QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
CONTABILISTA CERTIFICADO
Sumário


1. O contabilista tem, por definição, atualmente, um tão extenso conhecimento da realidade económica, financeira, patrimonial e documental das entidades para quem presta serviços, pelo que certamente ninguém melhor que ele para esclarecer os pertinentes factos em julgamento, principalmente se o arguido afirma nem sequer saber do que se trata.
2. O sigilo contabilístico tem, essencialmente, tal como o segredo da escrituração mercantil (realidade não inteiramente coincidente com a contabilidade), obrigação que para os comerciantes deriva do artigo 29.º do Código Comercial, a finalidade de “(…) assegurar que o segredo continue a ser a alma do negócio, estando também tal obrigação protegida pelo segredo instituído pelo artigo 41.º do mesmo Código, o qual, todavia, segundo a mesma norma, deverá ceder em, vária situações – sucessão universal, comunhão, sociedade, insolvência.
3. As infrações fiscais bolem de modo transversal e profundo com a organização social e económica da comunidade, designadamente com a tesouraria do Estado, e atentas as imensas funções que este tem assumido entre nós ultimamente na Europa ocidental, no fim de contas, com a comunidade como um todo e com os serviços e prestações de que é beneficiária, sendo certo que os próprios infratores o são igualmente, pois a comissão destes factos não os impede de circular nas estradas, serem assistidos nos serviços de saúde, frequentarem estabelecimentos de ensino, serem protegidos pelas polícias, etc.
4. Os bens jurídicos que estão em causa são, portanto, coletivos, e de enormíssima importância (defesa, justiça, saúde, ensino, segurança, proteção social), pelo que não pode haver hesitações na ponderação entre esta miríade de necessidades e a proteção do saber-fazer lucrativo de uma determinada entidade, numa prosaica simplificação, entre o funcionamento de um hospital e o lucro de um merceeiro.
5. O contabilista é um profissional especialmente bem colocado para se aperceber de todas as operações de uma empresa, e do seu conteúdo, e de as enquadrar na atividade desta, e de sobre elas depor, especialmente quando o dono de tal empresa está acometido de pertinente amnésia, sendo certo que, embora possamos estar em face de infrações com (ainda) escassa ressonância social, é incontroverso que os bens jurídicos protegidos por tais infrações têm importância cimeira, pelo que deve ser ordenada a prestação do respetivo depoimento com quebra do sigilo profissional.

Texto Integral


I RELATÓRIO

1
O Mmo. Juiz titular do processo n.º 58/21...., do Juízo Local Criminal de Braga – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, veio, nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, solicitar a este Tribunal da Relação que ordene que AA preste depoimento como testemunha na audiência de discussão e julgamento nos autos acima referenciados, com quebra do sigilo profissional de contabilista certificada, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Para tanto, vem invocado o seguinte:

A Digna Magistrada do Ministério Público veio requerer que seja suscitada a intervenção do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, devendo ser considerado “prevalente o interesse público na boa administração da justiça perante o interesse que se visa tutelar com o sigilo imposto à contabilista certificada, e, consequentemente, seja determinada que, com quebra do sigilo profissional, a Sra. Contabilista Certificada AA preste depoimento, como testemunha, na audiência de discussão e julgamento”.

