I – São elementos constitutivos do contrato de mútuo: a) a entrega de dinheiro ou outra coisa fungível por parte do mutuante; b) a obrigação de restituição por parte do mutuário de outro tanto do mesmo género do que foi recebido, nomeadamente, quando está em causa o mútuo de dinheiro, da mesma quantia que foi entregue, acrescida de eventual remuneração;
II – Para lograr procedência numa ação fundada em contrato de mútuo ao autor/mutuante caberá provar não apenas a entrega ao mutuário de uma quantia em dinheiro, mas também a correspondente obrigação de restituição por parte deste último.
Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 4
Apelação
Recorrente: AA
Recorridos: BB e CC
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadoras Anabela Dias da Silva e Márcia Portela
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Os autores BB e CC, residentes na Rua ..., nº ..., 2º andar frente, Gondomar, intentaram ação declarativa comum contra o réu AA, residente na Rua ..., nº ..., 2º direito, ..., Gondomar, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 27.499,00€, acrescida dos juros legais vincendos desde a citação e até integral e efetivo pagamento.
Os autores alegaram, em síntese, ter emprestado esta quantia ao réu, que não a devolveu.
O réu, devidamente citado, apresentou contestação, na qual negou a existência de qualquer mútuo, tendo pugnado pela improcedência da ação. Pediu ainda a condenação dos autores como litigantes de má-fé.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.
Por fim, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e declarou a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre os autores e o réu em 1.6.2018 e, em consequência, condenou o réu AA a restituir aos autores BB e CC a quantia de 10.000,00€, acrescida de juros, à taxa de juros civis, desde a data da citação até integral pagamento.
No mais, a ação foi julgada improcedente.
O réu, inconformado com o decidido, interpôs recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.- A decisão de que ora se recorre não apreciou corretamente as provas produzidas, interpretou-as contraditoriamente, já que deu como provada matéria que deveria ter sido declarada não provada, designadamente uma das parcelas que os ora Recorridos alegam ter sido entregue a título de mútuo.
2.- Acresce que, para o Recorrente, a decisão também não efetuou uma fundamentação coerente da produção da prova, errando a sua decisão de direito e de facto, o que determinará ainda a reapreciação da prova gravada.
DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
3.- O Recorrente não se conforma, nem aceita que a matéria constante do ponto 7 tenha sido declarada como provada, porquanto existem meios probatórios suficientes que impunham decisão diversa.
A.- DOS DOCUMENTOS:
4.- Ora, à semelhança das restantes parcelas entregues, alegadamente, a título de mútuo, também aquele cheque emitido no valor de €10.00,00 teve em vista o pagamento de serviços de construção civil prestados pela sociedade A..., Unipessoal, Lda, de que o aqui Recorrente é o único sócio e gerente.
5.- Conjugando todos os documentos 15 e 16 da contestação (os quais não foram impugnados pelos Autores) e ainda do documento 3 da petição inicial, podemos concluir que o mencionado cheque que os aqui Recorridos referem ter titulado um mútuo, trata-se de um cheque emitido à ordem do ora Recorrente, o qual não é endossável.
6.- O que significa que, pese embora o ora Recorrente tenha procurado depositar o mesmo, de forma imediata, na conta bancária titulada pela sua sociedade, o que encontra correspondência com os manuscritos no verso de tal cheque (n.º da conta bancária da sociedade, identificação e assinatura do sócio-gerente), o que é certo é que tal possibilidade lhe foi vedada, pelo facto de o aqui Recorrido Varão ter emitido um cheque não endossável à ordem do aqui Recorrente.
7.- Assim, e em face de tal impossibilidade, o aqui Recorrente viu-se na contingência e necessidade de sacar o correspondente valor em numerário e proceder ao seu depósito na conta da sociedade, em ato contínuo (veja-se que o valor do cheque é sacado pelas 14h19 e o depósito em numerário na conta da sociedade do Recorrente ocorre pelas 14h21).
8.- De resto, apenas se acrescenta que a diferença de €10,00 entre os montantes de levantamento do cheque e do depósito na conta se traduz no valor das despesas inerentes a tal transação.
