DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
FALTA DE CUMPRIMENTO
OBRIGAÇÕES
PRESSUPOSTOS
Sumário

I - O preenchimento da previsão da al. b) do nº 1 do art. 20º do CIRE, isto é, que se verifica falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revela a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações exige o apuramento de factos passíveis de subsunção à facti species da norma, designadamente quanto à identificação das obrigações vencidas, quanto ao seu montante e antiguidade, às circunstâncias do incumprimento e à caracterização da situação económica do devedor, em ordem a que se possa aferir daquela impossibilidade.
II - Tal exigência não se satisfaz com a enunciação de afirmações genéricas e/ou conclusivas, parcialmente equivalentes ao teor da própria norma.

Texto Integral

PROC. Nº 3364/24.7T8VNG-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia -- Juiz 6





REL. N.º 907
Juiz Desembargador Relator: Rui Moreira
1º Adjunto: Juiz Desembargador João Proença
2º Adjunto: Juíza Desembargadora: Maria Eiró


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO



1 – RELATÓRIO

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Em acção interposta por AA foi declarada a insolvência de BB, com domicílio profissional na Rua ..., ..., Porto e último domicílio pessoal conhecido na Rua ..., habitação ...03, ... Porto.
Alegou ser credor da requerida e não conseguir ser ressarcido dos valores em dívida, bem como que a mesma está “em evidente situação de insolvência, sendo demandada em vários processos injuntivos”, não lhe sendo conhecido qualquer rendimento e, sendo detentora de um quinhão hereditário, alega ser ele insuficiente para a satisfação dos seus créditos.
A requerida foi citada e não contestou, pelo que foram dados por confessados os factos alegados pelo requerente.
Sucessivamente, foi proferida sentença que declarou tal insolvência.
É desta decisão que vem interposto recurso, pela devedora, que o terminou formulando as seguintes conclusões:
1. Deve a sentença a quo ser revogada, na parte em que, deu como confessados, factos pessoais, que versam sobre direitos indisponíveis que não admitem confissão nos termos do art.º 352 e 354 b) ambos do Código Civil;
2. No caso dos autos, o casamento, e a dissolução do casamento respeitam ao estado civil da pessoa, à extinção do estado de casado e à passagem ao estado de divorciado.
3. Não estamos a lidar com uma «coisa» em sentido jurídico, nos termos dos artigos 202.º e seguintes do Código Civil, quanto às quais a regra é a disponibilidade por parte do seu titular.
4. O estado civil da pessoa é assim, um bem relativo à personalidade, sendo estes bens, por regra, indisponíveis, razão pela qual jamais poderá o Tribunal a quo dar estes factos como confessados, pelo que deve ser alterada a matéria de facto quanto a esta matéria.
5. Não verificação dos pressupostos do art.º 20. n.º 1 alínea b) do CIRE, uma vez que, tendo em conta que o pedido é formulado por um terceiro, ao mesmo cabe, de acordo com o art.º 25.º do CIRE, além invocar a origem, natureza e montante do seu crédito, deve fornecer todos os elementos do activo e passivo do devedor (nr.º 1) bem como deve juntar todos os elementos de prova de que disponha (nr.º 2)
6. Não se verifica, e não se invoca, um quadro de suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, de falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações ou representa, um incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas abrangidas pela esfera de protecção da alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e não se verifica outra situação que se inscreva no conceito discussão.
7. Quanto à alegada, divida, a que corresponde uma “execução por alimentos”, processo …8/17.6T8…, Juiz 2 do Juízo de família e menores de …, o Recorrido nenhuma prova faz sobre a mesma que não seja apenas e tão só a alegação da sua existência, e a mera junção de um documento que nada diz, a não ser um “indeferimento ao requerido”, e onde se identifica uma acção executiva.
