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CRIMES SEXUAIS
VIOLAÇÃO
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CRIME CONTINUADO
Sumário
1. Pressupondo o denominado crime de ‘trato sucessivo’ [para além da reiteração de uma atividade ilícita, que poderá consumar-se em um ou mais atos, dos quais um só deles basta para preencher o respetivo tipo legal, desenvolvida de forma essencialmente homogénea e durante um certo lapso temporal] unidade de resolução (que não única resolução), vem entendendo a jurisprudência do Supremo Tribunal que, tratando-se de crimes de abuso sexual de crianças, a aludida unidade resolutiva não se verifica. 2. Para tanto, seria indispensável a ocorrência, entre o mais, de uma conexão temporal que permitisse admitir que o agente executou toda a atividade criminosa no quadro de um dolo inicial que, por não ter sido renovado, é comum a todos os atos ilícitos, situação que, por regra e de acordo com os dados da experiência, maxime emocional, não acontece. 3. A prática reiterada de atos ilícitos integradores dos crimes de violação e importunação sexual de menor, não derivando decididamente de uma situação exógena ao agente e facilitadora do seu sucumbir criminoso, mas antes só podendo ter sido provocada, buscada, e delineada pelo mesmo agente, nunca terá como efeito a diminuição da sua culpa, mas antes a sua agravação. 4. Sendo os vários atos praticados, ainda que, perante mesma vítima, em contextos espácio-temporais distintos, existirá pluralidade de crimes, na forma de concurso efetivo, desde logo por força do disposto no art.º 30.º, n.º 3, do Código Penal
Texto Integral
Acordam em conferência na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório
No processo comum coletivo como NUIPC 3/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Central Cível e Criminal – Juiz ..., foi julgado o arguido AA, tendo o acórdão proferido culminado com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o tribunal colectivo do Juízo Central Cível e Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de ... em julgar a douta acusação pública parcialmente procedente e, em consequência, decidem:
Absolver o arguido AA de três crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 6, do Código Penal, por que veio acusado;
Condenar o arguido AA, por haver cometido 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão; e condená-lo, por haver cometido 3 (três) crimes de violação, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 6, do Código Penal, nas penas de, por cada crime, 3 (três) anos de prisão.
Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Condenar o arguido a pagar à menor BB a indemnização de € 6 000, 00 (seis mil euros), acrescida de juros de mora legais, a contra da prolação do presente acórdão.»
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2. Dessa decisão veio a ser interposto recurso pelo arguido, que correu termos neste Tribunal da Relação sob o nº 3/21...., findo o qual veio a ser proferido acórdão que decidiu:
«III – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando-se o acórdão recorrido e, em consequência:
1. Julgar procedente invocada nulidade do acórdão, por falta de exame crítico das provas e consequente insuficiência de fundamentação da matéria provada, e;
2. Consequentemente, declara-se a nulidade desse acórdão que importa a sua revogação, devendo ser proferida nova decisão que sane os vícios apontados, depois de reaberta a audiência a fim de assegurar o contraditório, produzindo-se prova, se tal se revelar necessário.» 3. Na sequência do nesse aresto ordenado, em primeira instância veio a ser proferido o acórdão ora sob apreciação, que culminou na decisão acima transcrita. 4. Inconformado com essa decisão, o arguido interpôs novo recurso cujo objeto delimitou com as seguintes conclusões: (Transcrição) (…) «Conclusões: 1.-Através do recurso interposto a 10/02/2023, o arguido pugnou pela sua inocência e consequente absolvição, tendo entre outras coisas, apontado a nulidade do Acórdão então proferido, por falta de fundamentação e análise critica da prova, sendo que, por douto acórdão de 12 de junho de 2023, o Tribunal da Relação de Guimarães, veio julgar procedente a invocada nulidade, por falta de exame critico das provas e consequente insuficiência de fundamentação da matéria provada, que importou a revogação do acórdão e que impunha uma nova decisão que sanasse tais vícios. 2-A audiência foi reaberta em abril de 2024, tendo sido proferido novo acórdão, cujo seu depósito ocorreu a 2 de maio de 2024 e do qual agora se recorre. 3-Porém, o acórdão agora posto em crise, não sanar os vícios apontadas no Acórdão do TRG (proferido a 12 de junho de 2023), ou seja, manteve-se praticamente inalterado, sofrendo somente pequenas alterações/ajustes. 4- Limitou-se a acrescentar onze itens aos factos dados como provados (itens 31º a 42º “Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:”). 5- Factos agora dados como provados (itens 31º a 42º), que em nada, concorrem para colmatar a falta de exame critico das provas e falta de fundamentação da matéria dada como provada, mormente, no que concerne aos itens 5º a 17º que conduziram à condenação do arguido. 6- O Acórdão ora recorrido, salvo melhor opinião em contrário, fez “orelhas moucas” a todas as advertências efetuadas no Acórdão do TRG, de tal forma, que o Tribunal Recorrido, limitou-se a transcrever o teor do relatório da perícia médico-legal, sem, todavia, proceder a uma analise critica que permita sustentar e/ou compreender o seu raciocínio e o que esteve por detrás da sua convicção. 7- O Tribunal Recorrido, mais uma vez, não procedeu a uma apreciação global da prova produzida, nem fez o exame critico da prova que se lhe impunha. 8- O Acórdão ora recorrido, continua a padecer de nulidade, por falta de fundamentação nos termos do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, nulidade que se invoca novamente. 9- Uma vez que o Acórdão do TRG não se pronunciou sob a impugnação da matéria de facto então efetuada (em consequência da verificada nulidade, que necessariamente prejudicaria a apreciação das demais questões então suscitadas pelo arguido) e uma vez que o Acórdão ora recorrido, se mantêm praticamente inalterado, reiterasse tudo quanto já havia sido invocado no anterior recurso apresentado, designadamente que: 10 - O recorrente foi condenado pela prática de um crime de importunação sexual na pena de seis meses de prisão, bem como pela prática de três crimes de violação nas penas de, por cada crime, três anos de prisão, sendo que, em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de seis anos e seis meses de prisão, bem como, a pagar a menor a quantia de 6.000,00 € a título de indemnização, acrescida de juros de mora e das respetivas custas. 11 - Para o efeito, o Acórdão ora posto em crise, deu como PROVADOS os seguintes Factos, que se passam a reproduzir: - BB, nascida a ../../2005, reside com o pai, CC e a avó materna, DD, na Rua ..., ..., .... – Pelo menos entre Junho e Setembro de 2020, o arguido AA residia em ..., Bairro ..., freguesia ..., concelho ... com a companheira, EE, prima da BB, e os dois filhos menores. - A BB, juntamente com a sua avó materna, FF, deslocava-se com regularidade a casa do arguido para ajudar a sua prima nas tarefas domésticas. - Em data não concretamente apurada, mas no mês de Junho ou Julho de 2020, a BB deslocou-se a casa do arguido, juntamente com a sua avó materna, para ali passarem uns dias. - Num desses dias não concretamente identificados, após o jantar, o arguido, aproveitando-se do facto de a BB estar sozinha na sala, dirigiu-se a esta e apalpou-a na zona do rabo. – Acto contínuo, agarrou-a, colocando os braços à volta das costas desta e puxando-a, com força, para si, beijou-a na boca. - O arguido apenas não prosseguiu a sua conduta porque FF, avó da BB, apareceu de repente na sala, largando de imediato a BB. - No dia 6 de Julho de 2020, em casa do pai da BB, sita na ..., o arguido aproveitando-se do facto de a BB estar sozinha na sala, abriu o fecho das calças que trajava, retirando o pénis para fora. – Acto contínuo, o arguido agarrou a cabeça da BB e puxou-a, com força, na direção do seu pénis, levando a BB a introduzir o pénis na sua boca, apenas cessando a sua conduta quando se apercebeu que a madrasta da BB se dirigia para junto destes. - Após, em datas não concretamente apuradas, mas entre Julho e Agosto de 2020, o arguido, sempre que a BB se encontrava em casa deste e ficava sozinha, dirigia-se a esta, agarrava-a, beijava-a na boca e apalpava-lhe o rabo, vagina e seios por cima e por dentro da roupa que trajava. – Acto contínuo, o arguido pedia à BB para lhe chupar o pénis, ao que a BB respondia sempre que não sabia fazê-lo e o arguido ripostava dizendo-lhe que esta fazia-o bem. - De imediato, o arguido retirava o pénis para fora das calças que trajava e colocavao na boca da BB, o que aconteceu pelo menos em três situações distintas. - O arguido, nessas ocasiões, e de forma a intimidar a BB, dizia-lhe que se contasse a alguém o sucedido retirava os seus irmãos ao seu pai e colocava-o na prisão. - Com a condutas descritas em 4.º a 7.º, o arguido quis importunar a BB, constrangendoa a contactos de natureza sexual, o que fez contra a vontade da mesma. - Com a condutas descritas em 8.º a 12.º, o arguido conhecia a idade de BB e, ainda, assim, agiu com o propósito de forçar a BB a praticar consigo coito oral, o que quis e conseguiu. - Com a conduta descrita em 13.º, o arguido quis amedrontar a BB no sentido de a demover de apresentar queixa-crime às autoridades policiais, fazendo-a crer que retirava os seus irmãos ao seu pai e colocava este na prisão caso tal ocorresse, o que quis e conseguiu. - Agiu em tudo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ainda que os factos por si praticados eram proibidos e punidos por lei. - O arguido não tem antecedentes criminais. - O arguido AA é o primogénito de uma fratria de dois elementos, de um casal cujo relacionamento intrafamiliar revelou uma vivência conflituosa, associada a consumos excessivos de bebidas etílicas pelo progenitor, o que culminou na separação dos mesmos quando o arguido tinha 9 anos de idade. A progenitora é muito trabalhadora e com competências parentais, tendo sido o avô paterno a figura relevante no seu processo de crescimento e substitutiva da figura parental. Com o progenitor mantém relacionamento distante. Partilhou a vivência familiar com uma prima, atualmente com 22 anos, que integrou o agregado com apenas 7 meses de idade e nele permaneceu até aos 16 anos de idade. - O arguido AA iniciou o percurso escolar em idade regulamentar em ..., onde concluiu o 9.º ano de escolaridade, com registo de reprovação no 3.º e 5.º ano de escolaridade. Posteriormente, ingressou na Escola Profissional ..., para frequência de curso de dupla certificação, com equivalência ao 12.º ano de escolaridade, que não concluiu, por ter negligenciado a frequência das aulas e o estudo, sem referência a incidentes disciplinares. Desde os 18 anos de idade, exerce funções profissionais em diferentes áreas, designadamente na ..., onde exerceu funções por um ano, de disco-jóquei em discotecas e festas, em Portugal e .... Em 2015, trabalhou na Câmara Municipal ..., durante um ano, no âmbito de um contrato para desempregados de longa duração. - Em fevereiro de 2016, alterou a residência para a vila de ... e ali exerceu, durante um ano, funções laborais numa pizzaria e, posteriormente, trabalhou na Câmara Municipal ..., onde integrou novo contrato para desempregados de longa duração, pelo período de um ano, e, cumulativamente, desenvolveu funções como bombeiro voluntário na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ... e numa agência funerária de .... - No campo afetivo, refere ter tido relacionamentos superficiais e de curta duração e que conheceu a companheira, EE, em 2013, e volvido pouco tempo estabeleceu união de facto. O casal integrou o agregado da mãe do arguido. - No período a que se reportam os factos descritos na acusação (Junho a Setembro de 2020), o arguido AA vivia com a companheira e os dois filhos do casal, atualmente com 7 e 5 anos de idade, num imóvel cedido por um amigo emigrado na ..., alocado na ..., .... Tratava-se de uma habitação de tipologia 3, com infraestruturas básicas, a necessitar de algumas obras de benfeitoria. - O casal não tinha a obrigação de pagamento da renda da casa por em contrapartida ter assumido realizar algumas obras na área da construção civil. - O arguido não desenvolvia funções laborais regulares, exercia funções como bombeiro voluntário na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ... e como coveiro, numa funerária de ..., pertença de um familiar do padrasto. A companheira trabalhou de 1/09/2020 a 22/01/2021 no Lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia ..., no âmbito da medida de apoio ao reforço de emergência de equipamentos sociais e de saúde (...), do Instituto de Emprego e Formação Profissional, no exercício de funções laborais de auxiliar, não lhe tendo sido renovado o contrato laboral. - Em outubro de 2020, o arguido separou-se da companheira e passou a residir em ..., aldeia vizinha da ..., e integrou o agregado da progenitora e do padrasto, com os dois descendentes. Permaneceu na aldeia com os progenitores até Dezembro de 2020, tendo, posteriormente, passado a residir em ..., por em 08/01/2021 ter iniciado funções laborais no Centro Hospitalar ... – Unidade Hospitalar ..., no âmbito da medida de apoio ao reforço de emergência de equipamentos sociais e de saúde (...), do Instituto de Emprego e Formação Profissional, onde permaneceu até 06/2021. Decorreu o processo de regulação das responsabilidades parentais e os descendentes estão à guarda do arguido. O casal registou conflitos no âmbito do cumprimento do estipulado pelo Tribunal. A ex-companheira tem realizado campanhas agrícolas na ..., encontrando-se atualmente emigrada naquele país. - Actualmente, o arguido reside, com a progenitora de 52 anos de idade e com o padrasto de 72 anos, num imóvel de tipologia 3, com boas condições de habitabilidade e subsiste do apoio da progenitora e padrasto, atuais arrendatários do imóvel (600 euros/mês) e proprietários de um “...” na cidade ..., onde o arguido exerce funções laborais há um mês, auferindo o salário mínimo nacional. Em ..., mantém a atividade de bombeiro voluntário e integra o dispositivo de combate aos incêndios no verão (de 15/05 a 15/10), sendo remunerado pelo exercício destas funções. - Usufrui de suporte/apoio afetivo e económico da progenitora e do padrasto e no acompanhamento educativo dos dois descendentes menores, sendo a relação intrafamiliar descrita como próxima e solidária. Pretende continuar a acompanhar os descendentes e as atividades desenvolvidas pelos mesmos e a conservar a relação afetiva que estabeleceu com uma senhora residente na cidade ..., restando-lhe pouco tempo para o desenvolvimento de atividades de interesse mais pessoal. - O arguido não tem sentido dificuldades de integração na comunidade brigantina, considerando que dispõe das condições necessárias para a concretização dos seus objetivos de vida, no contexto profissional, familiar e pessoal. No âmbito clinico, refere padecer de asma, com acompanhamento clinico na especialidade e tratamento medicamentoso. - Na comunidade, o arguido mantém adequada relação com a rede vicinal e integração social. – No presente e desde há um ano, o arguido reside com a companheira, 44 anos de idade, três descendentes desta (21, 18 e 10 anos de idade, sendo que a mais velha apenas integra o agregado em alguns fins-de-semana e períodos de férias letivas, posto frequentar o ensino superior no ...) e os dois descendentes do arguido (8 e 7 anos de idade), num imóvel de tipologia 3, com boas condições de habitabilidade. O apartamento foi adquirido pela companheira, com recurso ao crédito bancário e está alocado na Rua ..., em ..., numa zona periférica da cidade, sem problemáticas sociais de relevo.- O casal descreve a dinâmica intrafamiliar como equilibrada, pautada pelos valores de diálogo, solidariedade e respeito, sendo a perspetiva de ambos manterem o relacionamento independentemente do desfecho processual dos presentes autos. - A companheira do arguido tem conhecimento da acusação, e conforme a própria refere, não identifica o arguido nos factos constantes na mesma, atendendo à conduta que o mesmo tem manifestado quer no contexto familiar quer extrafamiliar, ressaltando o relacionamento afetivo próximo e respeitoso com as suas descendentes (as quais desconhecem o presente processo judicial). O relacionamento do arguido com os descendentes é descrito como sendo próximo afetivamente e norteado pela preocupação do acompanhamento educativo e escolar dos mesmos. - O arguido exerce funções profissionais, de Operador de Central, na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ..., desde ../../2022, e refere manter o apoio logístico, nos dias de folga e férias, no “...”, atualmente designado por “...”, empresa de serviços ao cidadão, de GG (padrasto). - Verbaliza satisfação pelas funções profissionais que exerce, e não perceciona atitude de afastamento relativamente a si, sentindo-se integrado e motivado para progredir no âmbito profissional e pessoal. - Tem vindo a adotar uma atitude proactiva no âmbito formativo (frequenta o curso de mergulhador profissional e frequentou o curso de proteção e combate a incêndios e a acidentes de viação). – O desempenho profissional do arguido é caraterizado pelo seu superior hierárquico de forma positiva, que refere ser pautado pelo compromisso profissional, disponibilidade e relação cordial com os superiores hierárquicos e colegas. Pelas funções profissionais que exerce aufere um vencimento líquido de cerca de 1000 euros/mês. A companheira exerce funções profissionais na área da restauração e limpeza de casas particulares, e o seu vencimento ronda o valor de 800 euros/mês (valor líquido).- A situação económica do casal é descrita como equilibrada, sendo que os proventos económicos permitem garantir o pagamento das despesas designadamente água, luz, gás, internet, televisão (valor médio de 200 euros/ mês), crédito à habitação (350 euros/ mês), seguro do veiculo, alimentares e pessoais. A renda do alojamento da descendente mais velha da companheira do arguido é paga pelos avós paternos da jovem. A companheira do arguido recebe o valor de 255 euros/ mês de prestação de alimentos, referente às descendentes de menoridade. - O casal referiu que apesar da realização das audiências de julgamento e subsequente condenação do arguido, face à qual este interpôs recurso, a partilha do tempo livre é realizada no convívio com os familiares, amigos e alguns colegas de profissão, não denunciando necessidade de reserva no convívio social ou no evitamento de frequência de espaços públicos.- O arguido continua a beneficiar da retaguarda afetiva e económica da progenitora e padrasto, elementos que, tal como a companheira, mantêm-lhe apoio incondicional. A mãe e o padrasto, após a assunção da união de facto pelo arguido, mudaram de residência, da Rua ..., apartamento outrora partilhado com o arguido, para a Rua ..., em .... - Na esfera social, AA refere que não tem sentido óbices de integração na comunidade brigantina, considerando que dispõe, no presente, das condições necessárias para a concretização dos seus objetivos de vida, no contexto profissional, familiar e pessoal. Mantém relacionamento cordial na comunidade. - O arguido verbaliza disponibilidade para continuar a colaborar com o sistema judicial, e acredita que o desfecho processual lhe permitirá continuar a acompanhar os descendentes e as atividades desenvolvidas pelos mesmos, e a conservar a relação afetiva com a companheira e descendentes desta. 12 - Por outro lado, a sentença ora recorrida considerou como NÃO PROVADOS os seguintes factos: Que no dia 6 de Julho de 2020, o arguido dirigiu-se à BB e proferiu a seguinte expressão “Agora vaisme chupar”, tendo a BB dito que não iria fazer isso; de seguida, o arguido insistiu proferindo a seguinte expressão “anda lá, chupa lá”, tendo a BB dito que não sabia fazer isso, ao que o arguido respondeu “aprendes”; ... tendo a BB desviado a boca; o arguido prosseguiu, proferindo a seguinte expressão “anda lá, chupa”. 13 - Alguma da matéria dada como provada está em flagrante desconformidade coma prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não tendo sido corretamente valorada. Sendo que, a generalidade dos factos dados como provados, resultam em sumula, das declarações para memoria futura prestadas pela menor, que o Tribunal recorrido teve como prestadas por forma pueril e assertiva, logica e coerente e que foram corroboradas segundo o mesmo, pelas testemunhas, DD, avó da menor e CC, pai da menor, Isto é, o Tribunal a quo sobrevalorizou as declarações da menor, bem como alicerçou a sua convicção em testemunhos indiretos, que mais não fizeram do que relatar aquilo que supostamente lhes foi contado pela própria menor, ou seja prestaram depoimentos de “Ouvi dizer”, “foi o que ela me contou”… 14 – O arguido alega desde de inicio, que a generalidade dos factos que constam da acusação são falsos e não passam de fabulações da menor, logo, ao faltar à verdade a primeira, inconscientemente, faltam a verdade os restantes, que como e sabido são próximos e familiares da menor, e naturalmente credenciam a versão por esta apresentada. 15 - O Tribunal a quo nunca poderia valorizar tais depoimentos, para a formação da sua convicção, da forma como o fez, pois, os mesmos, mais não são do que depoimentos apaixonados e indiretos, que tem na sua génese em factos fabulados. 16 - Depoimentos, ainda que não constituam prova proibida, nunca poderiam ter o peso/relevo que lhe foi atribuído na motivação da sentença 17 - Existe matéria dada como provada que está em flagrante desconformidade com a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não tendo sido corretamente valorada, sendo exemplo, o facto de se ter dado como provado que: 10.