I - Só a ausência de qualquer fundamentação ou a sua completa ininteligibilidade, determina a nulidade da sentença.
II - Por outro lado, igualmente nula é a sentença quando o juiz não conhecer de algum pedido, causa de pedir ou exceção, mas, já não é nula se algum dos argumentos esgrimidos pelas partes não for apreciado.
III - Na ação de regresso entre avalistas, o devedor que cumpriu tem o ónus de alegar e provar os pressupostos desse direito, ou seja, a satisfação do primitivo crédito para além da parte que lhe competia e os condevedores, nessa mesma ação, têm o ónus de alegar e provar todos os meios de defesa próprios e comuns.
IV - A relevância da factualidade alegada deve ser aferida em função deste enquadramento, de tal modo que aquela que não a revista, mesmo que julgada, não deve ser reapreciada em sede de recurso de apelação, sob pena da prática de um ato inútil.
V - A prolixidade que conduz ao agravamento da taxa de justiça deve revestir-se de gravidade. Ou seja, esta é uma medida excecional, porquanto, por um lado, não pode coartar-se às partes a liberdade de expressão, que naturalmente é variada na forma de retratar a realidade, mas, por outro lado, não lhe podem ser consentidos abusos que onerem a contraparte, os demais intervenientes e, de um modo geral, todo o sistema de justiça com custos desproporcionados em relação ao concreto objeto do processo e à natureza e complexidade das matérias que nele se discutem.
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Adjuntos: Anabela Andrade Miranda;
Maria da Luz Teles Meneses de Seabra.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto,
I- Relatório
1- AA e BB intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC, DD e EE, pedindo que estes sejam condenados a pagarem-lhes, a qualquer um deles e solidariamente, a quantia de 24.000,00€, acrescida dos juros de mora vencidos a partir da data da citação até integral pagamento.
Baseiam este pedido, em resumo, na circunstância de serem titulares do direito a reaver dos RR. a aludida quantia, uma vez que, na sequência do aval de uma livrança-caução por todos (AA. e RR.) subscrita, acabaram por pagar ao Banco 1..., S.A., em resultado do acordo a que (os AA.) com o mesmo chegaram e depois da insolvência da avalizada, a quantia de 40.000.00€, cabendo, portanto, aos RR. o valor peticionado.
2- Contestaram os RR. rejeitando a referida pretensão, quer porque a dívida que lhes é imputada está prescrita, quer porque a aludida instituição de crédito atuou em manifesto abuso de direito, quer ainda porque a atuação dos AA. em todo o processo não se pautou por comportamentos de lealdade e correção, ignorando, inclusive, como foi determinado o valor em dívida.
Pedem, assim, por estas razões sumariamente expostas, a sua absolvição do pedido.
3- Os AA. responderam pugnando pela improcedência das exceções invocadas pelos RR.
4- Instruída e julgada a causa (depois de outras vicissitudes processuais sem interesse para este recurso), foi, a final, proferida sentença na qual se julgou a presente ação procedente e se condenaram os RR. a pagarem, solidariamente, aos AA. a quantia de 24.000,00€, acrescida dos juros de mora vencidos a partir da data da citação até integral pagamento.
Foi ainda decidido aplicar “às partes a taxa agravada nos termos do n.º 7 do artigo 530º, do Código de Processo Civil, conjugado com o n.º 5 do artigo 6º, do RCP (Tabela Anexa I – C)”.
5- Inconformados com esta sentença, dela recorrem os RR., terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“A- Da análise do segmento dos “FACTOS PROVADOS”, constante da sentença, ora recorrida, impugnam-se os factos provados e inscritos nas alíneas D-), E-), F-), G-), H-), I-), J-), K-) e L-), todos eles, com base no mesmo fundamento; sendo que o M. JUIZ “A Quo” ao decidir como decidiu, gerou, assim, a nulidade das decisões, nulidade consubstanciada nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC, que desde já se requer;
A respetiva fundamentação está plasmada em todo o articulado das alegações, mais especificamente no título I- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA, e subtítulo A- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE OS FACTOS PROVADOS, que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.
B- Da análise do segmento dos “FACTOS NÃO PROVADOS”, constante da sentença, ora recorrida, impugna este segmento na sua totalidade; sendo que o M. Juiz “AQuo” ao decidir como decidiu, gerou, assim, a nulidade da decisão, nulidade consubstanciada nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC, que desde já se requer;
A respetiva fundamentação está plasmada em todo o articulado das alegações, mais especificamente no título I- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA, e subtítulo B- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE OS FACTOS NÃO PROVADOS, que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.
C- Da análise do segmento da “FUNDAMENTAÇÃO DIREITO”, constante da sentença, ora recorrida, impugna-se a decisão sobre “A VIOLAÇÃO POR PARTE DOS AUTORES DO PRINCÍPIO DA BOA FÉ”; sendo que o M. Juiz “A Quo” ao decidir como decidiu, gerou, assim, a nulidade da decisão, nulidade consubstanciada nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC, que desde já se requer;
A respetiva fundamentação está plasmada em todo o articulado das alegações, mais especificamente no título III- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO, bem como, no título I- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA; que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.
