiciárias, nunca se furtando à sua responsabilidade, quer no que diz respeitoao comparecimentodasdiligênciaspara o qual foi convocado, bem como pela apresentaçãodiária na esquadra da PSP aquando da sua determinação.
30. Também quando esteve preso no Estabelecimento Prisional da Polícia Judiciária em Lisboa e depois no Estabelecimento Prisional de Lisboa, no âmbito dos presentes autos, a sua conduta carcerária foi irrepreensível até o dia em que foi colocado em liberdade.
31. Efectivamente, não há nenhum benefício à Sociedade ser o recorrente preso neste momento da sua vida em que está sendo altamente produtivo.
32. Ademais, segundo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 11/02/2021, no âmbito do processo n.º 762/19.1GBAGD.P1.S1, nostermosdo art. 40.º do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurançavisa aprotecçãode bens jurídicosea reintegraçãodoagentena sociedade”, “devendo a sua determinação ser feitaem função das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no art. 71.º, do mesmodiploma.” (…) “Esteregimeencontra os seus fundamentosno art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, sendo que a restrição do direito à liberdade, por aplicaçãode umapena (art. 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, talcomoa sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelarnecessária aos fins visados, que não podem ser realizadospor outros meiosmenos onerosos– adequação – que implicaque a pena deva ser o meioidóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidadeem sentido estrito– de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”.
Em suma,
33. Conformeditoanteriormente, estabeleceoartigo3.ºda lein.º144/99, de 31 deagosto, no seu n.º 1 que “as formas de cooperação a que se refere o artigo 1.º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionaisque vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma”, sendo que o n.º 2 estatui que “são subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.”
34. Portugal não está vinculado a qualquer tratado, convenção ou acordo internacional no caso emapreço, visto que efectivamenteorecorrentejá se encontrava emPortugal.
35. Pelo que, salvo melhor opinião em contrário, iremos aplicar as normas da LCJIMP, bem como subsidiariamente as disposições do CPP, sendo que o artigo 101.º, n.º 6 da LCJIMP, que temcomo epígrafedireitoaplicável eefeitosde execução, estabeleceque “(…) a substituição da pena por outra são levados em conta na execução”.
36. Deveria o Tribunal recorrido ter-se pronunciado sobre a questão supra.
37. Porquanto, segundo decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo 1626/21.4YRLSB.S1, de 23/02/2022, cujo relator foi o Juiz Conselheiro Lopes da Mota, acórdão este que versa sobre a execução de sentença estrangeira, designadamentea revisão e confirmaçãodesentença penalestrangeira, nostermosda cooperação judiciária internacional em matéria penal: “a omissão de pronúncia quantoà substituiçãodapena constituinulidade do acórdão, nos termosdo disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, a qual, dizendo respeitoà determinaçãoda pena, o que se inscreve no objeto do processo, deve ser suprida pelo tribunal recorrido.”
38. Errou o Tribunal recorrido ao não se ter pronunciado sobre da possibilidade da suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50.º do Código do Processo Penal, por remissão dos artigos 3.º, n.º 1 e 2 e 101.º, n.º 1, 2 e 6, ambos da Lei 144/99, de 31 de agosto (LCJIMP).
39. Impõe-se, assim, declarar a NULIDADE do acórdão proferido.
40. Face ao exposto, deveria o Tribunal recorrido pronunciado sobre a suspensão da execução da pena, nostermosda legislação portuguesa e com base nas finalidadesde prevenção geral e especial das penas.
41. O Tribunal recorrido ao ter adaptado a pena, nos termos do artigo 237.º, n.º 3 do Código do Processo Penal, olvidou-se do artigo 101.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 agosto estabeleceque “a execução de uma sentença estrangeirafaz-se em conformidadecom a legislação portuguesa”.
42. Errou o Tribunal recorrido ao não ter aplicado a norma constante do artigo 101.º, n.º 6 da Lein.º 144/99, de 31 agosto que estabelece“(…)a substituiçãoda pena por outra são levados em conta na execução.”
43. O Tribunal recorrido violou as normas previstas no artigo 101º, nº 1, 2 e 3 da lei 144/99, de 31 agosto que estabelecem respectivamente, “a execuçãode uma sentença estrangeira faz-se em conformidade com a legislação portuguesa”, “as sentenças estrangeiras executadas em Portugal produzem os efeitos que a lei portuguesa confere às sentenças proferidas pelos tribunais portugueses”, “(…) a substituição da pena por outra são levados em conta na execução.”
