NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CRIME DE DIFAMAÇÃO
OFENSA A ADVOGADO
Sumário


1. O virtuosismo literário, a elasticidade verbal, o dom da escrita e a capacidade de verbalização do pensamento variam de pessoa para pessoa, sendo certo que uma decisão jurisdicional nada tem que ver com uma peça literária ou com um exercício de estilo, devendo os tribunais esforçar-se por produzir decisões sintéticas, mas abrangentes, o que é mais difícil, mas muito mais, do que fazê-las longas e enfadonhas - deve apenas ter o suficiente para ser compreendida, mas deve ter tudo o que é necessário para o ser.
2. Há muito que está estabilizada na Jurisprudência a firme orientação de que a apreciação das questões submetidas à apreciação do tribunal não reclama a análise e esmiuçada ponderação de todos os argumentos arrolados pelos sujeitos processuais, sendo apenas necessário que a questão seja suficientemente apreciada e decidida de forma compreensível, mas, naturalmente, não é imprescindível que seja aceite por todos
3. A nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal sanciona a falta de fundamentação (“é nula a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2 (…) do art.º 374.º” - cfr. art.º 380.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP), e não os casos de fundamentação menos brilhante ou menos conseguida por parte de quem escreve – o importante é que se possam perceber a decisão e os seus motivos. Saber, depois, se foi ou não bem decidido é outra questão. E é sempre muito mais difícil atingir a completude com a sempre desejável concisão do que com a balofa prolixidade, e é seguro que a concisa completude será sempre, naturalmente a seguir ao acerto, a maior qualidade de qualquer decisão judicial.
4. A inclusão no texto de um requerimento dirigido a um tribunal no âmbito de um processo executivo da afirmação que a agente de execução e a mandatária da exequente (…) montaram a encenação com o intuito de enganar, coagir e extorquir o requerente para que este pagasse dívidas que não lhe eram devidas nem imputáveis, constitui, objetivamente, imputação ofensiva da honra ou consideração das visadas.

Texto Integral


I RELATÓRIO

1
No processo n.º 627/22...., do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, teve lugar a audiência de julgamento durante a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

6.1. – Condenar o arguido AA pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelo pelos artigos 180.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de sete euros.
6.2.- Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se em 5 UC`s a taxa de justiça
6.3.- Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante BB  contra o demandado AA e, em consequência, condenar o demandado a pagar à demandante uma indemnização de mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento.

2
Dissentindo do decidido, o arguido AA interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. O Recorrente foi acusado, como autor material, na forma consumada na prática de um crime de difamação agravada p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal.
 
II. O Tribunal a quo condenou o Recorrente pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelo pelos artigos 180.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de sete euros, bem como julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante.

III. A Sentença enferma de vários vícios, nomeadamente, a errada aplicação do Direito (em especial, e previamente aos demais, por ignorar o previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto (Lei da Perdão de penas e amnistia de infrações), a errada subsunção dos factos ao direito, a falta de fundamentação e a violação de princípios gerais de direito penal e do direito constitucional de defesa.  
 
IV. Do mesmo modo que a Acusação é indeterminada e genérica quanto às expressões ofensivas da “honra” e “consideração”, também a sentença não determinou, nem esclareceu em concreto, quais os factos ou os juízos manifestados pelo arguido/recorrente que preenchem o tipo do crime em causa.
 
V. Na sessão de julgamento o arguido/Recorrente prestou declarações confessando a autoria dos escritos que lhe foram imputados, enquadrando, contextualizando e limitando os mesmos ao exercício do seu direito de defesa e expressão directa e objectiva dos seus sentimentos e percepção da realidade dos acontecimentos.
 
VI. Os escritos não visavam a ofensa da honra e consideração da assistente (que terá sido a única a sentir-se ofendida já que a primeira denunciada, a agente de execução CC, não se sentiu ofendida) mas a justificar o vício da vontade com que terá assumido uma dívida alheia.
 
VII. São vários os vícios de que enferma a sentença, desde logo porque, oportunamente e ex officio, o Tribunal a quo não fez a correcta aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto (Lei da Perdão de penas e amnistia de infracções).
 
VIII. A sentença do Tribunal a quo enferma do vício de falta de fundamentação e violação de princípios gerais de direito penal e do direito constitucional de defesa.  
 
IX. O Tribunal a quo não efectuou uma apreciação explícita dos argumentos expostos pela defesa, nem enquadrou ou contextualizou sequer as expressões empregues pelo arguido, diga-se, única e exclusivamente, no âmbito e nos limites da disputa processual para defesa dos seus legítimos interesses, designadamente, enquanto terceiro de boa fé levado a crer (acreditar), por acção efectiva da Assistente e de outros intervenientes na diligência de penhora, que só o pagamento da dívida em cobrança poderia evitar a remoção dos seus bens, do interior da sua casa.
 
X. O Tribunal a quo ignorou integralmente, não apreciando nem valorando, a prova escrita constante dos documentos juntos ao processo com a contestação (e na fase da instrução).
 
XI. O Tribunal a quo fez errada subsunção dos factos ao direito, no que concerne à dignidade criminal dos escritos e, especialmente, na tipificação do escrito na notificação remetida à assistente como crime de difamação.
 
XII. Porque o tribunal a quo não o fez ex officio, em 6.11.2023, o Recorrente requereu, fosse declarada a extinção da infracção penal imputada por amnistia, nos termos do estatuído no art. 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
 
XIII. O tribunal a quo apenas na sentença se pronunciou e decidiu pela não amnistia;
 
XIV. A decisão, para além de faltar a fundamentação legal e contrariar aquele que tem sido o entendimento dos tribunais sobre a Lei em causa, ao mencionar entre os dois motivos (um dos quais a interpretação da lei) “a idade do arguido”, incorre em grave e incompreensível erro, já que o arguido/recorrente tinha 30 anos de idade à data da prática dos factos.
 
XV. O arguido cumpria, portanto, o requisito da idade.
 
XVI. Quanto à aplicação da Lei da Amnistia e seu ao alcance, são já muitas as decisões conhecidas, algumas divulgadas na comunicação social, com destaque, pela sua “dimensão”, as notícias de 04.03.2024, relativamente ao caso “DD” que, de um total de 377 crimes imputados, apesar de pronunciado pela prática de 242 crimes, o arguido beneficiou da amnistia de 134 crimes de violação de correspondência (cujo crime, nos termos do art. 194.º do Cod. Penal é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias).
 
XVII. O recorrente foi julgado e condenado num procedimento criminal que deveria ter sido declarado extinto por amnistia por efeito do estatuído no art. 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
 
XVIII. Sem prescindir, por mero dever de defesa, cumpre também mencionar que, mesmo entendendo o Tribunal a quo não amnistiar o procedimento criminal (art. 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto), teria de aplicar o perdão da pena, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 3.º
 
XIX. Será lapso a existência de dois pontos com o n.º 17. Bem como a menção no ponto 9. Com o teor “o Arguido apresentou um requerimento no processo com o n.º 1467/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão - Juiz ..., assinado pelo mesmo, dirigido à Assistente,”.
 
XX. Os pontos 1. a 8 dos factos provados (com relevância para a decisão da causa), limitam-se a descrever o procedimento na diligência de penhora.
 
XXI. O ponto 9. dos factos provados menciona o requerimento entregue nos autos de execução e o ponto 10. A carta remetida pelo arguido à assistente.
 
XXII. Os pontos 11. e 12. referem o quão magoada ficou a assistente e a sua qualidade de advogada. 
 
XXIII. No ponto 13. Menciona que “com as expressões supra referidas o Arguido quis ofender gravemente a honra, dignidade, o bom-nome, a consideração profissional, a consideração pessoal e a seriedade que são atributos da Assistente.”, sem que efectivamente sejam referidas quais as expressões, nem identificadas ou, sequer, determinadas.
 
XXIV. O Tribunal a quo não apreciou nem considerou, pelo contrário ignorou completamente a prova documental do processo, alguma já junta na fase de instrução, mas toda junta na contestação do arguido, e constante dos autos, nomeadamente:
 
A) Notificação remetida pelo arguido à assistente (datada de 27.07.2021), cujo teor decorre dos factos comunicados ao juízo de execução e constitui matéria constante da denúncia de 15.02.2022 e do art. 10.º da Acusação, i.é, fora de prazo (cfr. Doc. 1).
 
B) Carta datada de 10.09.2021, do escritório da assistente dirigida ao arguido ameaçando com a cobrança judicial da dívida (cfr. Doc. 2 da Contestação).
 
C) Escritura 11 de Março de 2009, no mesmo Cartório Notarial, a mãe do arguido/recorrente renunciou ao Usufruto do referido imóvel, bem como de todo o Recheio existente no Imóvel, nos termos do artigo 64.º do Código do Notariado (cfr. Doc. 3 da Contestação).
 