8. O Recorrido não alegou e sobretudo juntou prova, se sobre essa acção recaiu decisão judicial que comprove que esta obrigação pecuniária existe, é certa, liquida e exigível, existindo apenas por parte do Recorrido, uma manifestação de intenção, pela via judicial, de ser ressarcido por esses valores, não estando subjacente aos mesmos nenhuma decisão condenatória, e que diga-se desde já já mereceu apresentação de embargos e que a quantia peticionada no valor de €11.987,00, já se encontra acautelada nos autos;
9. Quanto à alegada dívida resultante de processo injuntivo, não atendeu o Tribunal a quo, que no requerimento de injunção junto aos autos, é invocada uma dívida de 2012, período em que Recorrente e Recorrida, eram casados, sobre o regime de comunhão geral de bens! O que não existindo uma decisão definitiva, uma vez que o facto de ter sido conferida força executória a essa injunção não a torna certa, liquida e exigível uma vez que a mesma pode, e será, contestada em sede executiva, com os mesmos fundamentos que podem ser oponíveis em fase de oposição à injunção, nos termos do art.º 729.º do CPC.
10. A Recorrente não tem dividas e os processos que constam na base de dados já se encontram liquidados na integra;
11. Não se verificam assim os pressupostos para que seja declarada a insolvência da Recorrente, com todos os efeitos nefasto e de forte impacto que os mesmos tem na sua vida;
12. Não procedendo mas sem prescindir invoca-se a nulidade da citação, efectuada em terceira pessoa em morada com a qual a Recorrente não tem qualquer relação quer de trabalho, quer de residência.
13. Facto corroborado pela posterior notificação com advertência da citação feita em terceira pessoa que se desconhece quem recepcionou e pela devolução da notificação da sentença, com a indicação de pessoa desconhecida naquela morada;
14. A nulidade da citação determina a nulidade de todo o processado após a petição inicial e caso se considera a invoca nulidade a citação deve ser efectuada para a seguinte morada: Avenida ..., sala ..., ... Matosinhos;
15. O Tribunal a quo considerou, um fotocopia não certificada, como documento válido e equiparado à certidão de nascimento, violando os preceitos legais estatuídos no art.º 23.º n.º 2 alínea d) do CIRE;
16. Os documentos, juntos aos autos, são fotocópias extraídas de um livro da Conservatória do Registo civil. Delas constam um carimbo (original) com os seguintes dizeres: “fotocopia não certificada” pelo que as mesmas não preenchem os requisitos de forma, não fazem prova plena nem quanto às declarações aí contidas nem quanto ao seu autor, para que pudessem considerar-se estarem preenchidos os requisitos formais dos documentos obrigatoriamente a juntar com a petição inicial, pelo que deveria a mesma ser sido indeferida.
17. Pelo que deveria ter operado o previsto no art.º 27 nr.º 1 alínea b) do CIRE, o indeferimento liminar, não tendo ocorrido, deve ser declarado improcedente o pedido de insolvência, por não terem sido corrigidos vícios sanáveis, nomeadamente os requisitos legais por não vir acompanhada dos documentos exigidos por lei.
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O recorrido apresentou resposta ao recurso, alegando a inadmissibilidade da impugnação da matéria de facto, dados os termos em que se mostra apresentada, bem como a falta de fundamento dos restantes argumentos.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado, com efeito suspensivo da liquidação e partilha da massa insolvente.
Cumpre apreciá-lo.
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Ambas as partes vieram juntar documentos: o apelado com a resposta ao recurso; a apelante em sede de contraditório a tal junção e, novamente, o apelado, também em sede de contraditório.
Tais documentos são relevantes em sede de apreciação de uma das questões suscitadas pela apelante e que carece de ser conhecida neste recurso: a falta da sua citação.
Pelo exposto, com fundamento no art. 651º, nº1 in fine, admite-se a junção dos documentos oferecidos.
Não assim, todavia, quanto ao requerimento do recorrido, de 11/10/2024, com o qual pretendeu pronunciar-se novamente sobre a litigância de má fé que lhe era imputada – o que já havia feito antes. Mais aproveitou para juntar novos documentos.