D- Da análise do segmento da “FUNDAMENTAÇÃO DIREITO”, constante da sentença, ora recorrida, impugna-se a decisão sobre a fundamentação de direito, referente ao facto dado como provado, inscrito na alínea J-), constante do segmento dos “FACTOS PROVADOS”, cujo conteúdo se transcreve, assim:
“NESTES AUTOS RESULTOU PROVADA QUE EM 1 DE OUTUBRO DE 2018, FOI CELEBRADO O ACORDO JUNTO AOS AUTOS COMO DOC. Nº 7 E CUJO TEOR AQUI SE DÁ POR REPRODUZIDO, MEDIANTE O QUAL O Banco 1... MANIFESTA A SUA ACEITAÇÃO EM RECEBER DOS AA., OS €40.000,00 PARA EFEITOS DE EXTINÇÃO DA DÍVIDA, CONSIDERANDO-SE DESSE MODO, INTEGRALMENTE PAGO;”;
Sendo que M. Juiz “A Quo” ao decidir como decidiu, gerou, assim, a nulidade da decisão, nulidade consubstanciada nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC, que desde já se requer;
A respetiva fundamentação está plasmada em todo o articulado das alegações, mais especificamente no título I- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA, e subtítulo A- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE OS FACTOS PROVADOS, bem como no título III- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO, que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.
E- Da análise do segmento da “FUNDAMENTAÇÃO DIREITO”, constante da sentença, ora recorrida, impugna-se a decisão sobre “A INVOCAÇÃO DE ABUSO DE DIREITO À ATUAÇÃO DO Banco 1...”; sendo que o M. Juiz “A Quo” ao decidir como decidiu, gerou, assim, a nulidade da decisão, nulidade consubstanciada nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC, que desde já se requer;
A respetiva fundamentação está plasmada em todo o articulado das alegações, mais especificamente no título III- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO, que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.
F- Da análise do segmento da “FUNDAMENTAÇÃO DIREITO”, constante da sentença, ora recorrida, impugna-se a decisão sobre: “A APLICAÇÃO ÀS PARTES DA TAXA AGRAVADA NOS TERMOS DO N.º 7 DO ARTIGO 530º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, CONJUGADO COM O N.º 5 DO ARTIGO 6º, DO RCP (TABELA ANEXA I – C)”; sendo que o M. Juiz “A Quo” ao decidir como decidiu, gerou, assim, a nulidade da decisão, nulidade consubstanciada nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC, que desde já se requer;
A respetiva fundamentação está plasmada em todo o articulado das alegações, mais especificamente no título III- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO, que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.
G- Da análise de toda a sentença, ora recorrida, detetou-se que a atuação do M. Juiz “A Quo”, se pautou, por “OMISSÃO DE PRONÚNCIA”, no que se refere, especificamente, ao “Contrato de Penhor Específico sobre depósitos a prazo, no valor de € 100.000,00, constituído pela A... S.A e celebrado com o Banco 1..., S.A”, sendo que, se verificou uma omissão total, não o discriminando, nem como facto provado, nem como facto não provado, com a consequência de ausência total, de fundamento de facto e de direito; temos que, o M. Juiz “A Quo” ao decidir como decidiu, gerou, assim, a nulidade da decisão, nulidade consubstanciada nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1 alínea d) do CPC, que desde já se requer;
A respetiva fundamentação está plasmada em todo o articulado das alegações, mais especificamente no título IV- DAECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO, que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais.
H- Da análise de toda a sentença, ora recorrida é claro que o “Contrato de Penhor Específico sobre depósitos a prazo, no valor de € 100.000,00, constituído pela A... S.A e celebrado com o Banco 1..., S.A”, tinha como função substituir a dívida dos avalistas que assinaram a livrança aqui em causa.
A respetiva fundamentação está plasmada em todo o articulado das alegações, mais especificamente no título I- DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA, que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais”.
Terminam pedindo que se conceda provimento ao presente recurso e se anule a sentença recorrida, devendo o Tribunal recorrido proceder a um novo julgamento.
6- Os AA. responderam pugnando pela rejeição da pretendida alteração da matéria de facto e pela improcedência da apelação.
7- Recebido o recurso nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la.
1- O objeto dos recursos é delimitado, em regra e salvo designadamente as questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC)].
Assim, observando este critério, cinge-se o objeto deste recurso a saber se:
a) A sentença recorrida padece das nulidades que os Apelantes lhe imputam;
b) Deve haver lugar à modificação da matéria de facto impugnada pelos Apelantes e, na afirmativa, quais as respetivas consequências jurídicas, nos planos por aqueles assinalados;
c) Não deve haver lugar à aplicação da taxa de justiça agravada.
2.1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
A) Em Janeiro de 2001, Autores e Réus prestaram, todos em conjunto, aval numa livrança de caução subscrita pela sociedade, B..., Ldª, pessoa coletiva nº ..., da qual os cinco eram sócios.
B) O referido título de crédito foi entregue ao Banco 1... para garantia do contrato de crédito, sob a forma de garantia bancária número ..., pelo valor de 99.759,58€, prestada pelo dito Banco a favor da sociedade C..., SL.
C) A referida garantia bancária veio a ser acionada pela mencionada beneficiária da mesma, a sociedade, C..., SL, tendo sido demonstrado judicialmente, no âmbito do Proc. nº 2307/04.9TVPRT, que correu termos na 1ª secção de Execução J2, da Instância Central da Comarca do Porto, já em sede de recurso, com decisão transitada em julgado, a obrigação de pagamento por parte do banco junto daquela entidade.
D) Nessa senda, o banco, após o cumprimento da sua obrigação perante a C... SL, conseguiu ver-se ressarcido de parte do valor pago àquela credora, com recurso à execução do Contrato de Penhor Específico, sobre depósitos a prazo constituído pela A..., S.A..
E) Não obstante tal liquidação, ainda ficou em débito, o montante de 49.752,42€.
F) Em 14 de Março de 2018, o banco enviou missiva, aos avalistas, Autores e Réus, visando a interpelação admonitória destes, para pagamento do valor em débito até ao dia 23/03/2018, tendo o A. AA recebido carta de igual teor.
G) Perante o teor da carta, os Autores, de forma a evitarem a instauração de qualquer processo judicial, por parte do Banco, para cobrança coerciva da dívida, encetaram negociações com aquele, pretendendo apurar o exato valor em dívida e qual o benefício que poderiam esperar, caso estivessem na disponibilidade de liquidar o mesmo de imediato.