Pelo exposto, e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimentodeV. Exa., deverão julgar verificada, nostermosdoartigo379.º, n.º 1, al. c), e 2, do Código de Processo Penal, a nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à substituição da pena e, por conseguinte, deverá o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que se pronuncie quantos aos argumentos supra aduzidos, designadamentepor outro que suspenda a execução da pena, uma vez que a pena de 5 (cinco) anos imposta é inferiorao previstono artigo 50.° do CP, por remissão do artigo 101.º, n.º 1, 2 e 6 da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (LCLIMP), suprimindo a nulidade”
2. A resposta do Ministério Público
No Tribunal da Relação de Lisboa o Ministério Público apresentou resposta, da qual se transcrevem, integralmente, as respetivas conclusões:
“Concluindo:
“I. Considerando o regime legal aplicável à presente situação constante do artigo 95 a 103
da lei 144/99 de 31 de agosto, concretamente do disposto nos artigo 101 n.º 1, 2 e 6 do mesmo diploma, resulta que a execução da sentença estrangeira se efectua em conformidade com a lei portuguesa.
II. Nos presentes autos , no acórdão ora recorrido foi decidido:
Acordam, em conferência, os juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em obediência ao acórdão do Supremo tribunal de Justiça proferido nestes autos, em:
- Indeferir as pretensões formuladas pelo Requerido nas suas alegações;
- Declarar revista e confirmada a sentença proferida pelo tribunal da República Federativa do Brasil, supra identificado, com vista à execução em Portugal da pena em que foi condenado o arguido AA, ficando este condenado pelo crime de receptação p. e p. pelo art. 231º nº 1 do Código Penal Português e adaptando-se a pena à lei portuguesa, fixando-se em cinco anos a pena que o condenado tem de cumprir.
III. Decorre do teor do artigo 50º do Código Penal Português a imperatividade da consideração da possibilidade de verificação dos pressupostos de aplicação de suspensão de execução da pena de prisão em medida não superior a cinco anos.
IV. A omissão desta ponderação faz incorrer o tribunal no vicio de omissão de pronuncia nos termos do art.º 379.º, n.ºs 1, al. c) e 2, do Código de Processo Penal.”
3. O Parecer do Digníssimo Procurador-Geral Adjunto
Admitido o recurso e remetido o mesmo a este Supremo Tribunal de Justiça, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, também no sentido do provimento do recurso, consignando, no essencial, o seguinte (transcrição parcial):
“Conforme previamente exposto, o STJ mandou converter a pena de 8 anos e 4 meses de prisão aplicada ao arguido no processo n.º ....2010.........8300 da 13.ª Vara da Secção Judiciária de ... pela prática de um crime continuado de recetação, p. e p. pelos arts. 180.º, § 1.º e 71.º do CP do Brasil, na que coubesse face à moldura penal do correspondente crime de recetação do CP Português.
Em cumprimento do decidido, o TRL reduziu a medida da pena para 5 anos de prisão (limite máximo previsto no art. 231.º, n.º 1, do CP), mas não se pronunciou nem ponderou a possibilidade da suspensão da respetiva execução nos termos do art. 50.º do CP sendo certo que não estava inibido de o fazer diante dos limites estabelecidos no art. 100.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto:
(…)
2 - Quando se pronunciar pela revisão e confirmação, o tribunal:
a) Está vinculado à matéria de facto considerada provada na sentença estrangeira;
b) Não pode converter uma pena privativa de liberdade em pena pecuniária;
c) Não pode agravar, em caso algum, a reação estabelecida na sentença estrangeira.
(…)
E daí que o mesmo seja nulo nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP (v. o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.03.2012, processo 484/10.4PBSTR.E1, relatado pelo desembargador Edgar Valente, in www.dgsi.pt, com numerosas referências jurisprudenciais).
4. Ausência de resposta ao Parecer
Notificado o recorrente do parecer do Ministério Público nada veio responder.
5. Sequência processual
Após exame preliminar e vistos legais, foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora explicitar os fundamentos e a deliberação tomada.
II- Delimitação das questões a conhecer no âmbito do presente recurso
Visando permitir e habilitar este Supremo Tribunal a conhecer as razões de discordância da decisão recorrida e tal como tem sido, aliás, posição pacífica da jurisprudência, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, devidamente congruentes, que o(s) recorrente(s) extrai(em) da respetiva motivação, sem prejuízo da ponderação das questões que sejam de conhecimento oficioso. (4)
No caso em apreço a questão a apreciar consiste em apurar se o acórdão recorrido é nulo – 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal - por ter omitido pronúncia quanto à possibilidade de suspensão da execução da pena de 5 Anos que fixou ao arguido, na sequência da revisão da sentença estrangeira acima identificada.
