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CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
JORNALISTAS
TRANSMISSÃO DE GRAVAÇÕES
JULGAMENTO
ESCUTAS TELEFÓNICAS
Sumário
I. As liberdades de expressão e da imprensa não sofrem qualquer afronta relevante quando os jornalistas têm acesso ao julgamento com a restrição de não poderem filmar nem gravar actos processuais, nem divulgarem as gravações das escutas. II. A divulgação de determinada prova constante do processo, ademais sem o devido controle judicial sobre a respectiva valoração e sem respeito, quer pelo contraditório dos arguidos, quer pela sua posição processual de inocência presumida, não é, claramente, algo necessário para dar credibilidade à notícia e, muito menos, para informar a população. III. Não se pode considerar que é absolutamente essencial para o exercício jornalístico em causa a divulgação de gravações das sessões do próprio julgamento e das escutas telefónicas. IV. A divulgação jornalística daqueles elementos probatórios de um processo que ainda não se mostra julgado por quem de Direito representa uma transferência ilegítima da esfera do Tribunal para a esfera da opinião pública.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. No âmbito de processo comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Local Criminal de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, sob o nº 1181/17...., após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença em 14-03-2024, com a refª ...09, relativamente aos arguidos AA e BB, através do qual os mesmos foram condenados nos seguintes termos (transcrição): “DECISÃO: Pelo exposto, julga(m)-se a acusação/pronúncia procedente(s), por provada(s) e, consequentemente: 1. Condena-se o arguido AA como autor material de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e nº 4 do Código de Processo Penal, art.º 71.º, n.º 3 da Lei nº 27/2007, de 30/7 e, ainda, art.ºs 30.º, n.ºs 1 e 2 e 31.º, n.º 1 da Lei 2/99, de 13/01, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa de €17,00 (dezassete) euros. 2. Condena-se a arguida BB como autora material de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e nº4 do Código de Processo Penal, e, ainda, art.ºs 30.º, n.ºs 1 e 2 e 31.º, n.º 1 da Lei 2/99, de 13/01, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa de €10,00 (dez) euros. 3. Condenam-se os arguidos no pagamento de 04 UC´s de taxa de justiça, e nos demais encargos do processo.
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Proceda-se ao depósito da presente sentença (artº 372º, nº5º, do CPP). Remeta, após trânsito, boletim à D.S.I.C..”
II. Inconformados com a decisão condenatória vieram ambos os arguidos interpor recurso em 22-04-2024, com a refª ...86, numa única peça recursiva, através da qual oferecem as seguintes conclusões:
“I. DO OBJETO DO RECURSO
1. No âmbito dos presentes autos foram os Arguidos condenados pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, p.e p. pelo artigo 348.º, n.º 1 do CP por referência ao artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e nº4 do CPP e ainda artigos 30, nºs. 1 e 2 e 31.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro (Lei de Imprensa). 2. A condenação em causa tem por referência uma peça noticiosa, em formato vídeo com a duração de 7 minutos e 17 segundos transmitida no serviço de programas “...” e na edição online do ...” onde foram incluídos segmentos de registos áudio de declarações de CC e de DD prestadas na 1ª sessão da audiência de discussão e julgamento da "Operação ... realizada no dia 15.02.2017, bem como, excertos de interceções telefónicas de que haviam sido alvo o arguido DD e EE. 3. Do cotejo da prova produzida, o Tribunal a quo considerou que se mostravam preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime de desobediência simples. 4. No que diz respeito à eventual exclusão da ilicitude da conduta por agirem ao abrigo do direito a informar e liberdade de imprensa, o Tribunal a quo, concluiu ainda que, os arguidas não agiram ao abrigo de qualquer causa de justificação da sua conduta, uma vez que, alegadamente “não era essencial a divulgação do som da audiência de julgamento, nem das interceções telefónicas, e assim que justificasse a sua atuação contra lei expressa, atento que o próprio nº 1 do art.º 88.º do C.P., que prevê a possibilidade de ser realizada a narração circunstanciada de todos os atos processuais”. 5. Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo a transmissão em causa era necessária ao cumprimento do seu direito/dever de informar em prol da autenticidade e objetividade da informação transmitida. 6. Consideram os recorrentes que, não se encontram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime pelo qual foram condenadas razão pela qual se requer a alteração da matéria de facto e ainda que, não tendo sido colocada em causa a “eficácia, imparcialidade e serenidade na administração da justiça” ou a presunção de inocência dos visados nas notícias objeto dos autos (o que ficou provado pelo depoimento do Exmo. Senhor Juiz do Coletivo FF – vide pag. 10 in fine da sentença recorrida), ou seja, os bens jurídicos protegidos com a incriminação prevista pelos artigos 88º nº 2 alínea b) do CPP e 348.º, n.º 1, alínea a) do CP, não se vislumbravam razões para restringir o seu direito a informar e a liberdade de imprensa, razão pela qual, o Tribunal a quo não valorou corretamente a realidade fáctica em crise e interpretou incorretamente o artigo em causa com base numa leitura incorreta e contrária à Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. 7. Foram desconsiderados elementos probatórios favoráveis aos arguidos, sendo manifestamente insuficiente a prova produzida para sustentar as suas condenações com violação do artigo 127º, 129º, 345, º4, todos do CPP, e bem assim do Princípio da Presunção da Inocência, no seu corolário máximo – in dubio pro reo. 8. Assim, entendem os recorrentes, sem perder a noção que ao Tribunal cabe a livre apreciação da prova, que se encontra matéria de facto que deveria ter sido julgada de forma diferente da que efetivamente foi, e igualmente, no que concerne a interpretação e aplicação do Direito, que imporia decisão diversa da que veio a ser proferida. 9. Desta forma, as Recorrentes vêm impugnar a decisão proferida, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de Direito, porquanto não têm qualquer dúvida de que foi produzida nos autos prova no sentido de contrariar frontalmente o entendimento preconizado na douta Sentença, designadamente, através das declarações das próprias arguidas e depoimentos das testemunhas, que pela utilização das regras e experiências comuns – se poderia ter alcançado outro resultado, incompatível com a decisão ora proferida. 10. Assim, ao considerar que os arguidos praticaram um crime, o Tribunal “a quo”, não aplicou adequadamente o direito e não fez justiça.
II. DA MATÉRIA DE FACTO a) Da alegada responsabilidade da arguida BB e alteração da resposta dada à matéria de facto provada e não provada da sentença recorrida: Do ponto “12” do elenco dos factos “provados” e ponto b) do elenco dos factos “não provados” 11. Não assiste qualquer razão ao Exmo. Senhor Juiz a quo quando depreende que a autoria da peça em registo de vídeo só poderia ser atribuída à arguida BB por ser esta a autora do texto jornalístico relativo à notícia online de dia 9 de Maio pelas 08:23h a qual se apresenta assinada pela mesma arguida. 12. Assim, o Exmo. Senhor Juiz a quo condenada a arguida com base numa presunção de culpa, uma conclusão desfasada da realidade fáctica assente em prova indireta e socorre-se de uma presunção para fundamentar a responsabilidade criminal da recorrente. 13. O recurso à prova indireta carece de cuidado acrescido. “Sendo o facto presumido contrário ao arguido, é dever do juiz objetivar o juízo de inferência por si realizado, superando, por essa via, a presunção de inocência de que é titular um arguido em processo penal (…) Na medida em que o facto conhecido (base da presunção) não prova mas antes indicia o facto presumido, a convicção probatória do julgador, admitida pelo artigo 127.º está sujeita ao dever acrescido de fundamentação nos termos do artigo 374.º, n.º 2.”» 14. A verdade é que, o Exmo. Senhor Juiz a quo retirou de um “vazio” uma conclusão que não é suficiente para suportar uma condenação uma vez que em processo penal não existem “presunções” ou “achismos” mas sim, o principio do in dúbio pro reu que deverá intervir aquando da valoração da prova, ou seja, quando emerge um resultado que não é conclusivo - que no limite, era o caso dos presentes autos. 15. No caso dos presentes autos foram desconsiderados elementos probatórios favoráveis à Recorrente, sendo manifestamente insuficiente a prova produzida para sustentar aquela factualidade, e com violação do artigo 127º, 129º, 345 º 4, todos do CPP, e bem assim do Princípio da Presunção da Inocência, no seu corolário máximo – in dubio pro reo. 16. O facto da arguida BB ser apenas a “voz-off” do relato do vídeo em apreço, não pressupõe que esta tenha tido alguma intervenção na criação do mesmo ou até tomado alguma decisão quanto à sua transmissão ou a sua divulgação pública. 17. Em momento algum se consegue afirmar com a suficiência legalmente exigida que foi a recorrente quem inseriu as declarações e as interceções telefónicas na peça jornalística. 18. Não resulta provado quem em concreto inseriu os registos áudio na peça jornalística e a verdade é que, no âmbito do processo penal vigora também o princípio da presunção de inocência e o princípio do in dúbio pro reo. 19. Assim, neste conspecto e por todo o exposto, não poderá ser assacada à arguida BB qualquer responsabilidade criminal, impondo-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que a absolva a arguida com todas as consequências legais. 20. Entendem assim os Recorrentes que, com base nas: • declarações da Arguida BB prestadas na audiência de julgamento de dia 12-12-2023 com início pelas 10:43 e término aos 10:56 com a duração de 00:12:30, mais concretamente das passagens [00:01:00] a [00:02:19] e [00:06:00] a [00:11:00]; • depoimento da testemunha GG prestado na audiência de discussão e julgamento de dia julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 15:26 e términus pelas 15:43 com a duração 00:17:36 vai de encontro com as declarações da Arguida BB, em concreto, as passagens [00:03:00] a [00:04:00]; • depoimento da testemunha HH prestado na audiência de discussão e julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 15:06 e términus pelas 15:25 com a duração 00:19:05, mais concretamente as passagens 00:12:00 e 00:14:00; • depoimento da testemunha II prestado na audiência de discussão e julgamento de dia julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 15:45 e términus pelas 16:12 com a duração de 00:26:33, mais concretamente as passagens [00:22:00] a [00:23:00]; 21. Que o Tribunal “a quo” deveria ter julgado o ponto “12” do elenco dos factos provados como “NÃO PROVADO” e o ponto “b” do elenco dos factos “não provados” como “PROVADO”. 22. Deste modo e em consequência, a matéria de facto aqui exposta impõe decisão diversa devendo assim, ser alterada a resposta dada ao ponto “12” do elenco dos factos provados da sentença recorrida, passando o mesmo a – “NÃO PROVADO” bem como, a resposta dada ao ponto “b” do elenco dos factos não provados da sentença, passando o mesmo a “PROVADO”, não se encontrando assim preenchidos os pressupostos que depende a aplicação à arguida da pena pela qual foi condenada, impondo-se a sua absolvição para todos os efeitos legais. b) Da alegada responsabilidade do arguido AA e alteração da resposta dada à matéria de facto provada e não provada da sentença recorrida: Do ponto “13” do elenco dos factos “provados” e pontos a); g); h); i); e j); do elenco dos factos “não provados” 23. Considerou o Exmo. Senhor Juiz a quo que o recorrente AA teve conhecimento antecipado do conteúdo da notícia objeto dos presentes autos. 