º - “ ….apalpando-lhe o rabo, vagina e seios por cima e por dentro da roupa que trajava.”, quando na realidade, nem a menor refere tal ( Conf. [ 00:15:00] M.J.: Mas ele fazia isso por cima da roupa ou por baixo? BB F.: Por cima. Por cima. M.J.: Por cima ! BB F.: E houve uma vez que ele tentou porbaixo, também. M.J.: Tentou? Mas não chegou a fazer? (imperceptível) ele não te tentava tirar a roupa, ou tentava? BB F.: Tentava …. só que eu não deixava. M.J.: Isso nunca... BB F.: Não …) 18 - Em conformidade com o exposto na motivação resulta notório para qualquer homem médio e em conformidade com a experiencia comum, que os factos não ocorreram tal como os descreveu a menor. 19 - Resulta evidente, que ao arguido nunca lhe foi concedido a presunção de inocência, que se lhe impunha, tanto assim que, tudo o que por este foi dito em sede de audiência de discussão e julgamento foi diabolizado e necessariamente, era mentira. 20- Os meios de prova estão sujeitos à livre apreciação do julgador, porém, livre apreciação da prova não constitui livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva da prova. 21 – O Tribunal recorrido não indicou de forma clara quais foram os fundamentos da sua convicção bem como não procedeu a uma análise critica de todos os meios de prova, pelo que o recorrente não se conforma com o modo como se procedeu à valoração da prova. 22 - Senão vejamos, a titulo de mero exemplo, os factos descritos em 5 a 13 (dos factos dados como provados), resultam provados com base nas declarações da menor sendo que nalguns dos casos, são corroboradas pelos depoimentos indiretos das testemunhas que se limitaram, rigorosamente, a reproduzir a versão, que anteriormente, lhe havia sido transmitida pela própria menor. 23 –A convicção do Tribunal Recorrido alicerçou-se, tão somente nas declarações da menor, fazendo tabua rasa de tudo quanto foi alegado pelo arguido, porém, o Tribunal estava obrigado a indagar sobre todos os factos alegados, nomeadamente pelo arguido, devendo o exame critico da prova ser de tal ordem que não fiquem quaisquer dúvidas sobre as razões objetivas pelas quais foram valorizadas ou desvalorizadas, o que infelizmente, não aconteceu no caso ora em apreço. 24 - Não resulta claro, por não ser explicado, quais os motivos pelos quais o Tribunal a quo deu particular atenção ao depoimento da menor, em detrimento do prestado pelo do arguido. 25 - O depoimento da menor que foi considerado pelo Tribunal a quo como pueril, assertivo, logico e coerente, porém como se evidenciou supra o depoimento da menor nada tem de assertivo, logico, nem tão pouco pueril, pois resulta evidente para qualquer homem médio, de que alguns dos episódios relatados pela menor, são fantasiosos, ilógicos, sem qualquer sentido, nomeadamente pelas razões explanadas na motivação. 26 - Não é minimamente logico, chegando a ser risível, para além de ir contra as regras da experiencia comum, que o arguido procurasse satisfazer os seus instintos libidinosos, quando sabia estar junto de si a madrasta da menor. 27 - Como também, não tem qualquer lógica, afirmar-se que a madrasta presenciou tal acto ilícito (Conf.: M.J.: Ela...achas que ela conseguiu ver o que se estava a passar ou...? BB F.: Ela conseguiu ver. M.J.: Viu. BB F.: Viu. M.J.: Viu o que se estava a passar, ele não foi assim tão rápido, que ela viu o que é que se estava a passar. BB F.: Sim, ela conseguiu ver) e nada tenha dito ou feito, naquela ou em qualquer outra ocasião !! . Tal pormenor da fabulação da menor, evidência que os factos relatados não ocorrem e que a mesma, tãosomente, procura comprometer terceiros (neste caso a sua madrasta) para sustentar a sua maquiavélica versão/mentira. 28 - A menor imputa a prática de outros factos ilícitos ao arguido, sempre com o escopo de implicar terceiros (designadamente implicando o seu tio, o pai e a avó, como melhor se evidenciou na motivação) com o fim último de sustentar o seu logro, para a final acusar o arguido. 29 - O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório, porquanto a livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico emotivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência, o que infelizmente, não aconteceu no presente caso. 30 - O Acórdão ora posto em crise, os Meritíssimos Juízes não lograram convencer o recorrente, face à prova produzida, sobre os motivos que conduziram à formação da sua convicção e a explicação dada sobre alguns dos factos que se deram como provados mostrasse pouco razoável, termos em que o acórdão, ser também ele nulo, por falta de fundamentação, pelo que deverá ser revogado. 31 - O acórdão encontra-se ferido de nulidade, tendo sido violado o disposto no artigo 374º do CPP, e um erro notório na apreciação da prova, violando o disposto no artigo 127º do CPP. 32 - O Arguido não praticou os factos de que é acusado, nem nos autos foi produzida prova clara, bastante e solida de que os mesmos tenham ocorrido, logo o Tribunal, de acordo com o princípio "in dubio pro reo" deveria decidir no sentido de absolver o arguido, atento a contradição de posições verificada entre a menor e o arguido, e mormente pelas serias duvidas existentes de que tais factos tenham ocorrido. Porquanto, só revogado a acórdão e proferindo decisão que absolva o arguido se fará justiça. 33 - Caso assim não se entenda, sempre se diria também, que perante um erro de qualificação dos factos, por se entender existir (em conformidade com os factos descritos na acusação e no acórdão condenatório, pois na realidade o arguido não praticou quaisquer factos ilícitos) um crime de trato sucessivo. 34 - A acusação pública e o(s) acórdão(s) recorrido(s), integram as condutas do arguido entre junho a agosto de 2020, como correspondendo a diversos crimes de natureza sexual, tendo condenado o arguido pela prática neste período temporal, por um crime de importunação sexual e três crimes de violação. 35 - Em conformidade com a maioria da Jurisprudência e alguma Doutrina, no que respeita especificadamente aos imputados crimes de violação, entende o recorrente que todas essas condutas de que é acusado, configuram e são puníveis apenas como um só crime de trato sucessivo, ou seja, a factualidade por que foi o recorrente condenado pelo Tribunal "a quo" integra um único crime de trato sucessivo de violação e não três tal como é do entendimento do Tribunal recorrido. 36 - Ora, de acordo com o acórdão dão-se como provadas 3 situações, que a menor conseguiu concretizar embora de forma muito sucinta e sem grandes pormenores, que supostamente teriam ocorrido entre junho a agosto de 2020, uma a 6 de julho e as outras em data não concretamente apurada na residência do arguido, tudo conforme assente na factualidade dada como provada. 37 - Como pressuposto da aplicação do regime do trato sucessivo exige-se para que se esteja perante um crime prolongado, uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo; que a vítima, em caso de crimes contra as pessoas, sejam a mesma: que os tipos de ilícito, individualmente considerados sejam o mesmo, ou que, se diferentes, protejam essencialmente um bem jurídico semelhante; uma “unidade resolutiva”, então vejamos, 38 - No caso em apreço a conduta do arguido nestas “pelo menos …três situações distintas…” foi homogénea, o arguido atuou supostamente sempre do mesmo modo, praticando factos semelhantes, ou seja manteve a exigida conduta “homogénea”: “ agarrou a cabeça da BB e puxou-a com força, na direção do seu pénis, levando a BB a introduzir o pénis na sua boca.,..” “agarrava-a na boca e apalpava-lhe o rabo, vagina e seios por cima e por dentro da roupa “ “retirava o pénis fora das calças que trajava e colocava-o na boca da BB…” 39 - O próprio Tribunal “a quo” refere e da como provado, que tal acontecia “sempre que a BB se encontrava em casa deste e ficava sozinha” e que tais factos ocorreram “pelo menos em três situações distintas…” e que os mesmos ocorreram sempre no interior da residência onde habitava o arguido, e sempre contra a mesma vítima, a menor BB. 40- As situações em analise integram inevitavelmente o mesmo tipo legal, sendo o bem jurídico o mesmo. 41 - Um crime de trato sucessivo exige uma «unidade resolutiva» como que uma realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» 42 - Erradamente o Tribunal recorrido afastou a “unidade resolutiva”, alegando que o arguido actuou com múltiplas resoluções criminosas que formou de cada vez que actuou criminosamente, concluindo pela pluralidade de crimes. 43 - Não se pede que o arguido tenha praticado uma série de actos preenchedores do mesmo tipo legal extensivos por cerca de três ou quatro meses, apenas pensando no que iria cometer da primeira vez, não mais pensando no assunto agindo automática ou instintivamente. 44 - O que se defende é que ele tomou a resolução única de cometer esses factos, num momento inicial, e de os repetir paulatinamente sempre que pudesse e quisesse. Tal e qual, como acontece no crime de tráfico de estupefacientes, em que o agente pode vender estupefaciente a centenas de pessoas durante meses ou anos a fio., no entanto, decidiu, num momento inicial, que iria traficar. E que a partir desse momento sempre que pudesse iria proceder à venda de estupefaciente a terceiros, claramente não toma essa resolução centenas de vezes, repetindo a sua acção tantas vezes quantas lhe for possível e pretendido, desde o momento inicial. 45- Em conformidade com a acusação pública e com o acórdão condenatório ora posto em crise, o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ele levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas. 46 - Logo, o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas, agindo sempre imbuído por uma única resolução criminosa, não se contendo e sucumbindo aos seus instintos libidinosos variadas vezes. 47 - Existindo de acordo com o acórdão condenatório, um claro aproveitamento da condição de vulnerabilidade da menor, e de uma espécie de trato, que a levava a não contar a ninguém (“… dizia-lhe que se contasse a alguém o sucedido retirava os seus irmãos ao seu pai e colocava-o na prisão.”- Conf. item 13.º dos factos dados como provados) e a “suportar” os abusos, tendo o arguido liberdade plena para em qualquer altura satisfazer os seus instintos libidinosos, os quais, se manifestam por impulsos espaçados temporalmente, e que não são seguidos, de imediato, são reiterados. 48 - Porquanto, deveras se alterar a qualificação jurídica, ou no caso, a quantificação dos ilícitos de violação de três crimes para um só crime de trato sucessivo, pelas razões anteriormente expostas. 49 - Logo, caso seja colhida a posição ora defendida pelo recorrente (a existência de erro de qualificação dos factos, por se verificar um crime de trato sucessivo), e que em consequência desse facto, seja proferido novo acórdão, que em cumulo jurídico, fixe uma pena de prisão que não exceda os cinco anos, impunha-se aplicar ao arguido a suspensão da execução da pena de prisão, desde logo porque: 50 - Atendendo à personalidade do arguido, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior aos crimes e às circunstâncias destes, somos de concluir que no presente caso, a simples censura do facto e ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tanto mais, porque estamos perante um individuo que é primário e que socialmente é tido como uma pessoa respeitadora do direito e das leis pelas quais se rege a sociedade. 51 - Inexistem quaisquer outros elementos para que se possa concluir em sentido contrário, do ora argumentado em sede de recurso. 52 - Atento a pesadíssima pena em que foi condenado, caso lhe venha a ser reduzida a pena e suspensa na sua execução, resulta evidente que a simples censurado facto e a ameaça da prisão, por si, realizam suficientemente e de forma adequada a finalidade da punição. 53 - Ademais, o arguido é jovem e tem hábitos laborais e vai mantendo ao longo dos anos um estilo de vida que faz com que a sua integração social seja boa, sendo que de momento se encontra a trabalhar como motorista nos bombeiros voluntários de ..., e explora conjuntamente com a sua atual companheira um estabelecimento comercial e tem ao seu cuidado/guarda os seus dois filhos menores, bem como os filhos da sua companheira, a quem garante o sustento e demais cuidados. 54 - O arguido tem uma imagem social positiva, junto daqueles que o conhecem, nomeadamente vizinhos e colegas de trabalho, mantendo comportamentos adequados no contacto social que estabelece com os elementos da rede vicinal. 55 - Dito isto, estamos convictos que é possível realizar um juízo favorável quanto ao futuro do arguido, ora recorrente. 56 - O recorrido é de modesta condição social e económica, de fraca instrução, encontra-se inserido socialmente e tem hábitos de trabalho, porquanto ponderadas as circunstâncias concretas da atuação do recorrente, as suas circunstâncias de vida e personalidade, justificar-se- ia sempre, no nosso humilde entendimento, a suspensão da pena ao ora recorrente, claro está, caso lhe venha a ser reduzida a pena em consequência do presente recurso, para uma pena não superior a cinco anos de prisão, tanto mais porque a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da prisão. 57 - Por outro lado, urge a necessidade de permitir ao Recorrente, a faculdade de poder continuar a trabalhar, pois só dessa forma poderá angariar o valor de € 6.000,00 para proceder ao pagamento da indemnização a que foi condenado, que desde já se diga é manifestamente excessiva, porém não ira merecer qualquer reparo neste recurso, para além do presente. 58 - Sendo que, no caso em apreço a suspensão da execução da pena, não compromete as finalidades precípuas da pena, qual seja a proteção do bem jurídico. 59 - A simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sobretudo o afastamento, no futuro, da prática de novos crimes, devendo, salvo melhor opinião, suspender-se a pena de prisão que for aplicada ao arguido (caso a mesma lhe venha a final a ser reduzida e em cumulo jurídico não exceda os cinco anos de prisão) condicionada a eventuais deveres, regras de conduta ou regime de prova, ou conjugação das mesmas. 60- Violou, pois, o Tribunal a quo as normas jurídicas constantes dos artigos 9º, 40º, 50º, 70º, 71º do Código Penal, 119.º, 127.º, 374.º, 379º nº1, alínea b) e c), 129.º do Código de Processo Civil e no artigo º 32º, nº 1 da CRP
TERMOS EM QUE, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogado a acórdão e proferindo decisão que absolva o arguido. Caso assim não se entenda, decidindo em conformidade com a motivação e as conclusões apresentadas, decidir alterar a qualificação jurídica aplicada, conforme exposto e em consequência, revogar o acórdão recorrido nessa parte. Ser alterada a medida da pena aplicada porque excessiva. revogada a decisão nesta parte, e caso em cumulo jurídico não exceda os cinco anos de prisão, proceder-se à suspensão da execução da pena de prisão que venha a ser aplicada ao arguido, ora recorrente. JUSTIÇA»
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5. Admitido o recurso, em 1ª instância O Ministério Público apresentou resposta, concluindo nos seguintes termos: (Transcrição) (…) Termos em que se formulam as seguintes CONCLUSÕES:
I. DO OBJETO DO RECURSO 1.º Inconformado com o douto Acórdão de 20.04.2024, sob a referência ...93, por via do qual foi o arguido AA, aqui recorrente, condenado, por haver cometido 1(um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal, na pena de 6(seis) meses de prisão e por haver cometido 3(três) crimes de violação, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 6, do Código Penal, nas penas de, por cada crime, 3(três) anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6(seis) anos e 6(seis) meses de prisão, dele recorre o arguido, suscitando, no essencial as seguintes questões: i. saber se se verifica a nulidade do Acórdão por falta de exame crítico das provas, prevista no artigo 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal; ii. saber se a matéria de facto julgada provada deve (nos termos em que o apontou) ser alterada; iii. saber se ocorre erro na qualificação jurídica, existindo um crime de trato sucessivo e não concurso real de crimes; iv. saber se as penas parcelares e única impostas são excessivas ou são adequadas, justas, proporcionais e necessárias;
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II. DO MÉRITO DO RECURSO
2.º Entende o MINISTÉRIO PÚBLICO, ressalvando sempre o maior dos respeitos por distintas opiniões, que o recurso não deve ter, em qualquer ponto, provimento, devendo ser julgado improcedente in totum. 3.º Assim, a propósito da primeira das suscitadas questões – saber se se verifica a nulidade do Acórdão por falta de exame crítico das provas, prevista no artigo 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal – diz o artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, na parte aqui relevante, que “1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º”, continuando, depois, o n.º 2 por dizer que “2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”. 4.º Relativamente aos requisitos da sentença (aqui, acórdão) como ato decisório de excelência, estatui o artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que “[a]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. 5.º A generalidade da doutrina e da jurisprudência vêm assertivamente dizendo que não é toda a falta de fundamentação que importa a consequência da nulidade da sentença ou acórdão, mas antes a falta que seja absoluta, tanto assim que a “fundamentação insuficiente, deficiente ou não convincente não constitui nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso” (vide, REIS, Alberto dos, in Código de Processo Civil, anotado, vol. 5, pág. 140). 6.º No mesmo sentido, vide, entre outros e por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.03.2021, relatado pela Exma. Senhora Juiz Conselheira Leonor Cruz Rodrigues no âmbito do processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1 no qual se referiu que “II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”. 7.º E, a propósito do exame crítico da prova, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.01.2020, relatado pela Exma. Senhora Juiz Desembargadora Cristina Almeida e Sousa, no processo n.º 133/17.4PGSXL.L1-3, em cujo sumário se diz de modo assertivo que “O que importa para satisfazer a exigência legal do exame crítico das provas imposta, sob pena de nulidade, pelas disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1 al. a) do CPP é que a fundamentação da decisão de facto expresse, com clareza, quais as regras de experiência comum, os critérios de razoabilidade e de lógica, ou os conhecimentos técnicos e científicos utilizados para conferir credibilidade a determinados meios de prova e não a outros e em que medida os meios de prova produzidos oferecem informação esclarecedora e convincente que permite considerar provados os factos ou, pelo contrário, não oferecem segurança para alicerçar uma conclusão positiva acerca da verificação de determinados factos e, por isso, se justifica a sua inclusão, nos factos não provados”. 8.º Resulta do douto Acórdão recorrido, indubitavelmente, que o Tribunal a quo expôs de forma cabal a fundamentação para a formulação da sua convicção quanto à matéria de facto, bem como quanto ao Direito, tudo independentemente da bondade da argumentação e do convencimento (ou não) para o seu destinatário não se verificando, no entendimento do MINISTÉRIO PÚBLICO, que o Tribunal a quo não tenha efetuado uma apreciação crítica e, de resto, exaustiva da prova. 9.º De igual sorte, a propósito da segunda questão – saber se se impõe alteração da matéria de facto – caso se entenda que foi dado cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal a respeito da impugnação da matéria de facto, entende-se que o Tribunal a quo decidiu em conformidade com a livre apreciação da prova ínsita ao artigo127.º do Código de Processo Penal, valorando a prova produzida em conformidade, designadamente os depoimentos da ofendida e demais testemunhas e, ainda, as declarações do arguido conferindo a maior ou menor credibilidade, senão mesmo a sua falta, consoante a imediação na produção de prova, alicerçando-se, ainda, na prova pericial junta aos autos e que, nos termos do artigo 163.º do Código de Processo Penal, se presume subtraído o seu juízo ao julgador. 10.ºDonde se impõe também nesta parte seja o recurso interposto julgado totalmente improcedente.
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11.ºQuanto à quarta questão – saber se estão verificados todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo dos crimes pelos quais foi o arguido condenado e se se trata de crime continuado – concorda-se, na íntegra, com o vertido no douto Acórdão recorrido, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, não nos merecendo, pois, qualquer censura, tendo, de resto, o Tribunal a quo explanado de forma exaustiva os elementos do tipo, afastando expressamente a tese do trato sucessivo nos ilícitos em apreciação. 12.ºMas, atente-se aos cabais ensinamentos do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 500/21.9PKLSB.L1.S1, em cujo Acórdão de 24.03.2022, afasta expressamente tal possibilidade aos crimes de natureza sexual pela sua própria natureza.
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13.ºPor fim, no que concerne à última questão – saber se as penas parcelares e única impostas são adequadas, justas, proporcionais e necessárias – considerando todo o acervo factual julgado provado, bem como a medida da culpa do arguido ora recorrente, de harmonia com as finalidades das penas e daquilo que dispõem os artigos 40.º e 71.º do Código Penal, afiguram-se justas, adequadas e proporcionais para o tipo de cada um dos crimes em causa, as penas que concreta e parcelarmente foram impostas à arguida. 14.ºE, em sua decorrência, fixando-se a moldura de cúmulo entre 3 (três) anos de prisão e o máximo de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão, afigura-se-nos, por conseguinte, justa, adequada, proporcional, mas também necessária, a pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, sopesando, entre tudo o mais, “o tempo já decorrido sobre os factos, que atenuam sobremaneira as exigências de prevenção geral”, conforme bem fez evidenciar o Tribunal a quo 15.ºDonde, também nesta última parte se entende que nenhum reparo ou censura merece o douto Acórdão recorrido, devendo julgar-se improcedente o recurso. 16.ºPorém, V. Exas. decidindo farão, pois, e como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.»
