DESISTÊNCIA DO PEDIDO
AÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
QUOTA
ALIENAÇÃO
Sumário

Numa acção de divisão de coisa comum, é o autor livre de desistir do pedido ainda antes de citados todos os réus, sendo irrelevante que na génese da sua desistência esteja a prévia alienação da quota de que alegava ser titular.

Texto Integral

Proc. nº 5040/21.3T8MTS.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 3




REL. N.º 911
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Márcia Portela
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira



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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO



1 – RELATÓRIO

AA, veio intentar acção especial de divisão de coisa comum contra:
BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO,
alegando ter adquirido 2/9 no prédio rústico de lavradio e bravio, com a área total de 2000 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º...21/20081003 da Freguesia ... e inscrito na matriz da União de Freguesias ..., ... e ... sob o artigo ...28, prédio esse onde os demais casais de réus adquiriram também quotas de 2/9 e de 1/9.
Mais alegou que desde há muitos anos o terreno se encontra fisicamente dividido de acordo com aquelas proporções, estando individualizadas as fracções de cada um, tendo cada um dos RR. edificado habitações na parcela respectiva.
Entendendo que é viável a divisão do terreno, segundo um projecto de loteamento que o Município venha a determinar – sob pena de o prédio ser qualificado como bem indivisível – e não pretendendo manter-se na comunhão, formulou o autor os seguintes pedidos: “… termos em que deve a presente acção ser recebida e, considerando-se provada a divisibilidade do bem, ordenada a constituição de loteamento e adjudicação dos lotes na proporção do que caiba a cada uma das partes, conforme venha a ser determinado após exame pericial ao imóvel e aprovação camarária, imputando-se os custos de tal constituição de loteamento e custos proporcionalmente a cada uma das partes na medida da sua propriedade e benefício, ou, supletivamente, caso seja considerada a indivisibilidade do bem, seja ordenada a venda do mesmo e ordenada a repartição do produto da venda aos proprietários na medida do seu direito, com todas as necessárias e legais consequências.”
Empreendida a citação dos RR., veio essa tarefa a revelar-se problemática, por verificação do prévio falecimento de alguns deles e por se verificar que a ré OO era beneficiária de uma situação de acompanhamento de maior, carecendo de ser citada na pessoa da respectiva acompanhante, o que, de per si, se revelou igualmente problemático.
Entretanto, por requerimento de 6/6/2024, o autor veio declarar desistir de todos os pedidos formulados na acção.
Por sentença de 13/6/2024, foi homologada a desistência do pedido, tendo sido julgado extinto o direito que o autor pretendia fazer valer.
Nessa mesma data, porém, EE juntou requerimento com oposição à desistência do pedido, alegando que o autor, por escritura de 7/5/2024 vendera a outrem os 2/9 do direito de propriedade sobre o prédio a dividir, devendo a sua desistência ser qualificada como litigância de má fé.
Por despacho de 20/6, o tribunal declarou nada ter a decidir, por se encontrar esgotado o seu poder jurisdicional.
Veio, então, a 3/7, o mesmo EE interpor recurso da sentença proferida, que terminou formulando as seguintes conclusões:
“I- Como questão prévia ao presente recurso, é entendimento do recorrente que a sentença recorrida viola o disposto no n° 3 do artigo 3° do Cód. de Proc. Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa.
II- Na verdade, dispõe o n° 3 do art° 3.° do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem...”
III- Ora, a não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do artigo 195ºn.º 1 do CPC.
IV- Assim, antes de proferir a decisão o juiz deve conceder às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre todas as questões, ainda que de direito e de conhecimento oficioso, sendo proibidas as decisões surpresas.
V- No caso vertente, o aqui recorrente foi notificado aos dias 06-06-2024 do requerimento de desistência dos pedidos pelo requerente,
VI- não obstante, o tribunal não cuidou de fazer cumprir o princípio do contraditório, atravessando com a sentença (que ora se recorre) aos dias 13.06.2024, de forma apressada e antes de transcorrido o prazo de pronuncia do aqui recorrente e das restantes partes.