24. A verdade é que, não existe nos presentes autos dos autos qualquer prova de que o arguido teve efetivamente conhecimento prévio dos conteúdos emitidos na reportagem ou no site do ...” – o que inclusive foi referido pelo próprio em sede das suas declarações e corroborado pela arguida BB e todas as testemunhas arroladas pela defesa. 25. Não demonstrada a efetiva intervenção do Diretor através de ação ou omissão na divulgação dos conteúdos online, não pode o mesmo ser responsabilizado uma vez que, não praticou qualquer um dos factos de que depende a sua punição. 26. Entendem assim os recorrentes com base nas: • declarações do arguido AA prestadas na audiência de discussão e julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 14:27 e términus pelas 14:37 com a duração de 00:09:46, mais concretamente as passagens [00:00:00] a [00:01:23] • declarações da Arguida BB na audiência de discussão e julgamento de dia 12.12.2023 com início pelas 11:09 e términus 11:26 com a duração de 00:17:35, mais concretamente a passagem entre [00:07:46] e [00:08:33] • depoimento da testemunha GG prestado na audiência de discussão e julgamento de dia julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 15:26e terminus pelas 15:43 com a duração 00:17:36, mais concretamente a passagem de 00:05:20 a [00:07:00] • depoimento da testemunha HH prestado na audiência de discussão e julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 15:06 e términus pelas 15:25 com a duração 00:19:05, mais concretamente as passagens [00: 03:08] a [00:04:28] 27. O Tribunal “a quo” deveria ter julgado o ponto “13” do elenco dos factos provados como NÃO PROVADO” e os pontos a); g) h) i) j) do elenco dos factos “não provados” como “PROVADOS”. 28. Deste modo e em consequência, a matéria de facto aqui exposta impunha decisão diversa devendo assim, ser alterada a resposta dada ao ponto “13” do elenco dos factos provados da sentença recorrida, passando o mesmo a – “NÃO PROVADO bem como, a resposta dada aos pontos “pontos a); g) h) i) j)” do elenco dos factos “não provados” da sentença, passando os mesmos a “PROVADOS”, não se encontrando assim preenchidos os pressupostos que depende a aplicação ao arguida da penas pela qual foi condenado, impondo-se a sua absolvição para todos os efeitos legais. Contudo, e caso assim não se entenda, sempre se dirá o seguinte, c) Da falta de verificação do elemento subjetivo e alteração da resposta dada à matéria de facto provada e não provada da sentença recorrida: Do ponto “11” e “14” do elenco dos factos “provados” 29. Não se compreende de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, como se formou a convicção do tribunal “a quo” em depreender sem mais a culpa dos arguidos, ora Recorrentes. 30. Não consta prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que justificasse a sua opção nem o Tribunal a quo tece quaisquer considerações quanto à sua motivação para dar como provado o presente facto. 31. Do cotejo da prova produzida, e no que diz respeito à intenção dos arguidos, verificamos que não poderá estar preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime que depende a sua punibilidade, sendo que, foi produzida nos presentes autos prova bastante que contraria a opção do Tribunal a quo. 32. O princípio da livre apreciação da prova não permite ao Tribunal avaliar a prova como bem entende, impondo-lhe antes limites, de entre os quais princípio da presunção de inocência e o princípio do in dúbio pro reo. 33. Salvo o devido respeito por melhor opinião, entendem as Recorrentes que as suas declarações e o princípio da presunção de inocência e o seu corolário in dubio pro reo demandavam uma decisão diversa da ora posta em crise. 34. Entendem assim as Recorrentes que, com base nas: • Declarações da Arguida BB prestadas na audiência de prestadas na sessão de julgamento de dia 12-12-2023 com início pelas 11:09 e término aos 11:26 com a duração de 00:17:35, mais concretamente, as passagens [00:06:41] a [00:07:35]; • Depoimento da testemunha GG prestado na audiência de discussão e julgamento de dia julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 15:26 e términus pelas 15:43 com a duração 00:17:36, mais concretamente, as passagens [00:12:00] a [00:13:00]; 35. O Tribunal “a quo” deveria ter julgado os pontos “11” e “14” do elenco dos factos provados como “NÃO PROVADOS” por ser manifesta a revela de intenção na prática do crime. 36. Deste modo, deve assim, ser alterada a resposta dada aos pontos “11” e “14” do elenco dos factos provados da sentença recorrida, passando os mesmos a – “NÃO PROVADOS”. 37. Em consequência, a matéria de facto aqui exposta impõe decisão diversa, devendo os pontos “11” e “14” do elenco dos factos provados - passar a “não provados” e em consequência, ser afastado o elemento subjetivo do tipo de crime de desobediência, não se encontrando assim preenchidos os pressupostos que depende a aplicação às arguidas das penas pelas quais foram condenadas, impondo-se a sua absolvição para todos os efeitos legais. d) DO PROCESSO “Operação ...” e da alteração da resposta dada à matéria de factos “não provados” da sentença recorrida: Dos pontos “c” e “d’’ do elenco dos factos “não provados” 38. Consideram os Recorrentes que o Tribunal a quo não extraiu da prova produzida em audiência (com referência aos depoimentos das testemunhas JJ e GG e a um Parecer junto aos autos da autoria do Professor Doutor KK) a factualidade relevante, não tendo sido devidamente apreciados todos os factos carreados ao longo do julgamento e resultantes da prova documental junta. 39. Sem prejuízo de reconhecer a importância do Processo “Operação ...” a qual encontra acolhimento no ponto 3º do elenco dos factos provados da sentença ora recorrida onde se lê: “Por se tratar de um processo com grande impacto mediático, vários órgãos de comunicação social enviaram jornalistas para a cobertura do julgamento”, 40. Com relevância para a boa decisão da causa, nomeadamente com referência ao interesse público subjacente à transmissão da notícia em crise, o Tribunal “a quo” considerou não provado os pontos “c” e “d” da sentença recorrida. 41. Inexplicavelmente, sem prejuízo de constar nos autos prova bastante que a transmissão dos excertos de declarações dos arguidos e de interceções telefonicas era necessária e justificada, pela salvaguarda da imediação dos telespectadores e leitores, o que, sem prejuízo de ter sido alegado pelas testemunhas, o Tribunal a quo desconsiderou por completo. 42. A verdade é que, pelos recorrentes foi junto aos autos um Parecer do Professor KK que contraria manifestamente o entendimento do Tribunal e que foi objetivamente desconsiderado. Lê-se no sobredito Parecer as seguintes conclusões: • In casu, a divulgação das conversações não pôs em causa a realização de justiça, dado que a investigação já fora concluída, nem a reserva da intimidade da vida privada e familiar, uma vez que o conteúdo diz respeito à atividade profissional e desportiva, só possuindo ressonância negativa à luz dos valores que orientam tal atividade. • A divulgação destas conversações, se possível com registo sonoro para ilidir alegações de falsidade, é um meio adequado para promover os valores matriciais da lealdade no futebol profissional, que se tem vindo a transformar num universo onde abundam fenómenos de violência e corrupção, não bastando, para o resgatar, recorrer à justiça penal. • Assim, dos autos consta prova bastante produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que comprova que Tribunal “a quo” deveria ter julgado os pontos c e d dos factos “não provados” como como “PROVADOS”. • De todo o exposto, dúvidas não restam que o Tribunal “a quo” não valorou a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento em conformidade com a realidade fáctica do caso em apreço uma vez que, dos depoimentos ouvidos resultou a importância da transmissão dos excertos das declarações e escutas, sendo esta, de manifesto interesse público atendendo à necessidade de conferir aos leitores a perceção real sobre os factos noticiados e conferir-lhe a máxima credibilidade. 43. Pelo exposto, entendem os recorrentes que, pelo: • Parecer do Professor Doutor KK junto aos autos; • Depoimento de JJ prestado na audiência de discussão e julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 16:13 e términus pelas 16:21 com a duração de 00:08:16, mais concretamente as passagens entre [00:01:00] e [00:08:00]; • depoimento da testemunha GG prestado na audiência de discussão e julgamento de dia julgamento de dia 4.01.2024 com início pelas 15:26 e términus pelas 15:43 com a duração 00:17:36, mais concretamente as passagens [00:08:00] a [00:13:00]; 44. Deveria o Tribunal “a quo” ter julgado os referidos pontos c) e d) do elenco dos factos “não provados” como “PROVADOS”, deixando assim evidente que o manifesto interesse público estava também consubstanciado no alarme social gerado e a necessidade existente na transmissão do vídeo pela manifesta importante da autenticidade.
III. DO DIREITO - DA EXCLUSÃO DA ILICITUDE POR EXERCÍCIO DOS DIREITOS DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE LIBERDADE DE IMPRENSA 45. A liberdade de expressão, de informação e de imprensa, a que se referem os artigos 37.º e 38.º da CRP, 19.º DUDH, 19.º, n.º 2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 10.º, n.º 1 da CEDH, Lei da Imprensa e Estatuto do Jornalista, constitui um dos pilares fundamentais que estruturam qualquer sociedade democrática. 46. A responsabilização criminal das arguidas nos presentes autos, traduz uma manifesta restrição ao seu direito de liberdade de expressão e liberdade de imprensa. 47. É claro que estes direitos não são direitos absolutos, implicam limites e um deles é sem dúvida o do crime de desobediência, mas a verdade é que essa restrição do direito de informação tem de ser adequada, necessária e proporcional, sob pena de ser considerada inconstitucional, por violação dos artigos 18º, 37º, nºs 1 e 2 e 38º, nº1, todos da CRP. 48. A verdade é que, a publicação da notícia objeto dos presentes autos não pôs em causa a eficácia, imparcialidade e serenidade da Administração da justiça ou tampouco a presunção de inocência dos visados nas notícias. 49. Veja-se a este propósito o acórdão do TEDH de 28 de junho de 2011, denominado Acórdão Pinto Coelho contra Portugal – que comporta um caso muito semelhante ao dos presentes autos – resultando do mesmo que “a reprodução das peças processuais, para além de informar, permitiam verificar a credibilidade da informação, atestando a sua exatidão e autenticidade”, concluindo assim que a condenação penal da jornalista em causa constituía uma ingerência que não podia ser justificada como uma “necessidade social imperiosa”, pelo que, existiu uma violação do art. 10.º da CEDH. 50. Também nos termos da CRP, a conduta dos arguidos ora recorrentes, não é ilícita uma vez que é realizada legitimamente ao abrigo do exercício do seu direito a informar (cfr. arts. 31.º, n.º 2, al. b), do CP e 37.º e 38.º da CRP). 51. Assim, é de concluir que a sentença recorrida faz uma errada e não fundamentada aplicação do Direito, violando o disposto nos arts. 19.º DUDH, 10.º CEDH, 19.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, 37.º e 38.º da CRP e 6.º do Estatuto do Jornalista, pelo que, deverá ser revogada e substituída por outra que procedendo a uma correta aplicação do Direito, absolva os Recorrentes do crime pelo qual vêm condenados. Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a Sentença que condenou os Arguidos e substituída por outra que os absolva do crime pelo qual foram condenados, só assim se fazendo JUSTIÇA!!!”