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6. Neste tribunal o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo (transcrição). “(…) «Inconformado com esta decisão vem o arguido dela recorrer suscitando os seguintes aspectos de discussão: - falta de fundamentação do Acórdão. - erro notório na apreciação da prova. - inexistência de concurso real de crimes. - medida das penas – parcelares e única – tidas como excessivas e injustas. À semelhança da posição sustentada pelo Ministério Público na primeira instância creio que o Acórdão exarado não merece qualquer censura. Quanto aos pontos referidos pelo recorrente importa sublinhar o seguinte: - Falta de fundamentação do Acórdão. Afirma o recorrente que o Acórdão recorrido deve ser tido como nulo, nos termos dos arts. 374º nº 2 e 379º nº 1 a) do CPP, porquanto o mesmo se mostra ferido de falta de fundamentação dado que o Tribunal não efectuou o exame critico das provas. Tal ideia baseia-se na consideração que o Acórdão não teve em linha de conta a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, no sentido em que esta, em anterior recurso, havia entendido que a prova não tinha sido objecto de uma avaliação exaustiva e clara. Não creio que tal seja verdade. O Acórdão recorrido analisou e ponderou todos os meios de prova produzidos e, com especial cuidado o relatório pericial elaborado no INML bem como o depoimento da ofendida e estabeleceu a matéria de facto provada, explicou a razão das suas opções quanto á fixação desta e, quanto a cada ponto da mesma indicou a prova que, em seu entender, a sustenta. Importa aqui considerar o que foi entendido no Ac. do TR de Coimbra de 24-4-2019 in proc. 798/15.6T9CBR.C1: “… I – Na decisão sobre a matéria de facto, a exigida fundamentação impõe que a sentença contenha o enunciado dos factos provados e não provados. II – A enumeração dos factos provados e não provados a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar na sentença traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá de incidir, incluindo os que, embora não fazendo da acusação ou da pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização e da contestação a este, tenham resultado da discussão da causa e revestem relevância para a decisão. III – A fundamentação exigida quanto à matéria de facto tem também em vista a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, o que pressupõe, para além da indicação dos meios de prova que relevaram nesse iter decisório, a referência ao exame crítico da prova que serviu para formar a sua convicção, dando a conhecer de modo conciso, mas com suficiência bastante, o percurso lógico e racional efectuado em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à demonstração (ou não) da factualidade objecto da decisão recorrida. IV – O exame crítico das provas corresponde à indicação das razões pelas quais e em que medida o tribunal valorou determinados meios de prova como idóneos e credíveis e entendeu que outros em sentido diverso não eram atendíveis, explicitando os critérios lógicos e racionais que utilizou na sua apreciação valorativa, e que permite, assim, aferir a concreta utilização que o julgador fez do princípio da livre apreciação da prova. …”. Balizado, em termos conceptuais o que seja a fundamentação e, em particular o exame crítico das provas, verificamos que o Acórdão recorrido observou todos os requisitos exigidos efectuando a indicação dos motivos porque considerou os meios de prova como relevantes e significativos e explicou os critérios que nortearam tais opções de valoração. A motivação apresentada não tem de ser extensa, exaustiva e pormenorizada. Basta que seja razoável, aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência, o que sucederá sempre que do seu conteúdo se consiga extrair as razões subjacentes à decisão tomada. Ora, no Acórdão recorrido foi objectivada a livre convicção do Tribunal apresentando-se essa concretização devidamente concretizada e fundamentada, não se descortinando qualquer aspecto, relevante e essencial, que não tenha sido ponderado e valorado. - Erro notório na apreciação da prova. O recorrente afirma que o Tribunal não fez uma correcta apreciação da prova e que alguma matéria de facto dada como provada está em desconformidade com a prova produzida em julgamento. Critica também a valorização que o Tribunal fez das declarações da menor em sede de memória futura e a credibilidade dada aos depoimentos do pai e da avó da ofendida os quais considerou sobrevalorizados. No erro notório da apreciação da prova está em causa, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto. O princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do CPP, determina que, salvo existência de prova vinculada ou tarifada (como é o caso da pericial, face ao valor que lhe é reconhecido no artigo 163.º, n.º 1, do CPP), o tribunal decide quanto ao mais de acordo com as regras da experiência e a livre convicção. Através da leitura das conclusões do recurso e da sua motivação verifica-se que o recorrente se reporta a factos elencados no acórdão como provados, referindo que face à prova produzida na qual o tribunal fundamentou a sua convicção deveriam antes ter sido considerados como não provados, para tanto referenciando alguns dos elementos de prova e depoimentos de testemunhas, desinserindo-os do contexto global, com base nos quais pretende extrair de certas referências conclusões diferentes, sem que os relacione com os factos no seu conjunto. No entanto, analisado tudo quanto se deixa expresso na fundamentação do acórdão, mormente quanto à valoração do depoimento da menor, da prova pericial e depoimentos das testemunhas, estamos convictos de que não lhe assiste razão. O erro notório na apreciação da prova a que se refere o art.º 410º, n.º 2 al.ª c) do Cód. Proc. Penal só existe, quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum. Deve assim tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Não existe tal erro quando a convicção do julgador é plausível, ou possível, embora pudesse ter sido outra. A apreciação da prova tem de específico a superação da incerteza de um facto controverso, através do julgamento, ou seja, da formação de uma convicção de certeza, segundo regras previamente estabelecidas, de respeito pelo contraditório, imediação, oralidade e pública discussão da causa. Quando o julgador, em audiência de discussão e julgamento, ultrapassa o estado de incerteza ou de dúvida, a convicção assim formada, desde que obtida através de procedimentos cognoscitivos plausíveis e possíveis, é sempre válida, atento o disposto no art.º 127.º do C.P.P. Assim sendo, e analisando o acórdão recorrido, verificamos que o Tribunal teve o cuidado de descriminar em que provas fundamentou a sua convicção e em que sentido foram interpretadas. O que verdadeiramente o recorrente contesta é a formulação da convicção do Tribunal. Todavia, como tem vindo a ser decidido nalguns arrestos jurisprudenciais (Cfr. Ac. Rel. Coimbra n.º0526, em www.trc.pt) «O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto, tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formulação lógico-intuitiva…A censura da forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção…Doutra forma pretende-se uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.» Pelo que se nos depara ser de improceder a sua pretensão quanto à incorreta valoração da prova pelo Tribunal. - Inexistência de concurso real de crimes. Também aqui creio que não assiste razão ao recorrente. Na verdade, a prova produzida e a matéria de facto dada como provada permitem identificar as condutas do arguido enformadoras dos crimes pelos quais foi condenado. A identificação de tais condutas e os termos em que as mesmas aconteceram apontam inequivocamente para uma sucessão real e verdadeira de actos criminosos, subtraídos de qualquer continuidade ou contexto que suporte uma diminuição da ilicitude. Chamo aqui à colação o Ac. do TR de Coimbra de 30-3-2022 in proc. 1083/20.2T9CLD.C1 onde se sumariou: “… I - A prática, pelo agente, em momentos distintos, de actos lesivos da autodeterminação sexual de uma criança integra uma pluralidade sucessiva de crimes, não existindo base legal para que as diversas condutas sejam consideradas como um único crime de trato sucessivo. II – Mesmo as situações de violência sexual reiterada e prolongada no tempo traduzem comportamentos diferentes, que requerem do seu autor a criação de situações favoráveis de secretismo e condicionamento da vontade da vítima, aptos à concretização do resultado proibido, a que tendencialmente estão associados diversos processos volitivos autónomos entre si e não uma única vontade, de cuja análise global transparecem diferentes sentidos técnico-jurídicos de ilicitude que exige o seu enquadramento jurídico como concurso real de infracções. II – A solução para ultrapassar a incerteza do número de crimes em razão, por exemplo, do tempo já decorrido, da frequência muitas vezes irregular da sua prática e da incapacidade da vítima se lembrar de cada uma das agressões sexuais por si sofridas, está na identificação, tanto quanto possível rigorosa, dos actos lesivos e na punição dos comportamentos cuja ocorrência não ofereça dúvidas. …”. Guiado por este entendimento jurisprudencial temos que o essencial é que os factos sejam descritos de uma forma objectiva, que permita localizá-los no espaço e no tempo, o que não passa necessariamente pela indicação do dia, hora e lugar preciso, e não de modo tão vago que impossibilite a sua inteligibilidade e a completa caracterização da conduta criminal do arguido. Em face do exposto considero que o Acórdão, decidiu correctamente, quanto à atribuição ao arguido da prática, em concurso real, dos crimes pelos quais veio a ser condenado. - Medida das penas – parcelares e única – tidas como excessivas e injustas. Insurge-se o arguido contra a quantificação das penas, parcelares e única, fixadas no Acórdão recorrido. Acompanho aqui, de forma total e plena, os termos em que, no Acórdão foram fixadas as penas parcelares e única e, assim, permito-me destacar os seguintes aspectos daquele: “… Assim, cumpre considerar, em favor do arguido, a circunstância de não ter antecedentes criminais, mas, contra si, a forte intensidade do dolo com que actuou e a elevada ilicitude da sua conduta, bem visível na circunstância de ter abusado repetidamente de uma criança que, por viver maritalmente com a prima da mesma, tinha a ética obrigação de a proteger, e, ainda, as prementes necessidades de prevenção geral, dada a calamitosa ocorrência de idênticos factos por todo o país e as iminentes expectativas da comunidade em ver o urgente e adequado restabelecimento da validade da norma violada. … Assim, reflectindo sobre a gravidade dos factos e o quanto eles revelam a personalidade criminosa (libidinosa) do arguido, considerando, nomeadamente, o arco ascendente da sua idade e a prática dos factos num período de tempo relativamente concentrado e curto da sua vida, afigura-se-nos que a reiterada conduta do arguido terá sido devida a circunstâncias pluriocasionais que, confiamos, não voltarão a repetir-se, pelo que nos parece adequada e justa a pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, a qual – como soe dizer-se nesta instância – não nos parece nem tão longa nem tão breve, que possa por em causa a finalidade jurídico-criminal de restauração da validade das normas jurídicas violadas, ou fazer perigar o valor da reinserção do agente na comunidade, ou, de algum modo, diluir a indelével culpa que o arguido efectivamente tem. …”. Por fim salientando que a conjugação dos factores acima indicados relacionados com a pessoa do arguido e as circunstâncias em que os crimes foram praticados, tendo em atenção as necessidades de prevenção geral e especial bem como o objectivo de ressocializar o arguido aponta no sentido de que as penas aplicadas se mostram adequadas e proporcionadas. Em conclusão, considerando o exposto e remetendo para o teor da posição do Colega da primeira instância que acompanhamos entendemos que o recurso não merece provimento.»
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7. Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP.
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8. Efetuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
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II – Fundamentação
Delimitação do Objeto do Recurso
Como é pacífico (Cfr. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente, as questões suscitadas no recurso prendem-se com:
1ª - A matéria de facto:
-Nulidade do acórdão por falta de fundamentação e exame crítico da prova;
-erro notório na apreciação da prova;
-Violação do in dubio pro reo;
- Violação do princípio da livre apreciação da prova
2ª Direito
-Qualificação jurídica;
- Crime de Trato Sucessivo
-Medida da pena;
- Suspensão da pena.
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Decidindo
São os seguintes os factos considerados provados e não provados, bem como a motivação, de facto e de direito, da decisão impugnada. (Transcrição) (…)
2.1.- Fundamentação Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1.º - BB, nascida a ../../2005, reside com o pai, CC e a avó materna, DD, na Rua ..., ..., .... 2.º - Pelo menos entre Junho e Setembro de 2020, o arguido AA residia em ..., Bairro ..., freguesia ..., concelho ... com a companheira, EE, prima da BB, e os dois filhos menores. 3.º - A BB, juntamente com a sua avó materna, FF, deslocava-se com regularidade a casa do arguido para ajudar a sua prima nas tarefas domésticas. 4.º - Em data não concretamente apurada, mas no mês de Junho ou Julho de 2020, a BB deslocou-se a casa do arguido, juntamente com a sua avó materna, para ali passarem uns dias. 5.º - Num desses dias não concretamente identificados, após o jantar, o arguido, aproveitando-se do facto de a BB estar sozinha na sala, dirigiu-se a esta e apalpou-a na zona do rabo. 6.º - Acto contínuo, agarrou-a, colocando os braços à volta das costas desta e puxando-a, com força, para si, beijou-a na boca. 7.º - O arguido apenas não prosseguiu a sua conduta porque FF, avó da BB, apareceu de repente na sala, largando de imediato a BB. 8.º - No dia 6 de Julho de 2020, em casa do pai da BB, sita na ..., o arguido aproveitando-se do facto de a BB estar sozinha na sala, abriu o fecho das calças que trajava, retirando o pénis para fora. 9.º - Acto contínuo, o arguido agarrou a cabeça da BB e puxou-a, com força, na direção do seu pénis, levando a BB a introduzir o pénis na sua boca, apenas cessando a sua conduta quando se apercebeu que a madrasta da BB se dirigia para junto destes. 10.º - Após, em datas não concretamente apuradas, mas entre Julho e Agosto de 2020, o arguido, sempre que a BB se encontrava em casa deste e ficava sozinha, dirigia-se a esta, agarrava-a, beijava-a na boca e apalpava-lhe o rabo, vagina e seios por cima e por dentro da roupa que trajava. 11.º - Acto contínuo, o arguido pedia à BB para lhe chupar o pénis, ao que a BB respondia sempre que não sabia fazê-lo e o arguido ripostava dizendo-lhe que esta fazia-o bem. 12.º - De imediato, o arguido retirava o pénis para fora das calças que trajava e colocava-o na boca da BB, o que aconteceu pelo menos em três situações distintas. 13.º - O arguido, nessas ocasiões, e de forma a intimidar a BB, dizia-lhe que se contasse a alguém o sucedido retirava os seus irmãos ao seu pai e colocava-o na prisão. 14.º - Com a condutas descritas em 4.º a 7.º, o arguido quis importunar a BB, constrangendo-a a contactos de natureza sexual, o que fez contra a vontade da mesma. 15.º - Com a condutas descritas em 8.º a 12.º, o arguido conhecia a idade de BB e, ainda, assim, agiu com o propósito de forçar a BB a praticar consigo coito oral, o que quis e conseguiu. 16.º - Com a conduta descrita em 13.º, o arguido quis amedrontar a BB no sentido de a demover de apresentar queixa-crime às autoridades policiais, fazendo-a crer que retirava os seus irmãos ao seu pai e colocava este na prisão caso tal ocorresse, o que quis e conseguiu. 17.º - Agiu em tudo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ainda que os factos por si praticados eram proibidos e punidos por lei. 18.º - O arguido não tem antecedentes criminais. 19.º - O arguido AA é o primogénito de uma fratria de dois elementos, de um casal cujo relacionamento intrafamiliar revelou uma vivência conflituosa, associada a consumos excessivos de bebidas etílicas pelo progenitor, o que culminou na separação dos mesmos quando o arguido tinha 9 anos de idade. A progenitora é muito trabalhadora e com competências parentais, tendo sido o avô paterno a figura relevante no seu processo de crescimento e substitutiva da figura parental. Com o progenitor mantém relacionamento distante. Partilhou a vivência familiar com uma prima, atualmente com 22 anos, que integrou o agregado com apenas 7 meses de idade e nele permaneceu até aos 16 anos de idade. 20.º - O arguido AA iniciou o percurso escolar em idade regulamentar em ..., onde concluiu o 9.º ano de escolaridade, com registo de reprovação no 3.º e 5.º ano de escolaridade. Posteriormente, ingressou na Escola Profissional ..., para frequência de curso de dupla certificação, com equivalência ao 12.º ano de escolaridade, que não concluiu, por ter negligenciado a frequência das aulas e o estudo, sem referência a incidentes disciplinares. Desde os 18 anos de idade, exerce funções profissionais em diferentes áreas, designadamente na ..., onde exerceu funções por um ano, de disco-jóquei em discotecas e festas, em Portugal e .... Em 2015, trabalhou na Câmara Municipal ..., durante um ano, no âmbito de um contrato para desempregados de longa duração. 21.º - Em fevereiro de 2016, alterou a residência para a vila de ... e ali exerceu, durante um ano, funções laborais numa pizzaria e, posteriormente, trabalhou na Câmara Municipal ..., onde integrou novo contrato para desempregados de longa duração, pelo período de um ano, e, cumulativamente, desenvolveu funções como bombeiro voluntário na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ... e numa agência funerária de .... 22.º - No campo afetivo, refere ter tido relacionamentos superficiais e de curta duração e que conheceu a companheira, EE, em 2013, e volvido pouco tempo estabeleceu união de facto. O casal integrou o agregado da mãe do arguido. 23.º - No período a que se reportam os factos descritos na acusação (Junho a Setembro de 2020), o arguido AA vivia com a companheira e os dois filhos do casal, atualmente com 7 e 5 anos de idade, num imóvel cedido por um amigo emigrado na ..., alocado na ..., .... Tratava-se de uma habitação de tipologia 3, com infraestruturas básicas, a necessitar de algumas obras de benfeitoria. 24.º - O casal não tinha a obrigação de pagamento da renda da casa por em contrapartida ter assumido realizar algumas obras na área da construção civil. 25.º - O arguido não desenvolvia funções laborais regulares, exercia funções como bombeiro voluntário na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ... e como coveiro, numa funerária de ..., pertença de um familiar do padrasto. A companheira trabalhou de 1/09/2020 a 22/01/2021 no Lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia ..., no âmbito da medida de apoio ao reforço de emergência de equipamentos sociais e de saúde (...), do Instituto de Emprego e Formação Profissional, no exercício de funções laborais de auxiliar, não lhe tendo sido renovado o contrato laboral. 26.º - Em outubro de 2020, o arguido separou-se da companheira e passou a residir em ..., aldeia vizinha da ..., e integrou o agregado da progenitora e do padrasto, com os dois descendentes. Permaneceu na aldeia com os progenitores até Dezembro de 2020, tendo, posteriormente, passado a residir em ..., por em 08/01/2021 ter iniciado funções laborais no Centro Hospitalar ... – Unidade Hospitalar ..., no âmbito da medida de apoio ao reforço de emergência de equipamentos sociais e de saúde (...), do Instituto de Emprego e Formação Profissional, onde permaneceu até 06/2021. Decorreu o processo de regulação das responsabilidades parentais e os descendentes estão à guarda do arguido. O casal registou conflitos no âmbito do cumprimento do estipulado pelo Tribunal. A ex-companheira tem realizado campanhas agrícolas na ..., encontrando-se atualmente emigrada naquele país. 27.º - Em maio de 2022, o arguido residia com a progenitora de 52 anos de idade e com o padrasto de 72 anos, num imóvel de tipologia 3, com boas condições de habitabilidade e subsiste do apoio da progenitora e padrasto, atuais arrendatários do imóvel (600 euros/mês) e proprietários de um “...” na cidade ..., onde o arguido exerce funções laborais há um mês, auferindo o salário mínimo nacional. Em ..., mantém a atividade de bombeiro voluntário e integra o dispositivo de combate aos incêndios no verão (de 15/05 a 15/10), sendo remunerado pelo exercício destas funções. 28.º - Usufruía de suporte/apoio afetivo e económico da progenitora e do padrasto e no acompanhamento educativo dos dois descendentes menores, sendo a relação intrafamiliar descrita como próxima e solidária. Pretendia continuar a acompanhar os descendentes e as atividades desenvolvidas pelos mesmos e a conservar a relação afetiva que estabeleceu com uma senhora residente na cidade ..., restando-lhe pouco tempo para o desenvolvimento de atividades de interesse mais pessoal. 29.º - O arguido não sentia dificuldades de integração na comunidade brigantina, considerando que dispõe das condições necessárias para a concretização dos seus objetivos de vida, no contexto profissional, familiar e pessoal. No âmbito clinico, referia padecer de asma, com acompanhamento clinico na especialidade e tratamento medicamentoso. 30.º - Na comunidade, o arguido mantém adequada relação com a rede vicinal e integração social. 31.º - No presente e desde há um ano, o arguido reside com a companheira, 44 anos de idade, três descendentes desta (21, 18 e 10 anos de idade, sendo que a mais velha apenas integra o agregado em alguns fins-de-semana e períodos de férias letivas, posto frequentar o ensino superior no ...) e os dois descendentes do arguido (8 e 7 anos de idade), num imóvel de tipologia 3, com boas condições de habitabilidade. O apartamento foi adquirido pela companheira, com recurso ao crédito bancário e está alocado na Rua ..., em ..., numa zona periférica da cidade, sem problemáticas sociais de relevo. 32.º - O casal descreve a dinâmica intrafamiliar como equilibrada, pautada pelos valores de diálogo, solidariedade e respeito, sendo a perspetiva de ambos manterem o relacionamento independentemente do desfecho processual dos presentes autos. 33.º - A companheira do arguido tem conhecimento da acusação, e conforme a própria refere, não identifica o arguido nos factos constantes na mesma, atendendo à conduta que o mesmo tem manifestado quer no contexto familiar quer extrafamiliar, ressaltando o relacionamento afetivo próximo e respeitoso com as suas descendentes (as quais desconhecem o presente processo judicial). O relacionamento do arguido com os descendentes é descrito como sendo próximo afetivamente e norteado pela preocupação do acompanhamento educativo e escolar dos mesmos. 34.º - O arguido exerce funções profissionais, de Operador de Central, na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ..., desde ../../2022, e refere manter o apoio logístico, nos dias de folga e férias, no “...”, atualmente designado por “...”, empresa de serviços ao cidadão, de GG (padrasto). 35.º - Verbaliza satisfação pelas funções profissionais que exerce, e não perceciona atitude de afastamento relativamente a si, sentindo-se integrado e motivado para progredir no âmbito profissional e pessoal. 36.º - Tem vindo a adotar uma atitude proactiva no âmbito formativo (frequenta o curso de mergulhador profissional e frequentou o curso de proteção e combate a incêndios e a acidentes de viação). 37.º - O desempenho profissional do arguido é caraterizado pelo seu superior hierárquico de forma positiva, que refere ser pautado pelo compromisso profissional, disponibilidade e relação cordial com os superiores hierárquicos e colegas. Pelas funções profissionais que exerce aufere um vencimento líquido de cerca de 1000 euros/mês. A companheira exerce funções profissionais na área da restauração e limpeza de casas particulares, e o seu vencimento ronda o valor de 800 euros/mês (valor líquido). 38.º - A situação económica do casal é descrita como equilibrada, sendo que os proventos económicos permitem garantir o pagamento das despesas designadamente água, luz, gás, internet, televisão (valor médio de 200 euros/ mês), crédito à habitação (350 euros/ mês), seguro do veiculo, alimentares e pessoais. A renda do alojamento da descendente mais velha da companheira do arguido é paga pelos avós paternos da jovem. A companheira do arguido recebe o valor de 255 euros/ mês de prestação de alimentos, referente às descendentes de menoridade. 39.º - O casal referiu que apesar da realização das audiências de julgamento e subsequente condenação do arguido, face à qual este interpôs recurso, a partilha do tempo livre é realizada no convívio com os familiares, amigos e alguns colegas de profissão, não denunciando necessidade de reserva no convívio social ou no evitamento de frequência de espaços públicos. 40.º - O arguido continua a beneficiar da retaguarda afetiva e económica da progenitora e padrasto, elementos que, tal como a companheira, mantêm-lhe apoio incondicional. A mãe e o padrasto, após a assunção da união de facto pelo arguido, mudaram de residência, da Rua ..., apartamento outrora partilhado com o arguido, para a Rua ..., em .... 41.º - Na esfera social, AA refere que não tem sentido óbices de integração na comunidade brigantina, considerando que dispõe, no presente, das condições necessárias para a concretização dos seus objetivos de vida, no contexto profissional, familiar e pessoal. Mantém relacionamento cordial na comunidade. 42.º - O arguido verbaliza disponibilidade para continuar a colaborar com o sistema judicial, e acredita que o desfecho processual lhe permitirá continuar a acompanhar os descendentes e as atividades desenvolvidas pelos mesmos, e a conservar a relação afetiva com a companheira e descendentes desta.