D) Cópia de elementos do Proc.º n.º 1467/21.... do Juiz ... dos Juízos de Execução de V.N. de Famalicão (Comarca de Braga), em que é Exequente a sociedade “EMP01... Lda.”, onde o pai do arguido, EE é o único executado (cfr. Doc.4 da Contestação).
 
E) Email datado de 09.03.2021, comprovativo dos contactos anteriores (à diligência de penhora) entre o pai do arguido (enquanto devedor) e os mandatários da credora, onde aquele informou da sua situação patrimonial e insuficiência para pagar a dívida, bem como da existência contra si de outras execuções anteriores e de tudo o que resulta do doc. 3, quanto à situação de habitação, se descreveu (cfr. Doc. 5 da Contestação).
 
F) Registos fotográficos e respectiva descrição, que permitem a identificação e individualização dos espaços de habitação e das moradas (por ruas distintas) do pai do arguido, EE, que, à época dos factos residia num Anexo (ao imóvel mencionado propriedade dos seus filhos, incluindo o arguido), localizado nas traseiras e com entrada autónoma pela Rua ... (...) em ..., ... (cfr. o doc. n.º 6 da Contestação).
 
XXV. O meritíssimo juiz a quo não fez constar dos factos com relevância, omitindo em absoluto, não fazendo qualquer menção ou valoração, à prova documental, a todos os factos e conjunto de circunstâncias (provadas documentalmente) que precederam, rodearam e sucederam à diligência de penhora, e, por isso, contextualizam os escritos.
 
XXVI.  Os documentos constantes do processo tornam bem claro o contexto da  elaboração dos escritos e, sobretudo, da diligência de penhora.
 
XXVII. A motivação do tribunal a quo forma-se de modo parcial e selectiva porque ignorou uma parte substancial dos factos, devidamente provados e documentados, que não só determinaram os actos praticados pelo arguido (escritos) como os justificam e excluem, de forma decisiva, qualquer ilicitude.
 
XXVIII. Mesmo a considerar-se os escritos eventualmente ofensivos da “honra e consideração” da assistente, o que por mera cautela e dever de defesa se admite face à ausência total de prova nesse sentido, a contextualização determinaria, por si só, a não punibilidade da conduta, nos termos do n.º 2 do art. 180.º do Cod. Penal.
 
XXIX. Acresce que a “honra e consideração”, a dignidade e património do arguido são igualmente susceptíveis de tutela e defesa, razão dos seus escritos (unicamente no processo).
 
XXX. O Tribunal a quo preferiu acreditar na regularidade de procedimentos da diligência de penhora, ignorando que não foi no momento desse acto que o arguido se sentiu enganado e viciada a sua vontade.
 
XXXI. Os factos relevantes para a conduta do arguido/recorrente (escritos) não são os aparentemente praticados na diligência de penhora, mas a encenação e ardil da sua preparação e capa de legalidade.  
 
XXXII. Só em momento ulterior, com o conhecimento de todos os factos, especialmente os descritos pelo seu pai, é que o arguido concluiu ter sido vítima de um ardil, um engano, pormenorizadamente encenado com o intuito de lhe criar a convicção que, apenas pagando a dívida do seu pai, poderia resolver o assunto.
 
XXXIII. Para formar a sua convicção não quis o Tribunal a quo ver respondidas várias questões, nomeadamente:
XXXIV. - Porquê, um conjunto de profissionais experientes, decidiram pela realização de uma diligência, com tal disponibilização de meios, quando havia perfeito e prévio conhecimento da insuficiência de bens do executado, que vivia em casa alheia e tinha execuções e dívidas anteriores?
XXXV. - Porquê o arguido aceitou, no acto da diligência da penhora, assumir o pagamento da dívida e, passados uns dias se considerou enganado?
 
XXXVI. A certeza da opinião formada pelo arguido/recorrente quanto ao sentir-se manipulado, coagido e, por isso, extorquido, apenas ocorre após a análise de todas as informações e circunstâncias dos acontecimentos.
 
XXXVII. Com a apreciação e ponderação de toda a prova, especialmente a documental,
seria impossível o Tribunal a quo formar a convicção nos termos em que o fez.
 
XXXVIII. O juiz a quo visou uma condenação, ainda que para isso tivesse que ignorar factos com relevância à descoberta da verdade material e, consequentemente, à boa decisão da causa. 
 
XXXIX. Subvertendo e omitindo factos relevantes, o Tribunal a quo formou a sua convicção em clara violação do principio in dubio pro reo, bem como operou uma inversão do ónus da prova.
 
XL. Violação bem espelhada na seguinte frase do meritíssimo juiz a quo:”…não foi apresentada qualquer prova de que as imputações difamatórias e injuriosas que o arguido confessadamente dirigiu à assistente têm qualquer correspondência com a verdade dos factos…”
 
XLI. Para dar como provado a prática de um crime de difamação é fundamental precisar quais as expressões consideradas “difamatórias”.
 
XLII. Foram dois os escritos imputados, e pelos quais o Tribunal a quo condenou o recorrente, pelo crime de difamação agravada.
 
XLIII. Um escrito, respeita ao teor do requerimento no processo executivo com o n.º 1467/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão - Juiz ....
 
XLIV. Outro escrito, respeita ao teor de uma carta (notificação) dirigida à Assistente, visando declarar nulo o documento assinado. 
 
XLV. Este escrito, mais que uma simples carta é, de acordo com o mencionado expressamente da mesma (cfr. doc. constante dos autos) uma “Notificação – Declaração de nulidade do documento “Declaração de Reconhecimento de Dívida”. 
 
XLVI. Independentemente do seu teor e fundamento, o envio desta notificação jamais poderá subsumir a prática de um crime de difamação previsto e punido pelo art. 180.º do Código Penal, não preenchendo o seu tipo, mas sim, o tipo do crime de injúria previsto e punido no art. 181.º do Código Penal. 
 
XLVII. O escrito na notificação foi dirigido directa, única e exclusivamente à Assistente, não podendo integrar o conceito de “difamação”.
 
XLVIII. O erro na subsunção dos factos ao direito constante da acusação, passou pela fase de instrução e persistiu até à condenação pelo Tribunal a quo.
 
XLIX. A liberdade de expressão, mormente no que se trata da manifestação dos sentimentos, pensamentos ou convicções formadas por acontecimentos que envolvem actuações e procedimentos de outrem, tem protecção legal e constitucional, principalmente quando visem a defesa de interesses legítimos, em juízo ou fora dele.
 
L. O arguido/recorrente actuou sempre de acordo com a Lei, dentro dos seus limites e exclusivamente no âmbito do processo na defesa dos seus legítimos interesses.
 
LI. É o próprio Juízo de Execução de V. N. de Famalicão – Juiz ..., no despacho proferido em 26.11.2021 (Ref.ª ...44) nos autos com o n.º 1467/21...., que reconhece a via adequada aos actos praticados pelas denunciadas (documento constante dos autos).
 
LII. A Assistente, apesar de directamente interpelada, nunca pretendeu resolver o assunto, não devolveu a quantia ilegalmente exigida e indevidamente paga pelo arguido, nem devolveu o documento assinado com vício da vontade.
 
LIII. Por isso, os factos foram participados ao Ministério Público para efeitos criminais, mas também à Ordem dos Advogados, à Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (quanto à Agente de Execução) para efeitos disciplinares.
 
LIV. Em momento algum do processo, e certamente que nem no julgamento, resulta sequer o indício que o arguido foi autor de qualquer acto de difamação.
 
LV. Quanto muito terá o arguido/recorrente sido autor de escrito que, entre outros visados, apenas não agradou à Assistente, mas cujo teor espelha fielmente a realidade e a sua interpretação dos acontecimentos.
 
LVI. Caso sejam estas as expressões em causa, em momento algum dos escritos se imputou à Assistente (ou à outra denunciada – agente de execução FF) a prática de crime de Coação ou de Extorsão. 
 
LVII. As expressões não foram usadas enquanto conceitos jurídicos mas para exprimir a interpretação dos acontecimentos face ao sentimento que o arguido ficou ao concluir ter sido enganado. 
 
LVIII. Usadas no contexto in casu, Coação, no dicionário de língua portuguesa, significa: (nome feminino) constrangimento que se impõe a alguém para que faça, deixe de fazer ou permita que se faça alguma coisa; imposição (vide Infopedia).
 
LIX. Foi exactamente esta ideia que o arguido/recorrente pretendeu transmitir, ou seja, na diligência de penhora, sentiu-se constrangido a fazer o que não era obrigado, convencido pela Assistente e demais presentes, que assim teria que ser.
 
LX. Extorsão, no dicionário de língua portuguesa, significa: obter algo de alguém por meio de ameaça ou violência (vide Infopedia).
 