III. O recurso foi admitido por despacho de 30-04-2024, com a refª ...68, tendo sido fixado efeito suspensivo.
IV. Respondeu o Ministério Público em 07-06-2024, com a refª ...06, através de contra-alegações nas quais pugna pela improcedência do recurso interposto pelos arguidos e a manutenção da sentença recorrida, não tendo oferecido conclusões.
V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta proferido douto parecer em 09-07-2024 com a refª ...54, no qual pugna pela improcedência do recurso, subscrevendo a posição assumida pelo MºPº na 1ª instância.
VI. Cumprida a notificação nos termos do artº 417º nº 2 do CPP vieram os arguidos responder através de requerimento oferecido em 10-09-2024 com a refª ...05 através do qual reiteram a posição por si já assumida no seu recurso.
VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
VIII. Analisando e decidindo.
O objecto do recurso interposto, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas respectivas conclusões do mesmo, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP e das nulidades previstas no artº 379º do mesmo CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]
Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º e os vícios constantes do artº 410º, ambos do CPP;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.
Os arguidos entendem que:
- houve erro de julgamento, pelo que impugnam a matéria de facto com a qual pretendem ser absolvidos;
- foi violado o princípio in dúbio pro reo;
- existe uma causa de exclusão da ilicitude uma vez que actuaram no âmbito de um direito legítimo, tendo o Tribunal a quo aplicado incorrectamente o direito.
Está, assim, em causa decidir nos autos, e de acordo com a ordem legal supra estabelecida:
I)se houve erro de julgamento; II) se foi violado o princípio in dúbio pro reo; III) se o Tribunal a quo aplicou correctamente o Direito aos factos.
Antes de entrarmos na análise dos concretos pontos objecto do recurso vejamos, primeiro, os factos que foram dados por provados e por não provados pelo Tribunal a quo bem como a respectiva fundamentação.
“II – FUNDAMENTAÇÃO:
1. Factos Provados: Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa: 1. No dia 15 de fevereiro de 2017, no Juízo Central Criminal de Guimarães, Juiz ..., teve início a audiência de discussão e julgamento relativa ao NUIPC 50/14...., processo que ficou conhecido como “Operação ...”, tendo o acórdão respectivo, em 1ª Instância, sido proferido no dia 09.11.17. 2. No âmbito desse processo eram arguidos, entre outros, CC, DD e EE. 3. Por se tratar de um processo com grande impacto mediático, vários órgãos de comunicação social enviaram jornalistas para a cobertura do julgamento. 4. O jornal, impresso e online, “...” e o canal “...” (...), ambos detidos pela sociedade “EMP01..., SA” e cujo diretor, à data dos factos, era o também arguido AA, destacaram jornalistas para esse efeito. 5. O tribunal não autorizou que fossem transmitidas ou registadas imagens ou tomadas de som daquele julgamento, sendo que, também, nenhum dos aí arguidos consentiu na publicação de conversações ou comunicações interceptadas, ainda em fase de inquérito, no âmbito do processo em causa. 6. Porém, no dia 9 de maio de 2017, foi publicada no site do “...”, acessível através do link ..., uma peça noticiosa, em formato escrito, relativa ao julgamento, da autoria da arguida e jornalista BB. 7. A acompanhar essa notícia havia uma outra peça noticiosa, em formato vídeo, da autoria e com locução da mesma BB, com a duração de 7 minutos e 17 segundos, na qual foram incluídos registos áudio de declarações de CC, prestadas na 1ª sessão da audiência de discussão e julgamento, realizada aos 15.02.17, de declarações de DD, prestadas na 4ª sessão, realizada no dia 01.03.17, bem como de intervenções, na audiência de julgamento, do juiz presidente do colectivo e do advogado Dr. LL, mandatário de CC. 8. Nessa mesma peça, em formato vídeo, foram ainda divulgados excertos de intercepções telefónicas de que haviam sido alvo DD e EE. 9. O mesmo trabalho jornalístico, versão vídeo, foi, também nesse mesmo dia, exibido no canal “...”. 10. As declarações e intercepções divulgadas constam de registos magnéticos existentes no próprio processo, deste fazendo parte, a que os arguidos tiveram acesso por meio que se ignora. 11. Sabiam os arguidos que não estavam autorizados a divulgar ou a transmitir tomadas de som relativas àquele acto processual, bem como comunicações entre arguidos interceptadas, ainda em fase de inquérito, no âmbito daquele mesmo processo. 12. A arguida BB, pese embora soubesse que não poderia utilizar aqueles elementos na peça jornalística por si elaborada e relatada, pois que, para tanto, não estava autorizada, não se coibiu de assim proceder. 13. O arguido AA, enquanto director, não se opôs à divulgação daqueles conteúdos, o que poderia e deveria ter feito, tendo em consideração as suas competências e atribuições e o conhecimento prévio que dos mesmos teve. 14. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. 15. A arguida trabalha como jornalista da ... e aufere, pelo menos, €3.000,00 de salário mensal. 16. Vive com a filha, a qual, também, é jornalista, e aufere, pelo menos, €1.000,00 de salário mensal. 17. Vive em casa emprestada. 18. É licenciada em jornalismo. 19. O arguido trabalha como administrador e aufere, pelo menos, €5.000,00 de salário mensal. 20. Vive com a esposa, a qual trabalha como jornalista, e aufere cerca de €1.000,00 de salário mensal, e dois filhos estudantes. 21. Vive em casa própria, pagando ao banco cerca de €900,00 de renda mensal referente a empréstimo à habitação. 22. É licenciado em Direito. 23. A arguida tem antecedentes criminais: 1 crime de desobediência p.p. pelo arts. 348.º, n.º 1, al. a) do CP, e art.º 88.º, n.º 4 do CPP e art.ºs 30.º e 31.º da Lei 2/99, de 13/1, praticado em 07.11.2009, condenada em 28.07.2017, transitada em 03.05.2018, na pena de 100 dias de multa à taxa de €10,00; 1 crime de desobediência p.p. pelo arts. 348.º, n.º 1, al. b) do CP, e art.º 88.º, n.º 2, al. b) do CPP, praticado em 28.11.2015, condenada em 03.09.2019, transitada em 29.01.2020, na pena de 80 dias de multa à taxa de €11,00; 1 crime de desobediência p.p. pelo arts. 348.º, n.º 1, al. a) do CP, e art.º 88.º, n.º 2, al. a) do CPP e art.ºs 30.º, nºs 1 e 2 e 31.º, n.º 1 da Lei 2/99, de 13/1, praticado em 03.04.2017, condenada em 26.10.2021, transitada em 16.03.2022, na pena de 150 dias de multa à taxa de €10,00. 24. O arguido tem antecedentes criminais: 1 crime de desobediência qualificada p.p. pelo art. 348.º, n.º 2 do CP, praticado em 30.12.2014, condenado em 25.06.2019, transitada em 19.04.2021, na pena de 90 dias de multa à taxa de €20,00. Da contestação, com relevo para a decisão: 25. A Operação ... envolveu assim a investigação sobre a utilização ilegal de seguranças privados, tendo como epicentro a empresa EMP02... Lda. (EMP02...) também arguida no processo, cujos operacionais fariam serviços de segurança pessoal, sem que aquela dispusesse do alvará necessário para o efeito.
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2. Factos Não Provados:
a. O arguido não teve conhecimento do aludido em 1) a 12). b. A arguida aquando do aludido em 7) a 11), limitou-se a ser “voz off”. c. A publicação da notícia na edição on-line do ..." relativa à audiência de discussão e julgamento realizada no dia 15.02.2017 alusiva ao Processo "Operação ..." bem como, a peça noticiosa em formato vídeo que a acompanhou e ainda, a sua transmissão na "...", revelaram-se necessárias no que diz respeito à aproximação do público à realidade dos factos. d. A verdade é que, a difusão de passagens da defesa apresentada de "viva-voz" por CC e DD e os excertos de interceções telefónicas de que haviam sido alvo o Ex-vice Presidente do ... e EE, salvaguardaram a imediação e a perceção de cada cidadão sobre aquilo que se falou e a forma como foi falado, aproximando deste modo, a sociedade portuguesa à justiça, abrindo assim portas à livre interpretação e em consequência, à liberdade de expressão de cada telespectador/ouvinte. e. Ora, o conhecimento concreto da forma de reagir dos arguidos aquando do confronto com os factos imputados (humilde e calma ou arrogante e agressiva) no âmbito das suas declarações, do teor das mesmas (se coerente ou inverosímil) e a forma como foram tratados pelo respetivo Magistrado interveniente .com subserviência ou com autoritarismo ou com mero normal respeito) efetivamente apenas era alcançável mediante audição de tais declarações. f. A mera narração dos factos não permitiria ao cidadão afastar a dúvida de que aquela corresponderia efetivamente à realidade exata/precisa, deixando o homem médio na incerteza de que "será que foi mesmo assim", pelo que, a utilização de sons não foi manifestamente "um acrescento despiciendo" motivado exclusivamente pela obtenção de maiores audiências/acessos contrariamente ao referido na Acusação do MP onde se lê: "Ambos os arguidos atuaram em comunhão de esforços e de vontades, em nome da sociedade arguida e em proveito desta, por forma a gerar maiores receitas com a leitura do iornal online e com as audiências do canal "..." e sítio, na Internet, associado". g. É humanamente impossível a qualquer diretor de um serviço de programas ou publicação, controlar ou sequer tomar prévio conhecimento do conteúdo de cada edição ou do conteúdo de cada reportagem ou divulgação online. h. Sendo, de facto, impossível, o arguido AA, ter tido conhecimento prévio de cada uma das notícias, ou de todas as emissões transmitidas na "..." ou publicadas no on-line de qualquer uma das publicações do EMP01.... i. Enquanto Diretor Geral Editorial do EMP01... que inclui todo um universo do mundo da comunicação social o qual é diariamente atualizado, é totalmente inexequível que o Arguido conheça em concreto os conteúdos noticiosos selecionados para serem emitidos na ... ou publicados no jornal online. j. O Diretor AA não terá tido conhecimento da reportagem nem tampouco da difusão dos conteúdos online no site do ..." ou na ... em momento prévio à respetiva emissão.