H) Lograram então os Autores, obter do Banco 1..., a aceitação da redução do valor em dívida para 40.000,00€ (quarenta mil euros) na condição de ser imediatamente liquidado, o que motivou os Autores a efetuar o depósito de tal quantia por conta da dívida, ainda que tal não fosse acompanhado da outorga do respetivo acordo, em simultâneo, o que só virá a ocorrer mais tarde, tendo os AA. a expectativa de que alguns dos Réus assumisse igualmente a sua obrigação, solidária, diga-se, de pagar tal quantia junto do Banco.
I) No cumprimento das formalidades exigidas, o Banco 1..., em 20/07/2018, enviou nova carta a todos os avalistas, aqui Autores e Réus, informando de que iria preencher a livrança de caução, entregue e avalizada por aqueles, então preenchida pelo montante de 50.978,92€, correspondente ao valor da dívida (capital, juros vencidos e demais acréscimos) com vencimento em 31/07/2018, conforme melhor se afere das cartas remetidas aos AA.
J) Em 1 de Outubro de 2018, e não tendo o Banco 1..., recebido qualquer contacto de nenhum dos RR., segundo informou aos AA., veio por estes a ser celebrado o acordo junto aos autos como doc. nº 7 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, mediante o qual o Banco 1... manifesta a sua aceitação em receber dos AA., os 40.000,00€ para efeitos de extinção da dívida, considerando-se desse modo, integralmente pago.
K) Em simultâneo à assinatura de tal transação extrajudicial, o Banco 1... entregou aos aqui AA., o original da mencionada livrança caução, preenchida pelo valor que o banco havia indicado na missiva de 20/07/2018, não obstante terem, AA. e o aludido banco, chegado a acordo pelos 40.000,00€ (idem), tido como bastante satisfatório, atenta a redução que o banco acabou por aceitar.
L) Em 11/12/2018, os AA., pretendendo exercer o direito de regresso pelo valor por eles pago a mais, através dos Mandatários, interpelaram os Réus para procederem ao pagamento da sua quota-parte, na proporção de 1/5 dos referidos € 40.0000,00 liquidados, ou seja, 8.000,00€ cada um, no prazo de 5 dias.
Como acabámos de ver, nas conclusões do seu recurso, os Apelantes suscitam a nulidade da sentença recorrida a propósito de todas as temáticas que aí abordam; seja em relação aos factos provados e por si impugnados, isto é, os factos descritos nas alíneas D), E), F), G), H), I), J), K) e L), do capítulo dos Factos Provados; seja, em relação à afirmação constante da sentença recorrida, no sentido de que não há factos não provados; seja, em relação à fundamentação de direito, nos assuntos referenciados nesse recurso; seja relativamente à condenação na taxa de justiça agravada; seja, a propósito, especificamente, do contrato de penhor celebrado entre o Banco 1..., S.A. e a A..., S.A.
Em todos esses aspetos, a sentença recorrida seria nula ou por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia.
Como veremos, no entanto, não é assim.
Esses vícios, com efeito, tal como estão previstos na lei, são de ordem procedimental. E reportam-se, tal como os outros atinentes à sentença, à sua estrutura e limites. Mas, com um âmbito muito específico. Efetivamente, como é pacífico na doutrina e jurisprudência, se é verdade, por exemplo, que o juiz está obrigado, por razões endógenas (ligadas à necessidade de uma adequada ponderação e juízo critico) e exógenas (relacionadas com a necessidade de compreensão pelos respetivos destinatários e com a função persuasiva e legitimadora do poder exercido) a explicar as razões de facto e de direito em que apoia a sua decisão, como decorre lapidarmente do disposto nos no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e artigos 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, já não é verdade que toda e qualquer falta de explicação comprometa a validade dessa decisão. Pelo contrário, “apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”[1]. No máximo, o que se admite que deva ser equiparado à ausência de fundamentação da decisão é a completa falta de ininteligibilidade da mesma[2]. Nessas hipóteses, sim, deve ser declarada nula a sentença, como prescreve o artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Por outro lado, igualmente nula é a sentença se o juiz, em contravenção do que se dispõe no artigo 608.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, não conhecer de algum pedido, causa de pedir ou exceção (artigo 615.º, n.º 1 al. d), do CPC). Mas, já não é nula se algum dos argumentos esgrimidos pelas partes não for apreciado[3].
Ora, partindo deste breve enquadramento e confrontando-o com aquilo que está escrito na sentença recorrida, fácil é concluir que a mesma não padece das referidas nulidades.