LXI. In casu foi a melhor (o que não significa a mais feliz ou urbana) expressão que o arguido/recorrente encontrou para transmitir a ideia que a Assistente, por meio da ameaça decorrente do procedimento indevido, se apropriou do seu património.
 
LXII. O arguido apenas praticou actos para defesa dos seus legítimos direitos ofendidos pela Assistente.
 
LXIII. A assistente, que foi directamente interpelada para o efeito, nunca pretendeu resolver o assunto, não devolveu a quantia ilegalmente exigida e indevidamente paga pelo arguido, nem devolveu o documento assinado com vício da vontade.
 
LXIV. O arguido é o único verdadeiro lesado no seu património, ainda não ressarcido pela assistente e/ou pelo seu cliente (a “testemunha” GG).
 
LXV. O arguido não praticou qualquer crime, consequentemente, não se constituiu na obrigação de indemnizar a Assistente.
 
LXVI. Deverá ser revogada a condenação no pagamento do pedido de indemnização cível
 
LXVII.  Um conjunto de factos e acontecimentos, nomeadamente de natureza processual, desde o inquérito até ao julgamento, demonstram um inadmissível e incompreensível ambiente hostil, parcial e persecutório ao arguido/recorrente.
 
LXVIII. Na fase de julgamento o arguido foi “catalogado” como um devedor que inventa pretextos para não pagar as dívidas, mas, na verdade, o arguido/recorrente nem deveria/poderia ser devedor no processo executivo em causa.
 
LXIX. A estigmatização como “caloteiro” é ainda mais reforçada quando o juiz a quo é igualmente juiz dos juízos de execução do Tribunal de V.N. de Famalicão (em acumulação).
 
LXX. Só assim se compreende as diversas manifestações de hostilidade para com a defesa na audiência de julgamento, comentários laterais sobre processo executivo, ameaça de agravamento de custas do processo pelo tempo dispendido numa audiência de julgamento… sendo certo que o arguido apenas arrolou uma testemunha que, ao momento, ainda não tinha sido ouvida...
 
LXXI. A Sentença já se encontrava elaborada e, por isso, foi lida de imediato na sessão de julgamento agendada para inquirição da única testemunha de defesa e alegações.
 
LXXII. Não é de estranhar o conjunto de deficiências da Sentença elencadas supra.
 
LXXIII. O julgamento apenas foi mais uma etapa num processo que se revelou sui generis e penalizador no que se refere à preocupação (ou falta dela) com os direitos de defesa.
 
LXXIV. A Acusação, aceitou uma denúncia fora de prazo, ignorou totalmente, quer a realidade fáctica, quer os mais importantes dos poucos elementos carreados para os autos, nomeadamente a existência de processo de inquérito anterior (proc.º Inquérito n.º 185/21....), na mesma Comarca, iniciado por denúncia do aqui arguido contra a assistente e a testemunha destes autos, FF.
 
LXXV. Incumprindo deveres ex ofício, o M.º P.º não só não apensou as duas denúncias (por conexão dos processos) como aderiu à versão da denúncia da assistente, fragilmente suportada num inquérito insuficiente e falho, tomando apenas as declarações de duas denunciadas pelo requerente (no âmbito do proc.º Inquérito n.º 185/21....), do sócio de uma delas (Dr. HH) e da “Parte” processual (GG) no processo executivo (Proc.º n.º 1467/21.... do Juízo de Execução de V. N. de Famalicão – Juiz ...), todos qualificados como “testemunhas” mas, objectiva e directamente, são os principais interessados nos autos de execução, visando a legitimação da sua conduta ilícita.
 
LXXVI. A denúncia do recorrente, cuja reacção da assistente deu origem aos presentes autos (Proc.º Inquérito n.º 185/21....), ficou dois anos parado na mesma secção do DIAP onde o Processo de inquérito por denuncia caluniosa contra o recorrente (Proc.º Inquérito n.º 268/22....) correu mais rapidamente que a denúncia que, alegadamente, lhe deu origem.
 
LXXVII. Na fase de inquérito, o Ministério Público, apesar da indicação do arguido como única testemunha, não inquiriu aquela que, à luz de qualquer técnica de apuramento dos factos, seria a testemunha mais importante, ou seja, o pai do arguido - EE.
 
LXXVIII. Mas inquiriu todas as “pretensas” testemunhas indicadas pela então denunciante/assistente que, ou estavam denunciadas em processo crime (BB e FF) ou eram (como são) interessadas no processo (mandatário HH e Credor GG).
 
LXXIX. Preferiu o Ministério Público preterir diligências fundamentais, “atalhar” caminho, aderindo única e exclusivamente à narrativa da denunciante.
 
LXXX. O Inquérito fez tábua rasa das declarações do arguido e demais prova que poderia ser obtida, nomeadamente a que se juntou na Contestação.
 
LXXXI. O julgamento seguiu a mesma metodologia, ignorando toda a defesa (incluindo prova documental) apresentada pelo arguido/recorrente.  
 
LXXXII. O recorrente, face aos comportamentos e procedimentos do Ministério Público
e do Tribunal a quo, considera terem sido violados os seus direitos de defesa legal e constitucionalmente consagrados (art. 32.º da CRP). 
 
TERMOS EM QUE, DANDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO A DECISÃO RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, ABSOLVENDO O ARGUIDO/RECORRENTE,  FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS A JÁ COSTUMADA JUSTIÇA!

3
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

4
Também a assistente respondeu ao recurso, propondo, igualmente, que não seja concedido provimento ao recurso.

5
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada foi dito.

II FUNDAMENTAÇÃO

1
Objeto do recurso:


A
A sentença recorrida padece do vício de falta de fundamentação e violação de princípios gerais de direito penal e do direito constitucional de defesa? 

B
Deve aplicar-se ao caso aa Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto (Lei da Perdão de penas e amnistia de infrações)? 

C
O Tribunal a quo fez errada subsunção dos factos ao direito, no que concerne à dignidade criminal dos escritos?

D
O pedido de indemnização civil deve ser julgado improcedente?

*
*
*
XIX. Será lapso a existência de dois pontos com o n.º 17. Bem como a menção no ponto 9. Com o teor “o Arguido apresentou um requerimento no processo com o n.º 1467/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão - Juiz ..., assinado pelo mesmo, dirigido à Assistente,”.