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A demais matéria alegada na contestação não é mencionada por se entender ser meramente repetitiva, de direito, conclusiva ou sem interesse para a decisão da causa, e, ainda, sobre a arguida EMP01..., SA que foi despronunciada, e por isso não objecto de julgamento.
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III – MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente: - nos documentos juntos aos autos, nomeadamente ofício de fls. 2; Auto de transcrição de fls. 51 a 54; Ficha de controlo de acesso à sessão de julgamento do dia 15 de fevereiro de 2017 – fls. 60; Cópia analógica da peça constante do ..., versão online – fls. 78 e 79; Certidão permanente da arguida EMP01..., SA – fls. 80 a 99; Credencial de fls. 131; DVD contendo a gravação da peça jornalística; Certidões de fls. 241 a 250 e 256 a 259; Dois CD com o registo da I e da IV sessões de julgamento; Parecer de fls. 783 e ss., certidões das decisões que antecedem; e CRCs. - nas declarações da arguida, a qual em suma, admitiu ser a autora do texto, bem como a sonorizou, mas não editou a peça para televisão. Também não foi ela quem colocou a imagem na peça jornalística. Não sabe como chegaram os áudios com as gravações à redacção. Acha que era a sua colega MM que estava na sala do julgamento, mas as gravações não parecem ter sido ali obtidas, senão ouvia-se ruido. Fls. 78 e 79: escreveu a notícia em papel, e gravou o texto para tv, só fez o voz off, não teve acesso às gravações. Não chegou a ver a notícia (produto final) emitida na tv. Não faz edição. Ninguém apresentou queixa contra si, nem foi exercido direito de resposta. Queria informar porque era do interesse publico, situações de violência em clubes desportivos. O arguido não teve conhecimento antecipado. Foi ela, enquanto responsável do ..., acompanhar o julgamento e fazer a notícia. Não falou com o arguido sobre a notícia e o vídeo. Alguém em lisboa, decidiu usar o seu texto e fazer a notícia e usar os áudios.
Todas as tvs estavam a seguir o julgamento, mas não havia guerras de audiências. Relatou, ainda, as suas condições, pessoais e económicas. - nas declarações do arguido, o qual, em suma, relatou que não teve conhecimento prévio das noticias. Não sabe se esteve na redacção nesse dia. Foi director durante 14 anos, e também tinha competência em gestão e acompanhamento de projectos. A arguida tinha estatuto para fazer a sua própria agenda, e não foi ele quem determinou que ela fosse acompanhar o julgamento. Fls. 78 e 79: na altura não teve conhecimento. As peças podem não ter que ser aprovadas. Acha que a arguida enviou a peça para lisboa e o responsável pelo site, inseriu-a, sem aprovação da direcção. Fazem cerca de 200 a 300 noticias por dia e por isso delega noutras pessoas. Também não viu o vídeo, mas sabe o que é, e tem cerca de 7 minutos. Era director à data. Quanto às escutas é diferente, mas o que se contou em tribunal releva por ser publica a justiça. Mas também não foi chamado a decidir. A intervenção do director é subsidiária. Existia um director adjunto e um executivo, e também chefes de redacção. Os visados não reclamaram, nem lhe ligaram. Relatou, ainda, as suas condições, pessoais e económicas. Relevaram, ainda, os depoimentos das testemunhas: - FF, Juiz de Direito, que se nos afigurou verosímil, relatando, em suma, que presidiu ao colectivo de juízes que realizou o julgamento e sabe que foi reproduzido parte dele, sem que fosse autorizado. Foi o juiz presidente da comarca que fez a participação. Não houve prejuízo para a investigação porque o processo se encontrava já na fase do julgamento. Os jornalistas não tinham autorização para gravar o julgamento, e o seu equipamento ficava à porta, e registavam a presença dos jornalistas. Fls. 150: confirma. - NN, agente da PSP, que se nos afigurou verosímil, relatando, em suma, que fez o policiamento do julgamento e controlava a entrada e saída das pessoas, incluindo jornalistas. Os jornalistas não tinham autorização para gravar, e o seu equipamento ficava à porta. Registavam as presenças dos jornalistas. Fls. 150: confirma. - HH, jornalista do ... e ..., relatando, em suma, que era director adjunto à data e a arguida era jornalista de investigação na área da justiça. A arguida não sabe gravar o programa de tv, e é um técnico que o faz, ela só faz a voz off, e depois são feitas as inserções dos áudios – foi um técnico que editou a peça. O arguido era director, mas não teve conhecimento da notícia. Ele delegou as competências. Há centenas de notícias no on-line e dezenas na tv. A arguida é responsável pelo seu trabalho, mas a inserção do vídeo é feita por um técnico, mas sem desvirtuar a notícia. Eles não se importam com processos, mas se o assunto tem ou não que ser revelado, e o valor da notícia – se tem interesse jornalístico. Para si tudo pode ser divulgado, o valor da notícia é o valor principal. Não sabia que não podia transmitir gravações de actos processuais. E as escutas se têm interesse publico são divulgadas. - GG, jornalista do ... e ..., relatando, em suma, que era chefe de redacção no .... A arguida não sabia montar a peça, mas fez o resumo dela (voz off), e alguém monta a peça para a tv. O arguido não teve conhecimento, porque a noticia no on-line é ao minuto, e ele não costuma ver as peças. O director não consegue ver as peças todas. Ele só se tiver dúvidas é que fala com o director. Conhece a existência de uma norma a proibir a divulgação, mas fazem a ponderação entre o direito de informar. O visado CC é figura publica. A arguida trabalhava no ..., e não era possível editar aí a notícia. Quem pede para fazer a peça é o coordenador. O arguido tem competência para impedir a divulgação da notícia. - II, jornalista do ... e ..., relatando, em suma, que era director adjunto ou executivo na ..., e assegurava a operação televisiva. O director não tem intervenção nas notícias, porque delega noutros. O jornalista tem autonomia, e não deve recorrer ao director. Não teve conhecimento da notícia. A arguida trabalhava no ..., e fez a notícia para o jornal e enviou-a para lisboa, e foi um técnico que lhe deu a forma televisiva. Era uma notícia corriqueira, um julgamento que estava a acontecer. Afinal era uma notícia com relevante interesse público. Tem que haver uma ponderação de interesse da notícia, legais, constitucionais e deontológicos. A arguida enviou o texto e voz para ser emitido na tv, e a redação entrega aos técnicos para fazer o vídeo de acordo com as orientações do jornalista. Não foi a arguida quem enviou as escutas. - JJ, jornalista da Sábado, relatando, em suma, que era director da “Sábado”. Desde o ano de 2007, contestaram o crime, sendo que houve uma revisão da norma com o crime de desobediência, e isso foi polémico, porque passaram a ter que pedir aos visados, e a norma é contra a liberdade de imprensa. Tomaram até posição editorialmente contra a norma. A divulgação das escutas tem um papel relevante no jornalismo e esclarece o público.
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Feita esta breve súmula da prova produzida em audiência de julgamento, há que concluir que merecem resposta positiva os factos dados como provados. Na verdade, da conjugação da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, constata-se que os arguidos praticaram a factualidade que lhes é imputada. No que concerne à factualidade referente à presença da arguida no tribunal, e no acompanhamento (fora do tribunal) e da sua colega MM (na sala de audiências) do julgamento realizado no processo em causa, mereceu resposta positiva, porquanto demonstrada quer pelas declarações da arguida, que a admitiu, quer pelos documentos juntos aos autos, nomeadamente de fls. 60-150. No que se refere à falta de pedido (pelos arguidos), e de autorização (por parte do tribunal) para a transmissão ou registo de som da audiência de julgamento, resultou do depoimento da testemunha FF, juiz que presidiu à mesma, e relatou que os jornalistas não tinham autorização para gravar o julgamento, e por isso o seu equipamento ficava à porta da sala de audiências, sendo registada a presença dos jornalistas (cfr. fls. 60150). E no mesmo sentido o depoimento da testemunha NN, a qual referiu que fez o policiamento do julgamento, controlava a entrada de saída das pessoas, inclusive jornalistas (cfr. fls. 60-150), e que estes não tinham autorização para gravar, sendo que por isso o seu equipamento ficava à porta da sala de audiências. No que respeita à autoria da notícia escrita de fls. 78, foi dada como provada, porque admitida pela arguida, e bem assim porque da mesma consta o seu nome, o que está de acordo com a demais prova produzida, nomeadamente o vídeo em que aparece a fazer a locução. Já no que concerne à demais factualidade, nomeadamente autoria do vídeo e sua divulgação/publicação, é preciso atentar no que se defendeu no Ac. do STJ nº 07P4588, de 12-09-2007, in www.dgsi.pt “I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios. II- “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205). III- Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra. IV- A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. V- O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.” Levando tal jurisprudência em consideração, há, desde logo que, atentar que a arguida admitiu, parcialmente, os factos, nomeadamente que a notícia escrita é da sua autoria e foi ela quem acompanhou a audiência de julgamento em apreço, no exercício das funções de jornalista. Ora, se assim é, tem que se concluir que era ela a jornalista responsável e interessada que a notícia fosse divulgada e dada a conhecer ao público, senão o seu trabalho in loco seria inútil. A alegação da arguida no sentido de já não ter tido intervenção (para além da locução) na peça jornalística (vídeo), não colheu por falta de verosimilhança. E é assim, porquanto da visualização do referido vídeo resulta que quer as gravações (do julgamento), quer as intercepções telefónicas, aparecem devidamente enquadradas por quem faz a sua locução (a arguida), sendo que esta mesma locução faz referência aquelas, dando até explicações sobre as mesmas – existe, assim, um encadeamento lógico e cronológico entre as gravações, intercepções e a locução. Se, assim, foi, e recorrendo a juízos de experiência comum e normal acontecer, não parece haver dúvidas que a arguida participou na elaboração do vídeo e bem, assim, no produto final. Mesmo que se entendesse, que a participação de tal arguida no vídeo, foi apenas de locução, o que não é verdadeiro, nem por isso afastaria a autoria ou coautoria, atento que bastaria ler o texto que teria que reproduzir para saber que iria falar de intercepções telefónicas e gravações – não autorizadas – e que o citado vídeo seria divulgado, pelo que sendo uma jornalista experiência saberia, também, que estaria em causa a prática de um ilícito – aliás, o art.º 88.