Efetivamente, quanto à falta de fundamentação de facto, daquilo que os Apelantes se queixam, no fundo, é de, por um lado, os meios de prova indicados na sentença recorrida não poderem determinar, só por si, a demonstração dos factos por eles impugnados, ou seja, os factos descritos nas alíneas D), E), F), G), H), I), J), K) e L), do capítulo dos Factos Provados [alegando para o efeito, por exemplo, que o ““Contrato de Penhor Específico…”, não tem a informação completa para ser fundamento do que se entende como provado, ou seja, que o Banco 1... “ (…) conseguiu ver-se ressarcido de parte do valor pago àquela credora [a sociedade, C..., SL], com recurso à execução do Contrato de Penhor Específico” e que só ficou em débito o montante de 49.752,42€; que não existem “provas -, que os Réus DD e CC e o Autor AA, tenham recebido a missiva do Banco 1... de 14 de março de 2018”; que não vem indicado “qualquer fundamento que estruture o conteúdo do “facto”, por forma a que seja considerado como provado” [em relação às afirmações constantes das als. G), H), J) e K), mas, em simultâneo, alegando que alguns dos meios de prova indicados na motivação da sentença recorrida não podem conduzir à prova dessas afirmações; e que “[a] não indicação de fundamentação referente ao Réu DD impede que este “facto” [constante da L)] seja considerado como provado] e, por outro lado, de, quanto à afirmação constante da sentença recorrida de que não há factos não provados, a respetiva justificação ser “incongruente, inconsequente, dir-se-á ininteligível”, já que, designadamente:
“1- existem nos presentes autos um grande número de factos que carecem de ser apreciados pelo M.º Juiz “A Quo” e que são de relevante interesse para uma cabal apreciação da causa, contrariando abundantemente, - (…) - portanto, a posição assumida pelo M.º Juiz “A Quo” de que “Não se provaram outros factos com interesse para a apreciação da causa”;
2- também não é correto, nem verdadeiro dizer-se que: -“Não há factos não provados porque, apesar dos 89º artigos da contestação, os réus não impugnam os factos alegados pelos autores…”; - “…nada alegam relativamente aos aspectos respeitantes à distribuição interna das respectivas responsabilidades…”; pois, (…), os Réus impugnam os factos alegados pelos Autores;
3- bem como, e no que se refere à alegação de que os Réus “…nada alegam relativamente aos aspectos respeitantes à distribuição interna das respectivas responsabilidades…”, contrariamente ao afirmado pelo M.º Juiz “A Quo”, não há ausência de alegação dos Réus sobre essa questão”.
Ou seja, em resumo, os Apelantes consideram que o juízo expresso na sentença recorrida, em qualquer um dos campos, é erróneo.
Ora, esse não é fundamento de nulidade da sentença. Fundamento haveria se, de todo, não tivesse sido apresentada nenhuma explicação para a decisão tomada ou se a mesma não fosse sequer inteligível, do ponto de vista lógico-formal; o que, repetimos, não é o caso. A fundamentação de facto, tanto para os factos provados como não provados existe e, repetimos, do ponto de vista lógico-formal, é compreensível, pelo que não se deteta o apontado vício na sentença recorrida.
Nem na fundamentação jurídica. Também aí foram expressos os motivos para a decisão tomada (inclusive, para a aplicação da taxa de justiça agravada) e, por conseguinte, bem ou mal – não é esta a altura para o sindicar – a exigência de fundamentação constante dos preceitos indicados, cremos que está cumprida.
Por outro lado, também não há, do nosso ponto de vista, qualquer omissão de pronúncia no que diz respeito ao contrato de penhor já referenciado, uma vez que, para além desse contrato corresponder, claramente, como se percebe de toda a análise do processo, ao mencionado na al. D) dos Factos Provados e de, na motivação da sentença recorrida, o mesmo ter sido indicado como meio de prova valorado (isto, por referência à valoração do documento junto aos autos no dia 30/09/2022), o mesmo não constitui, ao contrário do que alegam os RR./Apelantes, facto essencial integrador da causa de pedir. Factos integradores dessa causa são, como veremos mais adiante, aqueles que se reportam ao pagamento pelos AA. de toda a obrigação solidária de que eles e os RR. eram devedores e o consequente direito de regresso do remanescente pago em excesso por aqueles. Não os outros factos que eventualmente contendessem com a modificação ou extinção desse direito, que claramente, se traduzem numa exceção e que, como tal, aos RR. competia alegar e provar (artigos 342.º, n.º 2 e 525.º, n.º 1, do Código Civil).
Por conseguinte, também neste aspeto, não há motivo para declarar nula a sentença recorrida.
Esclarecidas estas questões, é altura, então, de aquilatar se deve haver lugar à modificação da matéria de facto impugnada pelos Apelantes.
Essa matéria é desdobrada pelos Apelantes em dois capítulos: o dos factos provados e o dos factos não provados.
Quanto a esta última rubrica, porém, verifica-se, desde logo, que os Apelantes não cumprem as exigências legais para que possa haver alguma modificação neste domínio.
Efetivamente, o impugnante da matéria de facto tem o ónus de:
a) Indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) Indicar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnada.
E, quando as provas tenham sido gravadas, tem ainda o ónus, sob pena de imediata rejeição do recurso, de indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância, sem prejuízo de pode proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (artigo 640º, nºs 1 e 2, al. a), do Código de Processo Civil).
São conhecidas as razões destas exigências: por um lado, pretende-se facultar à parte contrária o pleno exercício do direito ao contraditório; e, por outro, identificar com rigor o âmbito do recurso, pois que, por regra, o tribunal a quem o mesmo é dirigido não pode conhecer nem das pretensões de outros sujeitos processuais que não os recorrentes, nem pode também conhecer de questões que estes últimos não lhe colocaram. E isso também no plano da matéria de facto, embora aqui, depois de assegurado o referido pressuposto, a Relação deva “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (artigo 662.º, n.º 1, do CPC). Mas esta intervenção oficiosa não invalida a regra que começámos por enunciar e que é a de que o tribunal de recurso não deve, em princípio, conhecer de questões que não lhe sejam colocadas, mesmo no plano da matéria de facto, sob pena de violação do princípio do dispositivo[4].
Mas não só por respeito a este princípio se exige o cumprimento dos apontados ónus. É também em nome do princípio da cooperação.
Com efeito, estando “os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes, todos, obrigados a “cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” (artigo 7.º, n.º 1 do CPC), mal se perceberia que, neste domínio, algum desses intervenientes ficasse dispensado de semelhante dever. Tal como seria incompreensível que o mesmo dever fosse entendido, a este respeito, em termos estritamente formais.