Tal articulado é inadmissível, pelo que nele se não atentará, sendo que os documentos que o acompanham se não mandam desentrenhar simplesmente por constituírem peças do processo de insolvência a que estes autos de recurso respeitam, estando, pois, disponíveis nesse mesmo processo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO
Não cabendo a este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, as conclusões formuladas apresentam-se sem ordem lógica, pelo que passamos a referi-las por ordem de precedência lógica:
- Se é nula a citação da requerida;
- Se foi oferecida uma cópia de uma certidão de nascimento que o tribunal deveria ter tido por ineficaz, determinando o indeferimento da insolvência;
- Se o casamento da apelante e a sua dissolução por divórcio não devem ser dados por provados, por ser inadmissível confissão quanto aos mesmos e inexistir outro meio de prova que os demonstrem;
- Se o requerente estava obrigado a fornecer todos os elementos do activo e passivo do devedor, o que omitiu, impedindo a verificação dos pressupostos da al. b) do art. 20º do CIRE;
- Se o requerente não fez prova do crédito a que respeita o processo …8/17.6…, Juiz 2 do Juízo de Família e Menores de …;
- Se a dívida resultante de processo injuntivo não justifica a declaração de insolvência.
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A apelante veio arguir a nulidade decorrente da falta de citação, afirmando não a ter recebido, já que o tribunal ordenou a sua citação num local tido por domicílio profissional, mas com a qual já não tinha qualquer contacto.
A citação realizada foi-o em 7 de maio de 2024, na Rua ..., ..., ... Porto, por correio recepcionado por um “…terceiro que se afigura chamar-se CC, portador do cartão de cidadão ...”.
Em 15 de maio de 2024, foi remetida notificação, para a mesma morada, com a advertência da citação não ter sido feita na própria pessoa, sendo que, compulsado o registo junto da CTT, verifica-se que a carta foi recepcionada, mas não há indicação de quem a recebeu, constando a informação de “por falha no PDA”.
Nestas condições, alega que “… não cuidou o Tribunal de remeter nova notificação de forma a aferir se a Recorrente havia sido efectivamente notificada.”
A sentença foi notificada para esta morada, o que foi recusado com a referência de o destinatário ser “desconhecido nessa morada”.
Alegou a apelante que a morada da Rua ..., onde foi operada a citação, não corresponde nem ao seu local de residência, nem ao seu local de trabalho, não conhecendo quem possa ter recebido a citação, da qual afirma jamais ter tido conhecimento.
Revelam os autos os seguintes elementos:
1 – Na petição inicial, a requerida foi referida como tendo domicílio profissional na Rua ..., ..., ... Porto e último domicílio pessoal conhecido na Rua ..., habitação ...03, ... Porto.
2 – Pesquisados dados pessoais sobre o domicílio da requerida, o sistema informou que, em 5 processos judiciais, a morada constante era a da Rua ..., habitação ...03, ... Porto.
3 – A citação realizada por correio registado foi dirigida à Rua ..., ..., ... Porto.
4 – O correspondente aviso de recepção foi assinado por CC, em 7/5/2024
5 – De seguida, em 15/5/2024, foi remetida carta, por correio simples, para a mesma morada, em cumprimento do disposto no art. 233º do CPC.
6 – Expedida, por correio registado, notificação da sentença para a morada da Rua ..., veio a mesma devolvida com a menção “Desconhecido em 2024-06-24”
7- Foram percebidas remunerações pela apelante, pagas por A... Unipessoal, com sede na R. ..., ..., Porto. (segundo a base de dados da Segurança Social, pesquisada no âmbito do processo executivo nº ...66/24.6T8PRT).
8- Tais remunerações foram recebias unicamente nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2024 (pesquisa operada junta da base de dados da Segurança Social, nos termos do documento junto pela apelante).