º do Código do Processo penal tem como destinatários os “Meios de comunicação social”, como refere a sua epigrafe. No próprio texto da notícia escrita de fls. 78, consta que as “(…) explicações dadas pelo CC e DD no julgamento que decorre em ..., são contrariadas pelas escutas telefónicas.” E mais, escreveu, que “... nos mesmo depoimentos – que a ... revelou em exclusivo com a voz dos protagonistas (…)“. Na verdade, as próprias testemunhas de defesa acabaram por corroborar esta conclusão, de certa forma: HH, que relatou que a arguida era responsável pelo seu trabalho e que a inserção do vídeo era feita por um técnico, mas sem desvirtuar a notícia; GG, que relatou que como jornalista conhece a proibição da norma, mas fazem uma ponderação entre ela e o direito de informar; II, que referiu que a arguida enviou o texto e voz para ser emitido na tv, e a redação entrega aos técnicos para fazer o vídeo de acordo com as orientações do jornalista; JJ, que referiu que contestaram a criminalização desde o ano de 2007, tendo até tomado posição contra a norma. Ora, da conjugação destes depoimentos, não pode resultar dúvida que é bem conhecida no meio jornalístico a norma que proíbe as condutas dadas como provadas, mas que ela é contestada pelo sector, o que leva à conclusão que nem sempre é respeitada voluntariamente, nomeadamente quando está em causa um caso mediático, como aconteceu no caso dos autos. Já no que respeita à factualidade dada como provada, referente ao arguido, há que ter em conta que este admitiu exercer, efectivamente, a função de Director. E, não obstante, tenha alegado que não teve conhecimento prévio das notícias, o certo é que as suas declarações a este propósito não se mostraram verosímeis. E é assim, porque sendo Director, estando em causa um julgamento com grande repercussão mediática (como referiu a testemunha II, director adjunto), tendo, para ele, sido destacados meios materiais e humanos, nomeadamente a arguida, uma das jornalistas mais experientes – como esclareceu o arguido -, e outra colega, também, jornalista, não é de todo plausível que o Director não estivesse a par das notícias que seriam elaboradas sobre o assunto e após divulgadas – porque o fito último da imprensa é informar. Além disso, mesmo que não tivesse conhecimento prévio, o que não foi o caso, antes da transmissão, deveria ter-se oposto a sua difusão, porque tal conduta resulta de uma obrigação legal e funcional. Isto é, ao contrário da tese (inverosímil) que tentaram fazer passar, a certa altura, as testemunhas HH, GG e II, os conteúdos a publicar têm que ser conhecidos e publicados sob orientação e superintendência do director e directores adjuntos, ainda, por cima, quando está em causa a publicação de vídeo que gera responsabilidade criminal – como bem sabiam e supra se expôs. Não é de todo plausível a tese propalada de que são os técnicos que editam a noticia, colocam os áudios, inserem as gravações de acto processual e as intercepções telefónicas, como bem entendem, e depois esta é publicada na tv e internet, por alguém, sem responsabilidade de a fiscalizar, isto, adiantaram devido ao desmedido número de noticias produzidas cujo conteúdo não é possível examinar. Já no que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, ponderou-se o iter criminis dos arguidos, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento. Os factos dados como não provados, mereceram resposta negativa, por tudo o explanado e porque não foi feita prova segura e credível da sua ocorrência, quer documental quer testemunhal ou outra, quer porque se provou a tese contrária. Designadamente, a factualidade, alegadamente, acusada no processo nº 50/14...., bem como arguidos, e crimes imputados, etc., alegada na contestação, e não foi demonstrada porque não foi junto por exemplo o libelo acusatório, ou peças processuais, donde decorresse a existência das buscas, etc., sendo certo que pouco interesse tinha para a decisão destes autos, visto que foi de qualquer forma dado como provado que o caso era mediático. Quanto à existência de antecedentes criminais, relevaram os certificados de registo criminal juntos aos autos, e as condições económicas e pessoais, resultaram das declarações dos arguidos e documentos.”
Vejamos, agora, as questões submetidas a recurso pela ordem acima indicada.
I. Do erro de julgamento e impugnação da matéria de facto:
Os arguidos entendem que o Tribunal a quo não apreciou de forma adequada pelo menos, parte da prova que foi produzida em sede de julgamento, tendo dado por provados factos que não se verificam ao mesmo tempo que deu por não provados factos que, no seu ver, se mostram provados.
Vejamos.
A impugnação da matéria de facto segue o disposto no artº 412º nº3 do Código de Processo Penal que dispõe o seguinte:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.”
Tendo a prova sido gravada diz o nº 5 do citado artº 412º do CPP que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Sendo que, nos termos do nº 6 do artº 412º do CPP“no caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
No que se refere às declarações dos arguidos, aos depoimentos das testemunhas e à sua articulação com os documentos, vigora o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artº 127º do CPP, que assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no artº 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art. 32º nº 8 da Constituição.
Assim, “O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida” (Prof. Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
“Por outro lado diremos também que, dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise da gravação áudio onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo. Ou seja, a convicção do julgador só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”[2]
Conforme se esclarece ainda no Acórdão da Relação de Lisboa (9ª secção) de 08-10-2015, proferida no procº nº 220/15.3PBAMD.L1-9, in dgsi.pt:
“III- O recurso em matéria de facto, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente à decisão sobre os concretos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgado, fazendo referência expressa às concretas passagens/excertos das declarações, que, no seu entendimento, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer; IV- Não basta ao recorrente enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito (v.g. da prova produzida não resultam provados os factos do tipo legal ou não se provou o crime, pelo que deve ser absolvido), de tal modo que fosse o tribunal superior, oficiosamente a retirar conclusões sobre quais os factos e provas concretas que se ajustariam à sua pretensão final e dentro destas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir a prova gravada na íntegra, uma vez que o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal “ad quem”, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros relevantes (evidentes e óbvios) na apreciação e ou aquisição da prova produzida em sede de primeira instância.”
Por isso é que é absolutamente fundamental que no recurso interposto da matéria de facto, nos termos do artº 412º nº 3 do CPP, o recorrente identifique os concretos factos cuja alteração pretende e as concretas provas que impunham a requerida alteração, não cabendo a este Tribunal de recurso refazer o julgamento, ouvir toda a prova e voltar a decidir.
Como explicado de forma muito clara e compreensiva no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 3/2012 de 08-03-2012 (in DR 1ª Série, nº 77 de 18-04-2012):
“Pede -se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo. Esta limitação da capacidade cognitiva da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação sempre esteve presente, como desde logo esclareceu o primeiro diploma legal onde se estabeleceu a documentação das declarações orais. Com efeito, como foi afirmado no preâmbulo do Decreto -Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, «o objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência)». O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando -se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros. (…) Como se refere no acórdão de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª «O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar». Os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão em matéria de facto, a exemplo do que ocorria com o artigo 690.º -A, e actualmente do artigo 685.º -A do CPC e artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, decorrem dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais, com vista a assegurar a seriedade do recurso e obviar que os poderes da Relação sejam utilizados para fins dilatórios.” – sublinhado nosso
Esclarecendo ainda de forma clara o Acórdão da Relação de Guimarães de 23-03-2015:[3]
“I. O recurso visa apenas uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente. II. Tem-se entendido que impor decisão diferente quanto á matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. III. Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está. IV. A circunstância de alguém, seja por erro de percepção ou por outro motivo, acabar por efectuar declarações inverosímeis ou contraditórias não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal não se encontra adstrito á inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios.”
Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque na sua anotação ao artº 412º do Código de Processo Penal[4]: “A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de «voltas» do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento. (…) Acresce que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação.” – sublinhado nosso
Ora, no caso em apreço, e adiantando, desde já, a nossa convicção afigura-se-nos que não assiste razão aos arguidos uma vez que, pese embora tivessem indicados os factos concretamente impugnados e as provas que fundamentam a sua visão desses factos, não lograram demonstrar como é que a prova que oferecem, essencialmente trechos de depoimentos já valorados pelo Tribunal a quo, impõe decisão diversa.
Aliás, os próprios arguidos o admitem no seu recurso quando afirmam que:
“(…) vêm impugnar a decisão proferida, quer quanto à matéria de facto,quer quanto à matéria de Direito, porquanto não têm qualquer dúvida de que foi produzida nos autos prova no sentido de contrariar frontalmente o entendimento preconizado na douta Sentença, designadamente, através das declarações das próprias arguidas e depoimentos das testemunhas, que pela utilização das regras e experiências comuns – se poderia ter alcançado outro resultado, incompatível com a decisão ora proferida.” – negrito nosso
É que, para efeitos de se alterar a matéria de facto nos termos propostos não basta apresentar uma versão alternativa com a qual “se poderia ter alcançado outro resultado”, é mister indicar prova que leve forçosamente a outra decisão.
Ora, olhando com cuidado os inúmeros trechos que os arguidos apresentam para justificar o seu pedido de alteração da matéria de facto, o que salta à vista é que tais trechos não obrigam uma decisão diversa, apenas revelam a leitura pessoal que os arguidos fizeram.
Ou seja, os arguidos limitam-se a apresentar uma versão alternativa dos factos, alicerçada na sua própria narrativa e não naquilo que objectivamente resulta da prova.
Sendo de notar que é ao Tribunal a quo, enquanto Órgão de Soberania com legitimação constitucional, isento e imparcial que cabe a análise da prova de acordo com a sua livre apreciação, nos termos do artº 127º do Código de Processo Penal, o que não é a mesma coisa que o arbítrio, e não aos arguidos que naturalmente têm um interesse no desfecho do processo.
Ora, os arguidos não assacam ao Tribunal a quo qualquer erro objectivável como, por exemplo, não identificam na sentença recorrida a imputação a testemunhas algo que as mesmas não disseram, ou a leitura de documentos que, de todo, não era possível encetar.
Afirmam, sim, que o Tribunal a quo socorreu-se de prova indiciária, ou indirecta, contudo, não demonstram como é que o Tribunal a quo errou no recurso a essa prova.
É que o recurso a prova indirecta é aceite na nossa ordem jurídica, obrigando apenas a que o Tribunal a quo formule premissas consentâneas, lógicas e naturalmente decorrentes, de factos que terá alcançado através de prova directa para concluir pelo facto que não se mostra directamente adquirido.
Ou, como esclarece no Acórdão da Relação de Lisboa de 03-03-2020[5]: “A prova indirecta ou indiciária é uma meio válido de aquisição de prova sempre que, de acordo com as regras de experiência comum, se verifique que o facto base é indício seguro para concluir pelo facto acusado, porque do primeiro se retira a conclusão, firme, segura e sólida sobre a ocorrência do segundo e os demais factos provados são consonantes com a conclusão alcançada. Essa conclusão é legitima, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º/CPP), sempre que seja admissível e seguro, segundo as regras de experiência e da vida, estabelecer, entre um e outro, um nexo preciso e directo porque, segundo essas mesmas regras, e considerados os demais factos que intervêm no mesmo “pedaço de vida” relativos às circunstâncias da ocorrência, o facto acusado se prova e não pode ser atribuído a outrem.”
Ora, e salvo o devido respeito, os arguidos não logram demonstrar em que medida as conclusões alcançadas pelo Tribunal a quo se mostram violadoras das regras da experiência comum ou em que medida afrontam o processo de dedução lógica, quer por assentar em premissas erradas, quer porque a conclusão retirada não pode advir de tais premissas.