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Não se provaram outros factos; designadamente, não se provou que no dia 6 de Julho de 2020, o arguido dirigiu-se à BB e proferiu a seguinte expressão “Agora vais-me chupar”, tendo a BB dito que não iria fazer isso; de seguida, o arguido insistiu proferindo a seguinte expressão “anda lá, chupa lá”, tendo a BB dito que não sabia fazer isso, ao que o arguido respondeu “aprendes”; ... tendo a BB desviado a boca; o arguido prosseguiu, proferindo a seguinte expressão “anda lá, chupa”. . Motivação A prova dos factos que, constando da acusação, resultaram provados, resultou essencialmente das credíveis declarações para memória futura prestadas pela menor BB, que por forma pueril e assertiva, lógica e coerente – o que o relatório da perícia médico-legal junto em 2021-06-18 (cf. referência ...86 e fls. 72 a 83) confirma –, (contou as circunstâncias em que foi assediada e abusada pelo arguido. Reforçando a sua credibilidade, foram considerados os depoimentos das testemunhas DD, avó da menor, que, embora com delével distorção temporal, cuja justificação se encontra nos múltiplos estudos sobre as denominadas “memórias falsas” (cf., por exemplo, O Estudo das falsas Memórias: Reflexão Histórica, de Helena Mendes Oliveira, Pedro B. Albuquerque e Magda Saraiva, in http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v26n4/v26n4a03.pdf”), demonstrou ter tido um conhecimento presencial, conquanto não integral, dos factos provados sob os artigos 5.º e 6.º e CC, pai da menor, a quem esta, face à desconfiança e insistência dos mesmos, avó e pai,acaboupor lhes contar, na noite da passagem de ano, os episódios abusivos, acompanhando-os, em seguida, ao posto da GNR, aquando da denúncia dos factos, logo nos princípios do ano seguinte (o que bem demonstra a normalidade do acto de denúncia), tendo aqueles testemunhado, em sede de audiência de discussão e julgamento, a sua própria, embora limitada, percepção dos factos e proclamado com inegável convicção a veracidade do conhecimento que sobre os mesmos obtiveram. No que respeita ao conteúdo do facto 10.º dos factos provados (“Após, em datas não concretamente apuradas, mas entre Julho e Agosto de 2020, o arguido, sempre que a BB se encontrava em casa deste e ficava sozinha, dirigia-se a esta, agarrava-a, beijava-a na boca e apalpava-lhe o rabo, vagina e seios por cima e por dentro da roupa que trajava”), cumpre referir que tal facto foi considerado provado, entendendo-se que a expressão “por cima e por dentro da roupa que trajava” se relaciona estritamente com a apalpação dos seios, porquanto é consequência das declarações para memória futura prestadas pela menor, acabadas de transcrever, as quais resultaram do método interrogativo usado pelo magistrado judicial que às mesmas presidiu, que, por sua vez, teve como guião o teor constante do auto de notícia, onde, expressamente, segundo o método narrativo, então, ficou a constar a denúncia de “que o suspeito AA quando lhe tocava nos seios isso acontecia, tanto por cima como por baixo da roupa, diretamente com a mão na sua pele, na zona do rabo este lhe tocava por cima da roupa, o suspeito AA lhe tocava na zona da vagina, por cima das calças, que ainda tentou colocar a mão por dentro das calças, de forma a lhe tocar na vagina, no entanto a vítima rapidamente lhe retirou a mão”. De resto, esta interpretação é confirmada nas transcritas declarações para memória futura, pois a resposta da menor “Por cima. Por cima” já não é dada a propósito da apalpação dos seios, mas no contexto da apalpação da vagina (“MJ: Ele apalpava-te nos seios, era? BB F.: E noutro sítio abém. MJ: Pronto, na vagina também? BB F.: Sim. MJ: Mas ele fazia isso por cima da roupa ou por baixo? BB F. : Por cima. Por cima”). Por sua vez, face à convincente e circunstanciada descrição dos factos, constante das transcritas declarações para memória futura, as declarações do arguido –refugiadas na mera negação dos mesmos (“não é verdade”), não assumindo que estivesse ausente do lugar onde os factos aconteciam, escudando-se no vago dizer que “é mentira ... eu nunca fiquei sozinho com ela” e na atribuição do espoletar da denúncia dos factos à inimizade que vinha e vem mantendo com o pai da menor (“são ideias do pai”, “não me pode ver ..., nem eu a ele”, “teve de arranjar esta maneira”, “isso não é da cabeça dela”), a quem, inclusive, o arguido imputou a insólita ameaça de que “ou [o arguido] entregava os meninos à prima [mulher do arguido] e lhe dava a ele [CC] cinco mil euros, ou apresentava uma queixa contra ele [arguido]” – foram consideradas como inconsistentes e não confiáveis. Os factos não provados resultaram da subjacente falta de prova dos mesmos factos, designadamente, porque as declarações para memória futura não abrangeram as concretas circunstâncias relacionadas com esses factos. Foram suprimidas as expressões “ofendida” e “vítima”, atenta a sua conotação conclusiva, optando-se por usar a expressão “menor” ou, simplesmente, “BB”. A ausência de antecedentes criminais do arguido foi extraída do respectivo registo criminal junto aos autos. A condição pessoal e socioeconómica do arguido foi retirada do relatório social junto aos autos (cf. fls. 132 a 135 e 302 a 304). Seguidamente, cumpre aplicar o direito. O arguido vem acusado de haver praticado factos que, segundo a douta acusação pública, integram um crime 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal, e 3 (três) crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a) e 177.º, n.º 6, do Código Penal. Sob a epigrafe “violação” dispõe o artigo 164.º do Código Penal que: “1 - Quem constranger outra pessoa a: a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de um a seis anos. 2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; é punido com pena de prisão de três a dez anos. 3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da menor BB”. Por sua vez, sob a epigrafe “importunação sexual”, é a seguinte, a disposição do artigo 170.º: “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. E o n.º 6 do artigo 177.º tem a seguinte redacção: “As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra menor de 16 anos”. Mediante as citadas previsões legais, visando proteger a liberdade de determinação sexual (Cf. Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 466), estatuiu o legislador – o que constitui técnica legislativa corrente na construção dos tipos criminais – tipos de crime doloso consumado, constituídos, antes do mais, por um facto material – "nullum crime sine actione"; depois, para que os crimes existam é ainda necessário que o facto material ocasionado seja lesivo dos interesses protegidos – "nullum crimen sine injuria" – e que tenha sido praticado culpavelmente – "nullum crimen sine culpa" (Cf. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal, 1º Volume, 1995, pág. 160). A culpa confina-se ao denominado dolo genérico, previsto, segundo as suas várias modalidades, nos diversos números do artigo 14.º do Código Penal. (Cf. Prof. Figueiredo Dias, in loc. cit., pp. 456 e 548). O tipo objectivo do artigo 164.º, n.º 2, alínea a), radica no constrangimento de uma pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral (traduzindo-se este na penetração da boca pelo pénis – acto que, como no presente caso, o arguido praticou, pelo menos, em três ocasiões), mediante um dos meios típicos previstos na disposição (“violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir”). Sendo a penetração consumada sem recurso aos referidos meios típicos – como sucedeu no presente caso –, a conduta do agente cai na previsão do n.º 1. No que concerne ao artigo 170.º, o cerne do tipo objectivo de ilícito consiste, ora, em o agente importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual. Trata-se de tipo legal de crime “introduzido com a revisão do Código operada pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, no sentido, expresso na Proposta de Lei n.º 98/X que lhe deu origem, de “garantir a defesa plena da liberdade sexual” e, com isso, alargando o âmbito do anterior art. 171.º do CP (decorrente da revisão pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15.03), que apenas punia actos exibicionistas. Veio eliminar-se a lacuna legislativa que resultou da eliminação do crime de ultraje ao pudor, previsto no art. 231.º do CP de 1982, como foi reconhecido pela Unidade de Missão para a Reforma do Código Penal (acta n.º 11, de 30.01.2006), além de que, no tocante à sua tipificação, se suprimiu a referência a “palavrões”, passando a descrição típica a equiparar apenas os contactos sexuais não consentidos, embora sem poderem ser qualificados como de relevo (por exemplo os apalpões), aos actos de exibicionismo em sentido estrito, por se entender que têm o mesmo merecimento na perspectiva da tutela da liberdade sexual (acta n.º 12, de 13.02.2006). O bem jurídico protegido com a incriminação é a liberdade sexual: - na dimensão negativa como significando genericamente a liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a esfera sexual da pessoa, - e, na dimensão positiva como liberdade de interagir sexualmente sem restrições (cfr. Maria do Carmo Silva Dias, “Repercussões da Lei nº 59/2007, de 4/9 nos “crimes contra a liberdade sexual” (Secção I do Capítulo V do Título I da Parte Especial do Código Penal), Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, CEJ, pág. 2). Para o seu preenchimento e no que, ao caso vertente, interessa, necessário é, pois, que o arguido tenha praticado actos de contacto de natureza sexual, sendo que esse contacto é definido, segundo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, pág. 468, como a acção com conotação sexual realizada na menor BB, que não tem a gravidade do acto sexual de relevo. O contacto pode incluir o toque (com objectos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da menor BB, ou seja, conforme Maria do Carmo Silva Dias, ob. cit., pág. 13, é a prática, no corpo do sujeito passivo, de uma ofensa (acto) com significado sexual. E, sem dúvida, que esse contacto, de cariz sexual, tem de assumir alguma gravidade, sob pena de injustificada intervenção do Direito Penal, ainda que o legislador não faça depender a sua prática de qualquer meio de execução específico. Haverá, pois, que apreciar da respectiva ressonância valorativa em face do bem jurídico que é ofendido, tanto quanto viável numa perspectiva objectiva que não se quede por critérios da menor BB, do agente ou de representações meramente morais” (acórdão do TRE de 15-05-2012, in sítio da Net do IGFEJ). Vistas, assim, as citadas construções legais, doutrinárias e jurisprudenciais, ora, consultando os factos, verificamos que o arguido, consciente da licitude da sua conduta, por forma dolosa (livre voluntária e conscientemente), apalpando a zona do rabo e beijando a BB, que tinha quinze anos de idade, praticou o crime do artigo 170.º do Código Penal; e, obrigando a menor BB a chupar-lhe o pénis, pelo menos, três vezes, cometeu três crimes de violação, puníveis – não, nos termos do n.º 2, alínea a), do artigo 164.º do Código Penal, por se não demonstrar que o arguido usou os meios típicos que agravam a conduta, mas – nos termos do artigo 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 6, do Código Penal. Irrelevância da tese do crime continuado Portanto, o arguido cometeu os enumerados crimes de natureza sexual. É essa a solução indicada pelo n.º 1 do artigo 30.º do Código Penal, onde está prescrito o seguinte: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Trata-se de preceito cujo enunciado o Prof. Eduardo Correia justificava, ensinando que “…pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção: a unidade do tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade de conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes”. E, então, explicava: “Como, porém, determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura? Seguro é que, sempre que possa verificar-se uma pluralidade de resoluções – de resoluções no sentido de determinações de vontade, de realizações do projecto criminoso –, o juízo de censura será plúrimo. Restará ainda, porém, saber em que condições se poderá afirmar uma tal pluralidade de processos resolutivos. O critério segundo o qual esta pluralidade seria de afirmar sempre que se descortinasse uma qualquer “descontinuidade” na actuação do agente não pode ser seguido: não apenas porque ninguém irá afirmar uma pluralidade de resoluções só porque o agente, v. g., descarregou vários golpes, uns a seguir aos outros, sobre a sua vítima, como, acima de tudo, porque uma série de actos descontínuos pode muitas vezes ficar unicamente a dever-se a uma série correspondente de impulsos mecânicos, meras descargas automáticas de uma mesma resolução. Afastado este critério, não nos resta outro, porém, se não o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de resolução (in Direito Criminal, 1971, II, pp. 201-202).
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Atenta a disposição do n.º 2 – “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente“ – e a disposição errática do n.º 3 – “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima”1 – do mencionado artigo 30.º, há quem defenda, o que, de resto, sucedeu mui recentemente neste tribunal, que o arguido, autor de plúrimos factos que protegem o mesmo bem jurídico, por forma essencialmente homogénea, e no pressuposto de que teria sido solicitado por uma situação que diminuiu consideravelmente a sua culpa – tão-só cometeu um crime continuado de abuso sexual. Ora, ensinava o citado Mestre que “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico –, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (…) devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente. E quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou KRAUSHAAR, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (in loc. cit., pág. 209). ____ 1 O segmento “salvo tratando-se da mesma menor BB” foi aditado pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro e suprimido pela Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, com entrada em vigor a 3 de Outubro de 2010.,
E continuava: “Importará agora – uma vez conhecido o fundamento da unidade criminosa da continuação – determinar as situações exteriores típicas que, preparando as coisas para a repetição da actividade criminosa, diminuem consideravelmente o grau de culpa do agente: a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos; b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.” (in loc. cit., pág. 210). Ora, no presente caso, não se trata, desde logo, de hipótese em que o arguido tenha decidido alargar o âmbito da sua actividade criminosa, nem da perduração de qualquer meio apto para a realização do delito. Outrossim, não é caso de ter existido qualquer acordo entre o arguido e a menor, que sempre seria irrelevante, dado que, in casu, a lei protege os menores, inclusivamente deles próprios, considerando irrelevante o eventual consentimento que prestem para a prática de actos sexuais (cfr. citado acórdão do STJ de 07-12-1999).
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No entanto, houve casos em que alguns tribunais consideraram pertinente “a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa” 2 Cfr., por exemplo, o acórdão do TRC de 05-06-2013, in sítio da Net do IGFEJ. Mas trata-se de um equívoco. (Cfr., por exemplo, o acórdão do TRC de 05-06-2013, in sítio da Net do IGFEJ.) Na verdade, “Na medida em que o direito criminal afirma certos valores ou bens jurídicos, cria para os seus destinatários o dever de formar, ou ao menos de preparar, a sua personalidade de modo a que, na sua actuação na vida, se não ponham em conflito com aqueles valores ou interesses. Violando este dever, constitui-se o delinquente em culpa pela não formação ou não preparação conveniente da sua personalidade. De modo que, assim, o conteúdo e a intensidade de um tal dever há-de variar em função das razões que podem conduzir a personalidade ao crime. Ele traduzir-se-á, por isso, em preparar-se (…) para não deixar que as suas tendências ou inclinações o arrastem para o crime – caso em que o dever que se lhe impõe será o de corrigir, educar ou dominar essas suas tendências ou inclinações criminalmente perigosas” (Eduardo Correia, in Direito Criminal I, Almedina, 1971, pp. 325-326) Assim, no que respeita ao impulso libidinoso, deve o agente acautelar-se, especialmente, quando a sua luxúria se projecta na direcção de uma criança, atentas as preocupações de protecção da mesma que motivaram o legislador. E, assim, quando, pela primeira vez, o agente sente esse malvado impulso, deve indagar se não se trata aqui de uma parte da libido não educada, não diferenciada e não humanizada, ainda não domesticada (animalesca). Por outro lado, deve ponderar a inocência da criança, a destruição de vida que poderá causar, o hediondo crime que se prepara para cometer. É que assomar ou entrar na intimidade de uma criança é maldade superlativa, maior do que saltar os muros e arrombar as portas de uma casa para roubar de lá um tesouro – pois, no caso de uma criança, esse tesouro é a sua alma e a sua vida, que não entregará, vez alguma, sem resistência, quantas vezes muda. Por isso, quando o agente repete a sua conduta e, uma segunda ou terceira ou outra vez, força a intimidade da criança, o julgador deve compreender que não se trata de uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa, porque o que efectivamente se passa é que o agente, animalesco e incorrigível, desprezando a inocência da criança, mais uma vez, odiosamente, vence a sua muda resistência, assalta as paredes do seu corpo e da sua alma e viola o inestimável bem jurídico que o legislador quis proteger. ________ 3 O mesmo se passa com a porta do vizinho, que está mesmo ali: arrombando a mesma, uma e outra vez, não se verifica o aproveitamento de uma oportunidade favorável à prática do crime, que já tivesse sido aproveitada ou que tivesse arrastado o agente para a primeira conduta criminosa.
Em suma, no presente caso, a disposição exterior das coisas para o facto não vem de fora, pois toda a disposição das coisas para o facto foi, caso a caso, eivada pelo arguido, que, por dentro, sempre foi renovando a decisão libidinosa de atentar contra a inocência sexual da menor. Como salienta Maia Gonçalves (ibidem, p. 649), “atente-se mais em que, havendo pluralidade de acções naturalísticas e tratando-se de uma só vítima, normalmente não haverá crime continuado, mas concurso de crimes, já que em regra não haverá relevante solicitação exterior a diminuir a culpa do agente, mas desviante personalidade deste a determinar o seu comportamento criminoso.” E, como referia Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, 1ªedição, 139, nota 28: “A ciência médica e a experiência da vida mostram que o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador. A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do crime” (acórdão do STJ de 17-09-2014, in sítio da Net do IGFEJ).
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Irrelevância da tese do crime de trato sucessivo Contudo, tribunais houve que, face a inúmeros actos sexuais que se repetiram ao longo de um certo período de tempo, quiçá, evitando a aplicação de penas desproporcionadas, enquadraram a conduta do delinquente no denominado crime de trato sucessivo ou ponderaram que “mais correcto teria sido considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado” (Cf. acórdão do STJ de 29-03-2007, in sítio da Net do IGFEJ.). O acórdão do STJ de 22-01-2013 (in sítio da Net do IGFEJ) indica essa jurisprudência, referindo que, “Em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente”. E, perante um número indeterminado de actos de abuso sexual, praticados ao longo de um incerto período tempo, já o STJ decidiu, no entanto, com um voto de vencido, que se tratava de um único crime de trato sucessivo (cfr. acórdão do STJ de 29-11-2012, in sítio da Net do IGFEJ). 5 No mesmo sentido, cf. acórdãos do TRP de 07-10-2009 e 11-02-2015 (in sítio da Net do IGFEJ).. No entanto, a razão estava do lado do Senhor Conselheiro vencido, que, citando Figueiredo Dias, enunciou a assertiva dogmática de que os crimes de trato sucessivo (ou habituais) são “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada” – o que não era o caso, nem é o dos presentes autos, pois o tipo incriminador do abuso sexual de crianças não supõe a prática reiterada de comportamentos abusivos.
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Penas concretas Seguidamente, cumpre determinar as penas concretas que devem ser aplicadas. Como se sabe, a pena concreta é determinada, dentro dos limites abstractos definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Assim, cumpre considerar, em favor do arguido, a circunstância de não ter antecedentes criminais, mas, contra si, a forte intensidade do dolo com que actuou e a elevada ilicitude da sua conduta, bem visível na circunstância de ter abusado repetidamente de uma criança que, por viver maritalmente com a prima da mesma, tinha a ética obrigação de a proteger, e, ainda, as prementes necessidades de prevenção geral, dada a calamitosa ocorrência de idênticos factos por todo o país e as iminentes expectativas da comunidade em ver o urgente e adequado restabelecimento da validade da norma violada. Tudo ponderando - a culpa do arguido e as necessidades de prevenção dos crimes - à luz do princípio de que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade e, ainda, no princípio de que a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (cf. artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal; idem, Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 227), afigura-se-nos equilibrado e justo punir a conduta do arguido que se subsume nos artigos 170.º e 177.º, n.º 6, do Código Penal, com a pena de 6 (seis) meses de prisão – não se dando preferência à pena não privativa da liberdade prevista nas disposições, porquanto a mesma, no confronto com as penas a aplicar aos demais crimes, não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – e cada uma das condutas que se subsumem nos artigos 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 6, com a pena de 3 (três) anos de prisão.
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Pena única Atento o disposto nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, cumpre aplicar ao arguido uma pena única, considerando, para o efeito, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido e tendo em vista que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal). Segundo a lição do Professor Figueiredo Dias, tudo deve passar-se “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma “carreira”) criminosa», ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização” (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, pp. 291-292). Assim, reflectindo sobre a gravidade dos factos e o quanto eles revelam a personalidade criminosa (libidinosa) do arguido, considerando, nomeadamente, o arco ascendente da sua idade e a prática dos factos num período de tempo relativamente concentrado e curto da sua vida, afigura-se-nos que a reiterada conduta do arguido terá sido devida a circunstâncias pluriocasionais que, confiamos, não voltarão a repetir-se, pelo que nos parece adequada e justa a pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, a qual – como soe dizer-se nesta instância – não nos parece nem tão longa nem tão breve, que possa por em causa a finalidade jurídico-criminal de restauração da validade das normas jurídicas violadas, ou fazer perigar o valor da reinserção do agente na comunidade, ou, de algum modo, diluir a indelével culpa que o arguido efectivamente tem.