Sem prescindir,
B.- DOS DEPOIMENTOS PRESTADOS EM AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO:
9.- Tanto os Autores, como o Réu, prestaram depoimento e declarações de parte na sessão de audiência de julgamento ocorrida em 16/01/2024, os quais se encontram gravados no sistema áudio integrado nos presentes autos.
10.- Resulta do depoimento transcrito no corpo destas alegações recursórias que o Autor Varão confessa que foi gerente das empresas mencionadas pelo aqui Recorrente na sua contestação e, bem assim, que representava o seu filho e nora perante a sociedade A..., Lda., designadamente, no desenvolvimento das empreitadas contratadas e do pagamento das correspondentes faturas, mais tendo confessado que era o próprio quem realizava tais pagamentos.
11.- Contudo, no decurso do seu depoimento de parte, o aqui Recorrido Varão, ao ser instado pelo Mandatário do Recorrente, relativamente aos nomes que constam das contas, adotou duas posições diferentes:
a) Quando o Recorrente se defende, invocando que os pagamentos realizados pelo Recorrido Varão o foram para a conta da sociedade A..., de que o Recorrente é um mero movimentador por ser o seu gerente, o Recorrido Varão refere que é o nome do Recorrente que ali figura e que, por tal motivo, transferiu dinheiro a favor do Recorrente não para tal sociedade;
b) Já inversamente, e numa postura de abuso de direito, na vertente de “venire contra factum proprium”, quando figura o nome do Recorrido Varão em contas bancárias, designadamente, como o ordenante de transferências bancárias, o mesmo oferece-se dizer aquilo que é uma evidência, ou seja, que não é pelo facto de o seu nome surgir nos extratos que é ele o titular da conta, pois que a mesma pertence à sociedade de que ele é gerente e que é por tal motivo que o seu nome figura.
12.- Com efeito, o Recorrido Varão não poderia invocar é que, se forem sociedades por ele geridas, o surgimento do nome dele é uma mera decorrência de ser ele quem movimenta as contas bancárias da sociedade; mas quando se trata de sociedades geridas pelo aqui Recorrente, o surgimento deste significa que é uma conta própria dele e não da sociedade por ele gerida.
13.- Aliás, é com base neste argumento eivado de má-fé que o aqui Recorrido Varão procura justificar que, alegadamente, emprestou quantias ao aqui Recorrido, pese embora tenha sido confrontado com os extratos bancários das contas pertencentes à referida sociedade do Recorrente, as quais ilustram o destino de tais transferências, ou seja, que tais quantias ingressaram o património da sociedade detida pelo Réu, e não o património deste.
14.- Resulta do depoimento transcrito que a Autora mulher tinha um conhecimento muito circunscrito quanto aos empréstimos alegadamente efetuados e que constituem o objecto dos presentes autos, tendo a mesma declarado que os pagamentos realizados pelo seu marido respeitavam a negócios atinentes às obras realizadas pela sociedade detida pelo Réu, sendo que apenas a instâncias da sua mandatária, e interpelada a corrigir o seu depoimento espontâneo, é que a mesmo veio alegar que tal era uma suposição.
15.- Resulta do depoimento transcrito que o aqui Recorrente afirma, de forma perentória, que efetivamente recebeu as quantias mencionadas na petição inicial, mas que todas elas foram transferidas e/ou depositadas na conta bancária pertencente à sociedade que detém e que todas as quantias se destinaram a liquidar serviços de construção civil que o mesmo prestou para o Autor Varão, em representação das sociedades que o mesmo era gerente, ou então na qualidade de procurador do seu filho e nora.
16.- Aliás, todo o depoimento do Recorrente encontra respaldo em toda a documentação contabilística por si junta aos autos, bem como nos comprovativos de transferência e ainda do cheque que os aqui Recorridos juntaram com a sua petição inicial.
17.- Na verdade, é com base na conjugação da análise de toda essa prova documental que o Tribunal a quo deu como provado que as mencionadas quantias, à exceção do valor titulado por cheque, e cuja decisão aqui se impugna, foram liquidadas à sociedade detida pelo Réu e para pagamento dos serviços de construção civil que foram prestados.