Recapitulemos o que o Tribunal a quo disse para ter concluído que a peça jornalística em formato vídeo, em relação ao qual a arguida BB admite ter efectuado o “voz-off”, era de facto da sua responsabilidade: “Levando tal jurisprudência em consideração, há, desde logo que, atentar que a arguida admitiu, parcialmente, os factos, nomeadamente que a notícia escrita é da sua autoria e foi ela quem acompanhou a audiência de julgamento em apreço, no exercício das funções de jornalista. Ora, se assim é, tem que se concluir que era ela a jornalista responsável e interessada que a notícia fosse divulgada e dada a conhecer ao público, senão o seu trabalho in loco seria inútil. A alegação da arguida no sentido de já não ter tido intervenção (para além da locução) na peça jornalística (vídeo), não colheu por falta de verosimilhança. E é assim, porquanto da visualização do referido vídeo resulta que quer as gravações (do julgamento), quer as intercepções telefónicas, aparecem devidamente enquadradas por quem faz a sua locução (a arguida), sendo que esta mesma locução faz referência aquelas, dando até explicações sobre as mesmas – existe, assim, um encadeamento lógico e cronológico entre as gravações, intercepções e a locução. Se, assim, foi, e recorrendo a juízos de experiência comum e normal acontecer, não parece haver dúvidas que a arguida participou na elaboração do vídeo e bem, assim, no produto final. Mesmo que se entendesse, que a participação de tal arguida no vídeo, foi apenas de locução, o que não é verdadeiro, nem por isso afastaria a autoria ou coautoria, atento que bastaria ler o texto que teria que reproduzir para saber que iria falar de intercepções telefónicas e gravações – não autorizadas – e que o citado vídeo seria divulgado, pelo que sendo uma jornalista experiência saberia, também, que estaria em causa a prática de um ilícito – aliás, o art.º 88.º do Código do Processo penal tem como destinatários os “Meios de comunicação social”, como refere a sua epigrafe. No próprio texto da notícia escrita de fls. 78, consta que as “(…) explicações dadas pelo CC e DD no julgamento que decorre em ..., são contrariadas pelas escutas telefónicas.” E mais, escreveu, que “... nos mesmo depoimentos – que a ... revelou em exclusivo com a voz dos protagonistas (…)”. – negrito e sublinhado nossos
Esta fundamentação não só se mostra perfeitamente lógica, e de acordo com as regras da experiência comum, revelando um exercício dedutivo perfeito, como resulta de elementos concretos e objectivos dos autos, quais sejam a notícia escrita de onde ressalta à vista a frase escrita pela arguida (que não nega a sua autoria) “Ainda nos mesmos depoimentos - que a ... revelou em exclusivo com a voz dos protagonistas - pode-se ouvir DD garantir que todos os pedidos que fez foi a mando de CC. Há mesmo conversas em que o presidente azul-e-branco está ao seu lado e dá indicações sobre os comportamentos que devem ser seguidos.”
E, ainda, o próprio vídeo pois quem ouve e vê esse vídeo – como nós fizemos – apercebe-se, com total clareza e sem margem para dúvida aquilo a que o Tribunal a quo se refere quando diz que “da visualização do referido vídeo resulta que quer as gravações (do julgamento), quer as intercepções telefónicas, aparecem devidamente enquadradas por quem faz a sua locução (a arguida), sendo que esta mesma locução faz referência aquelas, dando até explicações sobre as mesmas – existe, assim, um encadeamento lógico e cronológico entre as gravações, intercepções e a locução.”
O simples facto da arguida eventualmente poder não ter “montado” o vídeo é irrelevante e não belisca o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal a quo uma vez que essa montagem é meramente técnica tendo o Tribunal a quo notado o seguinte: “HH, que relatou que a arguida era responsável pelo seu trabalho e que a inserção do vídeo era feita por um técnico, mas sem desvirtuar a notícia;”
Afigura-se-nos de elementar bom senso que, tendo a arguida desenvolvido um trabalho jornalístico, o qual foi publicado por escrito, tendo depois efectuado uma “voz-off” para o mesmo trabalho, mas em formato vídeo, que sabia perfeitamente o teor desse vídeo, tanto que o trabalho é seu enquanto jornalista.
De resto não faria qualquer sentido a arguida, autora do trabalho jornalístico, ter efectuado uma voice-off de um trabalho relativamente ao qual desconheceria os respectivos contornos, sendo que a arguida é jornalista profissional e sabe quão importante é a integridade do seu trabalho, não se podendo arriscar a participar em notícias cujo conteúdo não dominasse.
Aliás, é precisamente esse o fundamento que os arguidos oferecem por terem incluído na respectiva peça jornalística gravações do julgamento e das escutas não autorizadas, quer pelo Tribunal, quer pelos visados: a necessidade de consubstanciar a notícia com elementos concretos do processo, assim garantindo a integridade da informação noticiada ao grande público.
Pelo que, vir agora dizer que a arguida, enquanto jornalista profissional, e autora da peça noticiosa, não sabia ao que estava a prestar a sua voz, literalmente, e que desconhecia como a peça final iria ficar é afirmar que a arguida não tem brio profissional o que seguramente não é o caso.
Não é, assim, credível que a arguida não dominasse o conteúdo da peça em vídeo, pelo que todo o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal a quo se revela lógico, conforme com as regras da experiência comum, não se mostrando beliscado com a argumentação desenvolvida no recurso da arguida.
O mesmo se diga em relação ao arguido pois sendo este Director, tal como o Tribunal a quo concluiu: “…sendo Director, estando em causa um julgamento com grande repercussão mediática (como referiu a testemunha II, director adjunto), tendo, para ele, sido destacados meios materiais e humanos, nomeadamente a arguida, uma das jornalistas mais experientes – como esclareceu o arguido -, e outra colega, também, jornalista, não é de todo plausível que o Director não estivesse a par das notícias que seriam elaboradas sobre o assunto e após divulgadas – porque o fito último da imprensa é informar.” – sublinhado nosso
Mesmo que se aceite que, enquanto Director, o mesmo possa não conseguir ver todas as peças jornalísticas atempadamente, que delega funções e que a agência noticiosa no qual trabalha possa fazer 200 a 300 trabalhos por dia, a verdade é que a notícia em apreço era de elevada projecção nacional, referente a figuras públicas em relação às quais uma boa parte da população portuguesa não se mostra indiferente.
A notícia em apreço era também concorrida, sendo de interesse para as restantes agências noticiosas pelo que, nada mais natural do que os arguidos, em particular o Director, se mostrarem empenhados em obterem elementos processuais não autorizados a fim de se destacarem das outras agências.
Ora, a prova que os arguidos oferecem foi já analisada pelo Tribunal a quo não trazendo os recorrentes nada de novo, apenas oferecem a sua leitura dessa prova.
E, se aos mesmos não pode ser negado o direito de discordarem da convicção do Tribunal a quo, a verdade é que a simples discordância, sem indicação de verdadeiro erro de julgamento, assente na violação das regras processuais, não basta para se alterar a matéria de facto nos termos que pretendem.
No fundo, o que os arguidos pretendem é que esta Relação faça um novo julgamento o que está expressamente vedado pelo nosso sistema de recursos.
Não tendo os arguidos logrado provar que o Tribunal a quo tivesse errado na formação da sua convicção, mormente que tivesse feito uso indevido da prova indiciária ou indirecta para alcançar conclusões que de todo nunca poderiam resultar das respectivas premissas, está votado ao insucesso esta parte do seu recurso.
Vejamos, agora, a segunda questão anunciada a qual também se prende com o erro de julgamento que os arguidos invocam.
II) Da Violação do princípio in dúbio pro reo:
Entendem os arguidos que o Tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo uma vez que as suas declarações, bem como a presunção da sua inocência tinha de ter determinado por parte do Tribunal uma decisão a seu favor.
Vejamos.
O princípio do in dúbio pro reo foi transposto para o processo penal a partir do consagrado no artº 32º da Constituição da República Portuguesa que, subordinada à epígrafe “garantias do processo criminal”, diz o seguinte:
“1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. 2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. 3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória. 4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais. 5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. 6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento. 7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei. 8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. 9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior. 10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”
Ou seja, existindo uma séria dúvida sobre determinado facto, essa dúvida deve ser resolvida a favor do arguido, atento o princípio da presunção da sua inocência.
Ou, conforme muito bem explicitado no Acórdão do STJ de 12-03-2009, cujo relator é Soreto de Barros:
“III- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito. IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. V- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. VI- Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. Já o saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada. VII - A apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.” – sublinhado nosso
No caso em apreço, o Tribunal a quo não manifestou qualquer dúvida ao fixar a matéria de facto.
Sendo certo que, apenas da simples análise da sentença recorrida, sem ponderar os elementos de prova, não se chega à conclusão de que o Tribunal a quo deveria ter ficado com dúvida, pelo que nunca poderia estar em causa um erro notório na apreciação da prova no que tange a este princípio.
Não tendo o Tribunal a quo revelado qualquer dúvida insanável e, no âmbito da mesma, ter decidido contra os arguidos, não se verifica o vício apontado por estes no seu recurso.
E, da cuidada análise da sentença ora sob escrutínio não se constata que o Tribunal a quo tivesse alguma dúvida, que se confrontasse com a possibilidade dos arguidos poderem não ter cometido o crime e, mesmo assim, decidisse contra si.
Motivo pelo qual esta parte do recurso também tem de improceder.
III) Do enquadramento jurídico dos factos:
Por fim, os arguidos entendem que o Tribunal a quo errou na aplicação que efectuou do Direito ao seu caso, tendo ignorado a existência de direito legítimo por parte dos jornalistas em veicular notícias, estando, assim, os arguidos coberto por uma causa de exclusão da ilicitude e, em última instância abrigados pelo artº 10º da DEDH.
Vejamos, olhando o que o Tribunal a quo disse a propósito do repsectivo enquadramento jurídico: “IV – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL: À arguida BB, foi imputada a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e nº4 do Código de Processo Penal, e, ainda, art.ºs 30.º, n.ºs 1 e 2 e 31.º, n.º 1 da Lei 2/99, de 13/01. Ao arguido AA, foi imputada a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao artigo 88.º, n.º 2, alínea b) e nº 4 do Código de Processo Penal, art.º 71.º, n.º 3 da Lei nº 27/2007, de 30/7e, ainda, art.ºs 30.º, n.ºs 1 e 2 e 31.º, n.º 1 da Lei 2/99, de 13/01.