De resto, no que às partes concerne, não se trata só de um dever. As partes têm a obrigação, mas, simultaneamente, o direito de concorrer ativamente para a resolução das causas judiciais em que estão envolvidas, de modo juridicamente válido e justo. O que implica o livre, mas ao mesmo tempo responsável, exercício desse direito. E, assim, se está vedado ao juiz limitar ou excluir esse direito a pretexto de interpretações meramente formais, também às partes está vedado exercê-lo em termos juridicamente desconformes. Também aqui se exige, no fundo, que as partes atuem de boa fé, tanto perante o tribunal, como perante a parte contrária, permitindo a esta um contraditório pleno e sem ambiguidades. O que pode ser posto em causa sem a observância dos citados ónus.
Assim, a obrigatoriedade de especificação concreta quer dos pontos de facto, quer dos meios de prova, não se basta com uma mera alegação difusa ou genérica, em tais aspetos. É necessário que o impugnante individualize o objeto concreto da discordância, motivando-a, criticamente, em razão da prova produzida em cada caso concreto e, se for caso disso, indicando, com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância, sem prejuízo da transcrição dos excertos que considere relevantes. Mas, não só. O impugnante tem igualmente o ónus, como vimos, de especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre cada uma das questões de facto impugnadas. Não basta que o faça genericamente. Caso contrário, como vimos, o tribunal pode-se exceder nos seus poderes cognitivos e, a parte contrária, pode ver afetado o seu direito ao contraditório.
Daí que seja imperiosa a necessidade do impugnante da matéria de facto especificar, como rigor, qual a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre cada uma das questões de facto por si impugnadas.
Ora, o que verificamos, no caso presente, é que os RR. não cumpriram os aludidos ónus. Designadamente, discriminando quais os factos concretos que, a seu ver, deviam ter sido julgados provados [para além daqueles que já o foram e não vêm impugnados (als. A), B) e C), do capítulo dos Factos Provados] e em que termos, associando-lhes os correspondentes meios de prova que determinariam esse resultado especifico.
Deste modo, pois, não tendo cumprido tais ónus, nenhuma modificação pode ser introduzida nessa matéria.
Não ignoramos com isto que os RR se mostram inconformados com parte das decisões tomadas ao longo do processo e que criticam também a motivação expressa na sentença recorrida. Mas, não vindo impugnada nenhuma daquelas decisões, nem se sabendo que algumas das impugnadas autonomamente tenham logrado ser revogadas (antes pelo contrário, do que se conhece, os dois recursos interpostos foram julgados improcedentes), aquelas decisões têm de considerar-se definitivas e vinculantes para as partes e para o tribunal.
Assim, pois, repetimos, nenhuma modificação pode ser introduzida na matéria de facto não provada.
Quanto à matéria de facto provada e impugnada, ou seja, como já vimos, as afirmações contidas nas alíneas D), E), F), G), H), I), J), K) e L), do capítulo dos Factos Provados, impõe-se, previamente, referir o seguinte:
Esta é uma ação de regresso entre avalistas de uma livrança caução.
Como se decidiu no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2012[5], “[s]em embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias”.
Por conseguinte, não estando demonstrada a referida convenção neste caso concreto, há que seguir o regime geral para as ações de regresso entre devedores solidários.
E, nesse âmbito, prescreve o artigo 524.º do Código Civil que “[o] devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete” (artigo 524.º). Ou seja, a partir do cumprimento, o devedor que cumpriu tem (nas relações internas) um direito próprio e novo perante os demais condevedores, na parte que exceder a sua responsabilidade. E esses condevedores, por sua vez, têm uma nova obrigação de prestar perante aquele devedor[6].
Essa obrigação, porém, não é despida de tutela.
Com efeito, resulta do disposto no artigo 525.º, do Código Civil, o seguinte:
“1. Os condevedores podem opor ao que satisfez o direito do credor a falta de decurso do prazo que lhes tenha sido concedido para o cumprimento da obrigação, como qualquer outro meio de defesa, quer este seja comum quer respeite pessoalmente ao demandado.
2. A faculdade concedida no número anterior tem lugar, ainda que o condevedor tenha deixado, sem culpa sua, de opor ao credor o meio comum de defesa, salvo se a falta de oposição for imputável ao devedor que pretende valer-se do mesmo meio”.
Neste contexto, assim, são, em regra, dois os meios de defesa que cada um dos condevedores tem em relação ao credor de regresso: os meios de defesa comuns que lhe era lícito opor ao credor e os meios de defesa próprios em relação ao titular do direito de regresso[7].
Por conseguinte, em resumo, o devedor que cumpriu, tem o ónus de alegar e provar, na ação de regresso, os pressupostos desse direito, ou seja, a satisfação do primitivo crédito para além da parte que lhe competia e os condevedores, nessa mesma ação, têm o ónus de alegar e provar todos os meios de defesa próprios e comuns já referenciados (artigo 342.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
Ora, movendo-nos dentro deste enquadramento, bem se vê que uma parte da factualidade impugnada pelos RR. não pode ser alterada e outra não tem qualquer interesse para a solução deste litígio. E, quando assim é, ou seja, quando há essa irrelevância da matéria de facto impugnada, a Relação deve abster-se de a reapreciar.
Essa reapreciação, na verdade, tem um carácter instrumental. Isto é, visa, em última instância, conferir à parte vencida a possibilidade de modificar a matéria de facto impugnada, em ordem à obtenção de um efeito juridicamente relevante no contexto da causa. Por outras palavras, visa modificar a matéria de facto (provada e/ou não provada) para, face à nova realidade almejada, determinar que, afinal, existe um direito negado na decisão recorrida ou, pelo contrário, não se verificam os pressupostos de um direito nela reconhecido[8].
Por isso mesmo, como se decidiu no Ac. deste Tribunal, de 14/12/2022[9] (de que o ora relator e 1.º Adjunto foram Adjuntos), “[a] Relação deve abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados[10]”.