2
Decisão recorrida (excertos relevantes):

2. – Fundamentação.
2.1. - Factos provados com relevância para a decisão da causa:
1.- A Assistente BB é advogada, detentora da cédula profissional nº ...16..., com escritório na Rua ..., ....
2.- Nessa qualidade e por causa dessas funções, interveio em duas diligências de penhora, no âmbito do processo com o n.º 1467/21...., em que é exequente a empresa EMP01..., Lda., que a Assistente representa e executado EE, pai do Arguido.
3.- No dia 6 de julho de 2021, cerca das 10h00m, a assistente no decurso da diligência da penhora dirigiu-se a casa do executado, sita na Rua ..., em ... e depois de lhe explicar os trâmites da penhora e ao solicitar-lhe uma garantia de bom pagamento, o executado, pai do Arguido, solicitou a intervenção mesmo, que aí se encontrava, de modo a apurar se o mesmo aceitaria ser seu fiador.
4.- Depois de ser explicado pela assistente e informado o arguido sobre o acordo de pagamento em prestações da dívida exequenda, que foi redigido pela Agente de execução e no qual constava:
Auto de diligência: Assume solidariamente a presente dívida e com renúncia ao benefício da excussão prévia o Sr. AA (…).
5.- O Arguido confirmou tal acordo aquando da leitura do mesmo e antes de o assinar.
6. - Foi o Arguido ainda informado pela Assistente e pela Agente de Execução que as assinaturas apostas no referido acordo teriam que ser autenticadas, para que tal acordo passasse a ter força executiva, o que o Arguido disse compreender e aceitar.
7. - Foi ainda o Arguido informado que a Assistente iria, naquela ocasião de tempo, modo e lugar, ligar para o escritório onde a mesma exerce a sua atividade de advogada e solicitar o envio de uma declaração de dívida com termo de autenticação para o email do Arguido – ..........@..... ¸que o mesmo indicou e se comprometeu a receber, imprimir, o que aconteceu.
8.- A Assistente leu a referida declaração em voz alta, na presença do Arguido e explicou-lhe o seu conteúdo, e este acordou com a mesma o pagamento da primeira prestação no valor de 2.250,00€ seria efetuado por transferência bancária para o IBAN da exequente, o que foi sugerido pelo Arguido, que se prontificou a imprimir o comprovativo de transferência.
9.- Contudo, no dia 20 de Julho de 2021, o Arguido apresentou um requerimento no processo com o n.º 1467/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão-Juiz ..., assinado pelo mesmo, dirigido à Assistente, no qual fez constar o seguinte conteúdo: a agente de execução e a mandatária da exequente, ardilosamente e de forma ilegal, montaram a encenação com o intuito de enganar, coagir e extorquir o requerente para que este pagasse dívidas que não lhe eram devidas nem imputáveis.
10.- Em data não concretamente apurada, mas posterior à data da entrada do referido requerimento, enviou uma carta dirigida à Assistente e assinada pelo mesmo no qual fez constar:
A declaração de reconhecimento de dívida assinada contra a vontade e sob coação, é nula e o seu teor falso, o que expressamente se invoca e se comunica.
face ao exposto, e demais a arguir em sede própria, fica V. Ex.ª notificada:
a) Abster-se de usar o documento reconhecimento de dívida para qualquer finalidade, nomeadamente para exigir as quantias neles mencionadas.
b) Devolver, no prazo máximo de três, a quantia de 2.250,00 (dois mil duzentos e cinquenta euros) pagos indevidamente e transferidos diretamente para a conta do seu cliente no dia 6 de Julho último.
Em caso de incumprimento do acima determinado, sem prejuízo dos demais procedimentos judiciais, serão os factos participados para efeitos criminais e disciplinares.
11.- A Assistente sentiu-se magoada pelas expressões de que fora vítima, para além de ficar ofendida na sua honra e consideração de cidadão e de profissional forense.
12. - Bem sabia o Arguido, e não o podia ignorar, que a Assistente era Advogada, que sempre agira enquanto profissional da área jurídica, praticando ato profissional, que lhe competia, que se encontrava devidamente identificada no referido requerimento, bem sabendo o Arguido que a Assistente viria a ter conhecimento dos factos que lhe foram imputados e dirigidos ao referido processo.
13. - Com as expressões supra referidas, o Arguido quis ofender gravemente a honra, dignidade, o bom-nome, a consideração profissional, a consideração pessoal e a seriedade que são atributos da Assistente.
14. - Ao referir no escrito que o Assistente tinha praticado os factos que aí lhe imputava, bem sabia o Arguido que associar a Assistente a essa realidade, única e exclusivamente visava atingir e denegrir o bom nome e a dignidade do Assistente enquanto advogada, tendo afetado a Assistente, quer a nível profissional, quer a nível pessoal.
15.- O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
16. - Na sequência da conduta ilícita do arguido, a assistente sentiu vergonha, humilhação, desgosto e tristeza.
17.- O comportamento do demandado pôs em causa, de forma grave e consciente, o bom nome, a seriedade, a honestidade e o profissionalismo da demandante.
18.- O arguido não tem antecedentes criminais.
17.- O arguido é engenheiro de profissão e declarou no ano de 2022 um rendimento global de 20.853,97 euros.
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2.2.- Factos não provados com relevância para a decisão da causa:
Não se provaram os factos constantes da acusação particular, da contestação, decorrentes da defesa da arguida e do pedido de indemnização civil que não estejam mencionados nos factos provados, ou estejam em contradição com os mesmos.
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2.3.- Motivação do tribunal.
O Tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e de normalidade, designadamente, na conjugação das declarações do arguido com o teor dos documentos juntos a fls. 16 a 40 e com as declarações da assistente e depoimento da testemunha FF (agente de execução).
O arguido, de um modo claro e inequívoco, confirmou expressamente a autoria do teor do requerimento que dirigiu ao processo n.º 1467/21.... e do teor da carta que dirigiu à assistente, ambos identificados no libelo acusatório.
Confirmou ainda que no dia 6 de julho de 2021, cerca das 10h00m, na sua habitação sita na Rua ..., em ..., após inteirar-se das consequências da penhora em curso sobre os bens existentes nessa habitação, que alega serem seus, assumiu a solidariedade da dívida da exclusiva responsabilidade do seu pai, único devedor.
Por fim, acrescentou que, dias mais tarde, informou-se que, juridicamente, não tinha de garantir o pagamento de tal dívida da responsabilidade exclusiva do seu pai e, por esse único motivo, dirigiu o requerimento ao processo e a dita missiva à assistente.
Ora, perante a espontaneidade das declarações do arguido, temos como indiscutível que aquando da assunção de responsabilidades do arguido perante o agente de execução, no dia da realização da penhora, não há indícios de nenhuma coação exercida sobre si e ele assumiu conscientemente essa divida após ser informado da diligência em curso e respetivas consequências.
Esta versão dos factos resultou igualmente das declarações do agente de execução, testemunha FF e das declarações da assistente.
Com efeito, no decurso dessa diligência de penhora, conforme resultou das declarações do arguido, das declarações da assistente e do depoimento da testemunha FF, não foi exercida qualquer coação física ou moral sobre o arguido que sustente os dizeres dos dois documentos confessadamente dirigidos por si ao processo de execução e depois à assistente.
Mas se dúvidas existem de que os dizeres desses dois documentos não refletem a verdade dos factos ocorridos na habitação do arguido, nesse dia 6 de julho de 2021, cerca das 10h00m, não podemos deixar de salientar, como muito bem evidenciou a testemunha FF, como muito bem esclareceu a assistente e como claramente acrescentou o arguido (“… situação chata e tinha de se revolver a situação … ”), antes da assinatura do documento em que o arguido confessadamente assumiu a solidariedade da dívida do seu pai, a assistente solicitou ao arguido que ele imprimisse tal documento, o que aconteceu, e a assistente até o leu em voz alta antes dele o assinar.
Neste cenário, temos confessadas dúvidas em acompanhar as acusações vis que o arguido, curiosamente, ainda hoje continua a dirigir ao comportamento da assistente, sem qualquer fundamento.
Destarte, nada mais restava ao tribunal do que dar também como provado o elemento subjetivo que é imputado no libelo acusatório ao arguido e não confessado por este.
E quanto a este aspeto em especial, importa referir não foi apresentada qualquer prova de que as imputações difamatórias e injuriosas que o arguido confessadamente dirigiu à assistente têm qualquer correspondência com a verdade dos factos.
Dito isto, é nosso entendimento que os depoimentos das testemunhas HH, GG e EE foram absolutamente irrelevantes para o apuramento dos factos dado que nada de mais relevante acrescentaram à confissão parcial do arguido e depoimento da agente de execução, cuja credibilidade é inabalável por qualquer meio de prova apresentado na audiência de julgamento.
De todo o modo não podemos deixar de realçar que a testemunha EE também confirmou que no decurso dessa diligência, foi efetuado um acordo verbal entre as partes, que depois esse acordo foi redigido no escritório da assistente, que depois o escritório da assistente remeteu esse acordo para o e-mail do arguido e este imprimiu esse acordo na sua impressora.
Dito isto, ou seja, considerando toda a colaboração ativa do arguido supra evidenciada que culminou com a leitura e assinatura desse acordo de pagamento da dívida exequenda, temos confessadas dificuldades em acompanhar a tese do ardil e/ou da coação e/ou da intimidação que ainda hoje o arguido teima em invocar contra a ora assistente.
Por sua vez, no que diz respeito ao pedido de indemnização civil, o tribunal teve em atenção ao depoimento da testemunha FF, a qual, dada a amizade que a une à assistente, confirmou o estado de tristeza e de humilhação que esta sofreu na sequência da conduta do arguido, o que até é claro e indiscutível, à luz das regras de experiência comum e de normalidade.
Por fim, foram ainda relevantes as declarações das arguidas quanto às suas condições socioeconómicas e os CRC juntos aos autos quanto aos seus antecedentes criminais.
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3. - Enquadramento jurídico-penal.
Apurados e assentes que estão os factos cumpre agora fazer o seu enquadramento jurídico - penal.  
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3.1.- No presente caso, o arguido vem acusado da prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelo pelos artigos 180.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal.