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Cumprido o princípio do contraditório, nenhum dos ilustres mandatários/defensores dos arguidos se pronunciou quanto ao requerido pelo Ministério Público.
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Cumpre apreciar e decidir.
No âmbito do presente processo o Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum e perante Tribunal, singular, contra o arguido BB e a sociedade arguida EMP01... – UNIPESSOAL, LDA., imputando-lhes a prática de um crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, 103.º, n.º 1, alínea c), e 104.º, n.º 2, alíneas a) e b), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias, e pelo artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal.
Além de outras, o Ministério Público arrolou como testemunha de acusação AA.
Ora, sucede que a testemunha em causa é Contabilista Certificada, tendo esclarecido em Tribunal, face a questão nesse sentido suscitada pelo Ilustre mandatário do arguido BB constituído no dia da audiência de julgamento (cfr. a procuração junta no início da audiência de julgamento – fls. 1176 e 1177 a 1181), que não tinha previamente comunicado à Ordem dos Contabilistas Certificados que iria depor na qualidade de testemunha e nem pedido/obtido autorização da Ordem dos Contabilistas Certificados nesse sentido. O Ilustre mandatário do arguido assumiu posição formal no sentido de que a testemunha em causa estava abrangida pelo sigilo profissional e não poderia depor na qualidade de testemunha.
Perante a questão suscitada em audiência, a sessão foi então suspensa, no que se refere à inquirição da testemunha em causa, com o fim de que a mesma obtivesse a devida autorização junto da Ordem dos Contabilistas Certificados.
Conforme resulta da comunicação da testemunha em causa junta aos autos no dia 6 de março de 2024 e com a referência eletrónica ...14, a Ordem dos Contabilistas Certificados assumiu a posição de que sobre a testemunha AA, Contabilista Certificada, recai o dever de sigilo profissional relativamente aos factos de que teve conhecimento no âmbito das funções que prestou como contabilista da sociedade arguida EMP01... - UNIPESSOAL, LDA., pelo que não poderá prestar declarações sem que seja promovido o competente levantamento do sigilo. A Ordem dos Contabilistas Certificados mais esclareceu que “tal dever de sigilo não está temporalmente limitado, mantendo-se mesmo após a cessação de funções do contabilista certificado ou até mesmo após o cancelamento da sua inscrição na Ordem dos Contabilistas Certificados”. Pronunciou-se a Ordem dos Contabilistas Certificados no sentido de que deve o Tribunal desencadear o incidente de levantamento do sigilo profissional.
No seguimento da promoção da Digna Magistrada do Ministério Público datada de 12 de março de 2024, face aos esclarecimentos prestados pela Ordem dos Contabilistas Certificados, impõe-se a conclusão de que é legítima a escusa da referida testemunha relativamente a todas as informações de que tenha tomado conhecimento no exercício da sua profissão, face ao dever de sigilo imposto aos Contabilistas Certificados, nos termos do artigo 72.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e do artigo 10.º do Código Deontológico do Contabilista Certificado.
Sucede que o sigilo profissional dos Contabilistas Certificados não reveste uma obrigação de natureza absoluta, mas relativa e, assim, poderá, em certas circunstâncias, ser arredado esse dever através da quebra do dever de sigilo.
Conforme refere o artigo 135.°, n.°s 2 e 3, do Código de Processo Penal, o regime processual da quebra de sigilo faz apelo ao critério do princípio da prevalência do interesse preponderante a fim de ajuizar qual deles deverá sobrepor-se ao outro, sendo que, nessa ponderação a realizar para esse fim, importa ter em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