9 – No dia 7 de Dezembro de 2023, aquando da emissão do registo RNAVT, por Turismo de Portugal, consta o nome completo da Recorrente, bem como que esta detém a função de “Administradora” da sociedade A..., Lda, com sede na R. ..., ..., Porto (Documento nº 3, junto pelo apelado – Registo RNAVT – Registo Nacional das Agências de Viagens e Turismo– Turismo de Portugal)
10 - Em Setembro de 2024 a apelante continua registada como administradora da A..., Lda.,, com a sede indicada. (doc. nº 5, junto pelo apelado – Registo RNAVT nº …– Turismo de Portugal).
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O art.º 187º do C.P.C. dispõe, sob a al. a), que é nulo todo o processado depois da petição inicial quando o réu não tenha sido citado.
Sobre a falta de citação, prevê o art. 188º, na al. e) que há falta de citação quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável.
É, pois, exigência desta norma, que o destinatário da citação não tenha chegado a ter conhecimento do acto, mas desde que isso proceda de facto que não lhe seja imputável.
Descrevendo o regime da citação e as condições da sua eficácia, refere o Ac. do TRE de 7/11/2019 (proc. nº. 446/14.7TBABF-B.E1, em dgsi.pt): “A citação efectuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do acto, é equiparada à citação pessoal, presumindo-se, salvo prova em contrário, que o citando dela teve oportuno conhecimento (art.º 225.º, n.º 4 do CPC), tendo-se por efectuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de recepção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário (art.º 230.º, n.º 1 do CPC).
Não se olvide que o funcionamento das presunções que subjazem às disposições dos referidos art.ºs 225.º, n.º 4, 228.º, n.º 2 e 230.º, n.º 1 do CPC, só serão possíveis de ocorrer se a entrega da carta para citação, pelo distribuidor do serviço postal, a pessoa diversa do citando, cumpra todos os pressupostos formais dessa entrega, designadamente, a de ser feita nos locais referidos no art.º 228.º, n.º 1 do CPC. A carta para citação deverá ser endereçada para a residência ou local de trabalho do citando, mas se for entregue a terceira pessoa, também, esta deverá encontrar-se nos mesmos locais (residência ou local de trabalho do citando), exigência que se justifica, face às ilações de natureza substantiva que as carências de uma citação judicial são passíveis de acarretar na esfera jurídica da parte.
Na verdade, o próprio art.º 224.º, n.º 1 do CPC, sobre o lugar da citação, prevê que ela se possa fazer em qualquer lugar onde seja encontrado o destinatário do acto, o citando, na sua residência ou local de trabalho, pelo que a especificidade da citação feita em pessoa diversa, ao abrigo do art.º 228.º, n.º 2 do CPC, também, só será viável se o terceiro se encontrar na residência ou local de trabalho do citando. Com efeito, se o terceiro que recebe a carta de citação não se encontrar num dos referidos locais, a lei já não retira a ilação da sua verosímil entrega e consequente recebimento pelo destinatário, não ocorrendo, assim, as aludidas presunções.
Assim, na citação em pessoa diversa do citando, a lei estabelece, em ambos os preceitos, uma presunção juris tantum - presunção de que a carta de citação foi oportunamente entregue ao destinatário e de que este dela teve oportuno conhecimento - factos que a lei tem por apurados e que só cedem mediante prova em contrário por parte do interessado, nos termos do art.º 350.º, n.º 2 do Cod. Civil, ou seja, pelo convencimento jurisdicional de que, embora toda a regularidade formal do acto, a carta não foi oportunamente entregue ao citando, ou então, este não teve efectivo conhecimento da mesma, em qualquer dos casos, em circunstâncias devidas a factos que não lhe são imputáveis. E, só na medida em que forem ilididas as referidas presunções, só quando firmada a convicção bastante daqueles factos negativos (a falta de entrega ou de conhecimento, sem culpa do citando) é que se pode considerar verificado o vício da falta de citação, ao abrigo do art.º 188.º, n.º 1, al. e) do CPC. Sem esse convencimento consistente, na própria dúvida ou incerteza acerca do facto, a lei faz operar a presunção e, por conseguinte, considera a citação postal, efectuada em pessoa diversa, equiparada à citação pessoal, como feita e efectuada na própria pessoa do citando.”