Nos termos do artigo 180.º, n.º 1, 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. l), do C.P., comete o crime aí tipificado quem, dirigindo-se a um advogado no exercício das suas funções ou por causa delas, imputar-lhe, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ele um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir tal imputação ou juízo.
O bem jurídico aqui protegido, e ainda constitucionalmente tutelado (cfr. artigo 26.º, da C.R.P.) consiste na “honra” e “consideração”.
A agravação resulta da qualidade do visado, no caso, advogado no exercício das suas funções – cfr. artigo 132.º, n.º 2, al. l), do C.P.
A definição doutrinal do bem jurídico “honra” pode ser agrupada em duas conceções básicas: a conceção fáctica e a conceção normativa.
Efetivamente, de acordo com a primeira conceção, a honra pode ser um juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma (honra subjetiva), ou a consideração, bom-nome e reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente (honra objetiva).
Por seu turno, de acordo com a conceção normativa, a determinação do bem jurídico só se mostra possível caso seja perspetivado em uma dimensão comunitária ou social (conceito normativo-social), ou então, numa dimensão pessoal, em que a honra é um aspeto da personalidade de cada indivíduo (conceito normativo-pessoal).
Existem dificuldades em encontrar um conceito de honra isento de críticas, pelo que a doutrina dominante acaba por temperar ambas as conceções sem tomar propriamente partido por alguma.
Assim, a “honra” é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
Na verdade, no dizer de Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal de 1982, V.2 , pág. 196, "Honra é a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, à retidão, à lealdade ao carácter". Por seu turno, "consideração é o património do bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros.
Deste modo, o bem jurídico protegido é a honra, entendida como a dimensão pessoal da pessoa, nas suas múltiplas refrações.
Para a verificação do tipo objetivo de ilícito da difamação será, portanto, necessário haver a imputação, dirigida a terceiros, de um facto (visto como dado real da experiência) ou um juízo (percebido como a valoração de um dado ou ideia), ofensivos da honra ou consideração de outrem, ou a sua reprodução, imputação que, por seu turno, pode ser direta ou insinuada (ser dirigida sob a forma de suspeita).
No tipo legal, para além da expressão “difamar”, é também utilizada a palavra “reproduzir”, que significa divulgar, fazer circular, propalar ou propagar.
A difamação tanto pode, assim, consistir na imputação de um facto a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, como na formulação de um juízo sobre ela.
E pode ainda consistir na mera reprodução uma tal imputação ou juízo.
Ponto assente é que o agente se dirija a terceiro, não sendo necessária a contemporaneidade da comunicação, podendo esta ter lugar em tempo e modo diversos e mesmo com um intervalo de tempo mais ou menos prolongado.
Importa referir, porém, que nem todos os factos que envergonham, perturbam ou humilham, quando lançados sobre terceiros, cabem na previsão do preceito em referência, tudo dependendo da intensidade ou do perigo da ofensa .
Por sua vez, relativamente ao tipo subjetivo, estamos em face de um crime doloso (em qualquer uma das suas modalidades), bastando para uma plena imputação subjetiva o dolo eventual (cfr. art. 14.º, do Código Penal).
Com efeito, para a verificação do elemento subjetivo do crime em referência, não se exige que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando que saiba que, com o seu comportamento, pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir .
Nesta linha, decidiu o Acórdão da Relação de Évora de 02.07.96 (in Col.Jur.1996, Tomo IV, pág.295), onde se escreveu: “um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objeto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio - moral da pessoa, da sua honra e consideração.”
Ora, da factualidade apurada não resta dúvida que o arguido incorreu na prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1 e 184.º, do C.P..
Com efeito, acusar alguém de coação e intimidação, sabendo que tal realidade não é verdadeira, é indiscutivelmente atentatória da honra e do bom nome do visado com essas afirmações.
Acresce que a conduta do arguido não pode integrar o disposto no artigo 181.º, n.º 2, ex vi artigo 180.º, n.º 2, al. b), do C.P..
Assim, preenchendo a factualidade apurada todos os elementos constitutivos do crime, tanto de natureza objetiva (ofensa à honra e consideração), como subjetiva, julgamos que o arguido cometeu o crime que lhes é imputado no libelo acusatório.
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4. - Da natureza e medida concreta da pena.
4.1. - Concluindo-se, assim, que o arguido incorreu na prática de um crime de difamação agravada, importa agora determinar a natureza e medida concreta da pena a aplicar-lhe.
Nos termos dos citados artigos 180.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, o crime é punido com pena de prisão até 9 meses ou com pena de multa até 360 dias.
Assim, a primeira operação para determinar a pena concreta a aplicar às arguidas será a de escolher entre a pena de prisão e a pena de multa.
E esta seleção da espécie de pena far-se-á de acordo com o estipulado no artigo 70.º, do Código Penal, onde se prescreve que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada as finalidades da punição”.
No presente caso, atento o referido critério e a factualidade provada, damos preferência a uma pena de multa (pena não privativa da liberdade), já que esta, além de se mostrar mais adequada, proporcionada e ajustada à infração e suas consequências, é suficiente para promover a recuperação social do arguido (socialmente inseridas e sem antecedentes criminais) e satisfazer as exigências diminutas de reprovação e prevenção do crime.
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4.2- Uma vez escolhida a aplicação ao arguido de uma pena de multa, só falta agora proceder à sua determinação concreta.
E quanto a este aspeto, dever-se-á ter em atenção, em primeiro lugar, os limites mínimos e máximos da pena de multa que são aplicáveis, em abstrato, a este tipo de ilícito criminal (cfr. artigos 47.º e 180.º, do C.P.).
Depois, ter em consideração a culpa do agente e as exigências de prevenção (cfr. artigo 71.º, n.º1, do C.P.), que significa a consagração, como critérios fundamentais para a aplicação de uma pena, para além do chamado princípio da culpa (cfr. também artigo 40.º, n.º 2, do C.P.), a teoria da prevenção geral positiva ou de integração (a qual tem por função fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa, e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis da defesa do ordenamento jurídico, ou seja, pela tutela das expectativas da comunidade na manutenção - ou mesmo reforço - da vigência da norma infringida), e a teoria da prevenção especial ou de socialização, cuja função é encontrar o “quantum” exato da pena que melhor sirva as exigências de socialização ou reintegração do agente na sociedade.
Assim, no presente caso, considerando a intensidade da culpa do agente (dolo direto), as circunstâncias em que tais palavras difamatórias foram propaladas (a gravidade das suspeitas levantadas pelo arguido), as diminutas necessidades de prevenção especial (o arguido não tem antecedentes criminais) e as suas condições socioeconómicas, julgamos adequado condenar o arguido numa pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de sete euros.
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5. – Do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante.
Cumpre agora apreciar a responsabilidade civil do demandado, desde já referindo que, de acordo com o disposto no artigo 129.º, do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Mais concretamente pelo artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, que prescreve que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
São assim pressupostos desta fonte da obrigação de indemnização:
- o facto ilícito, que se consubstancia na ação humana lesiva de bens jurídicos pessoais e (ou) patrimoniais;
- o nexo de imputação subjetiva ou culpa que exprime a ligação psicológica do agente com a produção do acidente e traduz o grau de censurabilidade que a conduta merecer;
- o dano (patrimonial ou não patrimonial) representa o desvalor infligido aos bens jurídicos alheios por ação do facto ilícito;
- e o nexo de causalidade, que se revela no juízo de imputação objetiva do dano ao facto que o produz.
Do factualismo apurado não restam dúvidas que todos os requisitos acima enunciados estão presentes neste caso.
Além da ilicitude e da culpa, que já estão apreciadas no juízo de censura jurídico-criminal acima enunciado, é manifesto a existência de danos não patrimoniais e o exigido nexo de causalidade entre estes e o comportamento do demandado.
Assim, no que diz respeito aos danos não patrimoniais, emergentes da vergonha, vexame, humilhação e tristeza sofridos pela demandante, julgamos que os mesmos são dignos de tutela do direito (cfr. artigo 496.º, do Código Civil).
Ora, nos termos do artigo 562.º e 564.º, do C.C., quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstruir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (Princípio da reconstituição ou restauração natural), compreendendo o dever de indemnizar não só o prejuízo causado (dano emergente) como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante).
Por seu lado, prescreve o artigo 566.º, n.º 1, do C.C., que o obrigado à reparação, na impossibilidade de reconstrução natural da situação que existia antes da prática do facto ilícito, deve pagar ao lesado uma indemnização em dinheiro.
Indemnização pecuniária essa que, nos termos do disposto no artigo 566.º, n.º 2, do C.C., deve medir-se pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido (teoria da diferença).
Assim, verificados que estão todos os pressupostos de indemnização, julgamos justo e adequado, atento os limites do pedido e os critérios estabelecidos no artigo 494.º, n.º 1, do C.C., (designadamente, a culpa do agente, situação económica deste e do lesado), fizer essa indemnização no montante peticionado de mil euros.
Pelo exposto, pagando o demandado à assistente uma indemnização de mil euros, reconstituirá a situação (hipotética) em que esta se encontraria se não tivesse sofrido os referidos danos não patrimoniais.
Sobre esta quantia são devidos juros de mora desde a data da notificação do pedido de indemnização civil citação até integral pagamento (cfr. artigo 805.º, do C.C.).