III – Fundamentação
3.1. Os Factos
Os factos a ter em consideração nos presentes autos são os que foram dados como provados na sentença brasileira e que constam no acórdão recorrido que atrás transcrevemos integramente.
Com efeito, nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 100º da LCJIMP, o tribunal português está vinculado à matéria de facto considerada provada na sentença estrangeira.
Assim, apenas há a acrescentar que, por requerimento de 14 de maio de 2024, foi junto ao processo documento, atestando que, por despacho datado de 8 de abril de 2024, a 36ª Vara Federal – Privativa de Execuções Penais e Crimes Dolosos Contra a Vida, concedeu indulto da pena de multa imposta a AA, no valor de R$ 17.331,13 (dezassete mil, trezentos e trinta e um reais e treze centavos).
3.2. O Direito
3.2.1. Questão Prévia
3.2.1. O (in)cumprimento da decisão deste Supremo Tribunal de Justiça
Antes de abordarmos a questão colocada pelo recorrente impõe-se que verifiquemos se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa cumpriu o determinado por este Supremo Tribunal.
Com efeito, como se sabe, nos termos do disposto artigo 15.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais5 os tribunais judiciais encontram-se hierarquizados para efeitos de recurso das suas decisões.
E, nos termos do nº 1 do artigo 3º do mesmo diploma legal:
“2 - A independência dos tribunais judiciais é garantida pela existência de um órgão privativo de gestão e disciplina da magistratura judicial, pela inamovibilidade dos respectivos juízes e pela sua não sujeição a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.”
Aliás também o Estatuto dos Magistrados Judiciais6 estabelece no nº 1 do seu artigo 4º que:
“1 - Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.”
Passando ao caso concreto e como atrás se deixou transcrito, o que foi determinado por este Supremo Tribunal de Justiça, através de acórdão proferido a 21 de maio foi que:
“Pelo exposto, julga-se o recurso procedente quanto à adaptação/conversão da pena de prisão solicitada, a efetuar no Tribunal recorrido nos termos atrás mencionados no ponto 3.2.4.”
Sendo que, no “ponto 3.2.4.”, se escreveu o seguinte:
“3.2.4. Conclusão
Face a todo o exposto, conclui-se que, tendo em conta que, no caso em apreço, a sentença proferida pela 13ª Vara da Secção Judiciária de ... – República Federativa do Brasil – aplicou a AA a pena de 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática do crime continuado de recetação, previsto e punível pelos artigos 180º, §1° e 71º do Código Penal da República do Brasil, e dado que os factos que estiveram na base de tal condenação são puníveis pelo artigo 231º do Código Penal Português com pena de prisão cujo limite máximo se situa nos 5 (cinco) anos ou nos 8 (oito) anos – caso se considere que o agente fez da recetação modo de vida -, há que adaptar aquela pena a esta moldura penal, nos termos do disposto no nº 3 do art. 237º do Código de Processo Penal.”
Finalmente, dispõe o nº 3 do artigo 237º do Código de Processo Penal o seguinte:
“3 - Se a sentença penal estrangeira tiver aplicado pena que ali portuguesa não prevê ou pena que a lei portuguesa prevê, mas em medida superior ao máximo legal admissível, a sentença é confirmada, mas a pena aplicada converte-se naquela que ao caso coubesse segundo a lei portuguesa, ou reduz-se até ao limite adequado. Não obsta, porém, à confirmação a aplicação pela sentença estrangeira de pena em limite inferior ao mínimo admissível pela lei portuguesa.” (negrito nosso)
Ou seja, para além de esclarecer que a expressão “máximo legal” contida no artigo em causa não se reporta ao que vem estabelecido no artigo 41º do Código Penal, mas sim à pena máxima aplicável a cada um dos crimes previstos na parte especial desse diploma legal, o que este Alto Tribunal esperava – e determinou - que o Tribunal da Relação de Lisboa tivesse feito era que, apreciando a matéria de facto apurada e tendo em conta a moldura abstrata do crime a que a mesma era subsumível, encontrasse a pena concreta que “ao caso coubesse”.
Com efeito, para além de ser isso que já resultava dos excertos do nosso acórdão atrás transcritos, dúvidas não podiam ficar da sua leitura integral.