Prevê o aludido art.º 88.º do CPP que “2 - Não é, porém, autorizada, sob pena de desobediência simples: a) A reprodução de peças processuais ou de documentos incorporados no processo, até à sentença de 1.ª instância, salvo se tiverem sido obtidos mediante certidão solicitada com menção do fim a que se destina, ou se para tal tiver havido autorização expressa da autoridade judiciária que presidir à fase do processo no momento da publicação; b) A transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer acto processual, nomeadamente da audiência, salvo se a autoridade judiciária referida na alínea anterior, por despacho, a autorizar; não pode, porém, ser autorizada a transmissão ou registo de imagens ou tomada de som relativas a pessoa que a tal se opuser; (…) 4 - Não é permitida, sob pena de desobediência simples, a publicação, por qualquer meio, de conversações ou comunicações interceptadas no âmbito de um processo, salvo se não estiverem sujeitas a segredo de justiça e os intervenientes expressamente consentirem na publicação.” (sublinhado nosso) Já o art.º 348.º, do C.P. estabelece que: “1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;” São elementos essenciais ou constitutivos do referido crime de desobediência: a) a existência de uma ordem ou mandado substancialmente legítimo; b) a regular comunicação da ordem ou mandado c) a emanação de autoridade ou funcionário competente; d) a existência de uma disposição legal a cominar a punição da desobediência simples - no caso: artigo 387º, n.º 2, do Código de Processo Penal; e) o não acatamento da ordem ou mandado (elementos objectivos); f) o dolo, traduzido no conhecimento pelo agente da situação típica e a actuação ciente da ilicitude da sua conduta (elemento subjectivo). Dispõe, por sua, vez o art.º71.º, n.º 3 da lei nº 27/2007, de 30/7 que “O director referido no artigo 35.º apenas responde criminalmente quando não se oponha, podendo fazêlo, à prática dos crimes referidos no n.º 1, através das acções adequadas a evitá-los, caso em que são aplicáveis as penas cominadas nos correspondentes tipos legais, reduzidas de um terço nos seus limites.” (sublinhado nosso) Por fim, prevê o art.º 30.º da Lei nº 2/99, de 13/1 que “1 - A publicação de textos ou imagens através da imprensa que ofenda bens jurídicos penalmente protegidos é punida nos termos gerais, sem prejuízo do disposto na presente lei, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais. 2 - Sempre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respectiva norma incriminatória, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.” E o art.º 31.º, n.º 1 do mesmo diploma, estabelece que “Sem prejuízo do disposto na lei penal, a autoria dos crimes cometidos através da imprensa cabe a quem tiver criado o texto ou a imagem cuja publicação constitua ofensa dos bens jurídicos protegidos pelas disposições incriminadoras.” (sublinhado nossos) Atenta a factualidade supra dada como provada, os vários elementos objectivos e subjectivos supra enunciados encontram-se verificados. Com efeito, não obstante não tenham sido requeridas as devidas autorizações que a lei impõe, a arguida elaborou uma peça noticiosa em formato em formato vídeo, com locução da sua autoria, na qual foram incluídos registos áudio de depoimentos prestados na audiência de julgamento em causa, bem como, também, aí foram divulgados excertos de intercepções telefónicas, sendo este foi transmitido no canal “...” e “.... Já o arguido na qualidade de Director não obstante saber que não existiam tais autorizações, não se opôs a tal divulgação o que poderia e deveria ter feito, apesar conhecer da sua ilicitude. Ademais, os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. O seu dolo revelou-se, por isso, na forma directa, nos termos do artº 14º, nº 1º do Código Penal, que refere “Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.” “Para se afirmar o dolo, basta a consciência marginal, não é necessária a consciência focal; basta a consciência liminar ou difusa, não é necessária a consciência clara de atenção; basta a consciência ou o saber de situação. (…). É suficiente para o dolo que se possa dizer que o agente dispõe de informação correspondente.” – José António Veloso, in Erro em Direito Penal, Associação Académica da faculdade de Direito de Lisboa, 1993, pág. 08. (sublinhado nosso) E, na verdade, trabalhando ambos os arguidos ou como jornalista ou como Director de meio de comunicação social, não tinham como desconhecer a lei que regula a atividade e lhes é dirigida. Deste modo, impõe-se concluir que os arguidos, com as suas apuradas condutas, incorreram na prática do crime de desobediência simples que lhes é imputado.
*
Inexiste, também, qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, não obstante o alegado em sede de contestação. Vejamos: Estatui o artigo 31.º, n.º1 e n.º2, alínea c), do Código Penal, que “1 - O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. 2 - Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade;”. E determina o artigo 36.º, do Código Penal, que “ 1- Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar. 2 - O dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de um crime.”. No conflito de deveres supõe-se a existência de dois deveres jurídicos de acção dos quais apenas um pode ser cumprido. E, ainda, estabelece o artigo 37.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, que “1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. 3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.”. Prevê, também, o artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, que “2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”. Todavia, há que ter em conta que a atividade jornalística e a liberdade de imprensa não constituem um direito absoluto, estando vinculada ao cumprimento das normas legais relativas ao seu exercício (onde se integra o art.º 88.º, n.º 2, al. b) e 4 do CPP). O próprio artigo 10.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, prevê que “O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial” Destarte, não impede a existência de condições, restrições ou sanções relativas ao exercício da liberdade de expressão e de imprensa, desde que previstas na lei, e constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, e nomeadamente para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial. O art.º 88.º, n.ºs 2 e 4 do CPP não prevê qualquer impedimento absoluto, mas antes, estabelece desde logo requisitos de autorização prévia (reserva judicial) – o que os arguidos nem sequer cuidaram de solicitar – nem impede a possibilidade de relatar como decorreu o ato processual (sem incluir gravações dele), e nem, também, que se relate o que foi dito e por quem nas intercepções telefónicas. O TEDH já se pronunciou no Ac. do Homem Du Roy e Malaurie c. França, de 03/10/20000, proc. 34000/96. Também, o Tribunal Constitucional, já se pronunciou nos Acórdãos: - 90/2011 de 15/02/2011, decidindo que “a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 88.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que proíbe, sem limite de tempo, que a comunicação social transmita a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal, sem que tenha havido autorização da autoridade judiciária que preside à fase do processo no momento da divulgação.” (sublinhado nosso) - 605/2207, de 11/12/2007, decidindo que “(…) O bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime em causa integra, pois, um leque de interesses públicos e privados, de tal importância, que é perfeitamente justificável, a criminalização da conduta violadora da restrição de publicidade contida no art.º 88.º, nº 2, a), do C.P.P., abrangendo, como considerou a decisão recorrida, a fase anterior à decisão de sujeição do arguido a julgamento, mostrando-se indiscutivelmente observados os princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, a que devem obedecer as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias, nos termos dos artº 18.º, n.º 2 e 3, da C.R.P.. Não se vislumbra que o legislador pudesse prescindir da reacção criminal para garantir a protecção eficaz daqueles bens jurídicos, face ao poder de facto de que gozam efectivamente os órgãos de comunicação social e à extensão potencial da considerável danosidade inerente à violação do referido bem jurídico complexo pelos mesmos (vide, sobre as consequências da cobertura mediática dos processos criminais, MARTINE MADOUX, em Criminalidade, processo penal e meios de comunicação, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 9, Fasc. 2.º, Abril-Junho 1999, págs. 225-226). E a circunstância de estar em causa uma incriminação de perigo abstracto não conduz à negação da tutela penal, na medida em que se justifica plenamente uma antecipação dessa tutela, pela já referida aptidão de elevada e devastadora danosidade, resultante da reprodução de peças processuais pelos media. (…) O direito de informar e, por extensão, a liberdade de imprensa não são direitos ilimitados e absolutos, sendo certo que é a própria Constituição que admite que o seu exercício pode implicar a prática de infracções sujeitas ao Direito Criminal (artigo 37.º, n.º 3), designadamente quando colide com outros direitos ou institutos constitucionalmente protegidos (vide GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 575, da 4ª ed., da Coimbra Editora, NUNO E SOUSA, em A liberdade de imprensa, pág. 260-268, COSTA PINTO, em Segredo de justiça e acesso ao processo, em Jornadas de Direito Processual Penal e direitos fundamentais, págs. 84-85, da ed. de 2004, da Almedina, e JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, ob. cit., pág. 430). (negrito nosso) Alguns dos bens jurídicos acima referidos como tutelados pelo tipo criminal em análise, encontram-se constitucionalmente garantidos (a independência dos tribunais, no artigo 203º, da C.R.P., a presunção de inocência do arguido, no artigo 32.º, n.º 2, da C.R.P., o direito ao bom nome e reputação, no artigo 26.º, nº 1, da C.R.P., e o direito à reserva da intimidade da vida privada, no artigo 26.º, n.º 1, da C.R.P.), pelo que o seu conteúdo constitui um limite inevitável à liberdade de imprensa (vide, COSTA PINTO, na ob. cit., págs. 84-85, MENEZES LEITÃO, em O segredo de justiça em processo penal, em Estudos comemorativos do 150º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, pág. 232-233, da ed. de 1995, do Ministério da Justiça, ASSUNÇÃO ESTEVES, em Estudos de direito constitucional, pág. 153-154, da ed. de 2001, da Coimbra Editora, MÁRIO FERREIRA MONTE, em O segredo de justiça na revisão do Código de Processo Penal: principais repercussões na comunicação social, na Scientia iuridica, tomo XLVIII, pág. 419-420, e ARTUR RODRIGUES DA COSTA, em Publicidade do julgamento penal e direito de comunicar, na Revista do Ministério Público, Ano 15º, nº 57, pág. 57-69). Pelas razões acima aduzidas aquando da ponderação do respeito do princípio da necessidade da tutela penal, reafirma-se que a criminalização da reprodução não autorizada na comunicação social de peças e documentos processuais na fase anterior à decisão de sujeição do arguido a julgamento se encontra perfeitamente justificada, mostrando-se indiscutivelmente observados os princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, a que devem obedecer as leis restritivas dos direitos, e liberdades, incluindo a liberdade de imprensa. Enquadrando-se, pois, a limitação aqui em causa na restrição directamente constitucional prevista no n.º 3, do artigo 37.º, da C.R.P., não há qualquer violação do conteúdo constitucional da liberdade de imprensa. Tudo o que antes se escreveu não é minimamente abalado pela invocada Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que o respectivo art. 10.º, após dispor no n.º 1 que qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão e que o mesmo compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas, também admite expressamente, no n.º 2, o estabelecimento de restrições previstas na lei que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial, o que abrange a possibilidade dos referidos bens jurídicos tutelados pela tipificação penal em análise constituírem um limite à liberdade de imprensa.” Reitera-se, sobre a liberdade de expressão e de imprensa e interesse público alegado, não era essencial a divulgação do som da audiência de julgamento, nem das intercepções telefónicas, e assim que justificasse a sua actuação contra lei expressa, atento que o próprio nº 1 do art.º 88.º do C.P., que prevê a possibilidade de ser realizada a narração circunstanciada de todos os atos processuais. De resto, defendeu-se no Ac. TRL prolatado no processo nº 430/17.9T9GRD (e junto aos autos), nomeadamente a fls. 1181, “A lei não exige a prova de um dano concreto à investigação ou aos direitos de defesa de quem é arguido no processo a que se referem as peças publicadas, não recaindo sobre a acusação o ónus de demonstrar a relevância dos elementos publicados para a investigação, assim como não cabe às recorrentes avaliar essa relevância (…).” E, no Ac. TRL, prolatado no processo nº 7995/15.8TDLSB (junto aos autos), nomeadamente a fls. 813, é referido que “Ademais, a publicação no decurso do julgamento (ou em momento prévio, como foi o caso) do próprio ato de inquirição do arguido é propicio à criação de julgamentos paralelos, na praça pública, que pode, outrossim, condicionar a atuação, em juízo de todos os quanto são chamados a intervir. É, de resto, essa a razão que justifica, parece, o tratamento diferenciado da recolha da transmissão por escrito, e da sua reprodução, condicionando a segunda a autorização judicial (…)”. E acrescenta que “Nessa mesma linha, dispõe o principio 14 da Recomendação rec(2003) 13 do Comité de Ministros do Conselho da Europa de 10 de Julho de 2003, sobre a difusão de informações relativas a processos criminais pelos média que determina que as reportagens em direto ou as gravações efetuadas pelos meios de comunicação social nas salas de audiência “só devem ser autorizadas se delas não resultar risco sério de influência indevida sobre as vitimas, as testemunhas, as partes nos processos penais, os jurados e os magistrados.” Neste jaez os argumentos explanados refutam, assim, e a nosso ver, quer as causas de justificação alegadas em sede de contestação pela defesa, quer a tese propalada no douto parecer de fls. 763 e seguintes. Desta feita, inexiste qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.”