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Indemnização civil Resulta do preceito do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil que “Aquele que – tal como o arguido – com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem – no presente caso, a liberdade ou autodeterminação sexual da menor BB – ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. “Na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, (artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil; sobre a espécie de danos não patrimoniais abrangidos pelo preceito, cfr. Dario de Almeida, in Manual de Acidentes de Viação, Livraria Almedina, 3.ª edição, pág. 271), devendo o seu montante ser fixado equitativamente tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494.º (cfr. artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil), ou seja o grau de culpabilidade do agente – “in casu”, elevado – a situação económica deste – modesta – e a da lesada, igualmente modesta, e as demais circunstâncias do caso – no presente caso, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil, a menoridade da BB exige que esta seja protegida, nos termos do disposto no artigo 82.º-A do C. P. Penal –, pelo que se nos afigura ser equitativa a indemnização dos danos sofridos pela menor com a quantia, já devidamente actualizada, de € 6 000, 00 (seis mil euros) – notória ofensa dos sentimentos de inocência da menor e perturbação do desenvolvimento da sua personalidade –, em obediência ao disposto nos artigos 566.º, n.º 2, do Código Civil e 663.º, n.º 1, do C. P. Civil. Sobre a arbitrada quantia recaem os juros legais, a contar da prolação da presente sentença (cf. acórdão do STJ de 9 de Maio de 2002, in sítio da Net do ITIOJ).
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Dispositivo Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o tribunal colectivo do Juízo Central Cível e Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de ... em julgar a douta acusação pública parcialmente procedente e, em consequência, decidem: Absolver o arguido AA de três crimes de violação agravado, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 6, do Código Penal, por que veio acusado; Condenar o arguido AA, por haver cometido 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão; e condená-lo, por haver cometido 3 (três) crimes de violação, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 6, do Código Penal, nas penas de, por cada crime, 3 (três) anos de prisão. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Condenar o arguido a pagar à menor BB a indemnização de € 6 000, 00 (seis mil euros), acrescida de juros de mora legais, a contra da prolação do presente acórdão. Ordenar a recolha de amostra e consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, prevista no artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro. Condenar o arguido nas custas, fixando-se em 6 UC a taxa de justiça criminal devida.»
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III – Apreciando o Recurso.
Nulidade do acórdão por falta de fundamentação e análise crítica da prova
Da nulidade da sentença por falta de fundamentação, de exame crítico.
Vejamos.
Nos termos do n.º 1 do art. 205º da Constituição, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Concretizando, o Código de Processo Penal, no n.º 5 do art. 97º, impõe que os atos decisórios dos juízes sejam sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
E prescreve o Artigo 374.º do CPP
“Requisitos da sentença
1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. (…)”
Por sua vez, o Artigo 379.º do mesmo diploma consagra:
“Nulidade da sentença
1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; (…)”
b) ….;
c) …..;
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º (…)”
Especificamente quanto à sentença, o aludido art. 374º do CPP, estabelece os respetivos requisitos, entre os quais a fundamentação, capítulo que se segue ao relatório, a qual, nos termos do nº 2 do mesmo preceito e no que agora interessa, consiste na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Por sua vez, os arts. 379º e 380º do mesmo diploma legal, estabelecem as consequências da inobservância daqueles requisitos: a nulidade ou a mera irregularidade da sentença, consoante os casos. De acordo com a al. a) do n.º 2 daquele primeiro preceito, é nula a sentença que não contiver, entre outras, as menções referidas no nº 2 do art. 374º (onde naturalmente se inclui a fundamentação de facto e análise crítica das provas).
Porém, a propósito da exigência de fundamentação em análise, a doutrina vai no sentido de que só a sua falta absoluta é que conduz à nulidade da decisão. A fundamentação insuficiente, deficiente ou não convincente não constitui nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso - Vd. Alberto do Reis, Código de Processo Civil, anotado, vol. 5, pág. 140; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III (1972), pág. 246; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, pág. 669 e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 221..
Também a jurisprudência se orienta no mesmo sentido, entendendo que só a falta absoluta de fundamentação, "por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira" determina a nulidade do despacho/sentença. A "insuficiência ou a mediocridade da motivação [que] é espécie diferente [da falta absoluta de motivação] afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade" - Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 26-03-2014 (processo n.º 15/10.0JAGRD.E2.S1), disponível em disponível em http//www.dgsi.pt., e de 30-04- 2014, (processo n.º 330.08.3PATNV.C2.S1), disponível na Coletânea de Jurisprudência online, com a referência ...14.
Através da fundamentação da sentença há-de ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal, num sentido e não noutro, e bem assim porque é que o tribunal teve por fiável determinado meio de prova e não outro. A sentença há-de conter, então, "os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal coletivo num determinado sentido" – acórdão do STJ de 13-2-92, C. J. tomo I, pag. 36 e acórdão do Tribunal Constitucional de 2-12-98 DR IIª Série de 5-3-99.
Ou como ficou exarado no acórdão do STJ de 16-03-2005, Proc. n.º 662/05 - 3.ª Secção, relator Conselheiro Henriques Gaspar,
“I - O art. 374.° do CPP, que dispõe sobre os "requisitos da sentença" (relatório - n.° l; fundamentação - n.° 2; e dispositivo ou decisão stricto sensu), indica no n.° 2 os elementos que têm de integrar a fundamentação, da qual deve constar uma "exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal".
II - A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido ("fundamentaram") da decisão.
III - A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão.
IV - O tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido numa decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo
O dever de fundamentação das decisões judiciais é a forma conseguida pelo legislador de fazer sobrepor a lógica e a verdade decisórias ao capricho e ao arbítrio do seu autor, constituindo, assim, um instrumento de racionalização técnica da actividade decisória do tribunal, com um triplo objectivo: fornecer ao juiz um meio de autocontrole crítico, convencer as partes e garantir ao tribunal superior, em caso de recurso, um melhor juízo sobre a decisão de 1.ª instância. Esta a função endoprocessual da motivação; mas esta, superando aquela função, é também instrumento para o controle extraprocessual e geral sobre a justiça, controle exercido pelo povo, já que é em seu nome que a justiça é administrada – artigo 205.º/1 da CRP (cf. Michele Taruffo, BFDUC, LV, 1979, págs. 29 e ss.).
A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido (fundamentaram) a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz – cfr. Professor Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 289.
O rigor e a suficiência da fundamentação têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
Ora, o citado n.º 2 do artigo 374.° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respetivo conteúdo decisório.
A razão de ser de tal vício prende-se, como parece, da mesma forma patente, com o facto de a falta de fundamentação, impedir que o recorrente tenha a possibilidade de em concreto, direta, fundada e eficazmente, demonstrar as razões da sua discordância – a não ser com generalidades – sobre o julgamento da matéria de facto ou de direito, que não esteja alicerçado, de todo - sequer, com frases feitas ou fórmulas abstratas - sem que se surpreenda, de resto, qualquer preocupação de convencimento dos destinatários.
Sempre que observa o condicionalismo legal a motivação de facto permite aos sujeitos processuais e ao tribunal superior a análise do percurso lógico ou racional em que se apoia a decisão de facto (cf. artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal).
Como se depreende do já supra transcrito quanto à exigência de fundamentação, o cumprimento da aludida exigência legal não impõe uma explanação total em que se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, ou seja, todo o raciocínio lógico seguido, não sendo necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado e nem sequer a cada arguido, havendo vários, mas antes o que se impõe é uma enunciação, ainda que sucinta das provas que serviram para fundar a decisão e a indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido .
Regressando ao caso vertente, mais concretamente à sua fundamentação, vejamos o que se exarou na motivação de facto no acórdão proferido em 1ª instância:
“Motivação A prova dos factos que, constando da acusação, resultaram provados, resultou essencialmente das credíveis declarações para memória futura prestadas pela menor BB, que por forma pueril e assertiva, lógica e coerente – o que o relatório da perícia médico-legal junto em 2021-06-18 (cf. referência ...86 e fls. 72 a 83) confirma –, (contou as circunstâncias em que foi assediada e abusada pelo arguido. Reforçando a sua credibilidade, foram considerados os depoimentos das testemunhas DD, avó da menor, que, embora com delével distorção temporal, cuja justificação se encontra nos múltiplos estudos sobre as denominadas “memórias falsas” (cf., por exemplo, O Estudo das falsas Memórias: Reflexão Histórica, de Helena Mendes Oliveira, Pedro B. Albuquerque e Magda Saraiva, in http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v26n4/v26n4a03.pdf”), demonstrou ter tido um conhecimento presencial, conquanto não integral, dos factos provados sob os artigos 5.º e 6.º e CC, pai da menor, a quem esta, face à desconfiança e insistência dos mesmos, avó e pai,acaboupor lhes contar, na noite da passagem de ano, os episódios abusivos, acompanhando-os, em seguida, ao posto da GNR, aquando da denúncia dos factos, logo nos princípios do ano seguinte (o que bem demonstra a normalidade do acto de denúncia), tendo aqueles testemunhado, em sede de audiência de discussão e julgamento, a sua própria, embora limitada, percepção dos factos e proclamado com inegável convicção a veracidade do conhecimento que sobre os mesmos obtiveram. No que respeita ao conteúdo do facto 10.º dos factos provados (“Após, em datas não concretamente apuradas, mas entre Julho e Agosto de 2020, o arguido, sempre que a BB se encontrava em casa deste e ficava sozinha, dirigia-se a esta, agarrava-a, beijava-a na boca e apalpava-lhe o rabo, vagina e seios por cima e por dentro da roupa que trajava”), cumpre referir que tal facto foi considerado provado, entendendo-se que a expressão “por cima e por dentro da roupa que trajava” se relaciona estritamente com a apalpação dos seios, porquanto é consequência das declarações para memória futura prestadas pela menor, acabadas de transcrever, as quais resultaram do método interrogativo usado pelo magistrado judicial que às mesmas presidiu, que, por sua vez, teve como guião o teor constante do auto de notícia, onde, expressamente, segundo o método narrativo, então, ficou a constar a denúncia de “que o suspeito AA quando lhe tocava nos seios isso acontecia, tanto por cima como por baixo da roupa, diretamente com a mão na sua pele, na zona do rabo este lhe tocava por cima da roupa, o suspeito AA lhe tocava na zona da vagina, por cima das calças, que ainda tentou colocar a mão por dentro das calças, de forma a lhe tocar na vagina, no entanto a vítima rapidamente lhe retirou a mão”. De resto, esta interpretação é confirmada nas transcritas declarações para memória futura, pois a resposta da menor “Por cima. Por cima” já não é dada a propósito da apalpação dos seios, mas no contexto da apalpação da vagina (“MJ: Ele apalpava-te nos seios, era? BB F.: E noutro sítio abém. MJ: Pronto, na vagina também? BB F.: Sim. MJ: Mas ele fazia isso por cima da roupa ou por baixo? BB F. : Por cima. Por cima”). Por sua vez, face à convincente e circunstanciada descrição dos factos, constante das transcritas declarações para memória futura, as declarações do arguido –refugiadas na mera negação dos mesmos (“não é verdade”), não assumindo que estivesse ausente do lugar onde os factos aconteciam, escudando-se no vago dizer que “é mentira ... eu nunca fiquei sozinho com ela” e na atribuição do espoletar da denúncia dos factos à inimizade que vinha e vem mantendo com o pai da menor (“são ideias do pai”, “não me pode ver ..., nem eu a ele”, “teve de arranjar esta maneira”, “isso não é da cabeça dela”), a quem, inclusive, o arguido imputou a insólita ameaça de que “ou [o arguido] entregava os meninos à prima [mulher do arguido] e lhe dava a ele [CC] cinco mil euros, ou apresentava uma queixa contra ele [arguido]” – foram consideradas como inconsistentes e não confiáveis. Os factos não provados resultaram da subjacente falta de prova dos mesmos factos, designadamente, porque as declarações para memória futura não abrangeram as concretas circunstâncias relacionadas com esses factos. Foram suprimidas as expressões “ofendida” e “vítima”, atenta a sua conotação conclusiva, optando-se por usar a expressão “menor” ou, simplesmente, “BB”. A ausência de antecedentes criminais do arguido foi extraída do respectivo registo criminal junto aos autos. A condição pessoal e socioeconómica do arguido foi retirada do relatório social junto aos autos (cf. fls. 132 a 135 e 302 a 304).”
Analisando a fundamentação de facto, socorrendo-nos da corrente jurisprudencial aludida respeitante às exigências de motivação, afigura-se-nos que, salvo o devido respeito por opinião diversa, nela se mostram enumerados de forma suficiente, não exaustiva, todos os meios de prova que foram considerados para chegar à decisão tomada, sendo inclusive feita uma inusitada transcrição do seu concreto conteúdo, tanto a nível das declarações prestadas, dos depoimentos testemunhais produzidos, como do relatório do exame médico efetuado.
Para além disso, também aí se procedeu a uma análise crítica, apreciação e ponderação que permite acompanhar o raciocínio que esteve por detrás da convicção do tribunal recorrido, e o porquê da valoração que foi concedida, ou não, aos ditos meios de prova.
Por outro lado, foram apreciadas todas as questões colocadas à sua apreciação, e que lhe incumbia apreciar e decidir.
Como resulta, pois, da análise da motivação de facto transcrita supra, a decisão do tribunal a quo procedeu à apreciação global da prova produzida, numa perspetiva crítica e à luz das regras da experiência comum, relativamente aos factos apurados, e impugnados, mostra-se devidamente fundamentada, sendo possível retirar as razões que fundamentam a sua opção, que justificaram os motivos que levaram a dar credibilidade à quase totalidade da versão dos factos relatada na acusação pública, permitindo, pois, aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador. O que, aliás, permitiu que o recorrente tivesse o ensejo de, embora de forma genérica, apresentar as razões da sua discordância sobre o julgamento da matéria de facto e de direito.
Através da motivação da decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido logramos alcançar o percurso efetuado pelo tribunal a quo, onde seguramente a racionalidade se impõe, e a livre convicção se afirma, com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, conseguem conceber, mas que terá de ficar espelhada nessa decisão, designadamente através da apreciação crítica da prova produzida, explicitando o resultado dessa apreciação e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum, que no caso concreto são indicados de forma concreta, esclarecedora e especificada, naturalmente com uma ponderação e valoração que não corresponde à que é tomada pelo recorrente, mas sem que possa concluir que não se mostra fundamentada.
O mesmo se pode afirmar relativamente à fundamentação de direito que o tribunal recorrido entendeu como sendo o enquadramento jurídico ajustado ao circunstancialismo factual que resultou apurado.
Também nessa parte da decisão é feita uma exaustiva explicação, e demonstração, com pertinente suporte jurisprudencial e doutrinal, do entendimento assumido pelo tribunal quanto à qualificação jurídica dos factos entendidos como provados. O que igualmente se revela legalmente fundamentado. Questão que será alvo de apreciação mais circunstanciada quando nos debruçarmos sobre a impugnação do enquadramento jurídico dos factos invocada pelo recorrente.
O acórdão impugnado deve conter, sob pena de nulidade, esse exame crítico da prova, que envolve a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas, os motivos de determinada opção por um ou outro dos meios de prova, as razões da credibilidade atribuída aos depoimentos e declarações, valoração de documentos e exames, que interferiram na formação da convicção do tribunal, de acordo com as normas legais supra referidas (artigos 97º, nº 5, 374.º, n.º 2, 379.º n.º 1 alínea a) do Código Processo Penal, e 205º da CRP), que aqui vislumbramos.
Ou seja, no caso vertente, no acórdão recorrido logramos encontrar, em sede própria, a explanação do raciocínio lógico em que o tribunal a quo ancorou a decisão de facto e de direito assumidas, resultando, em suma, uma análise de confronto dos meios de prova produzidos e sujeitos a contraditório em audiência, quais os critérios de avaliação utilizados na sua apreciação e valoração, designadamente que foram avaliados à luz das regras da experiência comum, designadamente as declarações prestadas pela menor/vítima e pelo arguido, e, por outro lado, os depoimentos das testemunhas inquiridas, o teor dos documentos analisados e as conclusões vertidas nos exames e perícias médicas e psicológicas realizados.
A insurgência manifestada pelo recorrente prende-se sobretudo com a valoração probatória atribuída à perícia efetuada, e a uma alegada falta de prova direta que permita imputar-lhe a prática dos factos, ou seja, de ter valorado as declarações prestadas pela menor, designadamente em sede de declarações para memória futura, o que não poderia, ou deveria, ter acontecido, uma vez que essas declarações carecem de prova que as suporte, de concretização e especificação de circunstâncias de tempo, lugar e pormenorização factual, sendo insuficientes e imprecisos os factos que lhe são imputados.
Para além disso, também acaba por sugerir que o tribunal recorrido se baseou em prova meramente indiciária, indireta, que no caso vertente não dá respaldo às declarações da menor, carecendo a decisão recorrida de suporte factual indiciário que permita suportar as conclusões a que se chegou.
Não foi esse o entendimento explanado no acórdão recorrido, o qual, como se disse, não carece de fundamentação, antes pelo contrário, mostra-se motivado, faz uma discriminação adequada, concreta e suficientemente circunstanciada da prova em que se apoia a decisão sobre a factualidade provada, e procede ao exame crítico dessa prova. Repare-se que embora não fazendo uma profunda análise e apreciação do conteúdo do relatório da perícia realizada, a de cariz psicológico a que a menor foi sujeita, da sua bondade e validade técnico-científica, da transcrição do mesmo pode ser retirada a conclusão a que o tribunal recorrido chegou relativamente à fiabilidade desse exame.
Naturalmente que em situações como a em causa nos autos, em que se averiguam factos normalmente difíceis de apurar, de objetivar em termos de participação direta, decorridos ao longo de um determinado período de tempo, e concretizados em condições com recurso a expedientes de sigilo e privacidade, fora do alcance visual e perceção do comum das pessoas, não é propriamente fácil obter relatos diretos, totalmente concretos ou mais pormenorizados das situações ocorridas, pelo que, perante a fragilidade normal dessa prova direta, e a gravidade dos factos, em crimes desta natureza os tribunais se socorrem das declarações das pessoas envolvidas e de serviços técnicos especializados na apreciação e valoração das mesmas, ainda mais quando se está perante uma menor adolescente na casa dos 15 anos, ainda mais emocionalmente fragilizada pelos episódios vivenciados, pelo constrangimento e embaraço que advém do ter que falar, divulgar e reviver esse tipo de situações. Como aconteceu no caso vertente, em que nos deparámos com um exame pericial cujo rigor técnico e científico na análise do perfil psicológico da menor, nas consequências decorrentes da situação retratada na mesma e do grau de veracidade que pode ser conferido às declarações que prestou, está evidenciado no acórdão sob escrutínio. Tudo foi, como teria de ser apreciado, ponderado e valorado, naturalmente que esse meio de prova se mostra conjugado com todos os demais produzidos, designadamente os depoimentos das testemunhas inquiridas. A discordância do recorrente quanto a essa apreciação e valoração será alvo de análise quando nos debruçarmos sobre a impugnação da matéria de facto.
De qualquer forma, sempre se adiantará que nessa fundamentação de facto para além de encontrarmos inúmeras alusões ao que foi dito por cada um dos intervenientes ouvidos, também é feita uma análise de cada um desses depoimentos e declarações, salientando-se os pontos de maior relevância e consonantes, as divergências e contradições, as fragilidades de alguns depoimentos e o porquê do seu atendimento, ou não acatamento. Tudo feito de forma criteriosa, com explicações lógicas na sua apreciação, e revelando um recurso adequado às regras de experiência e circunstâncias da vida que permitiram inferir de todas as circunstâncias que rodeiam os episódios da vida em análise, e outros pontos que se revelaram com interesse para ponderação e valoração.
Tudo isso logramos alcançar na decisão recorrida.
Em conclusão.
Aqui chegados, só podemos concluir pela inexistência da alegada nulidade da sentença, por falta de fundamentação e de exame crítico das provas, ao abrigo do artigo 374º, nº2, do Código de Processo Penal, e pela não violação da regra constitucional prevista no art. 205º, nº 1, da CRP, ou qualquer outra.
Improcedendo, pois, a arguição de nulidade e o recurso apresentado relativamente a esta suposta falta de fundamentação do acórdão recorrido.
*
A matéria de facto.
Comecemos pela apreciação do recurso na parte relativa à matéria de facto.
Entende o recorrente que deve ser absolvido porquanto, em suma, a prova produzida é insuficiente para lhe atribuir a autoria dos crimes de importunação sexual e violação pelos quais foi condenado.
Alega que a decisão recorrida está inquinada por vários vícios e erros, concretamente na apreciação da prova e na valoração da mesma, para além da já apreciada falta de fundamentação e exame crítico daquela, o que a torna nula.
No seu entendimento, a sentença recorrida não podia ter considerado como provados os factos apurados, dando como exemplos os constantes dos pontos 10 e 5 a 13, inclusive, da matéria apurada.