VII-Ainda assim, no dia 13.06.2024 o aqui recorrente usou da sua faculdade de se pronunciar e dentro do prazo do exercício do seu contraditório, quanto ao requerimento de desistência de pedidos, apresentando dois requerimentos o primeiro com a refª citius 49192357 e o segundo com a ref. citius 49195011,
VIII- Que foram “apreciados” por despacho de 20-06-2024 “ Ref.ª 39332848, 39333328 e 39387099: Nada a determinar porquanto, com a prolação da sentença proferida a 13.06.2024, encontra-se esgotado o poder jurisdicional deste tribunal (art.613.º n.º 1 CPC). Notifique.” IX-o tribunal recorrido ao decidir a questão desistência dos pedidos pelo requerente por sentença proferida a 13.06.2024, ainda a decorrer o prazo do exercício do contraditório das partes (dos 10 dias), violou o princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisão-surpresa,
X- Razão pela qual, se está in casu, perante uma nulidade que influiu na decisão da causa, sendo que tal omissão infringe os princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, devendo por isso, declarar-se a nulidade processual em apreço.
XI- Por outro lado, o aqui recorrente veio acusar aos autos e por requerimento de 13.06.2024 prova documental que comprova que o autor abandonou a veste de proprietário do imóvel em discussão nos autos porquanto a 07 de Maio de 2024, no Cartório sito na Rua ..., ... ., em ... (são ... ) ... e ..., perante a Notária Dra. PP celebrou escritura de compra e venda do imóvel prédio rústico composto por lavradio e bravio, denominado “esposada” sito em ... da Freguesia ... no concelho ..., descrito na CRP Matosinhos sob o numero ...21, e registado na proporção de dois nonos pela inscrição Ap. ..., de cinco de Agosto de mil novecentos e noventa e quatro, inscrito na matriz sob o art.º ...28 da União de Freguesias ..., ... e ..., com o valor patrimonial de 2.20€,
XII-tal acto notarial de aquisição é anterior ao requerimento da desistência dos pedidos pelo requerente.
XIII-A desistência é, pela sua natureza, um acto do autor/requerente, detendo este o poder discricionário de desistir.
XIV-A desistência da instância equivale à absolvição da instância.
XV-A desistência do pedido é igualmente um acto unilateral do autor que implica o abandono, ou melhor, a renúncia à pretensão que o autor formulara.
XVI-A validade da confissão, desistência ou transacção é chancelada por uma decisão (despacho) com força e autoridade de sentença (de mérito) –a sentença homologatória –, cujo dictat condenatório ou absolutório tem de ser plenamente conforme à vontade expressa (declarada) pelas partes no termo ou documento habilitante, que não em função do direito material (objectivo) que, em princípio, se aplicaria aos factos provados.
XVII- o art. 290º, nº 3 do Cód. Proc. Civil impõe ao juiz o dever de examinar se a desistência do pedido é válida (ou enferma de algum vício de invalidade), quer pelo seu objecto (natureza disponível ou indisponível e a licitude do seu objecto), quer pela qualidade da parte que nela interveio (poderes do desistente).
XVII- dos autos resulta prova documental – escritura pública – demonstrativa que o requerente já não dispõe de legitimidade processual para exercício daquela pretensão, pois de acordo com o art.º 30 do CPC, a legitimidade processual representa sempre uma posição da parte em relação a certo processo em concreto melhor, em relação a certo objecto do processo, à matéria que nesse processo se trata, à questão de que esse processo se ocupa. Mas não pode afastar-se do interesse directo em demandar ou do interesse directo em contradizer a que se refere o nº 1 do mesmo artigo.
XVIII-E apesar da desistência dos pedidos ser livre não foi realizada formalmente por quem tinha legitimidade
XIX- A desistência do pedido pelo Requerente apresentada a 06.06.2024 é inválida, quer quanto ao seu objecto, quer quanto à qualidade do desistente, o que devia obstaculizar a sua homologação.
XX- Razão pela qual, se está in casu, perante uma nulidade da desistência que influiu na decisão da causa,
XXI-O tribunal a quo ao proferir sentença homologando a desistência do pedido formulado por quem não legitimidade para renunciar a um direito que já não lhe pertence violou, assim, o preceituado no artigo 291 n.º 3 do CPC, o dever da gestão processual, cfr. art.º 6º n.º 2 do CPC, a legitimidade processual, cfr. art.º 30º CPC e o direito de exigir divisão dos demais comproprietários, cfr. art.º 1412º e 1413º do CC.