Igualmente esclarecedor e em sentido semelhante, veja-se o Ac. deste TRP, de Tribunal da Relação do Porto de 11 Abril 2018, Processo nº 6418/12.9TBMAI-A.P1, disponível em jurisprudência.pt.
É perante o enquadramento legal que acaba de se descrever que cumpre discutir a alegação da apelante nos termos da qual “a morada para a qual foi remetida a citação não é a sua residência nem o seu local de trabalho, factos que são do conhecimento do Recorrido, uma vez que a morada da Recorrente consta em processos judiciais. (…). A Recorrente desconhece quem é a pessoa que recebeu a citação, não tem qualquer relação pessoal ou profissional com a mesma, e esta não lhe entregou qualquer correspondência nomeadamente a referente a estes autos. (…) isto acontece nomeadamente nos prédios de escritórios e serviços, que tem porteiros que se limitam a recepcionar cartas de destinatários que desconhecem e não tem como os contactar, como foi o caso nos presentes autos e que possivelmente em fase posterior confirmou que a pessoa indicada nessas missivas, a aqui Recorrente, não tem qualquer ligação com essa morada.”
Não bastando alegar a factualidade descrita, cabia à apelante fazer prova da mesma.
Para o efeito, juntou documentos de onde se extrai que só recebeu remuneração da A..., Lda, nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2024.
A A..., Lda tinha a sua sede na R. ..., ..., Porto. Porém, como se deve inferir da cessação da sua remuneração, a partir de Março teria a apelante deixado de ter contacto com essa empresa. Assim, quando foi feita a citação naquele local, na pessoa de um terceiro, em Maio de 2024, foi-o “…em local que já não correspondia ao seu local de trabalho…”.
Constata-se, todavia, que, não obstante a cessação de pagamento de qualquer remuneração depois de Março de 2024, pelos meses seguintes a ora apelante continuou a figurar como responsável pela administração da referida A...,Lda. Era-o ainda em Setembro desse ano, ou seja, era-o também em Maio e Junho, aquando dos procedimentos de citação, como o demonstra o registo dessa empresa no RNAVT. Com efeito, como acima se assinalou, no dia 7 de Dezembro de 2023, aquando da emissão do registo RNAVT, por Turismo de Portugal, consta o nome completo da Recorrente, bem como que esta detém a função de “Administradora” da sociedade A..., Lda, com sede na R. ..., ..., Porto. E em Setembro de 2024 a apelante continuava registada como administradora da A..., Lda.,, com a sede indicada.
Nos termos do art. 8º, nº 3, al. e) do D.L. 17/2018, de 8 de Março, (Estabelece o regime de acesso e de exercício da atividade das agências de viagens e turismo, transpondo a Diretiva (UE) 2015/2302), a alteração da identificação do gerente ou administrador integrante do registo deve ser comunicada ao Turismo de Portugal, através do RNAVT, no prazo de 30 dias. Ora nada foi alterado nesse registo, quanto ao relacionamento entre a apelante e a A..., Lda. Continuando ela, assim, a ser a administradora da referida empresa, com sede na Rua ..., teremos de concluir que a sede desta empresa corresponde a um seu local de trabalho. E mesmo que tal sede seja de natureza essencialmente virtual, não deixa de constituir um vínculo formal e essencial entre alguém identificado como administrador dessa sociedade e um tal local. A sede é, com efeito, um elemento fulcral de qualquer sociedade, sendo igualmente um dos elementos imprescindíveis para o RNAVT.
Por conseguinte, cumpre afirmar que a apelante não logrou demonstrar o facto que invocara como fundamento para ser ilidida a presunção constante do art. 230º do CPC.
Assim, em conclusão, não se conclui que tenha ocorrido a falta de citação da ora apelante, rejeitando-se a ocorrência da nulidade invocada.