18.- Salvo o devido respeito por melhor opinião, conjugando os documentos supra com o depoimento do aqui Recorrente, bem como com o depoimento dualista do Autor Varão e ainda com o depoimento da Autora mulher, o qual se mostra bastante vago e genérico, sempre o Tribunal a quo deveria ter dado como não provado o facto constante do ponto 7, o que se requer.
Por fim, e sem prejuízo do alegado supra,
19.- Por último, afigura-se ainda ao Recorrente que em face da alegação constante da petição inicial em contraponto com a factualidade provada, isto é, que, na verdade, todas as verbas que os Autores referiram tratar-se de empréstimos efetuados ao Réu, aliás, se trataram de pagamentos efetuados para a mencionada sociedade detida pelo Réu, em contrapartida dos serviços de construção civil que o mesmo prestou, então, ainda que o Tribunal a quo entendesse que a prova documental existente nos autos não era suficiente para determinar que aquela quantia de €10.000,00 titulada por cheque, ingressou no património da sociedade detida pelo aqui Recorrente, o que é certo é que o Tribunal sempre poderia se ter socorrido de presunções judiciais para concluir que, tal quantia, à semelhança das demais, não se tratou de qualquer mútuo, mas antes um pagamento por conta dos serviços de construção civil.
20.- As presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência (art. 349.º do CC), não são, em rigor, verdadeiros meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência”, ou, noutra formulação, “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade.
21.- Com efeito, atendendo à decisão que recaiu sobre a matéria alegada pelos Autores na sua petição inicial, e atendendo à demais prova carreada para os autos e, bem assim, os factos instrumentais apurados no decurso da audiência de discussão e julgamento, cremos que sempre os presentes autos, em última instância, reuniam todos os elementos necessários para que o Tribunal a quo, através de meios lógicos e baseado em ilações que o julgador poderia ter extraído, a partir de factos conhecidos, para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no artigo 349.º do Código Civil, designadamente, para dar como provado que aquela quantia de €10.000,00, à semelhança das demais quantias, ingressou o património da sociedade detida pelo Réu, e não o património pessoal daquele.
POR OUTRO LADO, E SEM PRESCINDIR,
II.- DO DIREITO:
22.- Subsumido o direito aos factos declarados provados e não provados, após a reapreciação requerida, entendemos que o Mmo. Juiz do Tribunal recorrido violou, na sua interpretação e aplicação, as seguintes disposições legais: arts. 1142.º e seguintes do Código Civil.
23.- Para concluir-se a existência de um contrato de mútuo é preciso que se verifiquem dois elementos constitutivos: a entrega de determinada coisa fungível ou determinada quantia em dinheiro e ainda a restituição da coisa ou da quantia a cargo do demandado, podendo ainda exigir-se a tradição da coisa e a sua aceitação.
24.- Com efeito, atendendo à prova carreada aos autos, podemos concluir que nenhuma quantia foi entregue ao aqui Recorrente, a título de mútuo, e que tal quantia ingressou no seu património, tendo o mesmo ficado obrigado a restituir tal montante aos ora Recorridos.
25.- O mútuo é um contrato real quoad constitutionem, exigindo-se, para se concluir, que o mutuante entregue ao mutuário a coisa mutuada. Tais quantias não foram entregues ao Réu.
26.- Para a procedência da ação fundada em contrato de mútuo (ainda que nulo por falta de forma) não basta ao credor a prova da entrega de determinada quantia em dinheiro, sendo mister ainda que o mesmo demonstre que o demandado estava obrigado a restituir a dita quantia nos termos acordados.
27.- Nada foi demonstrado em sede [de] prova sobre tal obrigação de restituição, apesar de na P.I. ter sido alegado que o Réu se havia obrigado a restituir a importância no final de 2018, tal não foi provado e nenhuma testemunha dos Autores, nem o próprio Autor varão, se pronunciou sobre tal matéria.
28.- Cremos que sempre cabia aos Autores demonstrarem que foram emitidas declarações de vontade convergentes à celebração de um contrato de mútuo, isto é, por um lado, que os Autores quiseram mutuar aquelas quantias naquelas datas e, por outro lado, que o Réu quis integrar tais quantias no seu património e geri-las como sua propriedade tratasse.