De facto, e para o confirmar, transcrevem-se apenas mais os seguinte trechos dessa decisão:
“Por outro lado, e como refere o Juiz Conselheiro Lopes da Mota7:
“Deve notar-se que o regime de execução de sentenças penais estrangeiras estabelecido nos artigos 95º e seguintes da Lei nº 144/99, reproduz o dos artigos 89º e seguintes do Decreto-lei nº 43/91, 22 de janeiro (revogado pelo artigo 166º da Lei nº 144/99), que tem por fonte, nomeadamente, os artigos 42º e 44º da Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais (“European Convention on the International Validity of Criminal Judgements”), de 28.5.1970, do Conselho da Europa, assinada por Portugal em 1979, mas ainda não ratificada (cfr. Manuel A. Lopes Rocha e Teresa Alves Martins, Cooperação Judiciária em Matéria Penal (Comentários), Aequitas/Editorial Notícias, 1992). De acordo com o artigo 44º desta Convenção, se o pedido de execução for aceite, o tribunal do Estado de execução deve substituir a pena privativa da liberdade imposta no Estado da condenação por uma pena prevista na lei interna do Estado de execução para o mesmo crime, a qual, não podendo agravar a situação do condenado (proibição da reformatio in pejus) e estando vinculada aos factos escritos na condenação (artigo 42º), pode ser de duração diferente da imposta no Estado da condenação. Como se refere no respetivo relatório explicativo, este artigo confere ao Estado de execução o direito de adaptar a sanção ao seu próprio sistema penal (cfr. “Explanatory Report – ETS 70 – International Validity of Criminal Judgements”, em www.coe.int).
No caso de sentenças penais estrangeiras - lê-se no preâmbulo do Decreto-lei nº 43/91 – “exige-se a revisão e confirmação da sentença estrangeira, para que possa produzir efeitos em Portugal, segundo a tradição do direito português, reafirmada no Código de Processo Penal vigente. A ordem de execução é precedida da conversão das sanções impostas no estrangeiro nas correspondentes da lei portuguesa”
Também de acordo com Manuel A. Lopes Rocha e Teresa Alves Martins8:
“A decisão de reconhecimento tem por fim permitir, à sentença estrangeira, a produção de efeitos jurídicos constantes das regras internas.
Nesta conformidade desempenha uma função de facto jurídico e a decisão de reconhecimento, mais do que versar sobre uma relação substancial que já foi objeto da sentença estrangeira, tem um alcance puramente processual.
Nessa medida, analisa-se como uma conditio juris relativamente à sentença estrangeira. Dito de outro modo, aquilo que tem o valor de ato jurídico no sistema originário, deve ter igualmente esse valor no outro sistema não em razão da qualificação originária, mas em razão do facto novo da “nacionalização”, da expressão da vontade do juiz, em virtude da qual um simples facto material, produtor de efeitos jurídicos (facto jurídico em sentido próprio) se transforma em facto jurídico voluntário correlativo (acto jurídico).
Diferentemente do reconhecimento de uma sentença civil, o da sentença penal deve fixar imperativamente, no quadro da legislação do país da execução, a pena ou medida a executar.
A disparidade das legislações penais, tanto no que respeita às sanções como no que concerne às suas modalidades de execução, implica o reconhecimento, ao juiz do Estado da execução, do poder de adaptar a sanção infligida à luz das normas da sua legislação. A decisão estrangeira será assim modificada num dos seus aspetos essenciais, e, por via disso, a medida tomada pelo juiz do Estado da execução, mesmo quando aceitar a decisão estrangeira na parte relativa a declaração de responsabilidade do condenado, determina, em função da sua própria lei, a natureza e o quantum da pena, bem como todas as consequências que dela decorrem. (…)
Face a todo o exposto, entende-se que o acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, analisando os factos dados como provados na sentença estrangeira, a adapte à legislação nacional, aplicando ao recorrente uma pena que não ultrapasse o limite máximo da moldura abstrata do crime de recetação, previsto e punível pelo artigo 231º do Código Penal.”
Ora, o que Tribunal da Relação fez foi, depois de subsumir os factos ao “crime de receptação p. e p. pelo art. 231º nº 1 do Código Penal Português”, fixar a pena em 5 anos de prisão, por ser esse limite máximo dessa pena ao mesmo aplicável.
Concluindo, o acórdão recorrido não acatou completamente o decidido por este Supremo Tribunal de Justiça
Tal circunstância seria suficiente para que se determinasse a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para completo cumprimento do decidido por este Alto Tribunal.