Improcederá, assim, a apelação quanto a esta questão.
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A apelante veio arguir que o tribunal não poderia dar por provados factos respeitantes à sua condição pessoal – nascimento, casamento, divórcio - por não poderem resultar de confissão – no caso, confissão ficta resultante da falta de contestação – e por apenas ter sido oferecida uma cópia de uma certidão de nascimento, que deveria ter sido qualificada como ineficaz, determinando o indeferimento da insolvência.
É certo que o documento junto pelo requerente da insolvência, em 24/4/2024 constitui uma cópia não certificada do assento de nascimento da apelante, onde consta averbado o seu casamento e a respectiva dissolução por divórcio.
Com tal documento, instruiu a alegação constante da p.i. relativa à condição pessoal da requerida: que casara com o requerente em Requerente e Requerida 05 de Julho de 1997, tendo-se divorciado em 26 de Fevereiro de 2018.
Por sua vez, o tribunal deu por provada a factualidade alegada, nos termos da seguinte afirmação, que se transcreve: “Nos termos do artigo 30.º, n.º 5, do CIRE, por ausência de contestação, declaram-se confessados os factos alegados na petição inicial.”
É, assim, certo que, tal como alegado pela apelante o documento junto não constitui certidão do assento de nascimento, bem como que os factos inscritos no registo, relativos a direitos indisponíveis, não são passíveis de prova por confissão.
Por outro lado, nos termos do art. 23º, nº 2, al. d) do CIRE, a certidão do registo civil relativa à pessoa do devedor é um dos elementos que deve instruir a petição de insolvência.
A ausência de tais elementos, no entanto, não deve culminar num despacho de indeferimento, mas sim num convite ao suprimento da insuficiência, se tal for tido por necessário pelo tribunal. É o que dispõe a al. b) do nº 1 do art. 27º do CIRE.
No caso, todavia, o tribunal teve por suficiente o documento não certificado para prova dos factos referentes à condição pessoal da ora apelante, não tendo tido por necessário o convite à junção de uma certidão de nascimento. De resto, o documento em questão não é desprovido de força probatória, já que, com relevância para efeito do disposto no art. 387º do C. Civil, a própria Conservatória emitente do documento nele apôs carimbo atestando a sua natureza de fotocópia do original, apesar de não certificada. Dispõe tal regra que, nesse caso, a fotocópia tem o valor probatório da certidão.
Acresce a isto a gratuitidade da alegação da apelante: apesar de suscitar a questão, não vem alegar que qualquer dos elementos identificativos resultantes da fotocópia do assento de nascimento está errado ou foi considerado erradamente pelo tribunal ou que, sequer, tem qualquer influência no resultado da causa.
Com efeito, sendo caso disso, bem poderia a apelante obstar à força probatória desse documento, nos termos do art. 385º do C. Civil. Mas nada, a esse propósito, empreendeu.
Por todo o exposto, nas circunstâncias do caso, a junção de uma fotocópia não certificada do assento de nascimento da ora apelante, emitida pela Conservatória do Registo Civil, é prova adequada dos elementos de identificação da insolvente, não devendo determinar o indeferimento da petição da insolvência, nem tão-pouco a necessidade de apresentação da correspondente certidão.
Os elementos de identificação constantes do assento de nascimento da apelante resultam, assim, demonstrados pela fotocópia do mesmo que foi junta aos autos, e não da confissão ficta da insolvente.
Improcede, por isso, a apelação também quanto a esta questão.
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Mais alega a apelante que o requerente estava obrigado a fornecer todos os elementos do activo e passivo do devedor, o que omitiu, impedindo a verificação dos pressupostos da al. b) do art. 20º do CIRE. Afirma:”… é inepta a Petição Inicial apresentada pelo recorrida, pois não fundamenta devidamente o pedido de Insolvência, e não permitiria nunca o Tribunal a quo, declarar, com base nos factos alegados, a insolvência da Recorrente.”
