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DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA NO SANEADOR
Sumário
O tribunal deve abster-se de conhecer de mérito em sede de despacho saneador no caso de se manterem controvertidos factos necessários ao conhecimento de algumas das excepções suscitadas pelos avalistas de uma livrança entregue em branco, designadamente o preenchimento abusivo, ponderando as várias soluções plausíveis de direito.
Texto Integral
Processo n.º 6751/23.4T8PRT.P1---Apelação
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO 1.A..., SA, SA instaurou Execução para pagamento de quantia certa contra B..., SA, AA e BB, tendo alegado no requerimento executivo que por contrato de Cessão de Créditos celebrado a 30 de setembro de 2016 adquiriu os créditos decorrentes dos contratos n.º ... e ..., celebrados oportunamente entre o Banco 1... S.A (anterior Banco 2... GO, Banco 2... Leasing e Banco 2... Mais) e os Executados, incluindo capital, juros, indemnizações, garantias e quaisquer outras obrigações pecuniárias emergentes da referida obrigação, cessão essa notificada aos Executados a 2 de novembro de 2026, sendo legitima portadora de duas livranças subscritas pela executada B..., SA e avalizadas pelos executados BB e AA, no valor total de 25197,86€ (vinte e cinco mil cento e noventa e sete euros e oitenta e seis cêntimos) e 6176,36€ (seis mil cento e setenta e seis euros e trinta e seis cêntimos), emitidas a 21/09/2011 e com vencimento a 01/10/2021, não tendo os executados procedido ao seu pagamento na data de vencimento, nem posteriormente, apesar de terem sido interpelados para o efeito e, terem sido informados do preenchimento e subsequente acionamento das livranças dada à execução pelo montante aí aposto de 25197,86€ (vinte e cinco mil cento e noventa e sete euros e oitenta e seis cêntimos) e 6176,36€ (seis mil cento e setenta e seis euros e trinta e seis cêntimos), por cartas registadas com aviso de receção ascendendo o valor em dívida a 31.750,01€ (trinta e um mil setecentos e cinquenta euros e um cêntimo).
2. Os executados AA e BB apresentaram oposição à execução mediante os presentes embargos de executado contra a exequente, por apenso à referida execução, alegando que não foram notificados da cessão de créditos mencionada no requerimento executivo, por a comunicação não ter sido endereçada para a sua residência, porquanto haviam entregue no balcão do Banco 2... em Penafiel em 24.03.2009 uma carta a informar o banco da sua nova residência, tal como não foram informados do preenchimento das livranças, nem interpelados para proceder ao seu pagamento mais uma vez porque as comunicações não foram remetidas para a morada dos embargantes nem por eles recebidas, desconhecendo se a locatária B..., SA deixou de pagar as rendas mensais, nem quais ficaram por pagar, desconhecendo se os contratos de locação financeira foram resolvidos e se o equipamento locado foi entregue à locadora, desconhecendo igualmente como é que foram calculados os valores apostos nas livranças, os quais impugnaram, concluindo que houve preenchimento abusivo das livranças porque os contratos de locação foram cumpridos pela sociedade locatária devedora, devendo ser extinta a execução.
Para o caso de assim não se entender, os embargantes alegaram a mora do credor e que o valor dos juros moratórios vencidos considerados nas livranças em execução não são devidos porque caso tivessem sido interpelados para cumprir as obrigações avalizadas teriam tido a possibilidade de efectuar o pagamento dos valores do capital em dívida sem acréscimo de juros, porém as cartas não foram endereçadas para a morada dos embargantes conhecida do credor desde 24.03.2009, concluindo que ainda que a dívida possa existir os juros moratórios só deverão ser contados a partir de 4.10.2023 data em que tomaram conhecimento da presente execução.
Invocaram também o excesso do valor dos juros moratórios e o preenchimento abusivo das livranças por ser manifesto que os valores lançados nas livranças não respeitaram a taxa legal de 4%, tendo sido desrespeitado o pacto de preenchimento, o que configura excepção peremptória impeditiva do direito do exequente que conduz à extinção da execução.
Socorreram-se do abuso de direito, entendendo que caso tenha havido incumprimento dos contratos o direito do credor reclamar os seus créditos iniciou-se nas datas de incumprimento, que no limite correspondem às datas dos termos dos contratos, ou seja, 23.06.2008 e 8.10.2007, quando apenas preencheram as livranças em 21.09.2021, mais de 13 anos após o alegado incumprimento dos contratos de locação financeira, tendo o tempo entretanto decorrido e a inércia do credor inculcado legitimamente nos avalistas que, ainda que houvesse valores em dívida o credor já não os ia reclamar, impossibilitando ou dificultando gravemente o decurso do tempo o direito de defesa porque já não dispõem dos contratos e dos pactos de preenchimento, conduzindo tal excepção peremptória à absolvição do pedido executivo.
Finalmente, sem prescindir, os embargantes requereram a redução do valor da execução, quer por inexigibilidade total dos juros de mora vencidos lançados nas livranças, sendo os valores apostos nas livranças reduzidos para €5.872,57 e €822,41, quer por inexigibilidade parcial dos juros de mora vencidos caso as datas de emissão e de vencimento dos títulos estejam correctos sendo nesse caso de €5.878,87 e €823,27, sendo em todo o caso apenas devidos juros moratórios vencidos desde 4.10.2023.