3.2.2 A falta de fundamentação do decidido
Desde logo nos termos do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”
E, nos termos do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, tais decisões têm de indicar “os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão”, sendo que, no caso de serem condenatórias e face ao disposto no artigo 375º do mesmo diploma legal, impõe-se-lhe ainda que “especifique os fundamentos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada”
Ora, nada disto foi feito pelo acórdão recorrido, assim incorrendo na nulidade a que se reporta o artigo 379º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal.
3.2.3 A Omissão de Pronúncia
Como atrás se referiu o Acórdão recorrido entendeu fixar a pena em 5 anos de prisão.
Assim e face ao disposto nos artigos 50º e sgs. do Código Penal a execução de tal pena podia, desde que verificados os requisitos legais, ser suspensa.
Com efeito e como refere o digníssimo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça o Tribunal da Relação de Lisboa “não estava inibido de o fazer diante dos limites estabelecidos no art. 100.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto:
(…)
2 - Quando se pronunciar pela revisão e confirmação, o tribunal:
a) Está vinculado à matéria de facto considerada provada na sentença estrangeira;
b) Não pode converter uma pena privativa de liberdade em pena pecuniária;
c) Não pode agravar, em caso algum, a reação estabelecida na sentença estrangeira.
(…) “
Contudo, o acórdão recorrido não se pronunciou sobre tal matéria.
Ora, configurando o artigo 50º do Código Penal a suspensão da execução da pena como um poder-dever, como um poder vinculado do julgador, o tribunal, quando aplique uma pena de prisão não superior a 5 anos tem sempre de fundamentar, especificadamente, quer a concessão quer a denegação da aludida suspensão da execução da pena.
Com efeito, tem sido essa a jurisprudência pacífica, quer deste Supremo Tribunal de Justiça, quer do Tribunal Constitucional.
A esse propósito recorde-se o Ac. do Tribunal Constitucional 61/2006, de 18 de janeiro de 2006, que decidiu “a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do CPP, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos; e, consequentemente b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade. 9.
E, por todos, recorde-se também o acórdão de fixação de jurisprudência 8/2012 deste Supremo Tribunal de Justiça de 24 de junho, no qual se escreveu o seguinte:
“A suspensão como um poder-dever, exercício de um poder vinculado. - A aplicação de uma pena de substituição não é uma faculdade discricionária do tribunal mas, pelo contrário, constitui um verdadeiro poder/dever.
Como afirmava Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 515, p. 341, face ao artigo 48.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, não se trata de mera «faculdade» em sentido técnico-jurídico, antes de um poder estritamente vinculado e portanto, nesta acepção, de um poder-dever.
Maia Gonçalves, no Código Penal Português Anotado, 8.ª ed., 1995, p. 314, afirmava: «Trata-se de um poder-dever, ou seja de um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos.»
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, de forma pacífica, tratar-se a suspensão da execução de um poder-dever, de um poder vinculado do julgador, tendo o tribunal sempre de fundamentar, especificadamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão.”
Concluindo, ao nada consignar sobre esta matéria o acórdão recorrido incorreu em omissão de pronuncia, estando ferido de nulidade nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal.
Tal circunstância, que leva também à procedência do recurso, implica que o processo volte ao Tribunal da Relação de Lisboa para conhecimento daquela possibilidade de suspensão de execução da pena.
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, declarando-se nulo o acórdão recorrido, determina-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para adequado cumprimento do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21 de maio de 2024.
Sem custas
Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada
(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Celso Manata (Relator)
Jorge Bravo (1º Adjunto)
Antero Luís (2º Adjunto)
_______________
1. Convenção sobre a Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Praia, em 23 de Novembro de 2005 aprovada por Resol. da AR n.º 48/2008, de 15.9, e art.s. 95º a 103º, 114º a 116º e 122º a 125º, da Lei 144/99.
2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.2.2010, no proc. 42/10.8YFLSB, em www.dgsi.pt.
3. Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2022, no proc. 90/17.7GBFND.C2.S1.
4. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
5. Lei 38/87, de 23 de dezembro.
6. Lei 21/85, de 30 de julho, na redação da Lei 9/2011 de 12 de abril
7. Ac. do STJ de 23 de fevereiro de 2023 – Proc. 1626/21.4YRLSB.S1 in www.dgsi.pt
8. “Cooperação Judiciária em Matéria Penal (Comentários), Aequitas/Editorial Notícias, 1992, págs. 155 e ss.