No que se refere aos presentes autos, o arguido BB e a sociedade arguida EMP01..., UNIPESSOAL, LDA., encontram-se acusados da prática de um crime de fraude fiscal qualificada, na forma continuada, previsto pela conjugação dos artigos 6.º, 7.º, 103.º, n.º 1, alínea c) e 104.º, n.º 2, alíneas a) e b), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias, e pelo artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, o qual é abstratamente punível com pena de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.
Assim, atento o crime em apreço e a respetiva moldura penal, resulta que o referido ilícito criminal não se inclui na categoria das chamadas “bagatelas penais”.
Conforme bem anota a Digna Magistrada do Ministério Público na promoção datada de 12 de março de 2024, “acresce que não podemos olvidar a frequência com que se vem registando este tipo de ilícito, com graves consequências para os trabalhadores e credores da empresa visada, abalando os alicerces do sistema económico do país, bem como a confiança dos operadores económicos e das pessoas em geral, pelo que carece de reforço o interesse público do Estado em exercer o jus puniendi.”.
Entende o Ministério Público que o depoimento da testemunha AA é imprescindível à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, porquanto enquanto única contabilista da sociedade arguida, bem como da sociedade EMP02... (sociedade emitente das faturas referidas na acusação como falsificadas), no período em apreço na acusação pública, tem a mesma conhecimento direto de quem geria a referida sociedade, como era gerida a referida sociedade, como os documentos contabilísticos eram organizados e lançados na contabilidade da sociedade, podendo a mesma ser confrontada com os documentos indicados na acusação como falsificados, com vista a esclarecer os negócios subjacentes à mesma. No seguimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de fevereiro de 2023, relatado pela Senhora Desembargadora Maria da Conceição Miranda, proferido no âmbito do processo n.º 2223/16.1T9ALM-B.L1-3, disponível na internet no endereço https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/352afcee4c6d70df0258956005a71aa?OpenDocument, “estando em causa crimes fiscais, o testemunho de ..., contabilista certificada, que, no exercício dessa profissão, procedeu à organização e execução da contabilidade da sociedade e ao tratamento de todos os documentos de suporte dos registos de fluxos financeiros a ela relativos, apresenta-se essencial para o esclarecimento do circunstancialismo fáctico em discussão nos autos”.
Acresce que, no âmbito da prova já produzida em sede de audiência de julgamento, o arguido BB declarou, além do mais, desconhecer o teor das faturas constantes da acusação como falsos, bem como o motivo do respetivo lançamento na contabilidade da sociedade arguida.
Assim, urge inquirir a testemunha em apreço.
Deste modo, atendendo à imprescindibilidade da informação pretendida, a gravidade do crime em questão e a necessidade de proteção de bens jurídicos, apresenta-se claramente superior o interesse público na boa administração da justiça, que exige uma descoberta da verdade material subjacente à produção de prova, com vista ao apuramento dos factos em discussão na audiência de julgamento, devendo, pois, o mesmo prevalecer perante o interesse que se visa tutelar com o sigilo imposto à Sra. Contabilista Certificada e aqui testemunha AA.
Pelo exposto, extraia certidão da acusação de fls. 480 a 487, da ata de fls. 1177 a 1181, da ata de fls. 1182 e 1183, do expediente com a referência ...02, de 06 de março de 2024, da promoção datada de 12 de março de 2024, do despacho datado de 19 de março de 2024 e suas notificações, bem como do presente despacho, remetendo-a, com requerimento elaborado pelo signatário, ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, com o fim de ser determinado que, com quebra do sigilo profissional, a Sra. Contabilista Certificada AA preste depoimento como testemunha na audiência de discussão e julgamento, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