Isto porque, como resulta do já exposto, “[o] recurso da sentença destina-se a possibilitar à parte vencida obter decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido no que concerne ao mérito da causa, estando a impugnação da matéria de facto teleológica e funcionalmente ordenada a permitir que a parte recorrente possa obter, na sua procedência, a alteração da decisão de mérito proferida na sentença recorrida. Propósito funcional da impugnação da decisão da matéria de facto que faz circunscrever a sua justificação às situações em que os factos impugnados possam ter interferência na solução do caso, ou seja, aos casos em que a solução do pleito esteja dependente da modificação que o recorrente pretende ver introduzida nos factos a considerar na decisão a proferir.
Se a matéria impugnada pelo recorrente não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia e indiferente à sorte da acção, de acordo com o direito aplicável (considerando as várias soluções plausíveis da questão de direito[11]), não deverá a Relação conhecer da pretendida alteração, sob pena de estar a levar a cabo actividade inútil, infrutífera, vã e estéril – se os factos impugnados não forem relevantes, considerando as soluções plausíveis de direito da causa, é de todo inútil a reponderação da correspondente decisão da 1ª instância, como sucederá nas situações em que, mesmo com a substituição pretendida pelo impugnante, a solução e enquadramento jurídico do objecto da lide permaneçam inalterados[12]”[13].
Ora, no caso, é isso, justamente, que se passa em relação aos factos constantes dos das alíneas F) e I), dos Factos Provados.
Esses factos, com efeito, ainda que fossem julgados não provados, como os RR. pretendem, em nada alterariam a obrigação cujo cumprimento lhes é exigido.
Daí que não nos debrucemos sobre a impugnação desses factos.
Por outro lado, em relação aos demais, verificamos o seguinte:
Quanto aos factos descritos nas alíneas D) e E), isto é, o Banco 1..., “após o cumprimento da sua obrigação perante a C... SL, conseguiu ver-se ressarcido de parte do valor pago àquela credora, com recurso à execução do Contrato de Penhor Específico, sobre depósitos a prazo constituído pela A..., S.A.” e que, “[n]ão obstante tal liquidação, ainda ficou em débito, o montante de 49.752,42€”, esta é matéria que não pode deixar de ser mantida como provada.
O que os RR. alegam, fundamentalmente, a este propósito, é que o contrato de penhor junto aos autos não demonstra que tivesse sido esse o valor que ficou em dívida, porquanto nada sabem, designadamente, quanto aos juros vencidos pelo depósito bancário sobre o qual incidiu essa garantia.
Ora, tendo os AA. alegado o referido montante de 49.752,42€ (o que é verosímil, face à dedução de 100.000,00€, correspondente àquele depósito, ao valor que o dito Banco foi obrigado a pagar no âmbito do processo judicial que lhe foi movido pela sociedade C..., SL – 149.752,54€), aos RR. competia, como já vimos, alegar e comprovar a redução desse valor por qualquer outra razão, o que manifestamente não fizeram.
Donde, só se pode concluir que a referida factualidade é de manter como provada.
E como provada também se deve manter a que vem descrita nas alíneas G), H) dos Factos Provados; isto é que perante a carta que receberam do Banco (Banco 1...), “os Autores, de forma a evitarem a instauração de qualquer processo judicial, por parte do Banco, para cobrança coerciva da dívida, encetaram negociações com aquele, pretendendo apurar o exato valor em dívida e qual o benefício que poderiam esperar, caso estivessem na disponibilidade de liquidar o mesmo de imediato” e que “[l]ograram então os Autores, obter do Banco 1..., a aceitação da redução do valor em dívida para 40.000,00€ (quarenta mil euros) na condição de ser imediatamente liquidado, o que motivou os Autores a efetuar o depósito de tal quantia por conta da dívida, ainda que tal não fosse acompanhado da outorga do respetivo acordo, em simultâneo, o que só virá a ocorrer mais tarde, tendo os AA. a expectativa de que alguns dos Réus assumisse igualmente a sua obrigação, solidária, diga-se, de pagar tal quantia junto do Banco”.
Com efeito, sabendo nós que o pagamento foi realizado antes de ter sido formalizado este acordo (cfr. docs 4 e 7 junto com a petição inicial) e que, neste último, o valor em dívida já antes referenciado era mais elevado (49.752,42€), é perfeitamente verosímil que tivessem havido as ditas conversações e que a motivação dos AA. em realizar o pagamento de imediato e a sua expetativa em relação aos RR. fossem aquelas que ficaram a constar dos factos provados.
Por outro lado, em relação ao afirmado na al. J), não pode, perante a transação extrajudicial documentada nos autos, deixar de se julgar provado que a mesma existiu. E, assim, independentemente do mais, deve julgar-se provado que “Em 1 de Outubro de 2018, veio a ser celebrado pelos AA. o acordo junto aos autos como doc. nº 7 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, mediante o qual o Banco 1... manifesta a sua aceitação em receber dos AA., os 40.000,00€ para efeitos de extinção da dívida, considerando-se desse modo, integralmente pago”, excluindo-se o mais que aí é referido, por irrelevante.
Do mesmo modo, perante a livrança junta com a petição inicial e tendo em conta as regras da experiência comum, também não pode deixar de se julgar demonstrado aquilo que vem descrito na al. K); ou seja, que “[e]m simultâneo à assinatura de tal transação extrajudicial, o Banco 1... entregou aos aqui AA., o original da mencionada livrança caução, preenchida pelo valor que o banco havia indicado na missiva de 20/07/2018, não obstante terem, AA. e o aludido banco, chegado a acordo pelos 40.000,00€ (idem), tido como bastante satisfatório, atenta a redução que o banco acabou por aceitar”.