29.- Na verdade, ficou suficientemente demonstrado que jamais foi celebrado pelas partes um qualquer contrato de mútuo, mas sim que o Autor Varão realizou diversos pagamentos, cujos montantes integraram o património da sociedade detida pela Réu, por contrapartida dos serviços de construção civil que tal sociedade prestou.
30.- Em bom rigor, os pagamentos foram realizados para a sociedade A..., Lda., o que era do pleno conhecimento do Autor varão, já que tinha uma procuração dos seus filho e nora, e era ainda gerente de diversas sociedades que adjudicaram obras à sociedade A..., cujos pagamentos eram realizados para tal conta bancária.
Aqui chegados,
31.- Subsumindo a facticidade juridicamente, podemos concluir que jamais esteve em causa a celebração de um qualquer contrato de mútuo pelas partes, desde logo, porque os Autores não lograram demonstrar um acordo de vontades convergentes em tal sentido, como também nem sequer lograram demonstrar os elementos constitutivos de tal contrato, designadamente, que entregaram quantias ao Réu (resulta da factualidade provada e não provada, que as quantias ingressaram no património da sociedade de construção civil detida pelo Réu), e que o aqui Recorrente se obrigou a restituir tais quantias mutuadas nos supostos termos acordados.
32.- Pelo que o Tribunal a quo incorreu em erro na interpretação e aplicação do regime jurídico do contrato de mútuo, previsto aos arts. 1142.º e seguintes do Código Civil.
Pretende assim que a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a ação e, por via disso, absolva o aqui recorrente do peticionado.
Não foi apresentada resposta.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
I. Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
II. Preenchimento “in casu” dos elementos constitutivos do contrato de mútuo.
1) Em 10.04.2018, o autor marido transferiu a quantia de 1.500€ para a conta bancária do Banco 1..., SA, com o IBAN ....
2) Em 13.08.2018, o autor marido transferiu a quantia de 9.999€ para a conta bancária do Banco 1..., SA, com o IBAN ....
3) A conta bancária do Banco 1..., SA, com o IBAN ..., é titulada pela A... Unipessoal, Lda., representada por AA.
4) O réu é o único sócio e gerente da A... Unipessoal, Lda..
5) Em 2018 a A... Unipessoal, Lda., prestou serviços de construção civil às sociedades B..., Unipessoal, Lda., C..., Lda. e D..., Lda., tendo o autor marido sido gerente dessas empresas.
6) O autor marido efetuou os pagamentos mencionados em 1) e 2) à A... Unipessoal, Lda., em nome destas sociedades.
7) A 01.06.2018 os autores emprestaram, para que a restituísse, a quantia de 10.000€ a AA, tendo-o feito através do cheque n.º ..., do Banco 1..., SA.
8) O réu tem um filho que tem uma incapacidade permanente de 95%.
9) O réu passou por dificuldades económicas.
10) As quantias referidas em 1) e 2) foram empréstimos que os autores fizeram ao réu.
11) Os autores emprestaram ao réu, no final do ano de 2018, a quantia de 6.000€, em duas tranches de 3.000€ cada uma.
I. Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto
1. O réu, no seu recurso, principia por impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto no que toca ao seu nº 7 [A 01.06.2018 os autores emprestaram, para que a restituísse, a quantia de 10.000€ a AA, tendo-o feito através do cheque n.º ..., do Banco 1..., SA.], pretendendo que o mesmo seja havido como não provado, atendendo a que o cheque aí referido se destinava ao pagamento de serviços de construção civil prestados pela sociedade “A..., Unipessoal, Lda.”, de que este é o único sócio e gerente.
Neste sentido indica os documentos nºs 15 e 16 juntos com a contestação e o nº 3 junto com a petição inicial, que melhor corresponde ao nº 2, aludindo ainda ao seu próprio depoimento de parte/declarações, bem como aos que foram prestados pelos autores BB e CC, dos quais transcreve no corpo alegatório diversos excertos.