Alega para tanto: “(…) «Alguma da matéria dada como provada está em flagrante desconformidade coma prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não tendo sido corretamente valorada. Sendo que, a generalidade dos factos dados como provados, resultam em sumula, das declarações para memoria futura prestadas pela menor, que o Tribunal recorrido teve como prestadas por forma pueril e assertiva, logica e coerente e que foram corroboradas segundo o mesmo, pelas testemunhas, DD, avó da menor e CC, pai da menor, Isto é, o Tribunal a quo sobrevalorizou as declarações da menor, bem como alicerçou a sua convicção em testemunhos indiretos, que mais não fizeram do que relatar aquilo que supostamente lhes foi contado pela própria menor, ou seja prestaram depoimentos de “Ouvi dizer”, “foi o que ela me contou”… O arguido alega desde de inicio, que a generalidade dos factos que constam da acusação são falsos e não passam de fabulações da menor, logo, ao faltar à verdade a primeira, inconscientemente, faltam a verdade os restantes, que como e sabido são próximos e familiares da menor, e naturalmente credenciam a versão por esta apresentada. O Tribunal a quo nunca poderia valorizar tais depoimentos, para a formação da sua convicção, da forma como o fez, pois, os mesmos, mais não são do que depoimentos apaixonados e indiretos, que tem na sua génese em factos fabulados. Existe matéria dada como provada que está em flagrante desconformidade com a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não tendo sido corretamente valorada, sendo exemplo, o facto de se ter dado como provado que: 10.º - “ ….apalpando-lhe o rabo, vagina e seios por cima e por dentro da roupa que trajava.”, quando na realidade, nem a menor refere tal ( Conf. [ 00:15:00] M.J.: Mas ele fazia isso por cima da roupa ou por baixo? BB F.: Por cima. Por cima. M.J.: Por cima ! BB F.: E houve uma vez que ele tentou porbaixo, também. M.J.: Tentou? Mas não chegou a fazer? (imperceptível) ele não te tentava tirar a roupa, ou tentava? BB F.: Tentava …. só que eu não deixava. M.J.: Isso nunca... BB F.: Não …) Em conformidade com o exposto na motivação resulta notório para qualquer homem médio e em conformidade com a experiencia comum, que os factos não ocorreram tal como os descreveu a menor. Resulta evidente, que ao arguido nunca lhe foi concedido a presunção de inocência, que se lhe impunha, tanto assim que, tudo o que por este foi dito em sede de audiência de discussão e julgamento foi diabolizado e necessariamente, era mentira. O Tribunal recorrido não indicou de forma clara quais foram os fundamentos da sua convicção bem como não procedeu a uma análise critica de todos os meios de prova, pelo que o recorrente não se conforma com o modo como se procedeu à valoração da prova. Senão vejamos, a titulo de mero exemplo, os factos descritos em 5 a 13 (dos factos dados como provados), resultam provados com base nas declarações da menor sendo que nalguns dos casos, são corroboradas pelos depoimentos indiretos das testemunhas que se limitaram, rigorosamente, a reproduzir a versão, que anteriormente, lhe havia sido transmitida pela própria menor. A convicção do Tribunal Recorrido alicerçou-se, tão somente nas declarações da menor, fazendo tabua rasa de tudo quanto foi alegado pelo arguido, porém, o Tribunal estava obrigado a indagar sobre todos os factos alegados, nomeadamente pelo arguido, devendo o exame critico da prova ser de tal ordem que não fiquem quaisquer dúvidas sobre as razões objetivas pelas quais foram valorizadas ou desvalorizadas, o que infelizmente, não aconteceu no caso ora em apreço.» (…)”
Concluindo que “o acórdão encontra-se ferido de nulidade, tendo sido violado o disposto no artigo 374º do CPP, e um erro notório na apreciação da prova, violando o disposto no artigo 127º do CPP.”
Como sabemos o nosso sistema processual penal prevê que a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos:
Um mais restrito, a chamada «revista alargada», que abrange os vícios previstos no artigo 410º, nº2, do CPP;
Outro mais lato, a chamada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP.
O primeiro dos apontados modos de sindicância da matéria de facto, previsto no artigo 410º, n.º 2 do CPP, consagra que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
Atentemos então em cada dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP.
- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. O tribunal não dá nem como provado nem como não provado algum facto necessário para justificar a posição tomada.
Este vício não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, em que se afirma que teriam sido dados como provados factos sem prova para tal. Como parece transparecer do recurso do arguido.
- A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Existirá contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão quando, por exemplo, um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
- Erro notório na apreciação da prova.
O último dos vícios previstos no artigo. 410.º, do CPP é o do n.º 2, al. c), e ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum. O erro notório na apreciação da prova terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito.
Analisemos então este último vício apontado pelo recorrente.
- Imputando tal vício à sentença recorrida, o recorrente fá-lo, porém, e como resulta linear do excerto das suas conclusões acima transcrito, em termos que revelam uma confusão nítida entre as duas formas perfeitamente distintas que existem de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto: por um lado, a invocação do vício previsto no art. 410º, n.º 2 al. c) (na chamada revista alargada) e, por outro, a impugnação (ampla) da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, n.ºs 3 e 4, ambos do Código de Processo Penal.
Como vimos, no primeiro caso, o recurso pode ter como fundamento qualquer dos vícios indicados, e previstos, nas várias alíneas do n.º 2 do art. 410º do CPP.
Como resulta desse preceito legal, os vícios aí referidos, que são de conhecimento oficioso, constituindo um defeito estrutural da decisão, têm de resultar do respetivo texto, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, esta terá que ser autossuficiente quanto a eles, não se podendo recorrer à prova documentada. (Cfr. o acórdão uniformizador de jurisprudência referido na nota 2. - e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pág. 77 e ss..
No âmbito desta revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença em si mesma evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1 do CPP).
Por outro lado, o nosso Código de Processo Penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com este princípio, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.
Este princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32.º, n.º 2 Constituição), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe, nos casos de dúvida fundada sobre os factos, que o Tribunal decida a favor do arguido.
Perante estas considerações, cabe concluir que, para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, prova nula ou prova vinculada, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Abordemos a situação concreta
Como resulta das conclusões do recurso apresentado, o recorrente invoca a violação da mencionada alínea c) do n.º 2 do art. 410º do CPP, mas ao longo dessas extensas conclusões e do próprio corpo da motivação, essencialmente é alegado que o tribunal não podia dar como provado que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados e constantes da acusação, porquanto, atendendo às suas declarações e da ofendida, aos depoimentos das testemunhas e à prova documental existente nos autos, só podia chegar à conclusão, até pelas regras da experiência comum, que a sua intervenção nos factos não se passou como foi dado como provado, que aquelas declarações e depoimentos não foram devidamente ponderados e valorados, tendo sido considerados provados factos que não encontram correspondência ou sustentação naqueles meios probatórios, sendo até contraditórios, e incongruentes, com esses meios de prova, pelo que não deveriam ter sido valorados como foram. Fez, pois, o tribunal recorrido uma errada apreciação da prova, estribando-se, de modo praticamente exclusivo, nas declarações para memória futura, prestadas pela ofendida, que o recorrente desvaloriza.
No seu entendimento, numa correta apreciação, e ponderação, da prova produzida deveria ter conduzido à absolvição do arguido, por falta de prova ou, no mínimo, deveria ter permanecido a dúvida quanto à sua ocorrência e autoria, ao abrigo do princípio in dubio pro reo.
Concreta e essencialmente, o recorrente põe em causa a apreciação e ponderação feita no tribunal a quo às declarações para memória futura da menor BB, que, na sua visão, apresentou relatos sem coerência, desprovidos de espontaneidade e concretização, sendo meras efabulações, sem correspondencia com a verdade.
Esses relatos não são corroborados pelos restantes meios de prova, designadamente pelos depoimentos das testemunhas DD e CC, respetivamente avó e pai da menor, que depuseram sobre os factos, mas não os presenciaram, e nada acrescentam de contributo efetivo à condenação. “O Tribunal a quo sobrevalorizou as declarações da menor, bem como alicerçou a sua convicção em testemunhos indiretos, que mais não fizeram do que relatar aquilo que supostamente lhes foi contado pela própria menor, ou seja prestaram depoimentos de “Ouvi dizer”, “foi o que ela me contou”…
O recorrente acaba por transcrever, na motivação de recurso, exemplificativos excertos das declarações para memória futura prestadas pela menor/ofendida e dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, dos quais retira discrepâncias entre o que ali foi dito, concretamente relativamente às várias passagens constantes dos pontos de facto, e o que acabou por ser dado como provado, apontando as razões pelas quais entende que nenhum meio probatório suporta essa factualidade.
Pelo que, perante essa deficiente ponderação, divergências e contradições, o tribunal não poderia dar como provada a factualidade apontada, pelo menos impor-se-ia a dúvida acerca da ocorrência da mesma, concluindo pelo erro notório na apreciação dessa prova.
De uma análise atenta desta posição do recorrente verificamos da sua motivação de recurso, e suas conclusões, que não se circunscreve ao texto da decisão recorrida, para demonstrar que, da mera leitura da mesma, resulta mostrar-se ter o tribunal a quo incorrido em erro notório na sua apreciação ao dar como provados determinados factos, como se impunha que fizesse, vai muito para além desse texto vertido na sentença proferida.
O que verificamos, pois, é que o recorrente, extravasando manifestamente o âmbito da arguição do vício em questão, socorre-se da prova oralmente produzida em audiência, e da obtida em declarações para memória futura, para demonstrar que o tribunal recorrido a valorou erradamente, visando, assim, a reapreciação da mesma por este tribunal de recurso, com vista, essencialmente, a serem dados como não provados os factos apontados relativos ao seu comportamento para com a ofendida, e menor, BB.
Tal erro, nos termos em que é invocado, a existir, traduzir-se-á antes em erro de julgamento, objeto da impugnação alargada de decisão de facto ao abrigo do art. 412º, n.ºs 3 e 4, e não da impugnação restrita, ou revista alargada, prevista no art. 410º, n.º 2 do CPP, concretamente na alínea c) desse normativo legal.
Aquilo que o recorrente verdadeiramente questiona é o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da mesma, aventando uma eventual violação do disposto no art.º 127º do CPP, muito embora acabe por apontar à decisão recorrida o vício previsto na alínea c) daquele art. 410º, nº 2, do diploma legal em apreciação, mas, como se salientou, extravasando manifestamente o sentido em que esse vício deve ser entendido, ou seja, como resultando, apenas e só, do próprio texto da decisão posta em crise.
Com efeito, o recorrente invoca o apontado vício como corolário da sua própria apreciação da prova produzida, chamando à colação elementos externos ao texto da sentença recorrida, numa mistura confusa do vício da decisão judicial com erro de julgamento.
Sendo certo que, de uma leitura atenta da decisão sob escrutínio não se deteta ostensivamente qualquer equívoco resultante de factos do conhecimento geral ou do funcionamento das leis da lógica, da física, da mecânica ou de conhecimentos científicos, criminológicos e vitimológicos, o que afasta a existência de um erro notório na apreciação da prova, pelo menos com a extensão ou relevância apontada pelo recorrente. Como também da decisão proferida pelo tribunal a quo sobre os factos impugnados não revela, de uma maneira geral, e que assuma particular relevância no decidido, qualquer vício de raciocínio na apreciação da prova, que se evidencie aos olhos do homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, e que se traduza em ter-se dado como provado algo que não se provou ou que não pode ter acontecido. (Neste sentido Ac. Relação de Guimarães, 21 de maio de 2018, in http//:dgsi.pt), bem como da mesma resulta matéria factual bastante para imputar ao arguido a prática dos crimes sob escrutínio, de importunação sexual e violação, ou seja, para decidir como foi decidido.
Concretizando
O recorrente invoca o vício da mencionada alínea c) do n.º 2 do art. 410º do CPP, mas ao longo das restantes conclusões e do próprio corpo da motivação, essencialmente é alegado que o tribunal não podia dar como provado que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados e constantes da acusação, porquanto, atendendo aos depoimentos das testemunhas, à falta de conhecimento concreto dos factos que revelaram, às suas declarações, negatórias de tudo o que lhe é imputado, e às declarações para memória futura da ofendida, desprovidas de circunstâncias objetivas, de pormenorização e eivadas de efabulações e elocubrações fantasiosas, só podia chegar à conclusão, até pelas regras da experiência comum, que nada se passou como foi relatado e dado como provado, pelo que fez uma errada apreciação da prova, devendo ter absolvido o arguido por falta da mesma, ou, no mínimo, deveria ter permanecido na dúvida quanto à sua ocorrência e autoria, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, o que expressamente invoca.
Porém, como se disse acima, tal como os das restantes alíneas do nº 2 do art. 410º, este vício também não deve ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, enquanto questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP). (Cfr. Acs. do STJ de 7/1/2004, P. n.º 3213/03, e de 29/4/1992, P. n.º 42535).
Como linearmente se extrai da simples leitura do teor da decisão recorrida, no caso em apreço não se constata a verificação do vício (formal) que o recorrente lhe aponta, pois, os factos considerados provados só podem sustentar, e sustentam de facto, cabalmente a condenação do arguido, não se vislumbrando que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer princípio jurídico ou as regras da experiência comum, contrariamente ao alegado.
Em suma, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente, tendo negado os factos, não se conforma com a circunstância de o tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos mesmos favorável à acusação pública, aí fazendo radicar o aludido vício que aponta à decisão, e que expressamente clama.
Assim sendo, é forçoso concluir, face à concreta argumentação expendida nas conclusões do recurso, complementadas com a respetiva motivação, que o recorrente invoca a existência deste vício fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe às do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto do acórdão recorrido, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, à experiência ao alcance, pela sua evidência, do homem comum, nem sequer qualquer lapso, ou erro, na análise e avaliação dos meios de prova que lhe foram apresentados.
O recorrente impugna a apreciação feito pelo tribunal recorrido, a forma como analisou, ponderou e valorou, relativamente à prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da mesma, sem apontar à decisão recorrida, ao seu texto, qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto, designadamente, erro notório na apreciação da prova, nem qualquer dos outros vícios previstos nas demais alíneas daquele preceito legal, no sentido em que esses vícios devem ser entendidos, ou seja, como resultando do próprio texto da decisão posta em crise.
O apontado vício resulta da sua própria ponderação e valoração da prova produzida, chamando à colação elementos externos ao texto da sentença recorrida, confundindo, pois, vícios da decisão judicial com erro de julgamento.
Com efeito, na perspetiva da lógica interna da decisão e em face do respetivo texto, os referidos factos estão suportados pela prova produzida, porquanto, de acordo com o teor da respetiva motivação, os mesmos assentaram, essencialmente, nas declarações para memória futura prestadas pela menor/ofendida BB, e das testemunhas CC, pai das menor; ..., avó da menor. Tendo também sido tidas em devida conta as declarações do próprio arguido
Toda esta panóplia probatória foi conjugada com o exame de psicologia forense realizado à menor.
Como já se deixou dito, resulta manifesto da letra da decisão recorrida que a prova se mostra proficientemente apreciada e ponderada, revelando-se devidamente fundamentada a opção pela que foi considerada para estribar a matéria de facto consolidada.
Por conseguinte e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, improcede a deduzida invocação do vício de ordem formal suscitado. Sendo certo que nenhum outro dos previstos no nº 2 do artº 410º, que são de conhecimento oficioso, se descortina na decisão proferida.
Por tudo o exposto, improcede totalmente o invocado vício do erro notório na apreciação da prova.
*
- Do erro de julgamento
Como se disse, a verdadeira pretensão do recorrente dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, defendendo que os meios de prova produzidos não suportam os factos que ficaram a constar da decisão recorrida.
Sobressai das extensas conclusões do recurso, a imputação ao tribunal de 1ª instância da indevida valoração de tais meios de prova, porque sobrevalorizou, essencialmente, as declarações para memória futura da ofendida e os depoimentos das testemunhas de acusação ouvidas em audiência, e da falta de dados fatuais objetivos que suportem a sua versão, desconsiderando as suas próprias declarações.
Ora, a impugnação de uma decisão com fundamento em erro de julgamento, exige que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
Nos termos do disposto no artigo 428.º do CPP os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, poderia este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b) do CPP, ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Essa apreciação, contrariamente à acima tratada revista alargada, não se restringe ao texto da decisão, estendendo-se à análise do que contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.
De qualquer forma, nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, ou análise de transcrições, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa. (Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj)
Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, é que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:
«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do CPP).
Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º do CPP que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º do CPP). (- Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012).
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as exceções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite.
Como se tem entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessários, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
São inúmeros os fatores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes na audiência.
Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à exceção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspetos de relevância indiscutível (reações do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são percetíveis pela 1ª instância.
À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõem uma outra convicção.
A demonstração desta imposição recai sobre o recorrente que deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado. (Cfr. - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 1122, nota 9).
Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorreção decisória, mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado. (- Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj).
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. (Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj ).
A utilização do termo “impor” no artigo 412.º do Código de Processo Penal “…revela que para o legislador essa alteração terá de ter um grau de exigência elevado, ou seja, que ela só ocorrerá se a prova invocada for suficientemente forte não só para colocar algumas dúvidas, mas para determinar sem lugar a dúvidas razoáveis uma decisão diferente. Se o tribunal de recurso concluir somente que as provas admitem outra solução não haverá lugar à alteração dos factos.” (- Acórdão do STJ de 18/01/2018, proferido, em 2ª instância, no Proc.º. 563/14.3TABRG.S1 - 3ª Secção, disponível em www.dgsi.pt/jstj).
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do citado art. 412º, como se referiu já.
A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afeta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3).
Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos ao recorrente, passemos à análise do caso concreto. Verificando, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões de recurso sobre os pontos da impugnação deduzida, e se aqueles pressupostos se mostram verificados.
À luz do que acima expendemos, de um ponto de vista formal, o recorrente nem sequer cumpriu satisfatoriamente a primeira parte do apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o denominado ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados. Manifesta-se contra a decisão de toda a matéria de facto provada, dando apenas como mero exemplo do erro de julgamento a factualidade constante dos pontos 10 e 5 a 13.
Com a sua impugnação, visa a sua absolvição pela prática dos crimes de importunação sexual e violação que lhe são imputados, defendendo que deveria o Tribunal a quo ter atendido especialmente à manifesta falta de prova, testemunhal e documental, e ter dado indevido crédito às declarações da ofendida, e julgar como não provados todos esses factos.
É esta a proposta de decisão alternativa sobre os mesmos pela qual pugna, e, embora indique alguns dos concretos meios de prova que imponham tal alternativa, a verdade é que se limita a defender, de uma forma genérica, que deveria o tribunal a quo não ter atendido às declarações da ofendida, não lhe dar credibilidade, que considera incongruentes, sem objetividade e concretização dos factos a que foi inquirida, que não passam de efabulações e se revelam desprovidas de circunstancialismo factual que evidencie a ocorrência daqueles. E a prova testemunhal inquirida não presenciou quaisquer factos, limitando-se a contar o que lhes foi relatado pela menor, não passando de prova indireta
Não obstante, todos os considerandos que tece limitam-se à valoração da prova produzida, com a qual discorda, não passam de uma apreciação própria, meramente subjetiva, desprovida de qualquer objetividade, insuscetível de assumir qualquer relevância para a distinta decisão proposta.
Certo que faz a indicação concreta das passagens da gravação que entende erradamente valoradas e pretende ver reapreciadas, transcrevendo na motivação essas passagens para sustentar a versão que apresentou sobre os factos. De qualquer forma as concretas passagens e os excertos que transcreveu limitam-se, às declarações para memória futura da ofendida e aos depoimentos do pai e da avó desta, e não a quaisquer outros meios de prova que pudessem infirmar a versão apresentada por aquelas.
Mas, como se verifica, o recorrente sustenta a sua impugnação da matéria de facto por “atacado” ou em bloco, i.e., não procedeu à indicação das concretas razões da sua discordância relativamente a cada um dos concretos pontos de facto impugnados, não referenciou as concretas provas que, na sua opinião, impõem decisão diversa da recorrida para cada concreto ponto da matéria de facto impugnada, antes deduziu uma impugnação “conjunta”, deixando ao julgador o ónus de sindicar, dentro do espectro das gravações realizadas, quais as concretas passagens das declarações e dos depoimentos que, na sua opinião, imporiam decisão diversa da recorrida relativamente a cada ponto da matéria de facto impugnada.
Na verdade, o que acaba por fazer é uma diferente apreciação e valoração da prova produzida em julgamento, a qual, sendo legítima e suscetível de conduzir a uma convicção e decisão diferente, não invalida aquela que foi tomada no tribunal a quo, ou antes, não impõe uma decisão diversa da que foi assumida em 1ª instância.
Dito de outro modo, não tendo o recorrente feito corresponder a cada uma das alterações da matéria de facto (ponto por ponto) os concretos segmentos dos depoimentos das testemunhas ouvidas, e, eventualmente, dos documentos, em que funda a sua leitura da prova, não se mostra viável estabelecer uma cabal correlação entre a prova por si indicada e as alterações pretendidas.
A falta destes elementos impede este Tribunal da Relação de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de fazer uso do critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, que não foram apresentadas, ou que, ao menos, melhor se conjugassem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos.
Foi este exercício que nos vimos impedidos de fazer.
De qualquer forma, procedeu-se à audição das gravações, designadamente das declarações para memória futura aludidas, e à leitura circunstanciada das transcrições das mesmas vertidas nas motivações com a Ref: ...01 do recurso apresentado.
Os limites traçados pelo objeto do recurso, a falta de meios, ou dados, que permitissem uma reapreciação da matéria de facto impugnada, coartou a possibilidade deste Tribunal ir mais além na sua tarefa.
Ficamos confinados à valoração da prova feita pelo tribunal recorrido, sendo de relembrar que, em sede de avaliação da credibilidade dos depoimentos, o tribunal de 1ª instância tem a seu favor a relação de imediação que se traduz no contacto pessoal e direto entre o julgador e os diversos meios de prova.
Porém, após exame do resultado das declarações para memória futura prestadas pela ofendida, conjugadas com os demais elementos probatórios recolhidos, os depoimentos prestados pelas testemunhas aludidas, com o teor do exame de psicologia forense realizado à menor, reiteramos que esses meios de prova permitem, sem margem para qualquer dúvida, concluir como o fez o tribunal recorrido.