Nestes termos e no mais de direito deverão V.ª Ex.ª julgar procedente o presente recurso e em consequência revogar sentença que ora se recorre, com as inerentes consequências legais, fazendo-se assim INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!”
O autor apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida, além de invocar ser extemporânea a arguição da nulidade da sentença nesta fase de recurso.
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O tribunal rejeitou a verificação da invocada nulidade, afirmando que a mesma, a ter ocorrido, sempre teria de ter-se por sanada por não ter sido arguida em tempo. Sucessivamente, admitiu o recurso como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, haverá de discutir-se se é passível de apreciação a ocorrência da nulidade decorrente da falta de contraditório prévio à decisão recorrida e, nesse caso, se ocorre tal nulidade e suas consequências.
Sucessivamente, sendo caso disso, haverá de decidir-se se o autor poderia ainda desistir do pedido, apesar de ter alienado antes disso a sua quota no prédio cuja divisão peticionava.
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É incontroverso que a violação do contraditório consubstancia uma nulidade secundária, à luz do disposto no art. 195º do CPC, por privar uma das partes da possibilidade de dar o seu contributo para a decisão que veio a ser proferida. O contraditório constitui um princípio essencial do processo civil, como resulta do nº 3 do art. 3º do CPC e a sua inobservância é, pelo menos em regra, uma circunstância apta a influir na decisão. Por isso, preenchendo-se a previsão do nº 1 daquele art. 195º, a omissão do contraditório devido tende a redundar numa nulidade que, segundo o nº 2 da mesma norma, determina a anulação dos actos subsequentes que dele dependam.
O meio adequado à arguição de uma tal nulidade é, todavia, alvo de discussão na doutrina e na jurisprudência, pois que apesar de o art. 630º, nº 2, do CPC prever expressamente a admissibilidade de recurso para as decisões que comportem a violação do princípio do contraditório, o regime de impugnação previsto nos arts. 195º e seguintes sustenta claramente a máxima segundo a qual das nulidades se reclama, sendo dos despachos que se recorre.
Em qualquer caso, vem sendo admitida a arguição da nulidade por via de recurso ao abrigo de diversos argumentos, por se ter por necessária uma resposta processual a tal interesse da parte.
Assim, refere-se em algumas decisões que a nulidade deve ser passível de arguição por via de recurso quando esteja coberta por uma decisão judicial que lhe sobrevenha e no âmbito do recurso interposto desta.
Todavia, como esclarecem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anot. 4ª ed, pg. 405, esse não é caso de uma decisão que não aprecia a infracção, simplesmente lhe sucede e a pressupõe.
Noutras, acolhendo doutrina proposta por autores como Abrantes Geraldes (Recursos no Novo CPC, 2013, pg. 23) e Miguel Teixeira de Sousa (https://blogippc. blogspot. com/ 2019/03/jurisprudencia-2018-188.html) a nulidade processual inquina a decisão ulterior, que incorre em excesso de pronúncia porquanto o tribunal não a deveria ter produzida na situação de infracção processual em que se encontrava: “Todo e qualquer recurso tem por objecto uma decisão; Sendo assim, o objecto do recurso nunca pode ser uma nulidade processual cometida na instância recorrida, mas apenas o reflexo dessa nulidade na decisão impugnada; aliás, cabe recordar que a nulidade processual pressupõe que a mesma influa no exame ou decisão da causa (art. 195.º, n.º 1, CPC), pelo que não há nulidade processual sem haver reflexo nesse exame ou nessa decisão; Logo, a decisão-surpresa impugnada é nula por excesso de pronúncia, porque, tendo omitido a audição prévia das partes, conhece de matéria que, nessas circunstâncias, não podia ter conhecido.”
Tal construção traduz, porém, um esforço para que se assegure a apreciação, por tribunal superior, da nulidade ocorrida, pois que o nº 1 do art. 615º do CPC (causas de nulidade da sentença), nas suas várias alíneas, tem por objecto a forma e o conteúdo da sentença, isto é, do acto em si mesmo, e não as circunstâncias, designadamente processuais, a que a mesma sobreveio.