Uma vez que foram observados os ónus previstos no art. 640º do Cód. de Proc. Civil, ir-se-á reapreciar o ponto factual impugnado.
2. Procedemos assim à audição dos depoimentos/declarações indicados pelo réu/recorrente.
O autor BB, no seu depoimento de parte, disse que emprestou dinheiro ao réu AA, por várias vezes, porque este lho pediu por estar com muitas despesas com o filho deficiente. A instâncias do ilustre mandatário do réu disse depois que era ele que representava o seu filho e a sua nora nas obras contratadas à “A...”, porque, estando estes em Angola, tinha uma procuração deles para tal efeito. Mais referiu que foi gerente das empresas “B...”, “C...” e “D...” e que os pagamentos à “A...” foram feitos através das contas destas empresas e não da sua conta pessoal. Até fevereiro de 2018 providenciou sempre para que as contas com a “A...” estivessem em dia. Confirmou ainda que a “B...” intentou uma ação contra a “A...” por vícios, abandono de obra e prejuízos causados.
A autora CC, igualmente ouvida em depoimento de parte, disse que em 2018, no desenvolvimento da venda de um apartamento, o seu marido emprestou dinheiro ao AA em várias frações. Sabe que há uns cheques, umas transferências e 10.000,00€ também. Tudo foi para cima de 20.000,00€. Era para ajudar o Sr. AA, “para as obras dele”, o que mais adiante referiu ser uma suposição sua. Disse também que o acidente do filho do Sr. AA foi muito antes do empréstimo do dinheiro. Esclareceu ainda que todos os contactos havidos foram entre o seu marido e o Sr. AA, não tendo participado neles. Nada sabe de concreto sobre os negócios do seu marido.
O réu AA, ouvido em depoimento de parte e declarações, disse que o dinheiro que lhe foi entregue pelo autor se destinou a pagar faturas relacionadas com serviços de construção civil. Assim, os cheques que lhe foram entregues viriam a ser depositados na conta da empresa para pagar tais faturas, embora tenha admitido que era ele que movimentava essa conta. Referiu ainda que eram amigos “comerciais”, mas já não o são porque entretanto os autores moveram-lhe uma ação por defeitos e abandono de obra. No ano de 2018 faturou-lhes para cima de 300.000 euros, não sabendo esclarecer quais as obras em concreto a que se destinavam as referidas entregas. Disse ainda que pediu dinheiro emprestado ao Sr. DD (filho do autor), mas pagou-lho todo. Confirma que recebeu um cheque de 10.000 euros, também para pagamento de obras, que por erro não foi passado à “A...”, mas sim a AA. Quando foi ao balcão para depositar o cheque na conta da empresa, disseram-lhe que não o podia fazer porque estava “endossado” a AA. Então, levantou a importância respetiva e dois minutos depois depositou-a na conta da empresa.
3. O documento nº 2 junto com a petição inicial, que nas alegações de recurso por lapso se mostra identificado como sendo o nº 3, corresponde ao cheque com o nº ... que foi emitido pelo autor BB a favor do réu AA, com a data de 1.6.2018 e no montante de 10.000,00€.
No verso do cheque consta a menção “não endossável”, o número ..., a assinatura de AA seguida do seu número de cartão de cidadão e indicação da respectiva validade e o registo do seu desconto ocorrido no dia 1.6.2018, pelas 14h19m.
O documento nº 15 junto com a contestação corresponde ao comprovativo de um depósito à ordem da importância de 9.990,00€ feito em numerário na conta com o nº ... do Banco 1... titulada pela sociedade “A..., Unipessoal, Lda.”, estando ainda registado nesse documento que o depósito ocorreu às 14h21m do dia 1.6.2018.
O documento nº 16 junto com a contestação corresponde a um extrato bancário emitido pelo Banco 1..., referente à conta com o nº ... e ao período compreendido entre 1.6.2018 e 29.6.2018, do qual consta em 1.6.2018 o depósito da quantia de 9.990,00€.
4. O art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil diz-nos que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
A Relação, nesta reapreciação, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.
Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[1]
5. Na sentença recorrida, salientou-se que as declarações dos autores e o depoimento da testemunha DD, seu filho, foram no sentido de que todas as quantias entregues, depositadas ou transferidas para o réu se trataram de empréstimos pessoais, devendo ser restituídas, ao passo que o réu, no seu depoimento, em sentido diverso, sustentou que todas essas quantias se reportavam ao pagamento de serviços de construção civil que a “A...” havia prestado às empresas que o autor marido representava.
Ou seja, sobre a mesma realidade foram apresentadas duas versões totalmente díspares.
O Mmº Juiz “a quo” realçou depois, perante aqueles dois grupos de depoimentos/declarações, não ter resultado uma convicção ou evidência que permitisse, por qualquer motivo, atribuir mais valor ao afirmado por um desses grupos em detrimento de outro.
Considerando a seguir que as quantias de 1.500,00€ e de 9.999,00€ foram transferidas para a conta da “A...” e que o cheque, no montante de 10.000,00€, foi emitido pelo autor marido à ordem do réu AA, concluiu que relativamente a esta última importância, por se tratar de um cheque pessoal passado à ordem do réu e não se reportar a uma doação, este a deveria restituir.
Entendeu, pois, estar demonstrado o empréstimo pessoal pelo autor marido ao réu da quantia de 10.000,00€, mas já não das importâncias de 1.500,00€ e de 9.999,00€, isto porque quanto às duas últimas importâncias estas correspondiam a transferências bancárias efetuadas para a conta da “A...”.
Tal como também não considerou demostrado, por ausência de prova convincente nesse sentido, o empréstimo de 6.000,00€ pelos autores ao réu, em duas tranches de 3.000,00€.
6. Dispõe o art. 1142º do Cód. Civil que «mútuo é o contrato pela qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.»
Desta noção legal decorre que o contrato de mútuo pressupõe dois elementos constitutivos:
a) a entrega de dinheiro ou outra coisa fungível por parte do mutuante;
b) a obrigação de restituição por parte do mutuário de outro tanto do mesmo género do que foi recebido, nomeadamente, quando está em causa o mútuo de dinheiro, da mesma quantia que foi entregue, acrescida de eventual remuneração.[2]
Diz-nos o art. 342º, nº 1 do Cód. Civil que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
Porém, não cumprido este ónus, ou em caso de dúvida, a questão terá que ser decidida contra a parte onerada com a prova – cfr. arts. 346º do Cód. Civil e 414º do Cód. de Proc. Civil.
Neste contexto, aos autores, que invocaram um empréstimo efetuado ao réu, não basta que logrem provar a entrega de uma determinada quantia pecuniária, é-lhes ainda necessário demonstrar que sobre o réu impendia a obrigação de restituir tal quantia.[3]
7. A questão que então se coloca é a de saber se quanto à importância de 10.000,00€ se pode considerar provado que esta foi emprestada pelos autores ao réu AA com a obrigação de que este a restituísse, sendo certo que, na sentença recorrida, no tocante a todas as outras quantias se entendeu que a prova produzida não permitia concluir pela verificação de empréstimos.
Ora, como já atrás se assinalou, a prova da obrigação de restituição, como elemento constitutivo do contrato de mútuo, cabia aos autores.
Acontece que, a nosso ver e diversamente do que foi entendido pela 1ª Instância, essa prova também não foi feita quanto à dita importância de 10.000,00€.
Na audiência de julgamento a prova produzida apontou no sentido da existência de duas versões: de um lado, a dos autores, que defenderam tratarem-se as quantias entregues de empréstimos feitos ao réu, motivados por dificuldades económicas relacionadas com o seu filho deficiente; do outro, a do réu, que defendeu que tais quantias se destinavam ao pagamento de serviços de construção civil por si prestados.
No caso concreto do cheque de 10.000,00€ emitido, em 1.6.2018, pelo autor BB a favor do réu AA, verifica-se, face à prova documental constante do processo, que o mesmo continha a menção “não endossável”, tendo o seu valor sido levantado nesse mesmo dia, às 14h19m, pelo próprio.