Por fim, levando em consideração os documentos n.ºs 8, 9 e 10 juntos com a petição inicial e a confissão que na sentença recorrida se imputa aos RR., CC e EE, que não vem impugnada, só pode manter-se também como provado aquilo que consta da al. L) dos Factos Provados: “Em 11/12/2018, os AA., pretendendo exercer o direito de regresso pelo valor por eles pago a mais, através dos Mandatários, interpelaram os Réus para procederem ao pagamento da sua quota-parte, na proporção de 1/5 dos referidos € 40.0000,00 liquidados, ou seja, 8.000,00€ cada um, no prazo de 5 dias”.
E, aqui chegados, não tendo havido alterações significativas na matéria de facto, é linear que o direito de regresso reconhecido aos AA. na sentença recorrida não pode deixar de ser mantido.
Com efeito, tendo o RR. baseado a sua pretensão recursiva, no aspeto jurídico, em tais alterações e na invalidade formal daquela sentença, a improcedência daquela pretensão é inevitável. Não há, por outras palavras, nenhum fundamento para considerar, como consideram os Apelantes, que os AA. violaram o princípio da boa fé ou que o direito de que os mesmos se arrogam titulares não lhe possa ser, como foi na sentença recorrida, reconhecido. Nem pelo alegado comportamento abusivo do Banco 1..., S.A., que não está também demonstrado, nem foi chamado a esta causa.
Consequentemente, e em suma, a sentença recorrida é de manter, neste aspeto.
Vejamos, agora, a questão da taxa de justiça agravada.
Na sentença recorrida considerou-se que essa taxa era de aplicar porque “[o]s réus nestes autos juntaram aos autos uma contestação que comporta 89º artigos que, manifestamente, podiam e deviam ser menos de metade; um requerimento em 23.10.2019 – já depois de proferido o despacho saneador e designada audiência de julgamento –, o de 06.06.2021 – com 14 folhas e instruído com 32 documentos na véspera de uma audiência de julgamento –, tendo imprimido aos autos uma complexidade que estes – dada a natureza da questão a apreciar e a circunstância de haver sobre a matéria acórdão uniformizador de jurisprudência – não necessitavam ter tido”.
Os RR., porém, divergem desta decisão. E alegam, para além da nulidade de tal decisão por alegada falta de fundamentação, que já abordámos, o seguinte (em síntese):
“-Quanto à Contestação com 89 artigos, o M. Juiz “A Quo” só se refere ao número de artigos, pelo que uma contestação só porque tem 89 artigos não merece ser objeto de condenação, não há nenhuma lei que regule qual o número de artigos deve ter uma peça processual; entende-se, pois que há muito excesso, e excesso, que mais uma vez não está fundamentado;
- “Quanto ao Requerimento dos Réus de 23-10-2019, é bom lembrar que a “inércia” do M. Juiz “A Quo” e a constante omissão em fundamentar decisões, levou a que os Réus para defesa dos seus direitos elaborassem o Requerimento de 23-10-2019”.
- “Quanto ao Requerimento dos Réus de 23-10-2019, ele só surge porque o M. Juiz “A Quo”, no Despacho de 27-11-2019, entendeu, de forma altamente injusta e ilegal e numa fase já avançada do processo, que o ónus da prova no que se referia ao “Contrato de Penhor Específico sobre depósitos a prazo, no valor de € 100.000,00, constituído pela A... S.A e celebrado com o Banco 1..., S.A” era obrigação dos Réus”.
Ora, sem prejuízo de se considerar que os RR. podiam ter sido mais sintéticos nas suas alegações em qualquer um dos atos processuais indicados (contestação e requerimentos de 23/10/2019 e de 06/06/2021) e, porque não dizê-lo, também nas suas alegações de recurso, a verdade é que, ainda assim, consideramos que não se mostram preenchidos os requisitos para a aplicação da referida taxa de justiça agravada.
Vejamos:
Como é sabido e resulta da lei, a taxa de justiça faz parte das custas processuais e corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente; ou seja, corresponde à contrapartida legalmente estipulada “para a prática do ato de processo que dá origem a núcleos relevantes de dinâmicas processuais, designadamente, a ação, a execução, o incidente, o procedimento, incluindo o cautelar, e o recurso” [artigo 1.º e 3.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais (RCP)].
E essa contrapartida[14] é fixada em função do valor e complexidade da causa, nos termos regulamentarmente previstos (artigo 529.º, n.º 1, do CPC, e artigo 6.º, n.º 1, do RCP).
Não é fixada, portanto, em função do resultado final do processo.
Os referidos normativos são claros a este propósito, quando dispõem que “a taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente” ou “do interessado”, constituindo esta solução uma inovação no sistema de custas, que clarificou a autonomização da responsabilidade pelo pagamento da taxa de justiça em relação à responsabilidade pelo pagamento de encargos e de custas de parte[15].
De resto, a oportunidade do pagamento da taxa de justiça também reflete essa orientação. “Em regra, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 7 do artigo 6.º e no n.º 1 do artigo 14.º, ambos do RCP, a taxa de justiça relativa ao respetivo impulso processual – petição, contestação, requerimento, oposição, interposição de recurso ou contra-alegação – deve ser paga integralmente pelo autor do impulso previamente à sua formulação, com base no valor da causa e na tabela I anexa àquele Regulamento, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do seu artigo 13.”[16].
Mas, nem sempre é assim. Ressalvadas outras exceções que agora não vêm ao caso, quando as ações e recursos revelem especial complexidade, o juiz pode, a final, determinar a aplicação de valores mais elevados, a título de taxa de justiça (artigo 6.º, n.º 7, do RCP).