3  O direito.

A
A sentença recorrida padece do vício de falta de fundamentação e violação de princípios gerais de direito penal e do direito constitucional de defesa? 

Para assacar estes vícios à decisão, o recorrente afirma essencialmente que:
IX. O Tribunal a quo não efectuou uma apreciação explícita dos argumentos expostos pela defesa, nem enquadrou ou contextualizou sequer as expressões empregues pelo arguido, diga-se, única e exclusivamente, no âmbito e nos limites da disputa processual para defesa dos seus legítimos interesses, designadamente, enquanto terceiro de boa fé levado a crer (acreditar), por acção efectiva da Assistente e de outros intervenientes na diligência de penhora, que só o pagamento da dívida em cobrança poderia evitar a remoção dos seus bens, do interior da sua casa.
 
X. O Tribunal a quo ignorou integralmente, não apreciando nem valorando, a prova escrita constante dos documentos juntos ao processo com a contestação (e na fase da instrução).

Suscita, portanto, o recorrente, embora o não diga expressamente, a nulidade da decisão recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), por referência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, sendo o seguinte o teor desta última norma:

Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Estará em causa, portanto, parece-nos, a falta de exame crítico da prova e a falta de fundamentação de direito – dizemos parece-nos porque todo o extensíssimo recurso apresentado para questão de tamanha simplicidade se apresenta deveras prolixo, algo desorganizado e prenhe de expressões meramente proclamatórias, consubstanciando, aparentemente, uma tão fremente quão estrepitosa, e perfeitamente dispensável, diga-se, emoção, que dificulta seriamente a sua compreensão e análise, que é muito mais acessível ao nosso intelecto quando os parâmetros discursivos se quedam pela serenidade, rigor e simplicidade expositiva, sem nunca descurar a natural e especial cerimónia, cortesia e respeito intelectual que a discussão processual a todos impõe, o que nem sempre foi observado pelo recorrente, como se verá.

Dispõe o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

“Princípio de matriz constitucional essencial em matéria de decisões judiciais é o princípio da fundamentação, consagrado no art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República, o qual se traduz na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão – n.º 4 do artigo 97.º deste Código. Tal princípio, relativamente à sentença penal concretiza-se, porém, mediante uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a atividade interpretativa da lei e da sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da atividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República.” – Conselheiro Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pag. 1168.

O artigo 97.º, n.º 5, do C.P.P., prescreve, em relação aos atos decisórios em geral, que «são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».

Por sua vez, o ato da sentença, nos termos do disposto no artigo 374.º, do referido Código, exige uma fundamentação especial.

Significa isto, e de acordo com as normas acima citadas, que, sob pena de nulidade, a sentença, para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, tem de conter também o respetivo exame crítico das provas, isto é, o processo lógico e racional que foi seguido na sua apreciação, e apreciar as questões que lhe são colocadas pelos sujeitos processuais.

A exigência dessa fundamentação tem como função, conforme escreve Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal. 2ª ed. III, p. 294), permitir «a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando, por isso como meio de autodisciplina».

A propósito dos motivos de facto que fundamentam a decisão, diz Marques Ferreira (Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, p. 229) que estes «não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência».

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental, mas bastante, que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (cf., entre outros, Acórdão do STJ de 03.10.2007, processo n.º 07P1779).

A este respeito, a queixa fundamental do recorrente é a seguinte:
O Tribunal a quo ignorou integralmente, não apreciando nem valorando, a prova escrita constante dos documentos juntos ao processo com a contestação (e na fase da instrução).
Ora, como bem refere o Ministério Público no parecer junto aos autos, 

No caso deste recurso constata-se que o arguido, para além de não impugnar a decisão sobre a matéria de facto nem extrair qualquer consequência jurídica do por si alegado, nomeadamente, arguindo a nulidade da sentença prevista no art. 379º, nº1, al. a), do CPP, por referência ao disposto no art. 374º, nº2, do mesmo diploma legal, apenas se limita a censurar a forma como o Tribunal valorizou a prova produzida, o facto de ter acolhido as teses da acusação em desfavor das posições da defesa.

E tal opção mostra-se perfeitamente justificada e fundamentada com clara demonstração do percurso adoptado para chegar à conclusão final.
Refere o recorrente que o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre os documentos juntos com a contestação, os quais, em seu entender, são importantes para enquadrar a sua atitude e a prática dos factos que lhe são atribuídos.
Na verdade a Sentença não faz referência a tais documentos.
Esta posição, atenta a posição do Tribunal que entendeu não dar acolhimento ás posições defendidas pelo arguido, apresenta-se aceitável pois, analisando o teor dos documentos, extrai-se que os mesmos não se mostram como essenciais e determinantes para enquadrar e justificar a posição do arguido.
Tal como defende o Ministério Público na sua resposta: “…
Na realidade, a documentação apresentada pelo arguido é anódina, ou seja não demonstra, ou sugere sequer, ainda que conjugada com toda a restante prova produzida, a existência de qualquer facto ou indício que contrarie ou fragilize os factos da acusação vertidos na matéria provada. Nada em tais documentos dá suporte à tese do arguido - no sentido de que o mesmo alegou ter sido vítima de uma conduta da assistente marcada por actos de coacção, extorsão, manipulação e engano que o forçaram a assumir a responsabilidade da dívida do seu pai – já que os mesmos se traduzem em correspondência trocada entre o arguido e a assistente relacionada com processo executivo onde a dívida mencionada na acusação foi alvo de cobrança, assim como cópias do próprio processo executivo, registos fotográficos e descritivos dos locais onde o arguido e o seu pai habitavam e uma cópia duma escritura de usufruto que em nada colidem, abalam ou contrariam os factos dados como provados, ao mesmo tempo que em nada atestam a atrás referida versão dos factos invocada pelo arguido em sua defesa.

Assim sendo, só se pode concluir que o tribunal efetuou o exame crítico das provas que lhe cumpria apreciar, sendo percetível o seu pensamento. Pode discutir-se se o fez com a dimensão que o recorrente pretendia; mas isso já não faz parte do núcleo de uma decisão válida. O virtuosismo literário, a elasticidade verbal, o dom da escrita e a capacidade de verbalização do pensamento variam de pessoa para pessoa, sendo certo que uma decisão jurisdicional nada tem que ver com uma peça literária ou com um exercício de estilo, devendo os tribunais esforçar-se por produzir decisões sintéticas, mas abrangentes, o que é mais difícil, mas muito mais, do que fazê-las  longas e enfadonhas - deve apenas ter o suficiente para ser compreendida, mas deve ter tudo o que é necessário para o ser. E não há dívida de que a decisão recorrida tem o necessário e suficiente para ser compreendida.

Por outro lado, quanto às queixas de falta de apreciação explícita dos argumentos expostos pela defesa, cumpre ter presente que desde há muito que está estabilizada na Jurisprudência a firme orientação de que a apreciação das questões submetidas à apreciação do tribunal não reclama a análise e esmiuçada ponderação de todos os argumentos arrolados pelos sujeitos processuais, sendo apenas necessário que a questão seja suficientemente apreciada e decidida de forma compreensível, mas, naturalmente, não é imprescindível que seja aceite por todos – cfr., v.g., Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/2005, e jurisprudência aí referida, prolatado no processo 05S2137, disponível em https://jurisprudência.pt.

Ora, da leitura da decisão recorrida conclui-se, com facilidade, que foram apreciadas as questões suscitadas, sem embrago de se não ter referido pormenorizadamente todo os argumentos enunciados – note-se que nas conclusões formuladas, o recorrente não diz sequer quais os concretos argumentos em causa, sendo certo que em relação à panóplia de documentos e eventual conclusões deles retiradas pelo recorrente já tivemos oportunidade de nos pronunciar atrás.
Na verdade, e em conclusão, refira-se que a nulidade está cominada para a falta de fundamentação (“é nula a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2 (…) do art.º 374.º” - cfr. art.º 380.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP), e não para os casos de fundamentação menos brilhante ou menos conseguida por parte de quem escreve – o importante é que se possam perceber a decisão e os seus motivos. Saber, depois, se foi ou não bem decidido é outra questão. E não esqueçamos que é sempre muito mais difícil atingir a completude com a sempre desejável concisão do que com a balofa prolixidade, e que a concisa completude será sempre, naturalmente a seguir ao acerto, a maior qualidade de qualquer decisão judicial. E é para nós claro que a presente decisão recorrida não padece de qualquer das imperfeições que a este respeito o recorrente lhe imputa, pelo que nada há a censurar-lhe nesta sede.

B
Deve aplicar-se ao caso aa Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto (Lei da Perdão de penas e amnistia de infrações)?

O arguido foi pronunciado, como autor material, na forma consumada, pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal, e foi como tal condenado na pena de duzentos dias de multa, à taxa diária de sete euros.

Vejamos o que diz a Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 a este respeito.

Artigo 4.º
Amnistia de infrações penais
São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa. 

O tribunal recorrido decidiu a questão pelo seguinte modo:

O arguido vem acusado da prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelo pelos artigos 180.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal.
Tal ilícito criminal é punido, em termos abstratos, com pena de prisão até 9 meses ou multa até 320 dias.
Ora, nos termos do disposto no artigo 4.º da Lei nº 38-A/2023, “são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”.
Neste contexto, atenta a moldura penal do crime em apreço e a idade do arguido, verifica-se que a presente situação não cai no âmbito do citado artigo 4.º, da Lei nº 38-A/2023.
Assim sendo, não declaro amnistiado o crime imputado ao arguido.