2
O Ministério Público teve vista nos autos, neste Tribunal da Relação, e emitiu parecer no sentido do deferimento do pedido que ora se aprecia.

3
A Ordem dos Contabilistas certificados, oportunamente ouvida nos autos, com fundamento no art.º 10.º do Código Deontológico do Contabilista Certificado e no art.º 72.º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, assumiu a posição de que, sobre a testemunha AA recaía o dever de sigilo profissional relativamente aos factos de que teve conhecimento no exercício das suas funções

II FUNDAMENTAÇÃO

Não existem questões prévias ou quaisquer invalidades processuais que cumpra apreciar e que obstem ao conhecimento do mérito do presente pedido, pelo que cumpre apreciá-lo.

O Ministério Público exarou parecer que reproduz com rigor o que nos autos se passa e enuncia de modo correto a questão a decidir, pelo que, por estarmos de acordo com o seu teor, e ainda por economia processual, reproduzimo-lo:

Da consulta eletrónica dos autos resulta que o Ministério Público deduziu acusação contra a sociedade “EMP01..., Unipessoal Lda.” e o respetivo sócio gerente, BB, imputando-lhes a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, na forma continuada, previsto nos termos das disposições conjugadas dos artigos 6.º, 103.º n.º 1, alínea c) e 104.º, n.º 2, alíneas a) e b), da Lei n.º 15/2001, de 5/6 (Regime Geral das Infrações Tributárias), com referência ao artigo 7.º do mesmo diploma quanto à sociedade, punido com pena de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.
A AA – enquanto contabilista quer da sociedade emitente das faturas, “EMP02..., Prestação de Serviços, Lda.”, quer da sociedade arguida que delas beneficiou – foi indicada como testemunha de acusação, sendo que o seu depoimento se revela imprescindível à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, tanto mais que tinha conhecimento direto da forma como eram geridas as sociedades e como os documentos contabilísticos eram lançados nas respetivas contabilidades.
A importância de tal depoimento torna-se ainda maior pelo facto de o arguido BB ter declarado desconhecer as faturas que o Ministério Público reputa de falsas, bem como as circunstâncias em que foram lançadas na contabilidade da empresa arguida.
Acontece que a Ordem dos Contabilistas Certificados, com fundamento no art.º 10.º do Código Deontológico do Contabilista Certificado e no art.º 72.º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, assumiu a posição de que, sobre a testemunha AA, recaía o dever de sigilo profissional relativamente aos factos de que teve conhecimento no exercício das suas funções.
Por entender que o depoimento da testemunha era essencial à descoberta da verdade e que o interesse público na realização da justiça deveria prevalecer perante o interesse que se visa tutelar com o sigilo profissional, a Exma. Procuradora da República requereu a quebra do sigilo profissional da Sra. contabilista certificada.
Ouvidos os restantes sujeitos processuais o Mm.º Juiz a quo proferiu despacho em que considerou legítima a recusa da testemunha em prestar depoimento e ordenou a abertura do presente incidente de quebra de sigilo e a sua remessa a este Tribunal da Relação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Desde já se antecipa que consideramos estarem reunidos os requisitos para que seja levantado o dever de sigilo.
Vejamos.
A questão que se coloca circunscreve-se a saber se deve ou não ser dispensado o segredo profissional de AA, contabilista certificada, cuja inquirição como testemunha se pretende nos autos.
A resposta a tal questão passa por indagar qual o interesse prevalecente se o da tutela da confiança profissional, que subjaz ao respetivo sigilo, ou do dever de exercício do jus puniendi do Estado, tendo em vista a boa administração da justiça.
Efetivamente, dispõe o art.º 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que o Tribunal Superior “pode decidir a prestação do testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Impõe-se, assim, confrontar os dois interesses conflituantes – a tutela do dever de confidencialidade versus o dever de colaboração com a administração da justiça penal – cabendo a este Tribunal da Relação decidir da solicitada quebra desse dever, caso esta se mostre justificada face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.
 Como se disse, está em causa nos autos a eventual prática de um crime de fraude fiscal qualificada, punível com prisão de 1 a 5 anos, envolvendo elevada quantia monetária, sendo manifesto o interesse do depoimento pretendido para prossecução do processo penal.
Com efeito, numa situação como a dos autos, não existe qualquer outra diligência probatória que possa substituir o depoimento da Sra. contabilista certificada uma vez que, face à posição assumida pelo arguido BB – que declarou desconhecer as faturas que o Ministério Público reputa de falsas, bem como as circunstâncias em que foram lançadas na contabilidade da empresa – só ela poderá esclarecer tal factualidade, sendo por isso tal depoimento necessário e imprescindível para a descoberta da verdade.
Acresce que, como bem salienta a Exma. Procuradora da República, estamos perante um comportamento ilícito generalizado que cria distorções de mercado, injustiça tributária e problemas financeiros no âmbito da receita fiscal. Por outro lado, estamos perante o crime tributário com maior desvalor da ação, já que pune as condutas social e eticamente mais danosas dos interesses do Estado. Ora, os cidadãos e empresas que violam de modo gravoso a legalidade tributária prejudicam o interesse público do Estado na arrecadação das receitas tributárias, o funcionamento normal da economia e os princípios da igualdade e de equidade tributária, já que a falta de entrega de tributo faz agravar a carga tributária que impende sobre os cumpridores.
Em suma, o exercício da ação penal e a descoberta da verdade material impõem como preponderante o interesse público da boa administração da justiça, quando em confronto com os interesses tutelados pelo sigilo profissional da Sra. contabilista certificada, pelo que se justifica a sua quebra, mediante a prestação do depoimento requerido.
Termos em que somos de parecer que se mostram reunidos os requisitos para que seja levantado o dever de sigilo por parte daquela, devendo o presente incidente ser deferido.