E são suscetíveis, entre outros, de revelar especial complexidade, para estes efeitos, as ações e os procedimentos cautelares que “contenham articulados ou alegações prolixas” (artigo 530.º, n.º 7, do CPC). Isto é, alegações e articulados “injustificadamente extensos, repetitivos e desprovidos de lógica”[17]. Dito por outras palavras, articulados e alegações “que excedem a média razoável, considerando a complexidade dos factos, os institutos jurídicos envolvidos, a quantidade de documentos juntos e o número de partes”[18].
As partes, com efeito, como assinalam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[19], “devem, nos articulados, alegar os factos principais da causa (“essenciais” na terminologia do legislador) e, dos instrumentais, apenas aqueles que se revistam de especial relevância para a prova dos factos principais; sobretudo, devem evitar repetições e alegações caóticas, infelizmente frequentes na prática forense”.
Mas, como acrescentam os mesmos Autores, “a prolixidade que conduz ao agravamento da taxa de justiça deve revestir-se de gravidade, sob pena de inconstitucionalidade”.
Ou seja, esta é uma medida excecional, porquanto, por um lado, não pode coartar-se às partes a liberdade de expressão, que naturalmente é variada na forma de retratar a realidade, mas, por outro lado, não lhe podem ser consentidos abusos que onerem a contraparte, os demais intervenientes e, de um modo geral, todo o sistema de justiça com custos desproporcionados em relação ao concreto objeto do processo e à natureza e complexidade das matérias que nele se discutem.
Só, pois, quando se verifica essa manifesta desproporção é que deve ser acionado o referido mecanismo de agravamento da taxa de justiça.
Ora, como já adiantámos, não cremos que seja esse o caso. Os RR. defenderam-se na contestação invocando as razões que, a seu ver, eram idóneas a afastar o direito de regresso reclamado pelos AA. e, nos requerimentos já referidos, embora não tendo sido sintéticos, também não se pode considerar que a respetiva extensão revista gravidade suficiente para aplicar, a todo o processo, a taxa de justiça agravada.
Neste contexto, assim, entende-se que a sentença recorrida, nessa parte, é de revogar.
Em resumo, procede este recurso quanto a este aspeto e improcede quanto a tudo o mais.
Pelas razões expostas, acorda-se em julgar parcialmente procedente este recurso e revoga-se a sentença recorrida, na parte em que aplicou a taxa de justiça agravada, mas, quanto ao mais, julga-se o mesmo recurso improcedente, confirmando tudo o resto que foi decidido nessa sentença.
Porto, 22/10/2024
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Maria da Luz Seabra
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[1] Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221. No mesmo sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140 e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, pág. 194.
[2] Neste sentido, por exemplo, Ac RP de 06/09/2021, Processo n.º 4348/20.0T8VNG-A.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, por exemplo, José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, 3ª ed., Coimbra Editora pág. 320.
[4] Como se concluiu no sumário do Ac. STJ de 19/02/2015, Proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1, consultável em www.dgsi.pt., “A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.
[5] Publicado no Diário da República, I Série, n.º 137, de 17 de julho de 2012.
[6] Neste sentido, por exemplo, Ana Afonso, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP, pág. 449.
[7] Neste sentido, por exemplo, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, págs. 167 e 168.
[8] Neste sentido, por exemplo, Ac. RG de 15/12/2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 1756/20.0T8MAI.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[10] Assim, ainda que considerando o anterior regime processual civil, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime (Decreto Lei nº 303/07, de 24/08) – 2ª edição revista e actualizada, p. 298.
[11] Critério que se reporta às soluções aventadas na doutrina e/ou na jurisprudência, ou que, em todo o caso, o juiz tenha como dignas de ser consideradas (como admissíveis a uma discussão séria) - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 188, nota 1.
Devem considerar-se como tais as soluções que a doutrina e a jurisprudência adoptem para a questão (designadamente nos casos em que em torno dela se tenham formado duas ou mais correntes) e também aquelas que sejam compreensivelmente defensáveis, considerando a lei e o direito aplicáveis - A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 417 e 418.
[12] Acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes), no sítio www.dgsi.pt. No mesmo sentido, por mais recentes, os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Batista), no sítio www.dgsi.pt.
[13] No mesmo sentido, Ac. STJ de 09/02/2021, Processo n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1, Ac. RG de 10/09/2015, Processo n.º 639/13.4TTBRG.G1, Ac. RP de 05/02/2024, Processo n.º 2304/19.0T8VFR.P1, consultáveis em www.dgsi.pt.
[14] Por isso se chama taxa de não imposto.
[15] Como decorre do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 34/2008, “o valor da taxa de justiça não é fixado com base numa mera correspondência face ao valor da acção.” Constatando que “o valor da acção não é um elemento decisivo na ponderação da complexidade do processo e na geração de custos para o sistema judicial”, procurou-se “um aperfeiçoamento da correspectividade da taxa de justiça”, estabelecendo-se “um sistema misto que assenta no valor da acção, até um certo limite máximo, e na possibilidade de correcção da taxa de justiça quando se trate de processos especialmente complexos, independentemente do valor económico atribuído à causa.” Deste modo, procurou-se “adequar o valor da taxa de justiça ao tipo de processo em causa e aos custos que, em concreto, cada processo acarreta para o sistema judicial, numa filosofia de justiça distributiva à qual não deve ser imune o sistema de custas processuais, enquanto modelo de financiamento dos tribunais e de repercussão dos custos da justiça nos respectivos utilizadores.”
[16] Salvador da Costa, “Termo do prazo de formulação do pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça (2)”, Blog do IPPC, em post datado do dia 25/10/2019
[17] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 583.
[18] Ponto V do Sumário exarado no Ac. RLx, de 21/11/2019, Processo n.º 10313/15.1T8LSB.L2-2, consultável em www.dgsi.pt.
[19] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3ª edição, Almedina, pág.429.