A decisão é, na verdade, singela, porque a solução da questão tem natureza absolutamente apriorística e intrinsecamente intuitiva. Na verdade, a aplicação da medida de clemência amnistia, ao contrário da medida de clemência perdão, é, regra geral, prévia a qualquer julgamento, bastando para a sua operacionalização os factos imputados e as penas para eles cominadas caibam na previsão legal concedente da graça – só assim não sucede quando se procede ao julgamento de uma imputação não abrangida pela amnistia e apenas se vem a demonstrar factualidade e respetiva moldura penal abstrata que são por ela abarcadas. A posição defendida pelo recorrente, a ser aceite, exigiria a realização do julgamento, e a subsequente escolha da pena, para, caso se optasse pela pena de prisão, poder então concluir-se que haveria lugar à amnistia. Ora, não é assim, e devemos ter presente que o clemente legislador conhece as molduras penais abstratas do sistema legal, e que decidiu amnistiar os crimes em que as molduras penais cumprem simultaneamente, os mesmos requisitos alternativos. Assim, a amnistia não se destina a desgarrar as penas de prisão e multa da sua configuração conjunta, não obstante alternativa, para aferir da aplicabilidade da clemência, mas antes se destina às configurações de penas de prisão e multa alternativas que, simultaneamente e sem qualquer desintegração, quadrem na previsão legal, bastando que uma delas a extravase (como é aqui o caso da pena de multa) para afastar a aplicabilidade do regime em causa.

Improcede, portanto, o recurso nesta parte.

C
O Tribunal a quo fez errada subsunção dos factos ao direito, no que concerne à dignidade criminal dos escritos?

Neste segmento do recurso, pretende-se demonstrar que os factos dados como provados não integram a tipicidade objetiva e subjetiva do crime pelo qual foi proferida condenação.

Para tanto, e mais uma vez em tom proclamatório, e, desatendendo, também de novo, os mais elementares deveres de cortesia e respeito pelo julgador, por exemplo, acusando-o inaceitável e insolentemente de visar uma condenação e subverter factos, vem desfiar em longa ladainha o seu inchado manancial discursivo relativo ao erro de subsunção:

XXXVIII. O juiz a quo visou uma condenação, ainda que para isso tivesse que ignorar factos com relevância à descoberta da verdade material e, consequentemente, à boa decisão da causa. 
 
XXXIX. Subvertendo e omitindo factos relevantes, o Tribunal a quo formou a sua convicção em clara violação do principio in dubio pro reo, bem como operou uma inversão do ónus da prova.
 
XL. Violação bem espelhada na seguinte frase do meritíssimo juiz a quo:”…não foi apresentada qualquer prova de que as imputações difamatórias e injuriosas que o arguido confessadamente dirigiu à assistente têm qualquer correspondência com a verdade dos factos…”
 
XLI. Para dar como provado a prática de um crime de difamação é fundamental precisar quais as expressões consideradas “difamatórias”.
 
XLII. Foram dois os escritos imputados, e pelos quais o Tribunal a quo condenou o recorrente, pelo crime de difamação agravada.
 
XLIII. Um escrito, respeita ao teor do requerimento no processo executivo com o n.º 1467/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão - Juiz ....
 
XLIV. Outro escrito, respeita ao teor de uma carta (notificação) dirigida à Assistente, visando declarar nulo o documento assinado. 
 
XLV. Este escrito, mais que uma simples carta é, de acordo com o mencionado expressamente da mesma (cfr. doc. constante dos autos) uma “Notificação – Declaração de nulidade do documento “Declaração de Reconhecimento de Dívida”. 
 
XLVI. Independentemente do seu teor e fundamento, o envio desta notificação jamais poderá subsumir a prática de um crime de difamação previsto e punido pelo art. 180.º do Código Penal, não preenchendo o seu tipo, mas sim, o tipo do crime de injúria previsto e punido no art. 181.º do Código Penal. 
 
XLVII. O escrito na notificação foi dirigido directa, única e exclusivamente à Assistente, não podendo integrar o conceito de “difamação”.
 
XLVIII. O erro na subsunção dos factos ao direito constante da acusação, passou pela fase de instrução e persistiu até à condenação pelo Tribunal a quo.
 
XLIX. A liberdade de expressão, mormente no que se trata da manifestação dos sentimentos, pensamentos ou convicções formadas por acontecimentos que envolvem actuações e procedimentos de outrem, tem protecção legal e constitucional, principalmente quando visem a defesa de interesses legítimos, em juízo ou fora dele.
 
L. O arguido/recorrente actuou sempre de acordo com a Lei, dentro dos seus limites e exclusivamente no âmbito do processo na defesa dos seus legítimos interesses.
 
LI. É o próprio Juízo de Execução de V. N. de Famalicão – Juiz ..., no despacho proferido em 26.11.2021 (Ref.ª ...44) nos autos com o n.º 1467/21...., que reconhece a via adequada aos actos praticados pelas denunciadas (documento constante dos autos).

LIV. Em momento algum do processo, e certamente que nem no julgamento, resulta sequer o indício que o arguido foi autor de qualquer acto de difamação.
 
LV. Quanto muito terá o arguido/recorrente sido autor de escrito que, entre outros visados, apenas não agradou à Assistente, mas cujo teor espelha fielmente a realidade e a sua interpretação dos acontecimentos.
 
LVI. Caso sejam estas as expressões em causa, em momento algum dos escritos se imputou à Assistente (ou à outra denunciada – agente de execução FF) a prática de crime de Coação ou de Extorsão. 
 
LVII. As expressões não foram usadas enquanto conceitos jurídicos mas para exprimir a interpretação dos acontecimentos face ao sentimento que o arguido ficou ao concluir ter sido enganado. 
 
LVIII. Usadas no contexto in casu, Coação, no dicionário de língua portuguesa, significa: (nome feminino) constrangimento que se impõe a alguém para que faça, deixe de fazer ou permita que se faça alguma coisa; imposição (vide Infopedia).
 
LIX. Foi exactamente esta ideia que o arguido/recorrente pretendeu transmitir, ou seja, na diligência de penhora, sentiu-se constrangido a fazer o que não era obrigado, convencido pela Assistente e demais presentes, que assim teria que ser.
 
LX. Extorsão, no dicionário de língua portuguesa, significa: obter algo de alguém por meio de ameaça ou violência (vide Infopedia).
 
LXI. In casu foi a melhor (o que não significa a mais feliz ou urbana) expressão que o arguido/recorrente encontrou para transmitir a ideia que a Assistente, por meio da ameaça decorrente do procedimento indevido, se apropriou do seu património.
 
LXII. O arguido apenas praticou actos para defesa dos seus legítimos direitos ofendidos pela Assistente.

Começa o recorrente por dizer que a decisão não esclarece quais são as expressões difamatórias, precisando que as que constam da carta dirigida à assistente nunca o seriam, podendo, no máximo, constituir injúria.

Ora, na decisão recorrida diz-se com clareza que:

Ponto assente é que o agente se dirija a terceiro, não sendo necessária a contemporaneidade da comunicação, podendo esta ter lugar em tempo e modo diversos e mesmo com um intervalo de tempo mais ou menos prolongado.

E não há dúvida que nos factos dados como provados resulta que há expressões dirigidas a terceiro, designadamente ao tribunal, através do aludido requerimento – quando nos factos dados como provados se refere a este respeito “dirigido à assistente” ocorre um verdadeiro lapso ou infelicidade redação, porque resulta evidente dos restantes factos que estamos em face de um requerimento apresentado num processo judicial, e, portanto, dirigido necessariamente ao juiz que é titular desse órgão de soberania, sendo certo que aquelas menção pode também significar que as expressões se referem à assistente, não restando qualquer hesitação, de todo o modo, da total irrelevância da questão para a decisão dos autos.

É certo que algumas das expressões foram dirigidas por carta à assistente, tal como resulta dos factos provados, mas em lado algum se puniu o recorrente pela prática do crime de injúria; por outro lado, nada impede, antes tudo aconselha, que esses factos possam ser tidos em consideração na medida da pena, enquanto denunciadores do comportamento global do arguido. Por isso, nenhum engulho técnico esta situação aporta à decisão recorrida.

O recorrente defende, ainda assim, que mesmo as expressões que constam do dito requerimento não se subsumem ao conceito típico objetivo criminal de difamação.

Em seu entender:

- trata-se da manifestação dos sentimentos, pensamentos ou convicções formadas por acontecimentos que envolvem actuações e procedimentos de outrem;
-  de algo que   não agradou à assistente, mas cujo teor espelha fielmente a realidade e a sua interpretação dos acontecimentos;
-  e que apenas o fez para exprimir a interpretação dos acontecimentos face ao sentimento que o arguido ficou ao concluir ter sido enganado, tendo sido a melhor (o que não significa a mais feliz ou urbana) expressão que o arguido/recorrente encontrou.