Sendo certo que os depoimentos das testemunhas são prova indireta, porquanto não presenciaram os factos, não os testemunharam diretamente, a verdade é que são as que tiveram contato pessoal com a ofendida, aquelas a quem a menor recorreu para divulgar o que lhe estava suceder, tendo ouvido da sua boca palavras confirmadoras de factos e circunstâncias reveladoras do que aquela menor estava a vivenciar, ao ponto de tomarem a resolução imediata de os denunciar, colocando o caso nas mãos da autoridade.
Como vemos, toda essa prova indireta se mostra fortemente interligada e é corroborada em grande parte pelas declarações da ofendida, para além do facto de lhes terem sido relatadas, mais ou menos circunstanciadamente, por esta.
Naturalmente que em situações como as vividas pela menor não é propriamente fácil obter relatos totalmente concretos ou mais pormenorizados das situações vividas, atendendo à idade que tinha, á sua imaturidade, à delicadeza das mesmas, ao pudor e repulsa na sua divulgação, designadamente perante pessoas estranhas, à dificuldade emocional em recordá-los e revivê-los, pelo que, perante a fragilidade normal dessas declarações, e a gravidade dos factos, os tribunais se socorrem de serviços técnicos especializados na apreciação e valoração das mesmas. Como aconteceu no caso vertente, em que nos deparámos com exame psicológico que evidencia grande rigor técnico e científico na análise do comportamento e personalidade da ofendida, nas consequências decorrentes da situação em análise, e do grau de veracidade que, por via desses exames, pode ser conferido às suas declarações.
Tudo vem proficientemente apreciado, ponderado e valorado na decisão sob escrutínio.
Reforçando
A razão da discordância do recorrente relativamente à forma como o tribunal a quo decidiu os factos provados impugnados prende-se, portanto, exclusivamente com o facto de a convicção assentar em elementos probatórios que, no seu entender, não permitiam concluir pela realidade dos factos, e não em qualquer discrepância entre o que foi dito e o que foi considerado provado.
Analisando a motivação e as conclusões constata-se que o recorrente não alega que a descrição feita na sentença recorrida sobre o conteúdo das declarações da ofendida, do arguido e dos depoimentos das testemunhas, não corresponde ao que na realidade disseram, nem ao que consta daquela prova documental.
O que o recorrente faz é coisa totalmente diferente.
Procede à transcrição de partes selecionadas das declarações daquela ofendida e do depoimentos das testemunhas aludidas, para, a partir de tais elementos, conferir à prova produzida uma outra leitura, substituindo a sua própria convicção à convicção do tribunal a quo, concluindo pela sua absolvição da prática dos crimes, sem apontar em concreto um erro de julgamento, fazendo o ataque à decisão da matéria de facto pela via da valoração que o tribunal deu aos meios de prova, o que se afigura irrelevante em termos de impugnação da matéria de facto. Sendo certo que as incongruências e contradições que diz ter encontrado não são evidenciáveis na apreciação que fizemos.
Ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso da matéria de facto não tem por finalidade, nem pode ser confundido, com a realização de um “novo julgamento” fundado numa nova convicção, mas apenas apreciar a razoabilidade desta tal como formada pelo tribunal recorrido em relação aos concretos pontos de facto que a recorrente entende incorretamente julgados, com base na avaliação das provas que considera imporem uma decisão diversa.
Na verdade, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”. (- Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24/3/2004, DR, II Série, n.º 129, de 2/6/2004).
De tudo o acabado de transcrever se extrai que o tribunal a quo alcançou a sua convicção ponderando de forma conjugada e crítica o conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente as declarações da ofendida e do arguido, os depoimentos das testemunhas, com intervenção daquele arguido e do seu ilustre defensor, que sobre ela puderam exercer amplamente o contraditório, debalde se encontra no recurso em causa alegação que infirme a formação de tal convicção, sendo que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e outra é detetar-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, posto que o recurso da matéria de facto deve incidir sobre provas que imponham decisão diversa e não simplesmente sobre provas que permitam decisão diferente.
Por fim, quanto à apreciação da prova, ousamos recordar que apesar da minuciosa regulamentação das provas, continua a vigorar o princípio fundamental de que na decisão da “questão de facto”, a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127º do CPP.
Por isso, a invocação da violação desse princípio não pode servir para o recorrente sindicar a livre apreciação da prova produzida em audiência, realizada pelo tribunal recorrido. Neste sentido, a apreciação da prova deve ser fundamentada nas “regras da experiência” e na “livre convicção” do juiz, por decorrência direta do art. 127º do Código de Processo Penal. Por isso e porque o art. 374º nº 2 do Código de Processo Penal exige o “exame crítico das provas” é que o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio.
É o que verificamos no caso concreto.
Não se mostrando, pois, violado o já supra aludido princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º, do CPP, como alvitrado pelo recorrente.
Do in dubio pro reo
Também da fundamentação de facto apurada não se extrai qualquer violação do in dubio pro reo.
O recorrente sugere ter havido violação do princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
No processo penal não tem aplicação o ónus da prova formal, segundo o qual cada uma das partes terá de produzir as provas necessárias a sustentar os factos que alega, porquanto, vigorando o princípio da investigação, recai sobre o juiz o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento. Em consequência, se uma vez produzida toda a prova, persistir uma dúvida razoável sobre determinados factos no espírito do julgador, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a favor do arguido. Sendo o direito penal um direito de culpa, a qual representa um limite intransponível para a decisão, “os princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena”. (Vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 519.)
Conforme ensina Figueiredo Dias (- In Direito Processual Penal, I, pág. 215.), “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa. Contudo, para tanto não basta dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade revelada nos autos. Da mesma forma que também não é suficiente a circunstância de terem sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes.
Acresce que não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio. (Cfr. o acórdão do STJ de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.)
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente. Em suma, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
No âmbito dos seus poderes de cognição sobre a matéria de facto, compete ao tribunal da relação sindicar a concreta utilização do princípio in dubio pro reo por parte da primeira instância. Com efeito, a violação desse princípio pode resultar da análise do texto da própria decisão recorrida e do processo decisório nela evidenciado, ocorrendo quando se concluir que o tribunal recorrido ficou em dúvida quanto a elementos que permitem estabelecer o grau de culpabilidade do arguido e, nesse estado de dúvida, decidiu contra ele.
Para além dessa situação, de verificação pouco frequente, a imputação da violação do princípio in dubio pro reo torna necessário demonstrar a existência de erro na apreciação dos meios probatórios produzidos, através do reexame dos mesmos, com vista a evidenciar que, em face da carência ou insuficiência da prova, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida quanto a factos relevantes para a responsabilidade criminal do arguido.
No caso dos autos, como ressalta da motivação da decisão de facto, o tribunal a quo considerou provados os factos impugnados para além de qualquer dúvida razoável sobre eles, ou seja, sem ter dúvidas em fixar a sua ocorrência tal como se encontram descritos, não decorrendo do acórdão recorrido a existência ou confronto do julgador com qualquer dúvida insanável, motivo pelo qual não houve que a valorar a favor do arguido.
Com efeito, o tribunal recorrido, como se disse supra, dando a conhecer o processo de formação da sua convicção, procedeu a uma explicitação das declarações da ofendida e do arguido e dos depoimentos das testemunhas, que acolheu, bem como das razões porque lhes foi atribuída credibilidade, não havendo outros elementos probatórios a ponderar quanto aos factos ora impugnados, por não terem sido produzidos. Baseou-se, pois, o tribunal de 1ª instância num juízo de certeza e não em qualquer juízo dubitativo.
Por seu lado, pelas razões expostas supra, a propósito dos excertos de depoimentos em que o recorrente estriba a sua impugnação, e da convicção que dos mesmos retira, da análise desses depoimentos e das declarações apontadas, concluímos pela inexistência de razões que devessem ter levado o tribunal a ficar com qualquer réstia de dúvida sobre os factos impugnados. Em suma, a prova produzida em audiência permite claramente concluir pela verificação dos factos impugnados, sem qualquer afrontamento das regras da experiência comum ou apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância, subtraído a qualquer dúvida, nada havendo a alterar.
Pelo que, não se verifica a violação desse princípio basilar do direito probatório.
*
Qualificação jurídica
No entendimento do recorrente, “- A acusação pública e o(s) acórdão(s) recorrido(s), integram as condutas do arguido entre junho a agosto de 2020, como correspondendo a diversos crimes de natureza sexual, tendo condenado o arguido pela prática neste período temporal, por um crime de importunação sexual e três crimes de violação. 35 - Em conformidade com a maioria da Jurisprudência e alguma Doutrina, no que respeita especificadamente aos imputados crimes de violação, entende o recorrente que todas essas condutas de que é acusado, configuram e são puníveis apenas como um só crime de trato sucessivo, ou seja, a factualidade por que foi o recorrente condenado pelo Tribunal "a quo" integra um único crime de trato sucessivo de violação e não três tal como é do entendimento do Tribunal recorrido.”
Vejamos.
Como se retira desta alegação o recorrente entende que a sua conduta, no que concerne ao crime de violação, não sendo procedente a sua posição quanto à impugnação da matéria de facto, terá de ser enquadrada na figura do crime de trato sucessivo.
A este respeito escreveu-se no acórdão recorrido (transcrição parcial): “(…) «Irrelevância da tese do crime continuado Portanto, o arguido cometeu os enumerados crimes de natureza sexual. É essa a solução indicada pelo n.º 1 do artigo 30.º do Código Penal, onde está prescrito o seguinte: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Trata-se de preceito cujo enunciado o Prof. Eduardo Correia justificava, ensinando que “…pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção: a unidade do tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade de conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes”. E, então, explicava: “Como, porém, determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura? Seguro é que, sempre que possa verificar-se uma pluralidade de resoluções – de resoluções no sentido de determinações de vontade, de realizações do projecto criminoso –, o juízo de censura será plúrimo. Restará ainda, porém, saber em que condições se poderá afirmar uma tal pluralidade de processos resolutivos. O critério segundo o qual esta pluralidade seria de afirmar sempre que se descortinasse uma qualquer “descontinuidade” na actuação do agente não pode ser seguido: não apenas porque ninguém irá afirmar uma pluralidade de resoluções só porque o agente, v. g., descarregou vários golpes, uns a seguir aos outros, sobre a sua vítima, como, acima de tudo, porque uma série de actos descontínuos pode muitas vezes ficar unicamente a dever-se a uma série correspondente de impulsos mecânicos, meras descargas automáticas de uma mesma resolução. Afastado este critério, não nos resta outro, porém, se não o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de resolução (in Direito Criminal, 1971, II, pp. 201-202). Atenta a disposição do n.º 2 – “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente“ – e a disposição errática do n.º 3 – “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima” – do mencionado artigo 30.º, há quem defenda, o que, de resto, sucedeu mui recentemente neste tribunal, que o arguido, autor de plúrimos factos que protegem o mesmo bem jurídico, por forma essencialmente homogénea, e no pressuposto de que teria sido solicitado por uma situação que diminuiu consideravelmente a sua culpa – tão-só cometeu um crime continuado de abuso sexual. Ora, ensinava o citado Mestre que “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico –, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (…) devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente. E quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou KRAUSHAAR, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (in loc. cit., pág. 209).
E continuava: “Importará agora – uma vez conhecido o fundamento da unidade criminosa da continuação – determinar as situações exteriores típicas que, preparando as coisas para a repetição da actividade criminosa, diminuem consideravelmente o grau de culpa do agente: a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos; b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.” (in loc. cit., pág. 210). Ora, no presente caso, não se trata, desde logo, de hipótese em que o arguido tenha decidido alargar o âmbito da sua actividade criminosa, nem da perduração de qualquer meio apto para a realização do delito. Outrossim, não é caso de ter existido qualquer acordo entre o arguido e a menor, que sempre seria irrelevante, dado que, in casu, a lei protege os menores, inclusivamente deles próprios, considerando irrelevante o eventual consentimento que prestem para a prática de actos sexuais (cfr. citado acórdão do STJ de 07-12-1999). No entanto, houve casos em que alguns tribunais consideraram pertinente “a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa”. Mas trata-se de um equívoco. Na verdade, “Na medida em que o direito criminal afirma certos valores ou bens jurídicos, cria para os seus destinatários o dever de formar, ou ao menos de preparar, a sua personalidade de modo a que, na sua actuação na vida, se não ponham em conflito com aqueles valores ou interesses. Violando este dever, constitui-se o delinquente em culpa pela não formação ou não preparação conveniente da sua personalidade. De modo que, assim, o conteúdo e a intensidade de um tal dever há-de variar em função das razões que podem conduzir a personalidade ao crime. Ele traduzir-se-á, por isso, em preparar-se (…) para não deixar que as suas tendências ou inclinações o arrastem para o crime – caso em que o dever que se lhe impõe será o de corrigir, educar ou dominar essas suas tendências ou inclinações criminalmente perigosas” (Eduardo Correia, in Direito Criminal I, Almedina, 1971, pp. 325-326). Assim, no que respeita ao impulso libidinoso, deve o agente acautelar-se, especialmente, quando a sua luxúria se projecta na direcção de uma criança, atentas as preocupações de protecção da mesma que motivaram o legislador. E, assim, quando, pela primeira vez, o agente sente esse malvado impulso, deve indagar se não se trata aqui de uma parte da libido não educada, não diferenciada e não humanizada, ainda não domesticada (animalesca). Por outro lado, deve ponderar a inocência da criança, a destruição de vida que poderá causar, o hediondo crime que se prepara para cometer. É que assomar ou entrar na intimidade de uma criança é maldade superlativa, maior do que saltar os muros e arrombar as portas de uma casa para roubar de lá um tesouro – pois, no caso de uma criança, esse tesouro é a sua alma e a sua vida, que não entregará, vez alguma, sem resistência, quantas vezes muda. Por isso, quando o agente repete a sua conduta e, uma segunda ou terceira ou outra vez, força a intimidade da criança, o julgador deve compreender que não se trata de uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa, porque o que efectivamente se passa é que o agente, animalesco e incorrigível, desprezando a inocência da criança, mais uma vez, odiosamente, vence a sua muda resistência, assalta as paredes do seu corpo e da sua alma e viola o inestimável bem jurídico que o legislador quis proteger . Em suma, no presente caso, a disposição exterior das coisas para o facto não vem de fora, pois toda a disposição das coisas para o facto foi, caso a caso, eivada pelo arguido, que, por dentro, sempre foi renovando a decisão libidinosa de atentar contra a inocência sexual da menor. Como salienta Maia Gonçalves (ibidem, p. 649), “atente-se mais em que, havendo pluralidade de acções naturalísticas e tratando-se de uma só vítima, normalmente não haverá crime continuado, mas concurso de crimes, já que em regra não haverá relevante solicitação exterior a diminuir a culpa do agente, mas desviante personalidade deste a determinar o seu comportamento criminoso.” E, como referia Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, 1ªedição, 139, nota 28: “A ciência médica e a experiência da vida mostram que o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador. A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do crime” (acórdão do STJ de 17-09-2014, in sítio da Net do IGFEJ). . Irrelevância da tese do crime de trato sucessivo Contudo, tribunais houve que, face a inúmeros actos sexuais que se repetiram ao longo de um certo período de tempo, quiçá, evitando a aplicação de penas desproporcionadas, enquadraram a conduta do delinquente no denominado crime de trato sucessivo ou ponderaram que “mais correcto teria sido considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado” . O acórdão do STJ de 22-01-2013 (in sítio da Net do IGFEJ) indica essa jurisprudência, referindo que, “Em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente”. E, perante um número indeterminado de actos de abuso sexual, praticados ao longo de um incerto período tempo, já o STJ decidiu, no entanto, com um voto de vencido, que se tratava de um único crime de trato sucessivo (cfr. acórdão do STJ de 29-11-2012, in sítio da Net do IGFEJ) . No entanto, a razão estava do lado do Senhor Conselheiro vencido, que, citando Figueiredo Dias, enunciou a assertiva dogmática de que os crimes de trato sucessivo (ou habituais) são “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada” – o que não era o caso, nem é o dos presentes autos, pois o tipo incriminador do abuso sexual de crianças não supõe a prática reiterada de comportamentos abusivos.
Vejamos.
O arguido foi condenado pela prática de 3 (três) crimes de violação e um de importunação sexual, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a), agravado pelo 177.º, n.º 6, e 170º, todos do Código Penal.
Do crime de violação
Sob a epigrafe “violação” dispõe o artigo 164.º do Código Penal que:
“1 - Quem constranger outra pessoa a:
a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de um a seis anos.”
E o n.º 6 do artigo 177.º prevê uma agravação da pena a aplicar, nas seguintes condições:
“As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra menor de 16 anos”.
Importunação sexual
Por sua vez, sob a epigrafe “importunação sexual”, é a seguinte, a disposição do artigo 170.º:
“Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
A este propósito, fundamentou-se no acórdão recorrido:
“Mediante as citadas previsões legais, visando proteger a liberdade de determinação sexual (Cf. Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 466), estatuiu o legislador – o que constitui técnica legislativa corrente na construção dos tipos criminais – tipos de crime doloso consumado, constituídos, antes do mais, por um facto material – "nullum crimen sine actione"; depois, para que os crimes existam é ainda necessário que o facto material ocasionado seja lesivo dos interesses protegidos – "nullum crimen sine injuria" – e que tenha sido praticado culpavelmente – "nullum crimen sine culpa" (Cf. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal, 1º Volume, 1995, pág. 160).
A culpa confina-se ao denominado dolo genérico, previsto, segundo as suas várias modalidades, nos diversos números do artigo 14.º do Código Penal. (Cf. Prof. Figueiredo Dias, in loc. cit., pp. 456 e 548).
O tipo objectivo do artigo 164.º, n.º 2, alínea a), radica no constrangimento de uma pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral (traduzindo-se este na penetração da boca pelo pénis – acto que, como no presente caso, o arguido praticou, pelo menos, em três ocasiões), mediante um dos meios típicos previstos na disposição (“violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir”). Sendo a penetração consumada sem recurso aos referidos meios típicos – como sucedeu no presente caso –, a conduta do agente cai na previsão do n.º 1.
No que concerne ao artigo 170.º, o cerne do tipo objectivo de ilícito consiste, ora, em o agente importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual.
Trata-se de tipo legal de crime “introduzido com a revisão do Código operada pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, no sentido, expresso na Proposta de Lei n.º 98/X que lhe deu origem, de “garantir a defesa plena da liberdade sexual” e, com isso, alargando o âmbito do anterior art. 171.º do CP (decorrente da revisão pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15.03), que apenas punia actos exibicionistas.
Veio eliminar-se a lacuna legislativa que resultou da eliminação do crime de ultraje ao pudor, previsto no art. 231.º do CP de 1982, como foi reconhecido pela Unidade de Missão para a Reforma do Código Penal (acta n.º 11, de 30.01.2006), além de que, no tocante à sua tipificação, se suprimiu a referência a “palavrões”, passando a descrição típica a equiparar apenas os contactos sexuais não consentidos, embora sem poderem ser qualificados como de relevo (por exemplo os apalpões), aos actos de exibicionismo em sentido estrito, por se entender que têm o mesmo merecimento na perspectiva da tutela da liberdade sexual (acta n.º 12, de 13.02.2006).
O bem jurídico protegido com a incriminação é a liberdade sexual: - na dimensão negativa como significando genericamente a liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a esfera sexual da pessoa, - e, na dimensão positiva como liberdade de interagir sexualmente sem restrições (cfr. Maria do Carmo Silva Dias, “Repercussões da Lei nº 59/2007, de 4/9 nos “crimes contra a liberdade sexual” (Secção I do Capítulo V do Título I da Parte Especial do Código Penal), Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, CEJ, pág. 2).
Para o seu preenchimento e no que, ao caso vertente, interessa, necessário é, pois, que o arguido tenha praticado actos de contacto de natureza sexual, sendo que esse contacto é definido, segundo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, pág. 468, como a acção com conotação sexual realizada na menor BB, que não tem a gravidade do acto sexual de relevo. O contacto pode incluir o toque (com objectos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da menor BB, ou seja, conforme Maria do Carmo Silva Dias, ob. cit., pág. 13, é a prática, no corpo do sujeito passivo, de uma ofensa (acto) com significado sexual.
E, sem dúvida, que esse contacto, de cariz sexual, tem de assumir alguma gravidade, sob pena de injustificada intervenção do Direito Penal, ainda que o legislador não faça depender a sua prática de qualquer meio de execução específico. Haverá, pois, que apreciar da respectiva ressonância valorativa em face do bem jurídico que é ofendido, tanto quanto viável numa perspectiva objectiva que não se quede por critérios da menor BB, do agente ou de representações meramente morais” (acórdão do TRE de 15-05-2012, in sítio da Net do IGFEJ).
Vistas, assim, as citadas construções legais, doutrinárias e jurisprudenciais, ora, consultando os factos, verificamos que o arguido, consciente da licitude da sua conduta, por forma dolosa (livre voluntária e conscientemente), apalpando a zona do rabo e beijando a BB, que tinha quinze anos de idade, praticou o crime do artigo 170.º do Código Penal; e, obrigando a menor BB a chupar-lhe o pénis, pelo menos, três vezes, cometeu três crimes de violação, puníveis – não, nos termos do n.º 2, alínea a), do artigo 164.º do Código Penal, por se não demonstrar que o arguido usou os meios típicos que agravam a conduta, mas – nos termos do artigo 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 6, do Código Penal.”
Não se colocando, então, qualquer questão quanto ao enquadramento da conduta do arguido/recorrente, designadamente na prática do ilícito criminal p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, do Código Penal, vejamos qual o número de crimes cometidos pelo arguido.
Manifestamos, desde já, a nossa concordância com o decidido.
A impugnação do enquadramento jurídico encontrado no acórdão sob escrutínio prende-se com a questão de estarmos perante um concurso efetivo de crimes, ou, como pugna o recorrente, perante um único crime de trato sucessivo.