Nos termos do art. 20º, nº 1, do CIRE pode um credor – como é o caso dos autos – requerer a insolvência de um devedor quando se verifique uma qualquer das seguintes hipóteses ali previstas.
No caso, releva unicamente a hipótese prevista na respectiva al. b), por ser aquela a que o tribunal recorrido subsumir a situação sub judice: “Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”
A este propósito, ainda que por simples remissão para a factualidade descrita na petição inicial e sem especificação da matéria a que se reportou, constata-se que a sentença recorrida terá assentado necessariamente nos seguintes pressupostos de facto:
1 - A requerida deve ao requerente a quantia de €11.987,00, correspondentes a metade das despesas devidas a título de alimentos a prestar aos filhos e que o requerente suportou;
2 - O requerente intentou uma execução especial de alimentos, que corre os seus termos sob o n.º …8/17.0…, no Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial de … - J2.
3 - Depois do divórcio, o requerente continuou a pagar despesas da Requerida e a emprestar valores em numerário, o que gerou dívidas que ascendem ao valor de €14.800,00.
4 - Para ser ressarcido desses valores, o requerente deu entrada de uma injunção, que correu termos sob o n.º …99/22.9YIPRT, no Balcão Nacional de Injunções, a que foi aposta a fórmula executória, que constitui título executivo.
5 - Não é conhecido qualquer rendimento à Requerida.
É certo que o requerente também alegou que:
A - A requerida é detentora de um quinhão hereditário, de valor pouco significativo e insuficiente para satisfação dos seus créditos, decorrente de herança, cujo património permanece, há vários anos, indiviso.
B - A Requerida tem faltado sistematicamente ao cumprimento das suas obrigações, sendo que o montante de crédito e a sua antiguidade, bem como o circunstancialismo do incumprimento, revelam a sua situação de insolvência
C - O incumprimento continuado e reiterado das obrigações pecuniárias assumidas, perante o Requerente, remonta há, pelo menos, 5 anos.
Todavia, estas afirmações que vêm de enunciar-se sob as als. A, B e C não consubstanciam a descrição de qualquer factualidade, pois que têm natureza totalmente conclusiva.
Com efeito, a afirmação de que o quinhão hereditário numa herança em que a requerida é interessada é de valor pouco significativo e insuficiente para satisfação dos seus créditos nada nos esclarece sobre o património da mesma. Para ser útil, o facto em questão deveria revelar o tipo de bens e provável valor desse quinhão hereditário, para que, em momento ulterior, o tribunal pudesse aferir da sua relevância ou irrelevância na situação económica da requerida.
As afirmações descritas sob as als. B) e C) são ainda mais conclusivas: a da al. B) limita-se à reprodução da regra legal usada pelo tribunal para determinar a insolvência: não são descritas as obrigações incumpridas, a sua localização temporal, quaisquer circunstancialismo, referente ao incumprimento; a da al. C), identicamente, não identifica as obrigações incumpridas nem a sua inserção temporal.
Conclui-se, pois, que o teor de tais afirmações é totalmente imprestável para o diagnóstico da situação económica da requerida, em ordem a apurar se a mesma se encontra em situação de insolvência.
Nestas circunstâncias, a matéria apurada restringe-se à identificação dos valores devidos pela requerida ao requerente: um proveniente de despesas surgidas no âmbito da sua obrigação de prestação de alimentos aos filhos, e que se encontra em cobrança numa acção executiva; outro proveniente do pagamento de despesas por conta da requerida e de empréstimos em numerário, que o requerente afirma ter concentrado num processo injuntivo a que foi aposta a fórmula executória, que constitui título executivo.
Todavia, o crédito assim resultante, ligeiramente inferior a 27.000,00€, não é de valor tal que permita conclui de imediato e sem mais, que a requerida jamais o poderá satisfazer.