Ora, esta forma assaz benigna e auto justificativa de enquadrar as imputações em causa está seguramente nos antípodas da melhor hermenêutica jurídica, e representa uma visão profundamente egoísta do que é ou não lícito dizer aos outros e sobre os outros – note-se até, como já referimos, que mesmo em relação ao tribunal recorrido, o recorrente, por várias vezes, neste recurso, também manifesta  sentimentos, pensamentos ou convicções que devia guardar para si, exprimindo, nessas vezes, de forma muito infeliz e absolutamente imprópria a interpretação dos acontecimentos face ao sentimento com que ficou, quando é seguro que o processo não é campo adequado para estados de alma.

As expressões que aqui estão diretamente em causa e que constam do requerimento apresentado no processo são as seguintes:

9.- Contudo, no dia 20 de Julho de 2021, o Arguido apresentou um requerimento no processo com o n.º 1467/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão-Juiz ..., assinado pelo mesmo, dirigido à Assistente, no qual fez constar o seguinte conteúdo: a agente de execução e a mandatária da exequente, ardilosamente e de forma ilegal, montaram a encenação com o intuito de enganar, coagir e extorquir o requerente para que este pagasse dívidas que não lhe eram devidas nem imputáveis.

Por outro lado, foi dado como provado que a diligência de penhora a que o requerimento se refere correu com inteiro respeito pela legalidade – cfr, pontos 1 a 8 da decisão recorrida.

Como bem se refere na decisão recorrida:

3.1.- No presente caso, o arguido vem acusado da prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelo pelos artigos 180.º, n.º 1, 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal.
Nos termos do artigo 180.º, n.º 1, 184.º, ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. l), do C.P., comete o crime aí tipificado quem, dirigindo-se a um advogado no exercício das suas funções ou por causa delas, imputar-lhe, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ele um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir tal imputação ou juízo.
O bem jurídico aqui protegido, e ainda constitucionalmente tutelado (cfr. artigo 26.º, da C.R.P.) consiste na “honra” e “consideração”.
A agravação resulta da qualidade do visado, no caso, advogado no exercício das suas funções – cfr. artigo 132.º, n.º 2, al. l), do C.P.
A definição doutrinal do bem jurídico “honra” pode ser agrupada em duas conceções básicas: a conceção fáctica e a conceção normativa.
Efetivamente, de acordo com a primeira conceção, a honra pode ser um juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma (honra subjetiva), ou a consideração, bom-nome e reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente (honra objetiva).
Por seu turno, de acordo com a conceção normativa, a determinação do bem jurídico só se mostra possível caso seja perspetivado em uma dimensão comunitária ou social (conceito normativo-social), ou então, numa dimensão pessoal, em que a honra é um aspeto da personalidade de cada indivíduo (conceito normativo-pessoal).
Existem dificuldades em encontrar um conceito de honra isento de críticas, pelo que a doutrina dominante acaba por temperar ambas as conceções sem tomar propriamente partido por alguma.
Assim, a “honra” é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.
Na verdade, no dizer de Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal de 1982, V.2 , pág. 196, "Honra é a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, à retidão, à lealdade ao carácter". Por seu turno, "consideração é o património do bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros.
Deste modo, o bem jurídico protegido é a honra, entendida como a dimensão pessoal da pessoa, nas suas múltiplas refrações.
Para a verificação do tipo objetivo de ilícito da difamação será, portanto, necessário haver a imputação, dirigida a terceiros, de um facto (visto como dado real da experiência) ou um juízo (percebido como a valoração de um dado ou ideia), ofensivos da honra ou consideração de outrem, ou a sua reprodução, imputação que, por seu turno, pode ser direta ou insinuada (ser dirigida sob a forma de suspeita).
No tipo legal, para além da expressão “difamar”, é também utilizada a palavra “reproduzir”, que significa divulgar, fazer circular, propalar ou propagar.
A difamação tanto pode, assim, consistir na imputação de um facto a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, como na formulação de um juízo sobre ela.
E pode ainda consistir na mera reprodução uma tal imputação ou juízo.

Assim, sendo a honra a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, à retidão, à lealdade ao carácter, e sendo a consideração o património do bom nome, de crédito, de confiança, é para nós evidente que quem imputar a um advogado em exercício de funções práticas coativas e extorsivas para que alguém receba aquilo a que não tem direito ataca o núcleo essencial e irredutível do seu múnus profissional, da sua reputação e probidade moral, do cumprimento dos preceitos deontológicos que presidem à sua nobre e indispensável missão no sistema de justiça, enfim da sua integridade de caráter, prejudicando decididamente o seu bom nome e a consideração de que é merecedor entre os seus pares, no meio profissional em que se move e perante a comunidade em geral. Não é tanto a imputação do ardil, que pode ser interpretado como manha ou astúcia, nem a de ilegalidade porque tal pode acontecer até involuntariamente a qualquer pessoa, mas o atuar com o intuito de enganar, coagir e extorquir é absolutamente intolerável, e preenche, sem qualquer dúvida, a tipicidade objetiva, por ofender claramente o bem jurídico tutelado pela norma. E nem se argumente com o facto de não estar em causa a imputação da prática dos crimes que com o mesmo nome estão previstos na lei penal (burla, coação e extorsão), porque aí até já poderíamos estar, eventualmente, perante uma denúncia caluniosa, nos termos do artigo 365.º do Código Penal. A simples imputação dos factos que aqueles vocábulos inculcam, cujo teor o recorrente indica corretamente nos autos, citando até o dicionário, a pessoa cuja profissão tem exigências tão rigorosas no que concerne à lisura de procedimentos e integridade comportamental, representa clara afronta a esse mínimo irredutível de respeito de que é merecedor em face do cumprimento de tais preceitos.

Vejamos, a este respeito, o que dispõe a lei (Estatuto da Ordem dos Advogados – Lei n.º 145/2015, de 09/09), no concernente ao papel do advogado e ao travejamento axiológico do seu comportamento:

TÍTULO III
Deontologia profissional
CAPÍTULO I
Princípios gerais
  Artigo 88.º
Integridade
1 - O advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem.
2 - A honestidade, probidade, retidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais.

Ora, as expressões que o arguido dirigiu à assistente constituem a afirmação de que na sua atuação laboral fez tábua rasa de tudo o que, por lei, é exigido ao exercício da sua profissão, sendo certo que o brio e consideração profissionais fazem parte também do conjunto de valências em que o ser humano se realiza, na concretização do salutar direito a trabalhar e à plena realização profissional, e que molestar sem razão justificativa estas dimensões do existir, bole sem dúvida com o bem jurídico protegido pela incriminação da atitude difamatória.

É verdade que nem sempre é fácil discernir onde acaba a liberdade de expressão, direito fundamental e com consagração constitucional, e onde começa o comportamento que extravasa tal direito, e que deve ser sancionado. Concordamos com a decisão recorrida que este é um dos casos em que esse limite foi claramente excedido.

Terminemos que o nosso imenso Padre António Vieira, e com a sua pregnante lição, in Sermões, 87 (Sermão de Santa Iria):

“A honra e a infâmia.
A vida é um bem que morre; a honra e a fama é bem imortal; a vida, por larga que seja, tem os dias contados; a fama, por mais que conte anos e séculos, nunca lhe há de achar conto nem fim, porque os seus são eternos; a vida conserva-se em um só corpo, que é o próprio, o qual, por mais forte  e robusto que seja, por fim se há de resolver em poucas cinzas: a fama vive nas almas, nos olhos e na boca de todos, lembrada nas memórias, falada nas línguas, escrita nos anais, esculpida em mármores e repetida sonoramente sempre nos ecos e trombetas da mesma fama. Em suma, a morte mata ou apressa o fim do que necessariamente há de morrer; a infâmia afronta, afeia, escurece e faz abominável um ser imortal, menos cruel e mais piedosa se o pudera matar.”
Deve, portanto, proteger -se a honra e punir a cruel infâmia.

D
O pedido de indemnização civil deve ser julgado improcedente?

A indemnização foi fixada em mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento.
Desta feita, a dessincronização recursiva ocorre mesmo em relação à lei aplicável à sua própria existência.

Código de Processo Penal:

Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
(…)
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
(…).

Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judicário).

Artigo 44.º
Alçadas
1 - Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.
2 - Em matéria criminal não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso.
3 - A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação.

Ora, por aqui se vê, com cristalina facilidade, que a decisão não é recorrível neste segmento.
O recurso deve ser rejeitado nesta parte, portanto.

III DISPOSITIVO

 Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

A) Rejeitar o recurso apresentado, no seu segmento cível;
B) Julgar improcedente o recurso apresentado, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Guimarães, 08 de Outubro de 2024,

Os Juízes Desembargadores
Bráulio Martins
Carlos da Cunha Coutinho
Isilda Pinho