Concluíram formulando os seguintes pedidos:
1ºSe digne verificar a ausência de citação dos executados e a tempestividade da dedução da oposição à execução, recebendo os embargos;
2º Se digne declarar o preenchimento abusivo das livranças:
a) por inexistência do crédito dos contratos subjacentes à emissão das livranças;
b) sem prescindir, por inexigibilidade do valor dos juros moratórios lançados nas livranças em virtude da mora do credor;
c) ainda sem prescindir, por excesso do valor dos juros moratórios lançados nas livranças considerando as datas de emissão e de vencimento;
impeditivo do direito do exequente, o que constitui exceção perentória, com a consequente extinção da execução.
3º Se digne declarar que o direito exercido pelo credor é abusivo, com a consequente extinção da execução;
Sem prescindir,
4º No caso de improcedência das exceções perentórias referidas em 2 b) e 2 c) que se digne declarar indevidos os valores dos juros de mora vencidos lançados nas livranças, ou na totalidade ou parcialmente, conforme alegado nos artigos 63º a 70º supra, reduzindo o valor das mesmas em conformidade com o referido em tais artigos e declarando que o valor dos juros de mora vencidos e vincendos só são devidos desde a data de 04.10.2023, data da tomada de conhecimento da execução pelos executados.
5º Se digne condenar o embargado nas custas e encargos do processo por força da esperada procedência dos embargos.
3. A exequente apresentou contestação aos embargos de executado, alegando desconhecer que os embargantes tivessem moradas diferentes da constante nos contratos de locação financeira que avalizaram, pelo que todas as comunicações foram remetidas para a morada conhecida e que havia sido indicada pelo credor originário, impugnou o desconhecimento alegado pelos embargantes quanto ao incumprimento dos contratos e interpelação porquanto os embargantes eram ambos administradores da executada, tendo os contratos sido com eles celebrados, e subscrito por eles os pactos de preenchimento das livranças, tendo as livranças sido preenchidas depois de interpelados do incumprimento, com aposição da importância e data de vencimento em conformidade com o previsto nos pactos de preenchimento, refutando quer a questão dos juros, quer do abuso de direito, concluindo pela improcedência dos embargos de executado e pelo prosseguimento da execução para pagamento efectivo e integral da quantia exequenda e juros de mora.
4. Designada audiência prévia, nela veio a ser proferido saneador/sentença em acta de 29.02.2024, Ref. Citius 94593381, com o seguinte dispositivo: Pelo exposto, decido julgar os presentes embargos de executado totalmente improcedentes, por não provados, em consequência do que determino o normal prosseguimento da execução contra os executados/embargantes AA e mulher BB de que estes autos constituem um apenso. Custas a cargo dos embargantes/executados (vide art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil). Registe e notifique, incluindo a Srª Agente de Execução. 5. Inconformados com a referida decisão, os executados/embargantes interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes CONCLUSÕES 1ª A 1ª instância omitiu os factos que julgou não provados, assim como não se pronunciou sobre questões suscitadas nos embargos de executado, o que gera a nulidade do douto despacho saneador-sentença nos termos do artº 615º, 1 d) e 4 do CPC. 2ª Em face da matéria de facto processualmente adquirida, deve ser aditado um novo facto à matéria provada nos seguintes termos: “Os executados, em 24.03.2009, informaram o primitivo credor Banco 2... que a sua residência passou a ser no Conjunto Habitacional “...”, Bloco ..., entrada ..., 3ºesquerdo, ..., ... Paredes”. 3ª Na análise crítica da prova processualmente adquirida o juiz deve tomar em consideração todos os factos, independentemente da parte que os invoca (artº 607º, 4. CPCivil). 4ª É manifesto que, quer pela posição vertida na contestação dos embargos, quer pelos documentos juntos à mesma pela exequente/embargada, os executados/embargantes tiveram participação pessoal e direta nos contratos subjacentes às duas livranças em execução, acrescendo que também participaram no próprio pacto de preenchimento, na medida em que foram parte nos contratos; 5ª Pelo contrato de cessão de créditos do Banco 2... Leasing em favor do exequente/embargado, este adquiriu tais direitos de crédito nos exatos termos dos direitos do cedente, mantendo-se inalterados todos os outros aspetos da relação jurídica creditícia, nos termos do artº 578º, 1. CCivil. 6ª Nessa medida, os executados/embargantes, avalistas, podem opor ao portador as exceções de que disponham e que se fundem nas relações subjacentes às duas livranças em execução, o que constitui exceção aos princípios da literalidade e da autonomia do aval. 7ª Na verdade, se os executados/embargantes, avalistas, não pudessem invocar as exceções ao seu dispor a favor de quem deu o aval, este comportar-se-ia como uma verdadeira garantia autónoma ou à primeira solicitação, o que contrariaria frontalmente o disposto nos artºs 32º e 77º LULL (“O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.”). 8ª Nessa medida, os executados/embargantes, avalistas, podem opor ao exequente as exceções ao dispor do avalizado, a sociedade B... e, em especial, a exceção do preenchimento abusivo das livranças, ao contrário do decidido em1ª instância. 