Por outro lado, não se conhecem as circunstâncias em que surgiram tais créditos, a antiguidade e causa das parcelas que os integram, eventuais causas para o seu incumprimento que permitam aferir as circunstâncias deste em ordem ao preenchimento dos pressupostos da norma da al. b) do nº 1 do art. 20º do CIRE. Esta conclusão é ainda potenciada pela circunstância de que nem foi apurado que a insolvente tivesse quaisquer outras dívidas vencidas e em incumprimento, para além das duas referidas de que é credor o ora apelante, de quem se divorciara.
Alegou a apelante que, nestas circunstâncias, a própria petição deveria ter sido liminarmente indeferida.
Entende-se, todavia, não ser passível de censura a decisão do tribunal de ter admitido o prosseguimento dos autos sem rejeição liminar em face de tal carência fáctica, eventualmente por entender que as afirmações conclusivas sempre poderiam vir a ser densificadas em momento ulterior, ao abrigo do princípio do inquisitório prescrito no art. 11º do CIRE.
Todavia, o que se constata a posteriori é que nenhuma outra factualidade adveio aos autos, por qualquer via, que tenha permitido dotar o processo da factualidade em falta.
De resto, para este efeito, não cumpre valorar qualquer outra factualidade que possa ter advindo aos autos por efeito do curso do próprio processo de insolvência, pois o objecto do recurso é a decisão proferida em face dos seus próprios pressupostos.
Cumpre, pois, concluir – em termos que parcialmente respondem positivamente às duas últimas questões identificadas como integrando o objecto do recurso – que a matéria apurada não permite a conclusão de que a falta de pagamento das duas dívidas identificadas, ambas tituladas pelo mesmo credor, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de a requerida satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Consequentemente, entendendo este tribunal de recurso não se preencher a previsão da al. b) do nº 1 do art. 20º do CIRE, contrariamente ao afirmado na sentença em crise, cumpre revogá-la e decretar a improcedência da acção de insolvência, absolvendo-se a requerida do que contra si vinha pedido.
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Suscitou-se a necessidade de apreciação da conduta processual da requerida, quanto à arguição da falta da sua citação, por se ter admitido poder vir a configurar litigância de má fé.
Verifica-se que a requerida, tendo contra si a presunção de ter sido citada num local correspondente a local de trabalho, por se dever presumir que lhe foi entregue o expediente postal ali deixado para o efeito, não logrou elidir essa presunção. E isso porquanto não logrou convencer o tribunal de que, tal como afirmava, deixara de se deslocar pessoalmente a esse local.
Apesar de não ter logrado tal convencimento, o que funcionou contra si por efeito legal da presunção, certo é que também se não provou o contrário e, assim, que ela tenha faltado à verdade e lançado mão de um expediente processual cuja falta de fundamento conhecia.
Por isso, não se condenará a apelante como litigante de má fé.
Da mesma forma, a dedução, pelo requerente, da sua pretensão, apesar de não ter merecido acolhimento, não revela uma efectiva consciência da respectiva falta de fundamento. Pelo contrário, verificou-se que o mesmo mantém créditos sobre a requerida, sem prejuízo de isso não revelar a situação de insolvência alegada. No mais, limitou-se o apelante a pronunciar-se a propósito de questão relativa à nulidade decorrente de falta de citação, que a apelante invocou e sobre a qual também se pronunciou sucessivamente. E, quanto a essa matéria, veio a ser-lhe reconhecida razão.
Por conseguinte, também se não identificam pressupostos para a respectiva condenação como litigante de má fé.
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Resta, em conclusão, afirmar o provimento da presente apelação, com o que, revogando-se a decisão recorrida, se declarará a improcedência da acção de insolvência, absolvendo-se a requerida do que contra si vinha pedido.
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Sumário:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder provimento à presente apelação, com o que revogam a sentença recorrida que decretara a insolvência de BB, e declaram a improcedência da acção, absolvendo a requerida do que contra si vinha pedido.

Custas pelo apelado.

Registe e notifique.


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Porto, 22 de Outubro de 2024
Rui Moreira
João Proença
Maria Eiró