Vejamos, apenas para mais pormenorizadamente aquilatar da necessidade do depoimento em causa, qual é o múnus atual de um contabilista.
“A contabilidade, inicialmente, assimilava-se à escrituração, ao registo das operações realizadas pelos comerciantes. No nosso velho Código Comercial (artigo 29.º) diz-se que todo o comerciante é obrigado a ter livros que deem a conhecer, fácil, clara e precisamente, as suas operações comerciais e fortuna.
Tradicionalmente o objeto da contabilidade consistia na revelação da movimentação dos valores de organismos económicos com vista a determinar, nas alturas necessárias, a sua situação económico-financeira, preocupação que se ligava com ideias de salvaguarda jurídica de interesses dos credores. Hoje, a contabilidade constitui uma técnica de observação económica muito elaborada com objetivos muto significativos para o desempenho da gestão e para o conhecimento da situação das empresas e outras instituições.
Da inicial função passiva de registo cronológico de factos patrimoniais passados, a contabilidade foi evoluindo, tornando-se previsional, controladora e crítica das operações de gestão realizadas pelas instituições que dela se servem.
A contabilidade tem-se revelado elemento imprescindível para a orientação das empresas e doutras instituições, servindo as suas informações não só aos gestores e dirigentes ou sócios, mas a outros colaboradores, pessoal, Fisco, clientes, fornecedores, financiadores e público em geral.
O desenvolvimento crescente das atividades empresariais e a complexidade cada vez maior das relações comerciais, a necessidade do máximo aproveitamento das margens de lucro, cada vez mais cerceadas, todos estes e outros fatores  obrigaram a seguir de perto as operações internas das empresas e os próprios processos de produção em ordem a conseguir, não só uma determinação rigorosa e completa dos diferentes custos, mas, sobretudo, uma análise adequada da eficiência dos vários departamentos e funções.
O planeamento das atuações de gestão, a sua programação cifrada (orçamentos) e o registo em constas são factos interligados. A análise do passado e a constatação do presente são elementos para a projeção do futuro. A comparação do previsto com o realizado e a interpretação dos desvios são base não só para a elaboração de novas e mais corretas previsões ma também dados imprescindíveis para a gestão, gestão baseada e objetivos prefixadas e executada através de controlos e julgamentos sobre desvios e conduta que saiam dos objetivos e programas preestabelecidos (gestão por objetivos e por exceção).
A contabilidade previsional (a contabilidade virada para o futuro, antítese e da contabilidade tradicional de mera escrituração histórica) é instrumento necessário a uma gestão nestes moldes modernos (…).
Os responsáveis pela contabilidade têm de ser hoje peritos quer na organização do tratamento de dados quer na interpretação dos elementos recolhidos, tendo em conta a evolução das doutrinas e regras da gestão empresarial e das técnicas de análise e controlo.
Tudo isso acentuou o positivo declínio do trabalho meramente executivo do antigo profissional de contabilidade. Hoje, o contabilista ocupa-se essencialmente das tarefas de conceção e organização dos procedimentos a executar por via dos computadores. A análise e a interpretação dos elementos elaborados impõem a colaboração entre técnicos e diversas áreas. O contabilista prepara e estuda informações de gestão de que o moderno gestor necessita para planear, organizar, comandar e dirigir (motivar), coordenar e controlar as operações e a marcha da empresa.” – cfr. Prof. Doutor Rogério Fernandes Ferreira, in Contabilidade, Direito das Empresas, Obra Coletiva, coordenada pelo Prof. Doutor Diogo Leite de Campos, INA, 1990, pag.17/18.

Ora, se o profissional aqui em causa tem, por definição, um tão extenso conhecimento da realidade económica, financeira, patrimonial e documental das entidades para quem presta serviços, certamente ninguém melhor que ele para esclarecer os factos em julgamento, tanto mais que o arguido, como bem se refere no aludido parecer, nem sequer sabe do que se trata, segundo diz.

Por outro lado, devemos relembrar que o sigilo contabilístico tem, essencialmente, tal como o segredo da escrituração mercantil (realidade não inteiramente coincidente com a contabilidade, note-se), obrigação que para os comerciantes deriva do artigo 29.º do Código Comercial, a finalidade de “(…) assegurar que o segredo continue a ser a alma do negócio (…) – cfr. Prof. Oliveira Acensão, Lições de Direito Comercial, AAFDL, 1986/1987, Vol. I, pag. 293, estando também tal obrigação protegida pelo segredo instituído pelo artigo 41.º do mesmo Código, o qual, todavia, segundo a mesma norma, deverá ceder em, vária situações – sucessão universal, comunhão, sociedade, insolvência.

Quanto à análise do crime em causa no tocante à gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos, devemos reconhecer que no meio social as infrações tributárias não são, habitualmente, das mais censuradas, pois apesar de não serem propriamente axiologicamente neutras, também não pertencem ao núcleo dos crimes que abalam as sociedades – podemos até constatar, ao longo da história e atualmente, muitas, e às vezes dramáticas, reações contra o Fisco, e até muitos concidadãos a dirigir panegíricos a quem consegue ludibriar essa, segundo eles, infecta entidade. Todavia, se perspetivarmos de modo frio e distante a situação em causa, facilmente chegaremos à conclusão que estas infrações bolem de modo transversal e profundo com a organização social e económica da comunidade, designadamente com a tesouraria do Estado, e atentas as imensas funções que este tem assumido entre nós ultimamente na Europa ocidental, no fim de contas, com a comunidade como um todo e com os serviços e prestações de que é beneficiária, sendo certo que os próprios infratores o são igualmente, pois a comissão destes factos não os impede de circular nas estradas, serem assistidos nos serviços de saúde, frequentarem estabelecimentos de ensino, serem protegidos pelas polícias, etc. Os bens jurídicos que estão em causa são, portanto, coletivos, e de enormíssima importância (defesa, justiça, saúde, ensino, segurança, proteção social), pelo que não pode haver hesitações na ponderação entre esta miríade de necessidades e a proteção do saber-fazer lucrativo de uma determinada entidade, numa prosaica simplificação, entre o funcionamento de um hospital e o lucro de um merceeiro.

Assim sendo, em conclusão, não há qualquer dúvida de que o contabilista é um profissional especialmente bem colocado para se aperceber de todas as operações de uma empresa, e do seu conteúdo, e de as enquadrar na atividade desta, e de sobre elas depor, especialmente quando o dono de tal empresa está acometido de pertinente amnésia, sendo certo que, embora possamos, tal como se disse, estar em face de infrações com (ainda) escassa ressonância social, é incontroverso que os bens jurídicos protegidos por tais infrações têm importância cimeira.


O pedido formulado no presente incidente deve ser, portanto, deferido.

III DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em deferir o presente incidente, decidindo que AA preste depoimento na audiência de julgamento do processo n.º 58/21...., do Juízo Local Criminal de Braga – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, com quebra do segredo profissional.

Sem tributação.
Guimarães, 24 de Setembro de 2024

Os Juízes Desembargadores

Bráulio Martins
Júlio Pinto
Anabela Varizo Martins