Em qualquer caso, tal como se percebe destas propostas, importa é que o regime processual assegure um meio adequado à apreciação daquilo que a parte qualificou como nulidade no processo decisório, designadamente por violação do princípio do contraditório e que, logicamente, a verificar-se, não deixa de inquinar a decisão que lhe sobreveio. E isso tanto mais quanto se considere que, embora impropriamente, o tribunal a quo recusou conhecer da nulidade invocada, alegando a extinção do seu poder jurisdicional em razão da sentença proferida. Com efeito, a extinção do poder jurisdicional verifica-se em relação ao conteúdo da sentença e não à nulidade arguida sobre o procedimento que a precedeu (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anot., nota 8, pg. 405).
Entendemos, pois, em linha com a generalidade da jurisprudência que se vem pronunciando sobre a questão (cfr. ac. do TRP de 29/1/2024, proc. nº 2803/19.3T8PNF-B.P1 e jurisprudência aí citada) que, construindo-se a decisão recorrida sobre um procedimento que comporte uma nulidade processual passível de apreciação em face do disposto nos arts. 195º e 630º, nº 2 do CPC, pode a própria nulidade ser arguida em sede de recurso dessa decisão, pois que nesta se projecta a infracção, à luz do disposto no nº 2 do art. 195º do CPC.
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Cabendo, então, conhecer da nulidade invocada, torna-se óbvio que a mesma se verificou.
Com efeito, tendo sido apresentado, pelo autor, requerimento de desistência do pedido, veio a sentença recorrida a apreciá-lo, deferindo essa pretensão, antes de qualquer dos RR. ter tido oportunidade de se pronunciar. O que aconteceu com o recorrente, que veio oferecer oposição a tal pretensão no próprio dia da sentença, mas em momento subsequente ao da sua prolação.
Verifica-se, pois, uma nulidade por violação do princípio do contraditório, imposto no art. 3º, nº 3 do CPC. Tal nulidade, nos termos do art. 195º, nº 2 do CPC, determina a nulidade da sentença, pois que é, por natureza, passível de influir na decisão da causa ao levar a que o tribunal decida com atenção à posição assumida por uma das partes e sem sequer conhecer ou se pronunciar sobre questões colocadas a propósito, pela outra parte.
Este reconhecimento da ocorrência da nulidade arguida acarreta a conclusão de que que a sentença recorrida padece, subsequentemente, da nulidade invocada, por efeito do nº 2 do art. 195º do CPC.
Todavia, esta conclusão não determina o regresso dos autos ao tribunal recorrido, para a prolação de nova decisão.
Com efeito, nos termos do art. 665º, nº 1 do CPC, importa conhecer ainda do objecto da apelação, o que, no caso dos presentes autos, é absolutamente possível porquanto, no âmbito do próprio recurso – onde se repetem as razões da oposição à decisão de homologação da desistência do pedido oportunamente oferecida – se materializou o contraditório que deve preceder a decisão sobre a validade e eficácia do acto de desistência do pedido, validade e eficácia essas que são, em suma, o objecto da apelação.
Cabe, por isso, passar a ponderar o mérito dos argumentos à luz dos quais o apelante defende que ao autor, ora recorrido, não pode ser reconhecido o direito a desistir do pedido na presente acção.
Como acima se referiu, o autor, alegando ser dono de uma quota de 2/9 no prédio de que são comproprietários também os réus, com diversas quotas de 2/9 e de 1/9, veio requerer a divisão deste ou, se o prédio for considerado indivisível, a sua venda. As causas e circunstâncias da compropriedade e da utilidade da divisão do prédio são irrelevantes para a questão que nos ocupa.
Por sua vez, o apelante, réu e co-herdeiro de uma outra das quotas no prédio, pretende que ao autor não seja reconhecido o direito a desistir do pedido, por já não ser titular da sua quota, por a ter vendido a outrem em momento anterior ao da formulação da desistência do pedido. E comprovou-o juntando a escritura de venda de tal direito correspondente a 2/9 da propriedade do imóvel.