Dois minutos depois – 14h21m – foi feito um depósito em numerário no valor de 9.990,00€ na conta nº ... do Banco 1... titulada pela sociedade “A..., Unipessoal, Lda.”.
Não sendo valorizável a diferença de 10,00€ verificada e mostrando-se plausível a explicação dada pelo réu/recorrente para essa pequena discrepância – despesas inerentes a tal movimentação bancária -, teremos que considerar que os referidos 9.990,00€, à semelhança das demais quantias, entraram na conta da “A...”.
Com efeito, a menção “não endossável” impossibilitava o imediato depósito do cheque na conta bancária titulada pela sociedade “A...”. Por isso, numa apreciação global dos factos em que não vemos motivo para fazer destrinça entre as várias quantias entregues pelo autor marido, compreende-se o caminho seguido pelo réu, levantando o valor correspondente ao cheque em numerário para logo de seguida proceder ao seu depósito na conta da sociedade.
Mesmo que a circunstância de o cheque ter sido emitido à ordem de AA e não da sociedade “A...” possa criar dúvidas quanto ao efetivo destino da quantia nele inscrita, tanto podendo corresponder a um empréstimo ao réu como a um pagamento de serviços prestados à empresa da qual este era o único sócio e gerente, temos como certo não ser possível dar como assente, tal como o fez a 1ª Instância, que o cheque corporizava um empréstimo ao réu com obrigação de restituição.
Convém salientar, de novo, que a prova dos elementos constitutivos do contrato de mútuo, onde se inclui a obrigação de restituição, incumbe aos aqui autores e, havendo dúvidas, relativamente ao preenchimento desses elementos, estas terão que ser decididas contra a parte sobre quem recaía tal prova, ou seja, contra os autores, conforme o impõem os arts. 414º do Cód. de Proc. Civil e 346º do Cód. Civil.
Deste modo, a impugnação da matéria de facto feita pelo réu/recorrente merece acolhimento, de tal modo que o nº 7 [A 01.06.2018 os autores emprestaram, para que a restituísse, a quantia de 10.000€ a AA, tendo-o feito através do cheque n.º ..., do Banco 1..., SA.] deve ser eliminado do elenco dos factos provados, passando a constar como não provado.
Com a alteração ocorrida na matéria de facto provada, da qual foi suprimido o seu facto nº 7, terá naturalmente que se concluir não estarem preenchidos os elementos constitutivos do contrato de mútuo, constantes do art. 1142º do Cód. Civil, isto é, a entrega de dinheiro ou outra coisa fungível por parte do mutuante e a correspondente obrigação de restituição por parte do mutuário.
Na verdade, da factualidade dada como assente, após a modificação nela efetuada, não decorre que os referidos 10.000,00€ tenham ingressado no património do réu/recorrente AA, a título de empréstimo, nem que este correspondentemente tenha ficado obrigado a proceder à sua restituição aos autores.
Deste modo, não se provando ter ocorrido um contrato de mútuo entre os autores e o réu, impõe-se a improcedência total da ação, com o consequente provimento do recurso interposto pelo réu e a revogação da sentença recorrida.
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Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo réu AA e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, que se substitui por outra, que, julgando improcedente a ação, o absolve da totalidade do peticionado.
Custas em ambas as instâncias, pelo seu decaimento, a cargo dos autores/recorridos.
Porto, 22.10.2024
Rodrigues Pires
Anabela Dias da Silva
Márcia Portela
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[1] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., págs. 823 e 825.
[2] Cfr., por ex., MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, Vol. III “Contratos em Especial”, 5ª ed., pág. 406; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., pág. 681; FRANCISCO MENDES CORREIA, “Código Civil Comentado III – Dos Contratos em Especial” (coordenação ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO), pág. 667; EVARISTO MENDES e SÍLVIA ESTEVES, “Comentário ao Código Civil”, Direito das Obrigações, Contratos em Especial”, Universidade Católica Portuguesa, pág. 604.
[3] Cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 24.9.2018, p. 552/15.0 T8FLG.P1 (JORGE SEABRA) e Ac. Rel. Coimbra de 19.6.2013, p. 1778/11.1TBVNO.C1 (FRANCISCO CAETANO), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.