9ª Mas, ainda que fosse reconhecida ao exequente/embargado a autonomia do seu direito em relação ao anterior portador (Banco 2... Leasing), é manifesto que aquele, aquando da aquisição do crédito e garantias do Banco 2... Leasing, livranças incluídas, agiu com manifesta má-fé e conscientemente em detrimento do devedor, no intuito de se posicionar no campo das relações mediatas para, dessa forma, impedir os executados avalistas de invocar contra si (portador que está com o seu avalizado nas relações imediatas) as exceções que a própria subscritora poderia invocar, incluindo o desrespeito pelo contrato de preenchimento, no caso as livranças subscritas em branco que constituem os títulos exequendos. 10ª Daí que, também em face da anterior conclusão, os executados/embargantes, avalistas, tenham o direito de invocar contra o exequente a exceção do preenchimento abusivo das livranças, nos termos dos arts. 10º e 17º LULL. 11ª Reiterando-se o constante da 3ª conclusão, se corretamente analisada a prova processualmente adquirida, conclui-se que os executados/embargantes, avalistas, não foram interpelados pela exequente/embargada nem da cessão de créditos, nem da resolução dos contratos de financiamento e do montante em dívida, nem do preenchimento das livranças, nem da data de vencimento das mesmas. 12ª O rigor e boa-fé nas relações jurídicas que se exige ao todos (artº 334º do CC) e, com particular relevância, às instituições financeiras, impunha que, perante a devolução das cartas enviadas, o exequente/embargado promovesse diligências para verificar a correção das moradas dos visados, assegurando a respetiva receção pelos mesmos, sobretudo as que visavam a comunicação/interpelação dos avalistas sobre a resolução dos contratos e o montante em dívida a inscrever nas livranças e a data de vencimento das mesmas, tanto mais que se tratam de negócios jurídicos concretizados entre as partes em 2003 e 2004, ou seja, há 20 anos. 13ª A falta de interpelação dos executados/embargantes, avalistas, pelo exequente/embargado tem como consequência, que a obrigação apenas se considere vencida com a citação daqueles, que, no caso concreto, sucedeu em 04.10.2023, conforme resulta do disposto no artº 777º, 1 do CC e no artº 610º, 2 b) do CPC. 14ª Nessa medida, está vedado ao exequente/embargado exigir dos executados/embargantes, avalistas, o pagamento dos juros entre o momento do vencimento da obrigação e a sua citação ou, no mínimo, a data da instauração da execução. 15ª Parece-nos, pois, ter ocorrido preenchimento abusivo das livranças por mora do credor, que inscreveu nas livranças valores de juros moratórios indevidos de 19.325,11€ e de 5.353,95€, o que deve conduzir à redução do valor da execução tal como defendido no requerimento de embargos. 16ª Os juros sobre o capital devido a inscrever nas livranças apenas devem ser os calculados após 04.10.2023, data em que os executados embargantes devem considerar-se interpelados da resolução dos contratos subjacentes à emissão das livranças, do preenchimento destas, das datas de vencimento e do respetivo pagamento. 17ª Foram violadas as normas que fomos invocando nas anteriores conclusões. Concluíram, pedindo que seja proferido douto Acórdão que declare a nulidade do despacho saneador-sentença proferido pela 1ª instância e, de qualquer modo, revogado o mesmo, com as consequências legais. 6. A exequente/embargada não apresentou contra-alegações.
7. Foram observados os vistos.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
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As questões a decidir são as seguintes: - se a sentença padece das nulidades apontadas pelos Apelantes; -se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada; -se os Apelantes/executados podem opor à Apelada/exequente as excepções invocadas na petição de embargos de executado apresentada nos autos, mormente o preenchimento abusivo das livranças.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO O Tribunal de 1ª Instância considerou assentes os seguintes factos:
1. A 30 de setembro de 2016 foi celebrado Contrato de Cessão de Créditos entre o Banco 1... S.A. (anterior Banco 2... GO, Banco 2... Leasing e Banco 2... Mais) e a A..., S.A., conforme cópia do aludido Contrato e respetivo anexo junto como Doc. n.ºs 1 e 2 com o req. executivo e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2 - No âmbito da referida Cessão de Créditos, a 30 de setembro de 2016 adquiriu os créditos decorrentes dos contratos n.º ... e ..., celebrados oportunamente entre o Banco 1... S.A (anterior Banco 2... GO, Banco 2... Leasing e Banco 2... Mais) e os Executados, incluindo capital, juros, indemnizações, garantias e quaisquer outras obrigações pecuniárias emergentes da referida obrigação.
3.A exequente é dona e legitima portadora de duas livranças subscritas pela Executada B... SA e avalizadas pelos Executados BB e AA, no valor total de 25197,86€ (vinte e cinco mil cento e noventa e sete euros e oitenta e seis cêntimos) e 6176,36€ (seis mil cento e setenta e seis euros e trinta e seis cêntimos), emitidas a 21/09/2011 e com vencimento a 01/10/2021- Doc. nº 4 e Doc. n.º 5 juntas com o req. executivo e cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais
2.º Na data do respectivo vencimento, as referidas livranças não foram pagas, naquela data, nem posteriormente e até ao presente.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA. Nulidades da sentença
Sob a 1ªConclusão os Apelantes suscitaram a nulidade do despacho saneador/sentença, prevista no art. 615º nº 1 al. d) e 4 do CPC, sustentando que o tribunal de 1ª Instância omitiu na sua decisão os factos que julgou não provados, assim como não se pronunciou sobre questões suscitadas nos embargos de executado.
No corpo das alegações esclareceram que de acordo com o disposto no art. 607º nº 4 do CPC consta a obrigação de menção na sentença dos factos não provados e que essa omissão impossibilitou a compreensão dos factos que foram decisivos para a convicção do tribunal a quo e consequentemente impossibilitou sindicar a correção da decisão tomada.
Também nas alegações concretizaram que na petição de embargos de executado deduziram, entre outras, as questões do abuso de direito e a redução do valor da execução, sobre as quais o saneador sentença é completamente omisso.
Sendo o elenco das alíneas do n.º 1 do art. 615º do CPC, um elenco taxativo[2], só nas hipóteses ali expressamente consignadas se coloca a hipótese de nulidade da sentença.
Perante a alegação acima mencionada, consta do art. 615º nº 1 al. d) e 4 do CPC o seguinte teor “1. É nula a sentença quando: (…) d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (…) 4.As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”
Vejamos.
Este comando normativo é consequência do princípio consagrado no art. 608º, n.º 2 do CPC, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Segundo ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa, o aludido princípio é um “corolário do princípio da disponibilidade objectiva (arts. 264º, n.º 1 e 664º, 2ª parte) que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. (…) Por isso é nula a decisão quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (art. 668º nº 1 al. d) 1ª parte), ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia. (…) O tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa. (…)”[3] Questões para efeito do referido preceito legal são «… todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes» [4], não se confundindo com os argumentos, razões ou pressupostos (de facto e de direito) em que a parte funda a sua posição sobre a questão suscitada.
Diferente das questões a decidir referidas no citado art. 608.º n.º 2 do CPC, são os argumentos ou razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista.
Existe nulidade da sentença quando o juiz deixa de conhecer a questão/pretensão que devia conhecer, mas já não existe nulidade da sentença se apenas deixa de apreciar qualquer argumento ou razão jurídica suscitada pela parte em abono da sua pretensão. Quando as partes submetem ao Tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o Tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». [5]
Este entendimento tradicional decorrente da lição do Prof. Alberto dos Reis, tem sido perfilhado pela Jurisprudência, a qual, de forma reiterada, perfilha a posição de que a não apreciação de um ou mais argumentos aduzidos pelas partes não constitui omissão de pronúncia, pois que o Juiz não está obrigado a ponderar todas as razões ou argumentos alegados nos articulados para decidir certa questão de fundo, estando apenas obrigado a pronunciar-se «sobre as questões que devesse apreciar» ou sobre as «questões de que não podia deixar de tomar conhecimento.» [6]
Em suma, ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objecto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respectiva causa de pedir) e das excepções deduzidas, devendo apreciar e decidir todas as questões trazidas aos autos pelas partes e todos os factos em que assentam, mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.
Porém, o error in judicando quer em matéria de facto, quer em matéria de direito não se confunde com as nulidades da sentença, nem a eventual violação do art. 607º nº 3 e 5 do CPC traduz uma omissão de pronúncia que conduza à nulidade da sentença prevista no art. 615º nº 1 al d) do CPC.
A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica, ou a não apreciação ou valoração de um facto alegado pela parte pode traduzir, eventualmente, um erro de julgamento, mas não traduz qualquer nulidade por omissão de pronúncia.[7]
Os Apelantes podem discordar dos fundamentos de facto e/ou dos fundamentos de direito em que se alicerçou a decisão recorrida, não podem é alegar que a sentença é nula por omissão de pronúncia se se limitarem a não concordar com o sentido da pronúncia emitida pelo tribunal, porque nesse caso não se estará perante uma nulidade mas uma discordância jurídica a escalpelizar em sede de mérito da decisão, a título de erro do julgamento de facto, ou erro de julgamento de direito.
Os Apelantes defenderam que foram omitidos os factos não provados na decisão recorrida, porém, estamos perante um despacho saneador que conheceu do mérito da causa e embora seja tratado para efeitos de recurso como se de uma verdadeira sentença se tratasse, é incontornável que os factos alegados pelas partes não foram submetidos a instrução e, o tribunal a quo considerou que os factos por si elencados como provados, à luz do enquadramento jurídico por si perfilhado, dispensava a apreciação de todos os demais factos alegados, isto é, independentemente de os considerar provados ou não provados seriam sempre factos inócuos para a decisão final que entendeu estar em condições de proferir sem proceder a julgamento.
Deste modo, a apontada omissão do elenco dos factos não provados, que efectivamente existe, não é mais do que a invocação de um error in judicando e como tal deveria ter sido suscitado em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, tal como os Apelantes também sustentaram relativamente à omissão de um facto no elenco dos factos provados.
Contrariamente ao sustentado pelos Apelantes é apreensível do conteúdo da decisão recorrida quais foram os factos que o tribunal considerou decisivos para a decisão proferida- apenas os factos vertidos nos factos provados-, coisa distinta é saber se tais factos eram suficientes para ser proferida uma decisão de mérito nesta fase precoce do processo, à luz das várias soluções plausíveis de direito, pois que esta segunda questão não contende com a nulidade da sentença prevista no art. 615º nº 1 al. d) do CPC, mas com um eventual erro de julgamento quanto à matéria de facto e à suficiência da mesma para a decisão final dos embargos de executado em apreço.
Já quanto à omissão de pronúncia sobre as questões suscitadas na petição de embargos de executado atinentes ao abuso de direito e à redução do valor da execução na vertente dos juros moratórios não podemos deixar de dar total razão aos Apelantes, quer porque o seu conhecimento não ficou prejudicado com o enquadramento jurídico que veio a ser perfilhado pelo tribunal a quo, pois que julgara improcedentes as pretensões que haviam sido formuladas sob os pedidos 1º e 2, ficando os Apelantes sem decisão sobre as pretensões formuladas precisamente para o caso de as primeiras não obterem provimento, quer porque essas questões não eram meros argumentos jurídicos mas verdadeiras pretensões formuladas pelos Apelantes a título subsidiário como decorre dos pedidos 3º e 4º deduzidos no final daquela petição e cujos fundamentos constam dos artigos 52 a 70.
Esta omissão consubstancia claramente uma nulidade da decisão por omissão de pronúncia, prevista no art. 615º nº 1 al d) do CPC, mas não é a única, pois que ao tribunal a quo foi desde logo suscitada a ausência de citação (artigos 3º a 13º) sem que tenha sido proferida qualquer decisão autónoma ou no próprio despacho saneador sobre essa nulidade processual que acabou por também condicionar a decisão recorrida.
Embora essa questão estivesse directamente relacionada com a tempestividade da apresentação dos embargos de executado e se possa entender que como os embargos foram recebidos houve uma decisão implícita a considerar que foram tempestivamente apresentados, certo é que importa aferir em que data efectivamente se devem considerar citados os embargantes porquanto estes alegam que apenas tomaram conhecimento do processo executivo no dia 4.10.2023 por mero acaso, ao consultar os processos judiciais pendentes no sítio “https//processos.tribunais.org.pt”.
Isto porque é com base naquela data que os Apelantes suscitam uma das questões cujo conhecimento foi omitido- questão relativa à redução do valor dos juros moratórios-, sendo necessário determinar quando se devem considerar citados os aqui embargantes porquanto os autos não contêm neste momento os elementos de facto indispensáveis para o seu conhecimento.
Também a questão do conhecimento pela embargada da comunicação ao beneficiário da livrança da alteração da morada dos avalistas se mostra controvertida, apesar de os embargantes pugnarem pelo aditamento desse facto aos factos provados, pois que embora os aqui Apelante tenham alegado que essa comunicação fora entregue nas instalações do banco muito antes do preenchimento da livrança, a embargada alegou dela não ter tido conhecimento, para além de ter invocado também a ilegibilidade da data da recepção desse documento no balcão do banco, factos que não foram levados pelo tribunal a quo nem aos factos provados (como pugnam os Apelantes) nem aos factos não provados, mas que têm inegável relevo para uma decisão criteriosa dos embargos de executado por ser transversal ao conhecimento de praticamente todas as excepções arguidas pelos embargantes com vista à extinção ou redução da execução, mormente o preenchimento abusivo da livrança e a mora do credor.
É claro que, para quem entenda que estamos perante relações mediatas, como entendeu o tribunal a quo, pouco ou nada do alegado pelos embargantes teria relevância jurídica pois que não poderia ser invocado perante a aqui embargada, porém, como veremos de seguida, afigura-se-nos que para além de estarmos perante relações imediatas onde tal matéria de excepção pode ser invocada e devia ter sido conhecida pelo tribunal a quo, mesmo que assim não se entendesse está alegada a inexistência do crédito por ter havido pagamento por parte da sociedade avalizada e essa é matéria que, como o próprio tribunal a quo admitiu na sua fundamentação jurídica, pode ser oponível pelo avalista da livrança subscrita em branco perante o seu portador ainda que porventura se venha a concluir estarmos no âmbito das relações mediatas.
Compulsada a petição de embargos de executado, os embargantes- avalistas na livrança que constitui o título executivo-pediram que se declarasse o preenchimento abusivo das livranças por inexistência do crédito dos contratos subjacentes à emissão das livranças (pedido 1º al. a) no final da petição de embargos), tendo alegado nos artigos 27º e 28º desse articulado que os contratos há muito foram cumpridos pela sociedade locatária devedora, que nada é devido pela sociedade B..., SA (avalizada), isto é, que todo o crédito de que a avalizada beneficiou dos contratos subjacentes à emissão das livranças foi pago, não existindo valores em dívidas pelos quais pudesse ser preenchida a livrança dada à execução.
Depois de discorrer sobre os princípios da autonomia, abstração e literalidade do aval, e sobre as razões pelas quais entende que estamos perante uma relação mediata- entre a embargada/portadora da livrança e os embargantes/avalistas da livrança-o tribunal a quo admitiu que mesmo nestes casos o pagamento é uma das excepções que pode ser oposta pelo avalista ao portador da livrança, fazendo-o do seguinte modo:
“São poucas as excepções conhecidas a este regime de autonomia do aval: - no caso de a relação jurídica subjacente ser nula por vício de forma, caso em que o avalista pode opor ao portador da letra o respectivo vício - cfr. art.º 32.º da L.U.L.L: “O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma. Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra” e, no mesmo sentido, o Ac. RP de 07/10/1996, BMJ, 460, 802; - no caso de o portador, no momento de aquisição da letra, ter agido conscientemente em detrimento do devedor, podendo o avalista opor tal vício ao portador da letra. - cfr. art.º 17.º da L.U.L.L. e Ac. RL de 19/05/1976, CJ, II, 523; - e, também, segundo Paulo Sendim (ob. cit., pág. 834 e segs.) no caso de pagamento da dívida avalizada (cfr. ainda o Ac. RL de 09/07/1992, já citado). O regime jurídico da responsabilidade do avalista caracteriza-se, assim, pela circunstância de este ser solidariamente responsável pela divida garantida e não beneficiar da excussão prévia. Subsumindo ao caso sub judice, constata-se que veio o avalista alegar o preenchimento abusivo por inexistência de crédito, mora do credor e excesso de juros. Os embargantes não intervindo no contrato subjacente não podem invocar o preenchimento abusivo dado estar o plano de relações mediatas. (no mesmo sentido Ac. Do TRP de 09.01.2017 Proc. 2666/13.2T2AGD-A.P1) Na verdade, cabe ao subscritor da livrança o ónus da prova dos factos respeitantes ao seu preenchimento abusivo. Por outro lado, no caso dos autos, os aqui opoentes, enquanto avalistas da livrança dada á execução, encontra-se, face á exequente, em sede das denominadas relações mediatas, o que lhe impossibilita a faculdade de suscitar, em oposição á execução, quaisquer excepções fundadas sobre as relações pessoais com o avalizado – cfr. art. 17º, da L.U.L.L. -, com excepção do pagamento e da falsidade da sua assinatura, as quais, no caso dos autos foi suscitada (falsidade) e pagamento. Estas relações para os avalistas aqui executados estão num plano de relações mediatas pois nelas não intervieram. Daqui resulta que nesta parte da causa de pedir não poderá a embargante invocar tais fundamentos de extinção da obrigação ou inexigibilidade.”
Sendo o pagamento do crédito subjacente à emissão da livrança um facto controvertido nesta fase do despacho saneador, ainda que se sufragasse a posição assumida pelo tribunal a quo, em consonância com o que ficou escrito na decisão recorrida, haveria que deixar os autos prosseguir para julgamento para que aquela matéria que se mantém controvertida fosse objecto de instrução, pois só após se estará em condições de proferir decisão final sustentada, sendo prematura a decisão nesta fase processual por o tribunal não estar habilitado com todos os elementos de facto indispensáveis à prolação da sua decisão, mesmo que o sentido decisório venha a ser o mesmo que foi relativamente à questão de estarmos ou não no âmbito das relações mediatas.
Não obstante, afigura-se-nos igualmente que o tribunal seguiu uma linha de raciocínio assente no pressuposto de que os aqui embargantes/avalistas não intervieram no contrato subjacente à emissão da livrança, daí ter concluído que se estava no âmbito de uma relação imediata não podendo os embargantes invocar os fundamentos de extinção da obrigação ou inexigibilidade e, consequentemente deles não conheceu.
Ora esse pressuposto não estará correcto, uma vez que deu como assente no ponto 2 dos factos por si considerados como provados, que a embargada adquiriu por contrato de cessão os créditos decorrentes dos contratos nº ... e ..., celebrados oportunamente entre o Banco 1..., SA (anterior ..., Banco 2... Leasing e Banco 2... Mais) e os executados.
Compulsados esses contratos, que se mostram juntos aos autos, resulta evidente que pelo menos no contrato de locação financeira nº ... os aqui embargantes assumindo a qualidade de avalistas subscreveram tal contrato, contratos esses nos quais a aqui embargada sucedeu na posição contratual do original credor através de contrato de cessão de créditos, não tendo sido a livrança posta em circulação (designadamente através de endosso) mas transmitida conjuntamente com a cedência do crédito enquanto garantia ao mesmo associada (circulação imprópria)[8].
Tendo a livrança permanecido no domínio das partes que intervieram na relação jurídica subjacente à emissão da livrança dada à execução, estar-se-á no domínio das relações imediatas, podendo o obrigado cambiário invocar perante o credor cambiário as excepções derivadas da relação extra-cartular, conforme art. 17ºLULL a contrario sensu.
Assim defendem também, entre outros, Abel Delgado, referindo que “quando a relação se estabelece entre um subscritor do título cambiário e um outro sujeito cambiário imediato que também tiveram intervenção na convenção extracartular, define-se que o título se encontra nas relações imediatas”[9] e Pedro Pais de Vasconcelos segundo o qual “quando entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente diz-se que a relação é imediata; quando não estão ligadas por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata. [10]
Ainda que assim não fosse, resulta também de forma inequívoca da documentação junta aos autos que os aqui embargantes foram parte e subscreveram o pacto de preenchimento entregue ao credor, pacto esse do qual a embargada se valeu para preencher a livrança dada à execução e, deste modo, os avalistas enquanto subscritores do referido pacto estão perante o beneficiário do mesmo e portador original da livrança (posição cedida à aqui embargada) dentro das relações imediatas, podendo contra ela opor todas as questões atinentes ao preenchimento abusivo da livrança por si avalizada.
Esta nossa posição segue o entendimento sufragado por aquela que cremos ser a maioria da jurisprudência, citando-se a título meramente exemplificativo o Ac STJ de 25.05.2017 do qual se pode ler que, “Intervindo no pacto de preenchimento e estando o título no domínio das relações imediatas, o executado/embargante/avalista pode opor ao exequente/embargado a violação desse pacto de preenchimento”[11], ou o Ac. RP de 27.11.2023 segundo o qual “Ao preencher o título (letra ou livrança), o credor cambiário está obrigado a respeitar o pacto de preenchimento que tenha celebrado. Se não o fizer, quer o devedor avalizado, quer o avalista podem opor-lhe a exceção de preenchimento abusivo, que se traduz, justamente, no preenchimento do título cambiário assinado em branco com desrespeito pelos termos convencionados (expressamente, se houver pacto de preenchimento; implicitamente, se inexistir esse acordo expresso, caso em que se atenderá às «circunstâncias do negócio»); Sendo a obrigação do avalista uma obrigação autónoma, este, em princípio, não pode defender-se com as excepções que o avalizado possa opor e que respeitem à relação subjacente (também dita relação causal), salvo quanto ao pagamento, porque o avalista presta uma garantia que se reporta à obrigação cambiária do avalizado e não directamente à obrigação causal subjacente; Está consolidado o entendimento de que o avalista pode excepcionar o preenchimento abusivo do título se ele próprio interveio no pacto de preenchimento, cabendo-lhe, então, o ónus de alegação e prova, pois de uma excepção material se trata”[12], ou ainda o Ac RP de 12.01.2023 no qual ficou decidido que “O avalista que intervém em pacto de preenchimento de livrança, encontra-se nas relações imediatas quando demandado pelo beneficiário”.[13]
O tribunal a quo também descurou o facto de se estar perante uma livrança em branco, estando invocadas questões pelos embargantes que contendem com o acordo de preenchimento, abordados também por Carolina Cunha, que fazendo intervir o regime específico do art. 10º da LULL permite ao avalista (mesmo aquele que não tenha participado no acordo de preenchimento) invocar os meios de defesa que os aqui embargantes suscitaram, escrevendo que “(…) os critérios a mobilizar para apurar se houve preenchimento abusivo- i.e., discrepância entre o preenchimento do título e a vontade manifestada pelo avalista- serão os fixados no acordo de preenchimento celebrado entre o credor e o avalizado, quer o avalista nele tenha ou não participado.
Ora, tal acordo faz geralmente depender o “se”, o “quando” e o “quanto” do preenchimento do título de uma particular ocorrência: a constituição da obrigação pecuniária em que o devedor-avalizado venha a incorrer pelo incumprimento da relação fundamental. Quer isto dizer que, ao abrigo do art. 10ºLU e nos termos expostos, o avalista pode prevalecer-se de certas vicissitudes de uma relação fundamental à qual é alheio. E pode fazê-lo porque a determinação do conteúdo a inserir na sua própria declaração cambiária é levada a cabo per relationem: depende da verificação do mesmo pressuposto do qual está dependente a responsabilidade cambiária do avalizado, e esse pressuposto emana dos desenvolvimentos ocorridos na relação fundamental que este mantém com o credor.
Todavia, uma significativa parcela da nossa jurisprudência chama à colação o art. 17º LU para denegar ao avalista em branco esta defesa, ao mesmo tempo que ignora olimpicamente o regime do art. 10ºLU, que, quando chega a ser mencionado nos arestos, é apenas como suporte da admissibilidade da figura da letra em branco- como se a norma não contivesse, igualmente, o seu regime concreto.
Ora, é errado aplicar aqui o art. 17º LU e pretender que o avalista está a invocar um meio de defesa do avalizado. Ao invocar a inexistência de incumprimento por parte do contraente-avalizado, ou a questionar o montante a que ascende a sua eventual responsabilidade, ou mesmo ao contestar a data de preenchimento do título, o avalista em branco não está a tentar paralisar o direito do credor cambiário invocando factos emergentes de relações alheias. Está, isso sim, a colocar um problema prévio: o problema da divergência entre a vontade que ele próprio manifestou ao subscrever e entregar uma letra em branco (a saber: que venha a ser preenchida nos termos que valerem para o avalizado) e a declaração constante do título tal como veio a ser completado.(…) não nos choca a diferença de tratamento a que a Lei Uniforme acaba por submeter o avalista de um título completo e o avalista de um título em branco. É que o primeiro sabe, de antemão, que poderá ter de pagar x (e não mais) a partir do dia y (e dentro do limite temporal fixado pelas regras da prescrição cambiária). Já o segundo não dispõe dessa segurança básica; não sabe por que quantia irá responder (embora possa ter uma ideia aproximada), nem quando lhe será exigido o pagamento (podendo vir a ser incomodado muitos anos depois da subscrição do título).”[14]
Mesmo a questão da valoração da inércia do credor quanto ao preenchimento do título após o incumprimento e resolução do contrato subjacente é muito pertinente, conforme foi abordada na jurisprudência e doutrina, como nos dá conta Carolina Cunha[15], até porque pode contender com a possibilidade de extinção do exercício do direito cambiário, abordada ou não à luz do abuso de direito, questão essa que apesar de ter sido alegada pelos embargantes foi totalmente omitida na decisão recorrida.
Não sendo segura e consistente a abordagem jurídica, quer na jurisprudência quer na doutrina, de todas as excepções suscitadas pelos aqui Apelantes na petição de embargos, não sendo seguro afirmar que se esteja no âmbito das relações mediatas como afirmou o tribunal a quo, ou que os embargantes não possam socorrer-se das excepções suscitadas na petição de embargos de executado, mormente o preenchimento abusivo da livrança em branco, afigura-se-nos que os autos não continham nesta fase os elementos de facto suficientes para que pudesse ter sido prolatada decisão final.
E este Tribunal de recurso também não está em condições de a proferir uma vez que os factos alegados pelos embargantes a esse propósito foram totalmente desconsiderados pelo tribunal a quo na decisão recorrida, mantendo-se controvertidos e impondo-se que sejam submetidos a prova.
Ressalta da decisão recorrida que na fase em que a mesma foi proferida, contrariamente ao que nela ficou consignado, o tribunal ainda não podia considerar como assentes grande parte dos factos necessários à prolação segura e criteriosa da decisão de mérito tendo em vista as várias soluções plausíveis de direito - sendo sintomático a exiguidade dos factos elencados como assentes na decisão recorrida- consubstanciando essa omissão de factos relevantes um erro de julgamento determinante da decisão final, o qual pode ser conhecido mesmo oficiosamente por este Tribunal.
Tal como A. Abrantes Geraldes ensina, “pode ainda revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas de prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegure um enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo. Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes.”[16]
O conhecimento de mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as várias soluções plausíveis de direito, pelo que, ainda que o juiz se ache habilitado a conhecer de mérito segundo a solução que julga adequada apenas com base numa seleção de factos que tem por incontroversos, deve abster-se de o fazer nessa fase caso existam factos controvertidos com relevância para a decisão da causa à luz de outra solução de direito admissível.[17]
No caso em apreço, torna-se imperioso, pelas razões acima enumeradas, proceder à anulação do Saneador/Sentença recorrido, devendo os autos prosseguir com prolação de novo despacho saneador seguido de julgamento relativamente aos factos que se mantêm controvertidos atinentes às excepções suscitadas nos embargos de executado e que podendo ser opostas à embargada são essenciais à decisão da causa.
Com efeito, impõe-se que o julgamento em 1ª Instância acautele todas as soluções plausíveis de direito, pelo que só seria possível ao tribunal a quo decidir do mérito se a solução jurídica por si sustentada fosse a única aplicável ao caso, o que manifestamente não é, atentas as considerações acima melhor explanadas.
Em face do acima decidido, considera-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
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V. DECISÃO: Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em anular o Saneador/Sentença recorrido, para que seja proferido novo despacho saneador, comfixação do objecto do litígio e temas de prova que contemplem a matéria de excepção alegada pelos embargantes na petição de embargos, prosseguindo os autos os demais termos processuais. Custas a cargo da Apelada, que ficou vencida. Notifique.
Porto, 22.10.2024
Maria da Luz Seabra
Alberto Taveira
João Ramos Lopes
(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
_________________ [1] F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147 e A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 92-93. [2] A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 686. [3] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 220-221. [4] A. Varela RLJ, ano 122º, pág. 112. [5] Alberto dos Reis, CPC Anotado, volume V, 1984, pág. 143. [6]AC STJ de 7.07.2016, relatora Consª. Ana Luísa Geraldes, AC STJ de 21.10.2014, relator Consº. Gregório Silva Jesus e AC STJ de 8.02.2011, relator Consº. Moreira Alves, www.dgsi.pt. [7] Neste sentido, entre outros, Ac STJ de 16.11.2021, Proc nº 2534/17.9T8STR.E2.S1 [8] A este propósito veja-se entre outros, Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Almedina, pág. 84 [9] Lei Uniforme sobre Letras e Livranças anotada, 7.ª, página 110 [10] Direito Comercial – Títulos de Crédito, reimpressão, AAFDL, Lisboa, 1997, página 55 [11] Proc. nº9197/13.9YYLSB-A.L1.S1, www.dgsi.pt [12] Proc. Nº 17489/19.7T8PRT-A.P1, www.dgsi.pt [13] Proc nº 9735/21.3T8PRT-A.P1, www.dgsi.pt [14] Ob. Cit, pág. 193-194 [15] Manual de Letras e Livranças, Almedina, 2016, pág.203-206 [16] Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 357 [17] Citamos, entre outros, Ac RP de 5.6.2023, Proc. Nº 873/12.4TTMTS-C.P1, www.dgsi.pt