Apreciando.
Do Concurso de Crimes
Verifica-se uma pluralidade de infrações entre os apontados crimes praticados pelo arguido, que não obstante protegerem o mesmo bem jurídico distintos, consubstanciam um concurso efetivo de crimes – cfr. art. 30.º, n.º 1, do Código Penal.
Diga-se que, não há aqui lugar à figura dos crimes prolongados ou de trato sucessivo.
Na verdade, os crimes sexuais são muitas vezes atos isolados, fruto de circunstâncias irrepetíveis. É assim no caso de violações durante um assalto a uma residência, ou na sequência de um rapto, ou num encontro em local ermo.
Mas, outras vezes seguem um percurso que se prolonga no tempo, isto é, em vez de um ato ou de vários atos ilícitos, há uma atividade sexual ilícita.
É próprio da natureza humana a junção dos mesmos parceiros sexuais por períodos prolongados no tempo. O mesmo se passa, muitas vezes, nos crimes sexuais, sempre que as circunstâncias o proporcionam e a diferença entre estes e as uniões sexuais mais correntes entre as pessoas, é a circunstância de nos casos criminosos existir uma vítima, alguém a quem o agente retira [ou condiciona] a liberdade ou a autodeterminação sexual.
Na “atividade sexual criminosa” o agente aproveita-se sexualmente de outra pessoa que é acessível ao seu contato, por ser da família, ou do seu círculo de amizades, ou do seu local de trabalho, ou por outra circunstância similar, fazendo-o pela força, ou pela intimidação, ou pela incapacidade da vítima em se defender, por exemplo, por ser menor. Nesses casos, os crimes sexuais tendem a ter uma frequência por um período prolongado no tempo e a juntar os mesmos «parceiros», um deles vitimizado sucessivamente.
Ora, quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil a contagem do número de atos.
Quando não é possível proceder a essa contagem do número de atos, a doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.
Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.
O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).
Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.
A este propósito e em primeiro lugar, importa sublinhar que o agente comete tantos crimes de abusos sexuais de crianças quantas as pessoas que constranger a sofrer ou a praticar o ato sexual, atenta a natureza pessoalíssima do bem jurídico protegido – Cfr., Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 513.
Por outro lado, existe unidade típica de infrações sempre que o agente, num comportamento unitário, num mesmo contexto espácio-temporal e no quadro de uma mesma resolução, constrange a mesma vítima, à prática de vários atos sexuais de cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de objetos ou partes do corpo.
Sendo os vários atos praticados, ainda que, perante mesma vítima, em contextos espácio-temporais distintos, existirá pluralidade de crimes, na forma de concurso efetivo, desde logo por força do disposto no art.º 30.º, n.º 3, do Código Penal – Cfr., Figueiredo Dias, op. cit., págs. 731 e 753, Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., págs. 513 e 514.
Esta questão da unificação num só crime de trato sucessivo de uma pluralidade de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, cometidos durante determinado lapso de tempo contra a mesma vítima, depois de alguma hesitação, tem vindo a ser, ultimamente e de forma reiterada, decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça em sentido negativo(conceito exatamente deste modo mas nem por isso a nova referência se mostra substancialmente divergente. – (Cfr., por ex., Acórdãos do STJ de 04/05/2017, Proc. 110/14.7JASTB.E1.S1 e de 27/11/2019, Proc. 784/18.0JAPRT.G1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.jstj.).
Desde logo, porque pressupondo o denominado crime de ‘trato sucessivo’ [para além da reiteração de uma atividade ilícita, que poderá consumar-se em um ou mais atos, dos quais um só deles basta para preencher o respetivo tipo legal – como sucede, por ex., com o crime de tráfico de estupefacientes –, desenvolvida de forma essencialmente homogénea e durante um certo lapso temporal] unidade de resolução (que não única resolução), vem entendendo a jurisprudência do Supremo Tribunal que, tratando-se de crimes de abuso sexual de crianças, a aludida unidade resolutiva não se verifica.
E não se verifica porque, para tanto, seria indispensável a ocorrência, entre o mais, de uma conexão temporal que permitisse admitir que o agente executou toda a atividade criminosa no quadro de um dolo inicial que, por não ter sido renovado, é comum a todos os atos ilícitos, situação que, por regra e de acordo com os dados da experiência, maxime emocional, não acontece num caso com as especificidades do que se encontra em apreciação.
E depois porque a prática reiterada de atos ilícitos integradores dos mencionados crimes de violação e importunação sexual de menor, não derivando decididamente de uma situação exógena ao agente e facilitadora do seu sucumbir criminoso, mas antes só podendo ter sido provocada, buscada, e delineada pelo mesmo agente, nunca terá como efeito a diminuição da sua culpa, mas antes a sua agravação… para mais quando, como na situação em análise, está em causa uma menor de 15 anos de idade, e prima da companheira do arguido, que se deslocava a casa desta para ajudar nas tarefas domésticas, a quem se impunha o dever de não atentar contra a sua liberdade e autodeterminação sexual.
E ainda porque – se com a alteração introduzida ao artigo 30.º do Código Penal pela Lei n.º 40/2010, de 03.09 (que lhe aditou o referido número 3) teve o legislador em vista apartar a possibilidade de a pluralidade de crimes contra bens eminentemente pessoais ser punida como um só crime continuado – mal se compreenderia que, por via de uma ficção do julgador quanto à existência de um dolo inicial único não renovado abrangendo todas as atuações ilícitas sucessivamente tidas pelo agente, se viabilizasse a sua punição por apenas um crime de trato sucessivo, assim se defraudando o propósito do legislador (- Cfr. Acórdãos do STJ de 6/4/2016, Proc. 19/15.7JAPDL.S1, de 20/4/2016, Proc. 657/13.2JAPRT.P1.S1, de 18/1/2018, Proc. 239/11.3TALRS.L1, de 22/3/2018, Proc. 467/16.5PALSB.L1-S1, e de 23/5/2019, Proc. 134/17.2JAAVR.S1, que acompanhamos de perto, todos disponíveis em www.dgsi.pt.jstj; e de 16/1/2020, in CJ, ACSTJ, Ano XXVIII, tomo I, pág. 131.).
Todos estes considerandos de ordem doutrinal e jurisprudencial são aplicáveis ao caso vertente, situação que se verifica nos demais crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, como acontece, no que a nosso caso interessa, nas violações e na importunação sexual de menores.
Cada uma das condutas descritas nos pontos impugnados da factualidade provada foi levada a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.
Cada uma dessas condutas não constituiu um momento ou parcela de um todo projetado, nem uma conduta em que se tenha desdobrado uma atividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível, devendo, por isso, entender-se que, em relação a cada grupo de atos, existe, usando as palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (- Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág. 989 ).”
No caso dos autos foi possível contabilizar cada um dos atos praticados pelo arguido, relativamente a cada tipo legal de crime, pelo que não há lugar à aplicação desta figura, verifica-se uma pluralidade de infrações entre os apontados crimes praticados pelo arguido, que protegem bens jurídicos semelhantes, e, por isso, consubstanciam um concurso efetivo de crimes, tal como ficou decidido em 1ª instância.
Não se mostrando, pois, minimamente beliscado o enquadramento jurídico dos factos vertido no acórdão recorrido.
Improcedendo também esta questão colocada pelo recorrente.
*
Medida da Pena
O recurso interposto pelo recorrente, para além de ter visado a decisão sobre a matéria de facto, no caso de esta não obter procedência, como acontece, tem ainda como escopo a qualificação jurídica dessa factualidade. Na procedência da sua pretensão quanto a esta última questão, pugna no sentido de “que em consequência desse facto, seja proferido novo acórdão, que em cumulo jurídico, fixe uma pena de prisão que não exceda os cinco anos”.
Ou seja, o reexame da matéria de direito, mais concretamente a medida da pena aplicada, tinha como pressuposto a procedência da sua impugnação quanto ao número de ilícitos penais praticados pelo arguido.
Perante o naufrágio dessa sua pretensão mostrar-se-ia prejudicada a apreciação da medida da pena aplicada em primeira instância.
De qualquer forma, da sua equívoca posição é possível retirar que o recorrente pretende que seja reavaliada a medida dessa pena.
Limita, porém, essa parte do seu recurso à impugnação da pena única que lhe foi aplicada em resultado da operação de cúmulo jurídico das penas parcelares fixadas para cada um dos ilícitos penais perpetrados, entendendo que a mesma se mostra desproporcionada, excessiva, por ultrapassar a medida da culpa que se extrai da sua conduta.
Ao arguido era imputado a prática de crimes de violação agravado; e de importunação sexual agravados, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1 al. a) e nº 2, al. a) e 177.º n.º 6; 170.º e 177.º, n.º 6, todos do Código Penal.
Na 1ª instância foi decidido, condenar o arguido:
como autor de 3 (três) crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, e 177.º n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, por cada um..
como autor de 1 (um) crime de importunação sexual agravado, p. e p. pelos artigos 170.º e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão por cada um.
condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Abordemos então o direito aplicável nesta fase processual respeitante à determinação da medida concreta da pena única.
Em sede de determinação da pena concreta importa ter presente o disposto nos artigos:
- 40.º do CP, Com a epígrafe de "finalidades das penas (...)", aquele preceito legal dispõe que:
"1. A aplicação de penas (...) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa".
- 71.º do CP, O qual preceitua que:
“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) a intensidade do dolo ou da negligência;
c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta de ser censurada através da aplicação da pena”.
Tais disposições legais conferem ao intérprete e ao aplicador do direito critérios gerais, mais ou menos seguros e normativamente estabilizados, para efeito de medida da reação criminal, sendo que o preceituado sob o número 2 do indicado artigo 40.º constitui inegavelmente um afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito penal é estruturado com base na culpa do agente, constituindo a medida da culpa uma condicionante da medida da pena de forma a que esta não deve ultrapassar aquela.
A pena serve finalidades de prevenção geral e especial, sendo delimitada no seu máximo inultrapassável pela medida em que se dimensione a culpa.
«Só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas.
A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação de delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».
Mas «em caso algum pode haver pena sem culpa ou a medida da pena ultrapassar a medida da culpa», o que «não vai buscar o seu fundamento axiológico, (...), a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. (…) A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização» Cf. Figueiredo Dias in As Consequências Jurídicas do Crime, Edição Notícias Editorial, 1993, páginas 72 e 73.
“(...) 1) toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais” Cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, edição de 2011, página 84.
Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição de 1998, da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa – AAFDL –, pág. 25, escreve que «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
Por sua vez, Américo A. Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, no Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infrator apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.
Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
“A medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente (...). Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas. É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposto pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente” Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Penas, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano XII, n.º 2 (Abril/Junho de 2002).
Na mesma obra, esta autora apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.
Dito de outro modo, as penas são fixadas em função da culpa e da prevenção geral e especial.
Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa - e constituindo esta limite máximo da pena.
Através da prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela dos bens e valores jurídicos.
Com o apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências da socialização (ou ressocialização) do agente em ordem a uma sua integração digna no meio social Cf. neste sentido, entre muitos outros, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2009, Processo n.º 726/00.9SPLSB.S1 – 5.ª, relatado pelo Senhor Conselheiro Arménio Sottomayor, 10.02.2010, Processo n.º 217/09.2JELSB.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, 28.04.2010, Processo n.º 1103/05.0PBOER.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Fernando Fróis, ambos in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos /secção criminal, 30.11.2011, Processo n.º 238/10.2JACBR.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, 20.06.2012, Processo n.º 443/10.1GBLLE.E2.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Pires da Graça, e 06.02.2013, Processo n.º 593/09.7TBBGC.P1.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Sousa Fonte, in www.dgsi.pt/jstj.
Como enunciou o acórdão do Supremo Tribunal, de 28-04-2016, proferido no processo n.º 37/15.5GAELV.S1:
“A eventual intervenção correctiva do STJ no domínio do procedimento de determinação da medida da pena só se justificará se, for de concluir, face aos factos julgados provados, que o Tribunal Colectivo falhou na indicação de algum dos factores relevantes para o efeito ou se, pelo contrário, valorou outros que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, se tiver violado as regras da experiência ou se o quantum fixado se mostrar de todo desproporcionado em comparação com o que, para casos semelhantes, vem sendo decidido, nesta matéria, pelo STJ”.
Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se, no entanto, de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.
O limite mínimo da pena a aplicar é determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e seguintes.
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40.º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito.
Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo – total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena.
Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.” (Ibidem Ac. do STJ de 03/06/2020)
Vejamos agora as regras de punição do concurso de crimes
Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal:
“Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
E nos termos do n.º 2, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Segundo o n.º 3 “Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.
Estabelece o n.º 4: As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.
Naquele normativo consagra-se o chamado sistema da pena conjunta, obtido através de cúmulo jurídico inspirado essencialmente no princípio da cumulação.
Esse sistema radica num triplo procedimento.
Em primeiro lugar, deve determinar-se a pena concreta de cada um dos crimes em concurso.
Depois, estabelece-se a moldura penal do concurso, constituindo o respetivo limite inferior a mais elevada das penas concretas integrantes do mesmo concurso e o seu limite superior a soma de todas as penas concretamente aplicadas, não podendo exceder 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
Finalmente, determina-se a pena conjunta do concurso, em função das exigências gerais de prevenção e da culpa, sempre considerando os factos e a personalidade do agente.
Como escreve Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica”.
“Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou, tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” Cf. Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, edição Notícias Editorial, 1993, páginas 291 e 292.
Conforme refere José de Faria Costa, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3945, a págs. 326/327: “Seria redundante dizer-se que se prefere o sistema do cúmulo jurídico ao do material porque este último se revela de difícil exequibilidade, pois obrigaria o condenado ao cumprimento sucessivo das diferentes penas a que se chegou em cada uma das condenações. No entanto, embora esta razão seja inteiramente válida, aqueloutra pela qual o sistema do cúmulo jurídico se apresenta de maior justeza reside no facto de, com ele, se evitar que os factos penais ilícitos, após a aplicação das respetivas penas, ganhem uma gravidade exponencial porque vistos isoladamente ou compartimentados uns dos outros. Gravidade essa que, obviamente, se refletirá, em um primeiro momento, em uma culpa igual ou proporcionalmente grave e, em momento posterior, em pena de igual dosimetria à culpa. Isto é, a culpa reportada a cada facto ganha (...) um efeito multiplicador. Como consequência do que se acabou de dizer, sendo a culpa relativa a cada facto ilícito-típico, tal redundará na ultrapassagem do limite da culpa (...) podemos concluir que só o sistema do cúmulo jurídico é suscetível de ser dogmaticamente justificável porque é através dele que obtemos a imagem global dos factos praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global. Apenas efetuando (...) um exame dos factos em conjunto podemos perscrutar a ligação que os factos ilícitos isolados mantêm uns com os outros. Só através do cúmulo jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente e, dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não radica na sua personalidade, mas antes em fatores exógenos. (...) através do sistema do cúmulo jurídico a culpa é adequadamente valorada e, em consequência, a pena encontrada é, inquestionavelmente, mais justa”.
A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria.
Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes.
Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese, correspondente a um novo ilícito e a uma nova culpa (agora culpa pelos factos em relação), uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal.
Constitui posição sedimentada e segura no Supremo Tribunal de Justiça a de nestes casos estarmos perante uma especial necessidade de fundamentação, na decorrência do que dispõem o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal, e os artigos 97.º, n.º 5 e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em aplicação do comando constitucional ínsito no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, onde se proclama que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Como estabelece o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal “Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”, decorrendo, por seu turno, do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, e do disposto no artigo 375.º, n.º 1, do mesmo Código, que a sentença condenatória deve especificar os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 15.ª edição, pág. 277 (e a págs. 275 da 16.ª edição, de 2004, e pág. 295 da 18.ª edição, de 2007), a propósito do artigo 77.º, salientava que “na fixação da pena correspondente ao concurso entra como fator a personalidade do agente, a qual deve ser objeto de especial fundamentação na sentença. Ela é mesmo o aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, por força das coisas, carácter unitário”.
A punição do concurso efetivo de crimes funda as suas raízes na conceção da culpa como pressuposto da punição – não como reflexo do livre arbítrio ou decisão consciente da vontade pelo ilícito. Mas antes como censura ao agente pela não adequação da sua personalidade ao dever-ser jurídico penal.
Como acentua Figueiredo Dias em Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1983, págs. 183 a 185, “ (…) o substracto da culpa (…) não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (…). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena”. (Ibidem Ac. do STJ de 03/06/2020)
Regressando ao caso vertente
Tal como foi vertido no acórdão recorrido, na efetivação do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, de acordo com os critérios enunciados no n.°2 do citado artigo 77.°, do CP, a pena a aplicar terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.
Foram aplicadas ao arguido as penas parcelares acima apontadas, e que aqui damos por reproduzidas.
Essas penas variam entre a mais grave, que é de 3 (três) anos e 6 meses de prisão, e a soma de todas as penas parcelares aplicadas, que atingiria em cúmulo material um total de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses.
Em cúmulo jurídico destas penas parcelares veio a ser aplicada ao arguido a pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Vejamos.
No que respeita ao quantum da pena única de prisão em apreço aplicada ao arguido/recorrente, teremos de reponderar a factualidade apurada, nomeadamente os factos relativos aos ilícitos criminais perpetrados, as condições pessoais do arguido e a sua personalidade, a gravidade do ilícito global perpetrado e a conexão entre os factos concorrentes.
Nessa avaliação da personalidade - unitária - do arguido não poderemos deixar de ponderar o conjunto dos factos, o ambiente em que decorreram, a sua conexão intrínseca, sendo todos cariz eminentemente sexual, o curto período de tempo durante o qual se verificaram, a condição de menor da vítima, o aproveitamento de uma situação de aproximação quase familiar e de contacto frequente na casa daquele, a coação que exercia sobre a ofendida, e a sua inserção social, familiar e laboral, todo um conjunto de circunstâncias que nos conduzem a concluir não estarmos perante uma tendência para a prática deste tipo de ilícitos penais, mas sim um conjunto de circunstâncias pluriocasionais que, aliadas a uma personalidade com tendências libidinosas, a derivar para uma tara ou apetência para a prática deste tipo de ilícitos, a que não poderá deixar de se atender dentro da moldura penal conjunta.
Também será de ponderar o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do arguido, como exigência de prevenção especial de socialização.
O elevado grau de culpa com que o arguido atuou.
Sendo também bastante elevado o grau de ilicitude dos factos, e o impacto causado na personalidade, privacidade e determinação sexual da vítima.
As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da proteção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição – são muito elevadas, designadamente face ao tipo de crimes em questão e à frequência com que se vêm verificando na nossa sociedade.
As necessidades de prevenção especial avaliam-se em função da necessidade de prevenção de reincidência, de dissuadir o delinquente da prática de outros ilícitos e da necessidade de se auto ressocializar.
Na ponderação da fixação da pena única na decisão proferida fez-se constar:
“Assim, reflectindo sobre a gravidade dos factos e o quanto eles revelam a personalidade criminosa (libidinosa) do arguido, considerando, nomeadamente, o arco ascendente da sua idade e a prática dos factos num período de tempo relativamente concentrado e curto da sua vida, afigura-se-nos que a reiterada conduta do arguido terá sido devida a circunstâncias pluriocasionais que, confiamos, não voltarão a repetir-se, pelo que nos parece adequada e justa a pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, a qual – como soe dizer-se nesta instância – não nos parece nem tão longa nem tão breve, que possa por em causa a finalidade jurídico-criminal de restauração da validade das normas jurídicas violadas, ou fazer perigar o valor da reinserção do agente na comunidade, ou, de algum modo, diluir a indelével culpa que o arguido efectivamente tem.”
Ora no presente caso, verificamos que o arguido praticou os crimes num período curto de tempo, por forma temerária, abusiva, valendo-se da imaturidade sexual da menor, sem o mínimo respeito pela sua saúde, liberdade, privacidade e autodeterminação sexual, que de modo indelével condicionou, afetando a sua personalidade e auto estima, pelo que tal quadro de atuação se nos afigura, não obstante poder dever-se a uma mera pluriocasionalidade, mas, como se disse, revelando alguma tendência criminosa da sua personalidade para a prática deste tipo de ilícitos.
Apresentando no período da prática dos factos uma desconformidade com os valores que subjazem e enformam a nossa sociedade, um desvalor, um grau de culpa, que não poder ser menosprezado, antes pelo contrário, em termos de valoração, que terá de se repercutir na medida da censura pessoal que lhe tem de ser feita, com reflexos na medida da pena.
Tendo em conta a imagem global do conjunto factual em apreciação, entende-se que a pena única aplicada, de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, dentro da moldura legal aplicável supra referida realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Mostrando-se, contrariamente ao afirmado pelo recorrente criteriosamente aplicada, proporcionada e equilibrada, tendo em conta a culpa do agente e todas as circunstâncias do caso.
Não se mostrando violados quaisquer dos princípios e normas legais alegados pelo recorrente.
Pelo que, também nesta parte, improcede o recurso interposto pelo arguido.
Quanto ao montante arbitrado a título de indemnização, ao abrigo do disposto no art. 82º-A, do CPP, uma vez que a ofendida não deduziu qualquer pedido a este título, o que também é sintomático, nada cumpre dizer, uma vez que a pretensão formulada pelo arguido estava sempre dependente da sua propugnada absolvição, que não obteve provimento.
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III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs (art. art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Notifique
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
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Guimarães, 22 de outubro, de 2024
Os Juízes Desembargadores
Relator - José Júlio Pinto
1º Adjunto - Pedro Cunha Lopes
2º Adjunto – Fátima Furtado