Concorda-se na íntegra com a análise jurídica efectuada pelo Tribunal a quo acabada de citar, tendo o mesmo já analisado todos os argumentos expendidos pelos arguidos em sede de recurso.
Pelo que se dá por reproduzida aquela fundamentação.
Em complemento aditamos ainda os seguintes argumentos:
Não tendo sido negado o direito aos arguidos de informarem a população sobre notícia de interesse, pois tiveram acesso ao julgamento, só não podendo filmar nem gravar actos processuais, nem divulgar as gravações das escutas, pelo que o seu direito jornalístico não foi sequer beliscado, e, assim, a liberdade de expressão e da imprensa também não sofreram qualquer afronta, não se pode falar sequer em conflito de deveres.
Como não se pode considerar que era absolutamente essencial para o exercício jornalística em causa a divulgação de gravações obtidas do julgamento e das escutas, por as mesmas dizerem respeito ao domínio da Justiça e não do Jornalismo.
Expliquemos.
É aos Tribunais, enquanto Órgãos de Soberania encarregues pela Constituição da República Portuguesa no seu artº 202º, que compete julgar os casos criminais como o objecto da notícia que nos trouxe até aqui.
Sendo função exclusiva dos Tribunais – e de mais ninguém – analisar a prova produzida em sede de julgamento e partir dessa análise, chegar a uma conclusão sobre a culpa, ou falta dela, dos respectivos arguidos.
Ora, a divulgação de alguma prova constante do processo, ademais sem o devido controle judicial sobre a respectiva valoração – se os arguidos entendem que o Tribunal a quo cometeu erro de julgamento ao socorrer-se indevidamente de prova indirecta no seu caso, o que dizer acerca dos juízos de valor descontextualizados e por vezes de uma profunda ignorância que a população em geral não fará com aquela prova – e sem respeito, quer pelo contraditório dos arguidos, quer pela sua posição processual de inocência presumida, não é, claramente, algo necessário para dar credibilidade à notícia e, muito menos, para informar a população.
Até porque, tendo as notícias em apreço sido publicadas e divulgadas ainda o julgamento estava a decorrer, não só o Tribunal não se tinha pronunciado sobre o valor probatório a conferir a tais provas, como a análise dessa prova ainda não estava no domínio público por não ter sido prolatada sentença com um juízo de valor acerca da culpa, ou não, dos respectivos arguidos.
Os senhores jornalistas deste processo, ao divulgarem elementos probatórios de um processo que ainda não se mostrava julgado por quem de Direito e que não tinha ainda uma sentença a pronunciar-se acerca da culpa dos acusados, retirou da esfera do Tribunal e colocou na esfera pública, mormente nas mãos indiscriminadas de pessoas não habilitadas legalmente a julgar aquela prova, a análise (não abalizada) de uma pequena parte de um corpo maior de prova que só ao Tribunal, enquanto Órgão de Soberania, compete ajuizar.
Isto nada tem a ver com informar a população acerca de uma notícia importante pois não compete à população julgar o caso.
Nem tem a ver com a vontade de dar a essa notícia foros de seriedade, pois a notícia resulta do facto de estar a decorrer julgamento num Tribunal do País relativamente a figuras públicas.
Ora, Paulo Pinto de Albuquerque, que até refere que “não é fácil encontrar uma argumentação de absoluta validade constitucional para esta incriminação”[6] aponta um caminho que assenta em duas questões:
“i) o mero interesse público, no âmbito da liberdade de imprensa, justifica a publicação do conteúdo de escutas telefónicas? ii) é indiferente, para esta ponderação, que o conteúdo das escutas haja sido previamente tornado público por sentença ou outro acto judicial?”
Transpondo aquelas questões para o caso dos autos o que se constata com clareza é que o conteúdo gravado das escutas, divulgado no vídeo noticioso, ainda não tinha entrado no domínio público, pois o julgamento ainda estava a decorrer e não havia sentença onde esse conteúdo pudesse estar transcrito ou considerado enquanto prova.
Nesse caso, claro também se torna ver que não tendo o Tribunal em causa sequer tomado uma posição sobre a dita prova proveniente, quer das escutas telefónicas, quer das declarações de CC durante o julgamento, igualmente divulgadas, não havia qualquer interesse real e válido do público em saber o teor das referidas escutas e declarações.
Trata-se de matéria que ainda integra a esfera pessoal dos respetivos arguidos, os quais beneficiam da presunção da inocência, e do direito à sua imagem, cabendo ao Tribunal, e não à população, julgar os eventuais actos daqueles mesmos arguidos.
Tendo o TEDH nos casos Weber c. Suíça e Craxi c. Itália julgado a respectiva publicação não corresponder a um interesse público por as respectivas escutas não constarem da sentença. “O que justifica a publicação de escutas contra a vontade do escutado é a relevância do conteúdo destas para um determinado processo-crime e consequente apuramento da responsabilidade penal; mas esta relevância não pode ser determinada pelos interessados na divulgação – pelos meios de comunicação social – sendo, em princípio, necessário uma ponderação judiciária da relevância das mesmas como meio de prova”.[7]
Ora, o artº 10º da DEDH diz o seguinte no seu nº 2: “2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.”
Não há a menor dúvida que a restrição imposta aos arguidos no âmbito do processo NUIPC 50/14...., visava garantir a autoridade e imparcialidade do poder judicial, pois, tratando-se de processo mediático envolvendo figuras públicas, a especulação pública em torno do respectivo julgamento implicaria, como se nos afigura de elementar bom senso, pressão sobre o Tribunal, retirando-lhe o necessário espaço de tranquilidade para bem julgar o caso, evitando que o julgamento caísse nas ruas, como visava claramente manter intacta a prova e a capacidade do Tribunal a avaliar em total isenção.
Também não há a menor dúvida que as restrições impostas aos senhores jornalistas, aqui arguidos, de forma alguma os impediu de veicular a notícia e, assim, informar a população de assunto de interesse público, pelo que não lhes impediu de exercer os seus direitos jornalísticos e consequentemente o direito à informação e opinião.
Não há dúvida que as proibições impostas pelo respectivo Tribunal também visavam assegurar o direito à palavra e ao resguardo dos arguidos, que beneficiam da presunção da inocência, evitando especulações sobre a validade de prova que o próprio Tribunal ainda não tinha avaliada, sendo o único com legitimidade para efectuar essa avaliação.
Como resulta claro do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 605/2007 que conclui pela legitimidade constitucional da incriminação em apreço uma vez que a mesma: “não visa apenas proteger o exercício da administração já justiça de forma a evitar especulações, conjunturas extraprocessuais e movimentos de pressão da opinião pública sobre os casos em apreciação pelos tribunais, que possam perturbar a serenidade, a isenção e a independência que deve presidir à tomada das decisões judiciais.”
Como ainda, nos termos do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/2011, que, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 88º nº 2 al. b) do CPP quando interpretada no sentido de que proíbe, sem limite de tempo, que a comunicação social transmita a gravação do som da audiência de julgamento, contido no suporte magnético do próprio tribunal, sem que tenha havido autorização da respectiva autoridade judiciária, referiu: “a faculdade de oposição do autor das declarações gravadas em audiência de julgamento â sua posterior transmissão por um órgão de comunicação social (2ª parte da alínea b) do nº 2 do artº 88º) não sõ não merece reparo constitucional, como é imposta pela tutela constitucional do direito à palavra (artº 26º nº 1 da CRP). As razões que justifiquem a gravação, sobrepondo-se ao direito à ‘volatilidade da palavra’, não legitimam a sua livre difusão fora do círculo de actividade judicial a que ela está estritamente funcionalizada.”
Tendo-se mantido, na íntegra, a matéria de facto conforme fixada pelo Tribunal a quo, dúvidas não podem restar que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais imputados aos arguidos, sendo que os mesmos não beneficiam de qualquer causa de exclusão da ilicitude, tendo conseguido cumprir de forma adequada a sua função de informar o público, sendo absolutamente desnecessária a divulgação das gravações que efectuaram, e sendo perfeitamente constitucionais, bem como, conforme com o artº 10º nº 2 da DEDH, as normas incriminadoras, há que se concluir pela validade da sentença condenatória, devendo o recurso dos arguidos improceder in totum.
Decisão:
Em face do acima exposto decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar IMPROCEDENTE o recurso interposto pelos arguidos AA e BB e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas a cargo dos arguidos fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC's cada: (artºs 513º nº 1 CPP e 8º e 9º do Regulamento das Custas Processuais conjugando este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).
Guimarães, 08 de Outubro de 2024.
Florbela Sebastião e Silva (Relatora) Fernando Chaves (1º Adjunto) Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto)
[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”. [2] Ac. Rel. Évora de 28-05-2013 no procº nº 166/11.4IDFAR.E1 in dgsi.pt. [3] In www.dgsi.pt. [4] In “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, reimpressa na Universidade Católica em 2018, página 1144. [5] Consultável em: https://jurisprudencia.pt/acordao/202765/ [6] Comentário Do Código de Processo Penal, 5ª Edição Actualizada, Vol. 1, UCP Editora, p. 352. [7][7] Paulo Pinto de Albuquerque, ob.cit. p. 354.