Apesar de fazer apelo a uma diversidade de figuras e conceitos – falta de legitimidade para a desistência, nulidade de desistência que influi na decisão da causa, violação do dever de gestão processual, perda do direito de exigir a divisão – constata-se que o ora apelante assenta a sua oposição num único facto: ter o autor alienado o seu direito, não sendo já dele titular quando veio desistir do pedido. Assim, por não ser titular do direito, não poderia intervir nos autos para dispor dele, como exige o art. 30º do CPC, para a propositura da acção.
Acontece, porém, que o raciocínio que tem de se fazer é precisamente ao contrário: embora não tenha de o justificar, designadamente informando da alienação do direito que pretendia fazer valer na acção, ao desistir do pedido o que o autor vem provocar é que o tribunal se abstenha de reconhecer o direito que fazia valer na acção, declarando a sua extinção na respectiva esfera jurídica. O que, de alguma forma, vem a coincidir com a alegação do apelante, embora determinando efeitos diferentes dos pretendidos por este.
Com efeito, essa circunstância não afecta a legitimidade do autor para a causa. Cessará, é certo, a coincidência entre a legitimidade material e a legitimidade processual. Porém o legislador entendeu como adequado prolongar esta última, numa solução que é corrente designar-se por legitimidade extraordinária (Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anot., vol. I, pg. 298). É o que decorre do art. 263º, nº 1 do CPC: “No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.”
Neste contexto, tal como se prevê nos arts. 283º, nº 1 do CPC e 286º, a desistência do pedido é livre e pode ter lugar em qualquer altura. Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (ob. cit., nota 2 ao art. 285º, pg. 577) a desistência do pedido conforma um “…negócio de autocomposição do litígio sobre a situação jurídica (material) que é objecto do pedido, a qual, quer existisse, quer não, anteriormente, é objecto dum negócio que opera como um facto extintivo, precludindo a questão da sua existência e conformação anteriores A subsequente sentença homologatória é, por conseguinte, proferida perante uma realidade jurídica que o autor livremente alterou na pendência da instância.”
Em suma, como explicam estes autores, a desistência do pedido preclude qualquer decisão sobre se a situação jurídica anteriormente invocada pelo autor existia, qual o seu conteúdo e se sofreu qualquer alteração. Simplesmente determina o seu reconhecimento, que o tribunal se limita a homologar, de que o direito que pretendia fazer valer não existe mais, não havendo de prosseguir a acção em ordem ao seu reconhecimento.
Daí não poder acolher-se a tese de que o autor, por ter deixado de ser dono da quota de 2/9 do prédio, deixou de ter legitimidade para a desistência da acção.
Note-se, por fim, que não está em discussão a natureza disponível do direito à divisão do prédio cujo direito de propriedade se mostra fragmentado e distribuído por diferentes titulares,; nem tão pouco se a extinção do direito dada por verificada é definitiva ou temporária, designadamente por cinco anos, à luz do nº 2 do art. 1412º do C. Civil.
O que está em causa na decisão recorrida é a verificação de que o autor não tem o direito que pretendia fazer valer na causa, porquanto ele próprio vem provocar que tal direito não lhe seja reconhecido.
Por isso, perante tal desistência, não pode ela ter-se senão por válida e eficaz.
Por todo o exposto, por ser inequivocamente válida e eficaz a desistência do pedido homologada pelo tribunal através da sentença recorrida, não sendo sequer controversa a disponibilidade do direito em causa, só pode confirmar-se esta mesma sentença, com o que se há-de negar provimento à presente apelação.
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Sumário:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento à presente apelação, na confirmação da decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


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Porto, 22 de Outubro de 2024

Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira

1º Adjunto: Juíza Desembargadora Márcia Portela – [Declaração de voto da Sra. Juíza Desembargadora Márcia Portela, 1º adjunto: - Entendo que a nulidade por violação do princípio do contraditório, configurando nulidade secundária, nos termos do artigo 195.º CPC, deveria ter sido arguida perante a 1.ª instância, não podendo ser conhecida em sede de recurso por não consubstanciar nulidade de sentença.].


2º Adjunto: Juiz Desembargador: Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira