PROCESSO CONTRA-ORDENACIONAL
DECISÃO ADMINISTRATIVA
IMPUTAÇÃO DE FACTOS
TIPO NEGLIGENTE
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário


1. Constitui pacífica orientação jurisprudencial e doutrinal de que nas decisões administrativas de aplicação de coimas por prática de contraordenação não é exigível o mesmo rigor formal e material de uma decisão jurisdicional.
2. É fundamental que qualquer imputação de facto negligente contenha a narração, a descrição, a enunciação, ou o que se lhe quiser chamar, de todos os pormenores juridicamente relevantes para a sua apreciação: quem fez ou deixou de fazer o quê, como, quando, onde, porquê, com quê, o contexto físico e espacial em que atuou ou deixou de atuar, que experiência ou conhecimentos tinha, quais as suas possibilidade físicas, intelectuais, administrativa, organizacionais, ou outras, enfim, toda uma miríade de concretizações, aqui meramente especulativas ou hipotéticas, mas no caso concreto perfeita e indispensavelmente discerníveis e enunciáveis, de modo a que quem tem o dever de apreciar a procedência da imputação, com eventual e consequente punição, disponha de matéria que possa ser passada pelo crivo filtrante dos elementos típicos da infração acima enunciados (tipo de ilícito, que inclui o segmento objetivo e normativo, e tipo de culpa, que, inclui a consciência da ilicitude).
3. Há muito que foi abandonada por grande parte da doutrina, até pela jurisprudência, a associação da consciência da ilicitude, bem como do seu reverso, o erro sobre a ilicitude ou o erro sobre proibição, ao dolo - as duas últimas expressões são sinónimas, e não se deve confundir o erro sobre a proibição com o erro sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, constante da segunda parte do n.º 1 do artigo 16.º do Código Penal.
4. Também na infração negligente (contraordenacional ou penal) a questão da consciência da ilicitude ou o seu reverso, o erro sobre a proibição ou falta de consciência da ilicitude, constitui parâmetro investigatório em ordem ao completo preenchimento dos pressupostos da punição, devendo, todavia, ser enquadrados na categoria da culpa e não do dolo.
5. O facto de normalmente se poder presumir, no campo do núcleo do Direito Penal, a consciência da ilicitude, devemos sublinhar a absoluta indispensabilidade da sua alegação, admitindo-se, naqueles casos nucleares, muitas das vezes, o seu assentamento quase por presunção – tenhamos presente que no direito processual só não carecem de alegação e prova os factos notórios ou de que haja conhecimento oficioso, sendo apodítico que, os que pertencem à dita categoria de nucleares, embora se possam, nalguns casos, presumir, notoriamente, não são notórios nem de conhecimento oficioso.
6. Afirmar que o infrator tinha conhecimento da obrigatoriedade das normas técnicas de transporte de resíduos sólidos, e esclarecer ainda que esse conhecimento era extensivo à norma de que a carga teria de ser transportada coberta, norma essa que estriba a imputação e punição da infração, preenche, de modo evidente e claro a alegação de que o infrator tem consciência da ilicitude (obrigatoriedade das normas técnicas de transporte de resíduos sólidos) e da concreta norma (proibição constante do tipo) que impõe que aquela concreta carga deveria ser transportada coberta.

Texto Integral


I RELATÓRIO

1
No processo n.º 405/21...., do Juízo de Competência Genérica de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

Face ao supra exposto, ao abrigo do disposto da conjugação das normas previstas nos artigos 9º, 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), 41.º, n.º 1 do RGCO, art. 9º da Lei nº50/2006, de 29.08, e 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a) e 380.º, do Código de Processo Penal, declara-se nula a decisão administrativa junta aos autos, absolvendo-se a arguida, determinando-se, consequentemente, o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO, o que se decide, ao abrigo do disposto no artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (aplicável por força do disposto nos artigos 66.º do RGCO), resultando prejudicado o conhecimento do demais invocado pela arguida.

2
Não se tendo conformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

1.º  O Tribunal a quo proferiu decisão, por despacho, considerando que a decisão administrativa é nula porquanto "falta na matéria de facto provada constante da nova decisão administrativa, a afirmação de que a arguida sabia que a sua conduta não era permitida, que a mesma sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, isto é, a consciência da ilicitude do facto, que é elemento constitutivo do dolo".
2º Sucede que a contraordenação em causa é imputada, na referida decisão administrativa, a título de negligência.
3.º A negligência traduz-se em o agente atuar sem que proceda com o cuidado a que segundo as circunstâncias concretas está obrigado e de que ê capaz (artigo 15.º do Código Penal).
4.º No facto negligente não é correto falar-se em consciência da ilicitude, enquanto conhecimento, por parte do agente, do caráter ilícito da sua conduta, pois que, aquele elemento respeita a comportamentos dolosos.
5º A decisão administrativa impugnada, contém a descrição factual - objectiva e subjectiva - bastante para preencher o tipo objectivo e subjectivo da contraordenação nela imputada, e para permitir o efectivo exercício do direito de defesa pela arguida, pelo que, com ressalva do respeito devido, não enferma da nulidade que lhe foí apontada no despacho recorrido.
6.º lnexistindo tal nulidade, não pode subsistir aquele despacho, devendo ser ordenada a prolação de decisão que conheça do mérito da impugnação judicial apresentada pela Arguida.
Pelo que dando procedência ao recurso, revogando o despacho recorrido farão Vossas Excelências Justiça.

3
A arguida respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, sintetizando a sua posição pelo modo que se segue:

I. Por sentença proferida em 27.01.2024, decidiu o Meritíssimo Juiz a quo declarar nula a decisão administrativa junta aos autos, absolvendo a arguida, e determinando, consequentemente, o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO, ao abrigo do disposto no artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (aplicável por força do disposto nos artigos 66.º do RGCO), ficando assim prejudicado o conhecimento do demais invocado pela arguida.
II. O Ministério Público (doravante MP) recorreu da sentença proferida, por entender que a decisão administrativa impugnada contém a descrição factual - objetiva e subjetiva - bastante para preencher o tipo objetivo e subjetivo da contraordenação nela imputada, e para permitir o efetivo exercício do direito de defesa pela arguida, pelo que, entende que a mesma não enferma da nulidade que lhe foi apontada no despacho recorrido, e, inexistindo tal nulidade, não poderia subsistir aquele despacho, alegando que deve ser ordenada a prolação de decisão que conheça do mérito da impugnação judicial apresentada pela Arguida.
III. Entende a arguida/recorrida que muito bem andou o Meritíssimo Juiz a quo ao decretar a nulidade da decisão administrativa, por considerar que a mesma é omissa quanto a factos que integrem a consciência da ilicitude do facto, pelo que nenhum reparo há a fazer à douta sentença proferida.
IV. O presente recurso, interposto pelo MP não é admissível, pois o Tribunal a quo não chegou a conhecer do mérito da impugnação apresentada pela arguida, tendo limitado a sua intervenção à apreciação das nulidades invocadas por esta.
V. Não foi assim proferida qualquer decisão que se possa enquadrar nas várias alíneas do n.º 1 do art.º 73.º do RGCO (tendo sido ao abrigo deste n.º 1 que o MP interpôs o recurso) e consequentemente suscetível de recurso para o Tribunal da Relação.
VI. O recurso do MP não foi interposto ao abrigo do n.º 2 do art.º 73.º do RGCO, (mas sim ao abrigo do n.º 1 do artigo 73º do RGCO), nem foi expressamente mencionado no requerimento de interposição de recurso pelo Ministério Público que o mesmo se afigurava manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
VII. Pelo que, deverá o recurso interposto pelo MP ser rejeitado, ao abrigo do art.º 420.º, n.º 1, al. b), do CPP, uma vez que não se mostram verificados os requisitos de admissibilidade constantes do art.º 73.º do RGCO.
VIII. A nova decisão administrativa proferida, continua a padecer das mesmas nulidades, faltando, na matéria de facto provada constante da nova decisão administrativa, a afirmação de que a arguida sabia que a sua conduta não era permitida, que a mesma sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, isto é, a consciência da ilicitude do facto, que é elemento constitutivo do dolo.
Por isso, rigorosamente, há omissão de factos na matéria provada contante de decisão administrativa, pelo que a nova decisão proferida é nula.
I. A decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima e que não contenha os elementos que a lei impõe é nula, por aplicação do disposto no art. 374º, nº1, al. a) do CPP, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, o que decorre da redação do art. 379º, nº2 do C.P.P. quando consagra que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso” – nesse sentido vide entre outros, os Acs. do STJ de 31.05.2001, de 08.11.2001 e de 14.05.2003, todos publicados no Boletim Interno do STJ, nºs. 51, 55 e 71, respetivamente e ainda do STJ o Ac. de 02.02.2005, in CJ, tomo I, p. 188; vide ainda Ac. do TRC de 04.10.2006, do TRL de 31.10.2019, ambos in
Não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação, a consequência há-de ser a absolvição – cfr. Ac. do STJ de 29.01.2007 e do TRC de 11.11.2020, in www.dgsi.pt. Como se refere no Ac. do TRC, de 11.11.2020:
II. A decisão administrativa, se judicialmente impugnada, equivale à acusação, o que nos transporta para a disciplina do artigo 283.º do CPP, enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta, que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, sendo o mesmo princípio aplicável ao ilícito contraordenacional.
III. A decisão recorrida é nula porque omissa quanto a factos que integrem a consciência da ilicitude do facto.
IV. A sentença em crise, começou por analisar a questão prejudicial e prévia de nulidade da decisão por falta do elemento subjetivo, e decidiu que face à insuficiência dos factos constantes da nova decisão administrativa, suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, como elemento indispensável à natureza e integração de um ilícito contraordenacional, concluiu pela nulidade da nova decisão administrativa por violação do disposto na al. a) do nº1 do art. 374º do CPP aplicável ex vi art. 41º do RGCO, tendo absolvido a arguida e arquivado os autos, pelo que não merece qualquer reparo.
V. O Tribunal a quo tomou conhecimento da aludida nulidade após submeter, primeiramente, a arguida/recorrida a julgamento com cumprimento de todas as formalidades legais, permitindo assim que a passagem do crivo do art.º 311º do CPP, aplicável ex vi art. 41.º/1 do RGCO, sem conhecer das nulidades invocadas, o que implicou igualmente um labor acrescido para todos intervenientes processuais (magistrados, advogados, testemunhas), com as despesas e transtornos inerentes.
VI. Choca o senso comum e o sentimento de justiça que a arguida/recorrida tenha sido submetida primeiramente a julgamento e, findo este, tivesse sido proferida a primeira decisão pelo Tribunal a quo que conheceu de nulidades de conhecimento oficioso e passiveis de ser conhecidas ab initio sem necessidade de produção de meios de prova, como foi manifestamente o caso, e por via dessa decisão, tivessem sido devolvidos os autos à entidade administrativa para eventual sanação das nulidades, que não tendo sido supridas por esta, e tendo sido proferida nova decisão pelo tribunal recorrido, tendo este decidido que a nova decisão da entidade administrativa continuava a padecer das mesmas nulidades, pudesse agora, por força do recurso apresentado pelo MP nos presentes autos, fazer impender sobre a arguida/recorrida sério risco de submissão a novo julgamento.
VII. À luz da jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 1/2015, não se vislumbra possível à entidade administrativa sanar a nulidade da decisão por falta do elemento subjetivo face à insuficiência dos factos suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, e vir futuramente a transformar em ilícito contraordenacional aquilo que à luz da decisão administrativa o não era.
VIII. Pugna o MP, no recurso que apresenta, que o despacho recorrido não pode subsistir, que deve ser revogado e que os autos deverão seguir os seus termos, alegando ainda que deve ser proferido despacho final, que conheça do mérito da causa.
IX. Caso o recurso apresentado pelo MP fosse procedente (o que não se concebe, e que por mero raciocínio académico se equaciona), e a sentença recorrida fosse revogada, nunca poderia ser substituída por uma decisão que conhecesse do mérito causa por simples despacho, conforme pugna o MP.
X. Pelo que, sempre teriam os autos de prosseguir para novo julgamento, porquanto, a arguida apenas não se opôs a que fosse proferido despacho para conhecer da questão prévia, que versava sobre a matéria de direito, não tendo aceitado que a decisão sobre o mérito da causa pudesse ser proferida por simples despacho.
XI. Em caso de procedência do recurso apresentado pelo MP (o que não se concebe, e que por mero raciocínio académico se equaciona), sempre teriam os autos que prosseguir para julgamento, e, prosseguindo os mesmos para julgamento, a arguida estaria a ser julgada duas vezes pelos mesmos factos, violando assim o princípio constitucionalmente consagrado, non bis in idem, constante do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição
XII. Termos em que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra, fazendo-se assim, inteira JUSTIÇA!.

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Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, propondo que se declare como não verificada a nulidade constante da decisão recorrida, e que se devolva o processo à primeira instância, para realização da audiência de julgamento, nos seguintes termos:

Cumpre manifestar a nossa opinião, e desde já se deixa expresso a nossa inteira concordância com a motivação recursiva, e com os argumentos ali expandidos pela digna magistrada do Ministério Publico na 1ª instancia, por inteiro os sufragando.
Com efeito o cerne do recurso reside em saber se a decisão administrativa que condenou o arguido pela pratica de uma contraordenação a titulo de negligencia é nula por nela não constar de forma expressa que o arguido agiu com consciência da ilicitude da sua conduta.
 Sobre esta concreta questão, e como bem invoca a recorrente na sua motivação, este Venerando tribunal já se pronunciou numa situação similar, permitindo-nos reproduzir uma parte do respetivo sumário:
“1. A falta de consciência da ilicitude, sendo causa de exclusão do dolo, não tem aplicação numa situação como a dos autos, por estar em causa uma actuação negligente do arguido.
II) E não resultando do quadro factual apurado o invocado erro sobre a ilicitude, haverá de concluir-se que o arguido cometeu de forma negligente, o ilícito contraordenacional p. e p. pelo artº 198º-A, nº 1, al. a) da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho
(...)”
Cumpre referir que a decisão administrativa que foi objeto de impugnação judicial foi proferida depois de uma anterior decisão judicial precisamente por não se encontrarem especificados factos bastantes que pudessem consubstanciar o elemento subjetivo da contraordenação, tendo na versão agora em crise a entidade administrativa tido o cuidado de fazer constar na decisão que proferiu que:
“Tanto o condutor como o representante legal da arguida tinham conhecimento da obrigatoriedade das normas técnicas de transporte, nomeadamente de que a carga teria de ser transportada coberta, porém, durante o carregamento, a calha onde corria a cobertura ficou danificada, impossibilitando a colocação da mesma. Uma vez que a sua conduta se pautou pela omissão de um dever objetivo de cuidado, não evitando a verificação dos factos descritos, agiu livremente e sem o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, nem com a diligência necessária para cumprir com as suas obrigações ambientais, dúvidas não restam que a arguida atuou com negligência…”.
Ora, do excerto supra e considerando que a contraordenação é imputada a título de negligencia afigura-se-nos nela constarem todos os elementos subjetivos da contraordenação não se vislumbrando a existência da nulidade que determinou o arquivamento dos autos pela Mª juiz recorrida .
Pelo que afigura-se-nos que deverá o recurso ser declarado procedente devendo os autos serem remetidos à 1ª instancia para conhecimento do mérito da impugnação judicial designando-se dia para a realização de audiência de julgamento.
É que, muito embora tivesse sido cumprido o art. 64º, nº1, do RGCO, e a impugnante dito nada ter a opor a que fosse proferida decisão por simples despacho, esta declaração surgiu na sequencia do despacho judicial proferido a 23 de Nov. de 2023( ref Citius 51307571) em que a Mª Juiz recorrida de forma expressa referiu que se destinava a conhecer de questão prévia , e que a prolação do despacho se destinava a conhecer a matéria de direito que poderia obsta ao conhecimento do mérito da causa, e a fim de evitar a prática de atos inúteis.

Assim em CONCLUSÃO, somos de parecer que deverá o recurso ser declarado procedente, decidindo-se que não se verifica a nulidade decretada, devendo os autos baixar à 1ª instancia para que designe data para a realização de audiência e julgamento, com a produção de prova indicada na impugnação judicial, e outra que se mostre pertinente.

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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a recorrida apresentou resposta ao parecer, renovando a sua anterior posição, pugnando pela improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1 Objeto do recurso:

A
A presente decisão é irrecorrível?

B
Em caso de solução negativa dada à anterior questão, a decisão recorrida padece de nulidade, por ausência da integral demonstração dos elementos subjetivos da infração contraordenacional?

C
Em caso de solução negativa em relação à anterior questão, devem os autos ser devolvidos à primeira instância ou proferir-se decisão final nesta Relação?

2 Decisão recorrida:

 “EMP01..., LDª.” interpôs recurso da decisão da Comissão de Coordenação, Desenvolvimento Regional do Norte, que a condenou na coima de €12.000,00, pela prática de uma contra-ordenação prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 67º conjugada com o n.º 2 do artigo 21º do Decreto-lei n.º 178/2006, de 05 de setembro, alterado pelos Decreto-Lei n.º 173/2008, de 26 de Agosto Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 183/2009, de 10 de Agosto, Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de Junho, Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto, Lei n.º 82-D/2014, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 75/2015, de 11 de Maio, Decreto-Lei n.º103/2015, de 15 de Junho, Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, Decreto-Lei n.º 71/2016, de 04 de Novembro, Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 92/2020, de 23 de Outubro, Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de Dezembro e Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, conjugado com a pela Portaria n.º 145/2017, de 26 de abril, alterada pela Portaria nº 28/2019 de 18 de janeiro, punida nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006 de 29 de agosto, alterada pelas Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto, Lei n.º 114/2015, de 28 de Agosto, Decreto-Lei n.º 42-A/2016, de 12 de Agosto e Lei n.º 25/2019, de 26 de Março, invocando designadamente a nulidade da decisão administrativa por falta do elemento subjetivo e violação do direito de defesa, por falta de fundamentação e impugnou os factos.

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Foi proferida sentença em 19.04.2022, transitada em julgado que decidiu declarar a nulidade da decisão administrativa em causa.
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Foi interposto recurso pela arguida, o qual foi rejeitado pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 26.09.2022.
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Em 02.06.2023 a Comissão de Coordenação, Desenvolvimento Regional do Norte, proferiu nova decisão administrativa, cfr. fls. 174 e ss.
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EMP01..., Ldª., interpôs impugnação judicial da nova decisão administrativa, cfr. fls. 217 e ss., onde invoca designadamente a nulidade da decisão proferida alegando que a sentença proferida decidiu face à insuficiência dos factos constantes da decisão administrativa, suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, bem como face da violação do disposto no art. 50º do RGCO, também seria nula nos termos previstos no art. 120º, nº2, al. d) do CPP ex vi art. 41º do RGCO, e conclui pela nulidade da decisão administrativa, pelo que as referidas nulidades não são passíveis de serem sanadas, e não pode agora a mesma entidade administrativa revogar a decisão anterior e proferir nova decisão, o que equivalerá a uma nova acusação com base nos mesmos factos pelo quais a sociedade arguida já foi julgada; que a nova decisão continua a omitir factos descritores do elemento subjetivo, que da nova decisão não consta qualquer referência à consciência da ilicitude, invocando ainda a violação do princípio non bis in idem, bem como a título subsidiário impugnou os factos.
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O recurso foi recebido pela autoridade administrativa e enviados os autos ao Ministério Público, que os fez presentes ao Juiz.
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Foi proferido despacho em 23.11.2023 no sentido de que importava conhecer de questão prévia que se restringe a matéria de direito e obsta ao conhecimento do mérito da causa, e a fim de evitar a prática de atos inúteis, considera-se desnecessária a audiência de julgamento, bem como para ser aberta vista à Digna Magistrada do Ministério Público para se pronunciar sobre as invocadas nulidades.
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Por douta promoção de 19.12.2023 a Digna Magistrada do Ministério Público pronunciou-se sobre as alegadas nulidades.
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A arguida por requerimento de 04.12.2023 veio informar os autos que não se opunha a que seja proferido despacho para conhecer da questão prévia, que versa sobre a matéria de direito.
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Apreciando e decidindo.
Quanto à invocada violação do princípio non bis in idem
O artigo 29º, n.º 5, da Constituição dispõe que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Este preceito constitucional “proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime” (cfr. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 194).
Na sua vertente material, visa-se através deste princípio garantir a proteção de direitos individuais e evitar a possibilidade de perseguições injustas.
Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a prática do mesmo crime ou perante um concurso efetivo de infrações, quer este concurso seja real, quer seja ideal.
O princípio “non bis in idem” produz efeitos em relação aos factos julgados, verificando-se, no caso em apreço, que não foi proferida decisão de mérito, pois a sentença proferida nos autos não conheceu a final do objeto do processo, nem pôs termo ao processo, uma vez que ordenou o reenvio dos autos à entidade administrativa – vide o Ac. do TRG, de 26.09.2022, designadamente a fls. 145, não tendo assim a arguida sido condenada pela prática desses mesmos factos.
Por tudo o exposto, e concordando com a douta promoção que antecede, e concluímos que não ocorre no caso concreto violação do princípio ne bis in idem, pois não se está perante um novo processo, mas perante o mesmo processo que ainda não foi objeto de decisão sobre o mérito da causa, pelo julgo não verificadas a violação do referido princípio ne bis in idem.
Notifique.
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Da nulidade da decisão administrativa
No dia 19.04.2022, foi proferida sentença que transitou em julgado que conheceu pela nulidade da decisão administrativa quer pela falta do elemento subjetivo, quer pelo facto da mesma violar o disposto no art. 50º do RGCO (a entidade administrativa não só não viabilizou a realização da prova testemunhal requerida pela recorrente, como também não fundamentou com factos concretos do caso em análise a razão do indeferimento de tal diligência de prova, não explicando porque tal diligência no caso concreto seria desnecessária), pelo que a mesma enferma da nulidade prevista no artigo 120º, nº2, al. d) do CPP ex vi art. 41º do RGCO – cfr. sentença de fls. 111 e ss.
Na referida sentença transitada em julgado declarou-se assim a nulidade da decisão administrativa e a remessa dos autos à autoridade administrativa para que proceda em conformidade se possível, ou, no caso contrário, arquivar o processo.
A autoridade administrativa remeteu nova decisão administrativa aos autos indicando os seguintes factos provados, que se transcrevem:
“No dia 27 de janeiro de 2021, pelas 09:30 horas, o motorista da arguida, conduzia o veículo com a matrícula ..-..-ER em conjunto com o semirreboque de matrícula L-......, circulava na Estrada Nacional ..., Km ..., comarca de Viana do Castelo, transportava 126660 kg de sucata diversa a descoberto.
A arguida efetuava o transporte de resíduos sem cumprir os requisitos estabelecidos no artigo 4º da Portaria nº. 145/2017, de 26 de abril, para transporte de resíduos sólidos que eram transportados em caixa aberta, sem que a carga se encontrasse coberta, encontrando-se preenchido os elementos objetivos do tipo contraordenacional previsto na alínea f) do nº. 2 do artigo 67º do Decreto-Lei n. 178/2006, de 05 de setembro.
Tanto o condutor como o representante legal da arguida tinham conhecimento obrigatoriedade das normas técnicas de transporte, nomeadamente de que a carga teria de ser transportada coberta, porém, durante o carregamento, a calha onde corria a cobertura
ficou danificada impossibilitando a colocação da mesma.
Uma vez que a sua conduta se pautou pela omissão de um dever objetivo de cuidado, não evitando a verificação dos factos descritos, agiu livremente e sem o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, nem com a diligencia necessária para cumprir com as suas obrigações ambientais, dúvidas não restam que a arguida atuou com negligência (vide artigo 15º do CP e nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro, e artigo nº. 2 do artigo 9º da lei n. 50/2006, de 29 de agosto.
Mais de provou que que os resíduos, constituídos por sucata de ferro, se encontravam soltos abaixo do limite dos taipais da caixa do semirreboque.
A convicção desta autoridade administrativa no concernente à factualidade provada resultou do conhecimento direto e presencial dos factos dos agentes da GNR e relatório fotográfico e defesa.
A arguida arrolou prova testemunhal, em concreto, o seu motorista e o seu representante legal. As suas declarações consubstanciando relevância para efeitos de ponderação na determinação da medida da pena aplicar (n. 2 do artigo 71º do CP) não põem em causa a matéria dada como provada, alicerçada em documentos idóneos como o auto e fotografia inserta.
O auto de notícia apesar de não acarretar qualquer presunção de culpabilidade, contrária a presunção de inocência do artigo 32º, n. 2, da Constituição, traduz-se num especial valor probatório, quanto a certas comprovações materiais feitas presencialmente pela autoridade pública e poderá ser considerado um documento autêntico nos termos do artigo 369º do C.C., constituindo prova legal e válida”.
A recorrente invoca a nulidade da decisão administrativa, alegando designadamente que as nulidades apontadas não foram supridas e que nesta nova decisão não consta qualquer referência à consciência da ilicitude.

Vejamos.
Os requisitos da decisão da autoridade administrativa são os constantes do art.º 58.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (não havendo, portanto, que convocar as normas do procedimento administrativo, sendo certo, aliás, que o direito processual subsidiário, em matéria contra-ordenacional é o processo penal – cfr. art.º 41.º, n.º 1, do citado regime): “1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
2 - Da decisão deve ainda constar a informação de que:
a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º;
b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho.
3 - A decisão conterá ainda:
a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão;
b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.”.
Analisando o teor da decisão, constata-se que a mesma contém todos estes elementos, maxime a descrição dos factos concretamente imputados à arguida e a indicação das provas, fundamentação e motivação da decisão recorrida.
E se não se pode perder de vista que as exigências de fundamentação das decisões de qualquer autoridade estadual constituem essência de qualquer Estado de Direito Democrático e requisito essencial para a adesão àquelas do destinatário e da comunidade, não é menos certo que nem o art. 58.º, n.º 1, al. c), do Regime Geral das Contra-Ordenações, nem o Cód. de Processo Penal exigem uma fundamentação exaustiva, sendo certo, aliás, que no âmbito processual penal, o texto da lei menciona “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão”. De acordo com o artigo 9.º do RGCO, a falta de consciência potencial do ilícito, mesmo em se tratando de uma infração negligente, só exclui a culpa quando não for censurável.
Por seu lado, o art. 9º, da Lei nº50/2006, de 29.08, estabelece que: “1- As contraordenações são puníveis a título de dolo ou de negligência. 2 – A negligência nas contraordenações é sempre punível. 3 – O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente exclui o dolo”. Falta, portanto, na matéria de facto provada constante da nova decisão administrativa, a afirmação de que a arguida sabia que a sua conduta não era permitida, que a mesma sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, isto é, a consciência da ilicitude do facto, que é elemento constitutivo do dolo. Por isso, rigorosamente, há omissão de factos na matéria provada contante de decisão administrativa. Não estamos, por isso, perante uma insuficiência de factos para a decisão que possa ser suprida através do reenvio do processo para novo julgamento pois importa ter presente o Acórdão do STJ n.º1/2015 (DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27), que fixou a seguinte Jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.» - com o qual se concorda e não poderá de se aplicar também às contra-ordenações.
Neste quadro doutrinal e jurisprudencial assim exposto, este Tribunal perfilha o entendimento segundo o qual «[a]jurisprudência fixada [pelo dito] Acórdão Uniformizador nº1/2015 não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado. (…)
O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar também a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, (…) e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição» (aqui, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.03.2016, no processo 2572/10.2TALRA.C2, Vasques Osório).
Concluímos assim que a nova decisão administrativa junta aos autos é nula.
Com efeito, seguimos de perto os argumentos invocados por MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA (cfr. ob. loc. cit.), que aqui damos por reproduzidos, pois argumentam, validamente, no sentido do afastamento da posição defendida por ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, uma vez que não é o facto de a decisão condenatória se converter em acusação em caso de impugnação (nos termos do disposto no artigo 62.º, n.º 1, do RGCO) que impede a aplicação subsidiária do regime das nulidades, por comparação com o regime dos processos de contraordenações fiscais aduaneiras, em que a apresentação do processo ao juiz também é equivalente à acusação, mas sem que se impeça que a falta dos requisitos da decisão administrativa condenatória constitua nulidade insanável.
Acresce que entendemos que a posição adotada é a mais consentânea com a possibilidade do cabal exercício do direito de defesa da arguida – de consagração constitucional (cfr. artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa) –, porquanto a mesma, apesar de poder recorrer, como foi o caso, não se encontram na posse dos fundamentos da decisão que lhes permitam indicar os concretos pontos em que manifestam a sua discordância.
No mesmo seguimento, aceitar que uma decisão nestes termos consubstanciaria uma mera irregularidade também não permitiria fazer uma sindicância segura da mesma, pois são desconhecidos os juízos em que assenta.
Na esteira dos referidos Ilustres Comentadores entendemos também que se trata de vício de conhecimento oficioso, por aderirmos, também, aos argumentos que a este propósito invocam.
Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima e que não contenha os elementos que a lei impõe é nula, por aplicação do disposto no art. 374º, nº1, al. a) do CPP, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, o que decorre da redação do art. 379º, nº2 do C.P.P. quando consagra que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso” – nesse sentido vide entre outros, os Acs. do STJ de 31.05.2001, de 08.11.2001 e de 14.05.2003, todos publicados no Boletim Interno do STJ, nºs. 51, 55 e 71, respetivamente e ainda do STJ o Ac. de 02.02.2005, in CJ, tomo I, p. 188; vide ainda Ac. do TRC de 04.10.2006, do TRL de 31.10.2019, ambos in www.dgsi.pt.
Não estando integrados os elementos da tipicidade da contra-ordenação, a consequência há-de ser a absolvição – cfr. Ac. do STJ de 29.01.2007 e do TRC de 11.11.2020, in www.dgsi.pt.
Como se refere no Ac. do TRC, de 11.11.2020:
Em boa verdade, a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação transporta-nos para a disciplina do artigo 283.º do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta, que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional.
Face ao supra exposto, ao abrigo do disposto da conjugação das normas previstas nos artigos 9º, 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), 41.º, n.º 1 do RGCO, art. 9º da Lei nº50/2006, de 29.08, e 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a) e 380.º, do Código de Processo Penal, declara-se nula a decisão administrativa junta aos autos, absolvendo-se a arguida, determinando-se, consequentemente, o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO, o que se decide, ao abrigo do disposto no artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (aplicável por força do disposto nos artigos 66.º do RGCO), resultando prejudicado o conhecimento do demais invocado pela arguida.
*
3 O direito.

A
A presente decisão é irrecorrível?

Não obstante resultar da precedente tramitação dos autos que se entende que a decisão aqui em causa é recorrível, tendo em conta a posição assumida pela recorrida a este respeito, não deixaremos de efetuar uma breve abordagem à aludida questão.
A este respeito, diz a recorrida:

IV. O presente recurso, interposto pelo MP não é admissível, pois o Tribunal a quo não chegou a conhecer do mérito da impugnação apresentada pela arguida, tendo limitado a sua intervenção à apreciação das nulidades invocadas por esta.
V. Não foi assim proferida qualquer decisão que se possa enquadrar nas várias alíneas do n.º 1 do art.º 73.º do RGCO (tendo sido ao abrigo deste n.º 1 que o MP interpôs o recurso) e consequentemente suscetível de recurso para o Tribunal da Relação.
VI. O recurso do MP não foi interposto ao abrigo do n.º 2 do art.º 73.º do RGCO, (mas sim ao abrigo do n.º 1 do artigo 73º do RGCO), nem foi expressamente mencionado no requerimento de interposição de recurso pelo Ministério Público que o mesmo se afigurava manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
VII. Pelo que, deverá o recurso interposto pelo MP ser rejeitado, ao abrigo do art.º 420.º, n.º 1, al. b), do CPP, uma vez que não se mostram verificados os requisitos de admissibilidade constantes do art.º 73.º do RGCO.
Vejamos as pertinentes normas do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10.

Artigo 64.º
Decisão por despacho judicial
1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
3 - O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação.
4 - Em caso de manutenção ou alteração da condenação deve o juiz fundamentar a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.
5 - Em caso de absolvição deverá o juiz indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação.
*

Artigo 73.º
Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.
Resulta dos autos com clareza que:

- por despacho de 23/11/2023, foi considerada a existência de questão prévia de índole jurídica que cumpriria conhecer, tornando-se desnecessária a realização de audiência de julgamento;
- não houve oposição;
- em 27/01/2024, sem a realização da aludida audiência de julgamento, foi proferida a decisão recorrida, de cujo título consta SENTENÇA.

Vista esta tramitação processual, não resta dúvida que o processo foi decidido por despacho, não obstante o nome que lhe foi dado nos autos. Na verdade, como das normas acima transcritas se conclui, decorre com inteira clareza da lei que caso o tribunal entenda não ser necessária a audiência de julgamento, decide por simples despacho – ora, foi precisamente isso que sucedeu, ou seja, o tribunal entendeu ser desnecessária a realização de audiência de julgamento e proferiu despacho que pôs termo ao processo.
Como de modo cristalino também decorre da lei – artigo 73.º, n.º 1, alínea e), do RGCO -, pode recorrer-se para a Relação (…) quando (…) e) O tribunal decidir através de despacho (…).

Assim sendo, carece absolutamente de razão a pretensão de irrecorribilidade da decisão, apresentada pela recorrida, pois estamos claramente em face de decisão recorrível.

B
Em caso de solução negativa dada à anterior questão, a decisão recorrida padece de nulidade, por ausência da integral demonstração dos elementos subjetivos da infração contraordenacional?

A este respeito, entendeu-se na decisão recorrida que:

” Falta, portanto, na matéria de facto provada constante da nova decisão administrativa, a afirmação de que a arguida sabia que a sua conduta não era permitida, que a mesma sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, isto é, a consciência da ilicitude do facto, que é elemento constitutivo do dolo. Por isso, rigorosamente, há omissão de factos na matéria provada contante de decisão administrativa. Não estamos, por isso, perante uma insuficiência de factos para a decisão que possa ser suprida através do reenvio do processo para novo julgamento pois importa ter presente o Acórdão do STJ n.º1/2015 (DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27), que fixou a seguinte Jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.» - com o qual se concorda e não poderá de se aplicar também às contra-ordenações.

Vejamos quais são os factos dados como provados, a respeito da questão que nos ocupa, na decisão administrativa:

Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

No dia 27 de Janeiro de 2021, pelas 09H30, o motorista da arguida, no veículo com a matrícula ..-..-ER, em conjunto com o semirreboque de matrícula L-......, que circulava na Estrada Nacional ..., km ..., comarca de Viana do castelo transportava sucata a descoberto.

A arguida efetuava o transporte de resíduos sem cumprir os requisitos estabelecidos no artigo 4.º da Portaria 145/2017, de 26 de Abril para transporte de resíduos sólidos que eram transportados em caixa aberta, sem que se encontrassem, coberta (…).

Tanto o condutor como o representante legal da arguida tinham conhecimento da obrigatoriedade das normas técnicas de transporte de resíduos sólidos, nomeadamente que a carga teria de ser transportada coberta, porém durante o carregamento a calha onde corria a cobertura ficou danificada impossibilitando a colocação da mesma.

(…) a arguida (…) agiu livre (…).

Comecemos por reconhecer que a decisão contém, nesta parte, como noutras, uma desaconselhável mistura de factos e de juízos conclusivos ou de direito. Tendo em conta a pacífica orientação jurisprudencial e doutrinal de que nas decisões administrativas de aplicação de coimas por prática de contraordenação não é exigível o mesmo rigor formal e material de uma decisão jurisdicional, tal como, e bem, se refere na decisão recorrida, podemos considerar como aceitável esta imprecisão formal.

Resta agora saber se deveriam aqui constar mais alguns factos, designadamente referentes à vertente subjetiva da infração, e, neste particular campo, no tocante à chamada consciência da ilicitude.

Os contornos da categoria dogmática da infração negligente são-nos dados pelo Código Penal, através do seu artigo 15.º, cujo teor é o seguinte:

Artigo 15.º
Negligência
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

Seguindo a exposição de Figueiredo Dias, in Velhos e Novos Problemas da Doutrina da Negligência, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, pag. 353 e segs., a norma transcrita contém o tipo de ilícito do facto negligente (não proceder com o cuidado devido, e assim causar o resultado típico) e o tipo de culpa negligente (de que é capaz). Ou seja, no primeiro caso, a indiferença perante uma obrigação legal e a causação do resultado previsto, no segundo, a exigibilidade àquele concreto agente, em face dos seus conhecimentos, da sua experiência, e das suas possibilidades, de ter procedido de modo diverso.

Assim sendo, fácil é concluir que o que interessa à narração da factualidade necessária para a subsunção legal num tipo negligente, seja criminal ou contraordenacional, se encontra enunciado no vocábulo circunstâncias, constante do texto legal acima transcrito – apenas isso e nada mais do que isso. Tal vocábulo significa particularidade, causa, pormenor de que se reveste um dado facto, acontecimento, situação … Detalhe, – cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia da Ciência de Lisboa, Verbo, pag. 828 -, não havendo qualquer motivo válido para aqui, na hermenêutica jurídica, descortinar um diferente sentido da expressão. Nesta conformidade, é fundamental que qualquer imputação de facto negligente contenha a narração, a descrição, a enunciação, ou o que se lhe quiser chamar, de todos os pormenores juridicamente relevantes para a sua apreciação: quem fez ou deixou de fazer o quê, como, quando, onde, porquê, com quê, o contexto físico e espacial em que atuou ou deixou de atuar, que experiência ou conhecimentos tinha, quais as suas possibilidade físicas, intelectuais, administrativa, organizacionais, ou outras, enfim, toda uma miríade de concretizações, aqui meramente especulativas ou hipotéticas, mas no caso concreto perfeita e indispensavelmente discerníveis e enunciáveis, de modo a que quem tem o dever de apreciar a procedência da imputação, com eventual e consequente punição, disponha de matéria que possa ser passada pelo crivo filtrante dos elementos típicos da infração acima enunciados (tipo de ilícito, que inclui o segmento objetivo e normativo, e tipo de culpa, que, inclui a consciência da ilicitude).

Não há qualquer dúvida de que estamos em face de uma contraordenação ambiental, sendo certo que nos termos do artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto (Lei Quadro das Contraordenações Ambientais), a negligência nas contraordenações é sempre punida, pelo que nada obsta, a este respeito, à imputação leva a cabo no processo administrativo.

O recorrente afirma que:
4.º No facto negligente não é correto falar-se em consciência da ilicitude, enquanto conhecimento, por parte do agente, do caráter ilícito da sua conduta, pois que, aquele elemento respeita a comportamentos dolosos.

Não concordamos com esta esta afirmação, embora reconheçamos que a lei portuguesa, juntamente com parte da doutrina, não é absolutamente unívoca a este respeito.
Na verdade, quer no Código Penal (artigo 17.º), quer no Regime Geral da Contraordenações (artigo 9.º), quer na Lei Quadro das Contraordenações Ambientais (artigo 12.º), o erro sobre a ilicitude está previsto como causa de exclusão da culpa, sendo certo que esta categoria dogmática é imprescindível a ambos os factos, doloso e negligente:
“A evolução científico-dogmática da doutrina da negligência que acaba de assinalar-se, com o reconhecimento no facto negligente da existência de um tipo de ilícito e de um tipo de culpa específicos, tem o seu bom fundamento e as mais eminentes consequências prático-normativas. Na exposição de meridiana clareza de Jeschek, uma tal evolução constitui mais um passo, e importante, no sentido de a jurisprudência contrariar uma acentuada tendência para aproximar em demasia a responsabilidade por negligência de uma «responsabilidade pelo resultado» (de uma responsabilidade objetiva) e cometer, assim, uma violação do princípio da culpa.2 – cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pag. 354. Assim, no caso presente, não basta afirmar que a viatura da arguida seguia com uma carga de sucata sem a cobertura imposta por lei para considerar como praticada a infração contraordenacional, sendo necessária mais profunda indagação dos requisitos ou pressupostos da infração para se poder concluir pela sua verificação e pela necessidade de adoção da reação punitiva legalmente prevista.
Por outro lado, há muito que foi abandonada por grande parte da doutrina, até pela jurisprudência, a associação da consciência da ilicitude, bem como do seu reverso, o erro sobre a ilicitude ou o erro sobre proibição, ao dolo. Lembremos que as duas últimas expressões são sinónimas – cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, AAFDL, 2.º Vol., pag. 308-, por se não dever confundir o erro sobre a proibição com o erro sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, constante da segunda parte do n.º 1 do artigo 16.º do Código Penal, como lucidamente esclarece Teresa Serra, in Problemática do Erro Sobre a Ilicitude, pag. 72 e segs.):
“No quadro traçado até agora, como perspetivar então o erro de que trata o Código na segunda parte do n.º 1 do artigo 16.º(…)? Quando ocorre este erro sobre proibições legais, a que não era feita qualquer referência no primeiro Projeto e que teve a sua fonte direta na obra de Figueiredo Dias?
Segundo este Professor, «perante uma conduta axiologicamente neutra, se o agente desconhece a proibição legal e em consequência disso não alcança a consciência da ilicitude, fica este erro a dever-se ainda a uma falta de ciência, que não a um engano da sua consciência, devendo ser tratado como um «erro intelectual», como um «erro sobre a factualidade típica», em suma como um erro que exclui o dolo. Neste caso, «o que pode censurar-se ao agente não é uma falta de consonância da sua consciência ética com os critérios de valor da ordem jurídica, mas só eventualmente uma falta de cuidado, traduzida na omissão do dever de se informar e esclarecer sobre a proibição legal que torna a sua conduta axiologicamente relevante: a censura típica da negligência».”

Sobre a evolução jurisprudencial do nosso Supremo Tribunal de Justiça a respeito do enquadramento do erro sobre a ilicitude, veja-se a nota 236, constante das páginas 311/312, da obra citada de Teresa Pizarro Beleza; sobre a evolução histórica da questão, veja-se a interessante resenha de Figueiredo Dias, in Acerca do Tratamento do Erro no Sistema Penal Moderno, Temas Básicos …, pag. 281 e segs.

Não obstante todas estas dificuldades, podemos sempre afirmar, com Teresa Pizarro Beleza, ob. cit., loc. cit., pag. 524, que:
“Em relação á culpa, o que é que se passa nos crimes negligentes?
Em princípio, também na culpa se discutirão os mesmos elementos que se discutem nos crimes dolosos, embora com eventuais especialidades (…). Isso quer dizer que para a culpa ficarão também, em princípio, as possibilidades de exclusão que se põem em relação aos crimes dolosos. (…). Eventualmente haverá casos de erros inevitáveis sobre proibições (…), isso poderá suceder, por exemplo, em relação às regras de trânsito que não sejam perfeitamente claras de tal modo que as pessoas não tenham noção de que existe uma certa proibição, não sendo censuráveis por não terem essa noção; aí funcionaria esse erro como excluindo a culpa em relação a um crime negligente.” Veja-se o exemplo concreto fornecido por esta autora na nota 514 da pag. 25 da aludida obra: um indivíduo residente no estrangeiro chega a Portugal em Janeiro de 1981 e conduz um automóvel sem palas protetoras nas rodas traseiras, e, exclusivamente pro esse facto, causa um acidente mortal, porque o condutor atrás dele perdeu a visibilidade devido à lama projetada pelas rodas do veículo do aludido indivíduo, embatendo, assim, num poste de iluminação, perdendo a  vida, podendo discutir-se se (…) haveria um facto típico de homicídio negligente cometido com falta de consciência da ilicitude, possivelmente desculpável.” É certo que este texto é anterior à publicação do Código Penal atualmente em vigor, e que a redação da lei, e a sua interpretação, como se viu, não são unívocas, designadamente por causa das questões emocionais e de consciência intelectual/ética, e sua arrumação na dogmática penal, no âmbito do pensamento do insigne Mestre de Coimbra, que acabaram por influenciar a redação legal, não faltando, contudo, exemplos autorizados também na doutrina, a contestar veementemente a inclusão da emoção no dolo – v.g.,  cr. Teresa Serra, ob. cit., pag. 65.

Assentemos, portanto, que também na infração negligente (contraordenacional ou penal) a questão da consciência da ilicitude ou o seu reverso, o erro sobre a proibição ou falta de consciência da ilicitude, constitui parâmetro investigatório em ordem ao completo preenchimento dos pressupostos da punição, devendo, todavia, ser enquadrados na categoria da culpa e não do dolo – o próprio Prof. Figueiredo Dias, não obstante a sua burilada posição sobre a emoção, a consciência psicológica (relativa às proibições referidas na segunda parte do 1rt.º 16.º, n.º 1, do Código Penal) e a consciência ética (pertinente à consciência da ilicitude ou sua falta), aceita que a consciência da ilicitude é um segmento dogmático referente à culpa: Temas Básicos …, pag. 288 e segs.; também o Prof. Cavaleiro de Ferreira, afirma categoricamente que “ a consciência da ilicitude não é elemento constitutivo do dolo, nem como consciência atual nem como consciência atualizável da ilicitude”, in Direito Penal Português, Vol. I, 1981, pag. 476, sendo certo que a entrada em vigor do atual Código Penal levou a que nas suas Lições de Direito Penal, Almedina, Reimpressão da 4.ª Edição de Setembro de 1992, Parte Geral I, pag. 135 e segs., tenha sentido a necessidade de explicar de forma algo diferente o problema, mas sem mudar no essencial a sua posição, em face da “dificuldade de coordenação” entre o disposto nos artigos 16.º e 17.º do aludido Código, esclarecendo que  estas normas “(…) foram objeto de alterações de redação posteriores à primeira revisão do projeto; talvez por isso se verifique a confusão terminológica que origina a opacidade das suas definições e o hermetismo do contexto dos dois artigos (…)”.

“Na prática, as questões da falta de consciência da ilicitude são raras. Normalmente, presume-se essa consciência, em especial nos casos em que a ilicitude do facto é evidente, o agente é adulto e plenamente capaz de culpa. Daí que, regra geral, o problema da consciência da ilicitude só seja analisado: a) quando o agentes e defende alegando ter atuado em erro sobre a proibição, b) nos casos em que existem fundadas dúvidas acerca da sua consciência da ilicitude, em virtude de o agente e ser estrangeiro; de a norma violada não pertencer ao núcleo do Direito Penal – podendo pertencer ao Direito Penal económico, fiscal, aduaneiro, etc.; de ser duvidosa ou, até, contraditória a sua interpretação; c) e ainda quando o agente pudesse ter pensado estar a atuar na presença ou dentro dos limites de uma causa de justificação.” Cfr. Teresa Serra, ob. cit., pag. 68.

Todavia, o facto de normalmente se poder presumir, no campo do núcleo do Direito Penal, a consciência da ilicitude, devemos sublinhar a absoluta indispensabilidade da sua alegação, admitindo-se, naqueles  casos nucleares, muitas das vezes, o seu assentamento quase por presunção – tenhamos presente que no direito processual só não carecem de alegação e prova os factos notórios ou de que haja conhecimento oficioso, sendo apodítico que, os que pertencem à dita categoria de nucleares, embora se possam, nalguns casos, presumir, notoriamente, não são notórios nem de conhecimento oficioso.
Vistas estas questões, por assim dizer, perfunctórias, porque abordadas e afirmadas na decisão recorrida e no recurso, vejamos, em concreto, o que se passa nos autos.

Ora, como acertadamente e refere no parecer emitido nos autos, da decisão impugnada consta o seguinte:

Tanto o condutor como o representante legal da arguida tinham conhecimento da obrigatoriedade das normas técnicas de transporte de resíduos sólidos, nomeadamente que a carga teria de ser transportada coberta, porém durante o carregamento a calha onde corria a cobertura ficou danificada impossibilitando a colocação da mesma.
(…) a arguida (…) agiu livre (…).

Como todos sabemos, n o processo penal costuma usar-se, para alegar a pressuposto da consciência da ilicitude, que o agente conhecia a proibição e punição legal relativa ao seu comportamento. Tal expressão costuma ser precedida daqueloutra, não menos famosa, agiu livre, deliberada e conscientemente, com a qual se pretende demonstrar, respetivamente, a liberdade de ação, o dolo e a imputabilidade do aludido agente – é certo que ultimamente, seja por distração ou por criatividade peregrina, têm surgido, amiúde, questões relativas à imperfeita alegação de todos estes requisitos, através da utilização de formulações diferentes, carecidas, pelo menos para alguns, da completude que àquelas indubitavelmente assiste, o que leva a decisões e recursos que a nosso ver seriam perfeitamente evitáveis com um pouco mais de disciplina intelectual, espírito analítico e solidez categorial.

Ora, afirmar que o infrator tinha conhecimento da obrigatoriedade das normas técnicas de transporte de resíduos sólidos, e esclarecer ainda que esse conhecimento era extensivo à norma de que a carga teria de ser transportada coberta, norma essa que estriba a imputação e punição da infração, preenche, de modo evidente e claro a alegação de que o infrator tem consciência da ilicitude (obrigatoriedade das normas técnicas de transporte de resíduos sólidos) e da concreta norma (proibição constante do tipo) que impõe que aquela concreta carga deveria ser transportada coberta. Temos, portanto, alegados, de modo suficiente, o conhecimento da ilicitude do comportamento (em geral) e do elemento normativo do tipo negligente (neste caso) – a norma que impõe o transporte coberto da carga. Estão, em síntese, alegadas as circunstâncias do caso relativas à relação da(s) consciência(s) ética e psicológica (para usar as expressões do prof. Figueiredo Dias) do agente com a ordem ético-jurídica da comunidade em que se insere, sendo até já um pouco difícil afirmar que a questão concretamente objeto destes autos, não obstante ser de natureza contraordenacional, é axiologicamente neutra – as questões ambientais estão no topo das preocupações mundiais e o desrespeito pelo ambiente é visto como altamente censurável, assistindo-se às mais inflamadas manifestações sobre o tema, bem como ao assertivo discurso (muitas vezes, só isso) do Estado, e até a inesperadas proclamações, como é o caso, por exemplo, da encíclica Laudato Si, da Igreja Católica,

Utilizando o exemplo acima fornecido por Teresa Pizarro Beleza, um cidadão alemão que se deslocasse a Portugal e aqui decidisse conduzir um potente veículo numa autoestrada e fosse autuado por se deslocar à velocidade de 250 km hora, poderia alegar que desconhecia que entre nós havia limites de velocidade na autoestrada (problema de falta de consciência da ilicitude), e/ou conhecendo essa limitação, alegar que desconhecia que naquela via o limite é de 120 km hora (elemento normativo do tipo negligente). Se essa alegação é aceitável ou não, e, portanto, qual o juízo sobre ela incidente (não censurável ou censurável), é questão diferente e que aqui não interessa discutir.

Entendemos, portanto, que não assiste razão à decisão recorrida, e que a decisão administrativa reformulada impugnada, não obstante várias e evidente imperfeições formais, contém o essencial para que a arguida saiba do que a estão a acusar e qual a razão da sua punição, bem como para, a verificar-se a sua exatidão, considerar praticada a infração negligente.

Assim sendo, a decisão administrativa impugnada não padece de nulidade, designadamente a que lhe atribui a decisão ora recorrida, pelo que, embora com fundamentação parcialmente diferente da pretensão recursiva, há que acolher o que ali se propõe.

C
Em caso de solução negativa em relação à anterior questão, devem os autos ser devolvidos à primeira instância ou proferir-se decisão final nesta Relação?

O recorrente pretende que os autos sejam devolvidos à primeira instância, devendo ser ordenada a prolação de decisão que conheça do mérito da impugnação judicial apresentada pela Arguida, concretizando-se no parecer que deverá aí ter lugar a audiência de julgamento, com a produção de prova indicada na impugnação judicial, e outra que se mostre pertinente.

O recorrido entende que:

IX. Caso o recurso apresentado pelo MP fosse procedente (o que não se concebe, e que por mero raciocínio académico se equaciona), e a sentença recorrida fosse revogada, nunca poderia ser substituída por uma decisão que conhecesse do mérito causa por simples despacho, conforme pugna o MP.
X. Pelo que, sempre teriam os autos de prosseguir para novo julgamento, porquanto, a arguida apenas não se opôs a que fosse proferido despacho para conhecer da questão prévia, que versava sobre a matéria de direito, não tendo aceitado que a decisão sobre o mérito da causa pudesse ser proferida por simples despacho.
XI. Em caso de procedência do recurso apresentado pelo MP (o que não se concebe, e que por mero raciocínio académico se equaciona), sempre teriam os autos que prosseguir para julgamento, e, prosseguindo os mesmos para julgamento, a arguida estaria a ser julgada duas vezes pelos mesmos factos, violando assim o princípio constitucionalmente consagrado, non bis in idem, constante do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição

Ora, embora se trate de tema de escassa ou nula relevância, a chamada sentença é, na verdade, um despacho, tal como acima se deixou claro.

Por outro lado, é evidente que o presente recurso tem natureza de cassação e não de substituição, pelo que a sua procedência determinará, com absoluta naturalidade, a devolução dos autos à primeira instância, para que a sua tramitação prossiga, não sendo lícito a esta Relação ordenar os passos subsequentes a seguir – o poder jurisdicional recursivo é averiguar se a decisão está correta ou não, e não comandar a futura tramitação dos autos, pois pode haver qualquer outra circunstância que a condicione ou determine e que aqui não é ou não possa ser considerada; assim, o que o tribunal recorrido tem que fazer é proceder de acordo com o juízo de que não ocorre nulidade por falta de indicação na decisão impugnada de factos relativos à existência de consciência da ilicitude; o resto decorre da lei e do estado dos autos, nada impedindo, abstratamente, que se decida novamente através de despacho ou que se prossiga para audiência de julgamento, tudo dentro da normal subsequente e inevitável tramitação dos autos.

O que de modo absolutamente evidente não corresponde à realidade jurídico-processual é a afirmação de que no âmbito da sequência atrás enunciada a arguida estaria a ser julgada duas vezes pelos mesmos factos. É verdade que a decisão através de despacho é, neste caso, um julgamento, pois representa um ato do poder jurisdicional para pôr termo ao processo, assim como o seria, e, em momento anterior, já o foi nos autos, a sentença proferida após a realização da audiência de julgamento, com produção de prova e decisão de matéria de facto e/ou de direito. Todavia, o julgamento ali e aqui efetuado não vingou, uma vez que o juízo recursivo foi e é, como se viu, procedente, o que implicou a sua revogação em ambos os casos. Ou seja, não há na ordem jurídica qualquer julgamento válido da questão em causa, transitado em julgado, pelo que não ocorre qualquer violação do princípio ne bis in idem. Se a originalíssima tese do recorrente a este respeito formulada fosse acolhida, qualquer anulação de julgamento implicaria o arquivamento do processo, para que não ocorresse um duplo julgamento: podemos tão prosaica quão literalmente dizer que ele ocorre, em caso de anulação como no caso presente, mas não o podemos afirmar jurídico-processualmente, que é o que, evidentemente, nos interessa. E podemos fazê-lo sem necessidade de mais pormenorizada fundamentação, uma vez que se trata de afirmação eivada de luce meridiana clarior.

Não procede, portanto, a objeção do recorrido em relação às eventuais consequências da devolução dos autos à primeira instância para posterior tramitação legal.

III DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, revogam a decisão recorrida, devendo prosseguir-se com a tramitação dos autos.

Sem tributação.
Guimarães, 24 de Setembro de 2024,

Os Juízes Desembargadores
Bráulio Martins
Pedro Cunha Lopes
Carlos da Cunha Coutinho