GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
HIPOTECA
JUROS DE MORA
Sumário

Os juros de mora só hão-de ser reconhecidos e graduados desde que tenham sido reclamados.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Credora Reclamante: Caixa Geral de Depósitos, SA
Recorrido / Insolvente: (…)

Tendo sido declarada a insolvência do Devedor por sentença transitada em julgado e fixado o prazo para a reclamação de créditos, apresentou-se a Credora CGD a reclamar créditos formulando o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos demais de Direito aplicável, requer a V. Exa. que se digne:
a) Admitir a presente reclamação;
b) Verificar e reconhecer o crédito que o Reclamante detém junto do insolvente no valor de € 132.547,10 (cento e trinta e dois mil, quinhentos e quarenta e sete euros e dez cêntimos).»
Quanto à proveniência, data de vencimento, montante de capital e juros do crédito, a Recorrente enuncia os seguintes contratos:
- Contrato de Mútuo com o n.º PT (…), celebrado em 16 de abril de 2018;
- Contrato de Abertura de Crédito (linha de crédito capitalizar) PT (…), celebrado em 30 de março de 2017;
- Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente (de utilização simples) com o n.º (…), celebrado em 16 de novembro de 2015;
- Contrato de Mútuo com hipoteca com o n.º (…), celebrado em 27 de julho de 2010.
Relativamente a este último, vem invocada a celebração do contrato de mútuo com hipoteca, o valor de € 70.000,00 do empréstimo, o prazo global de 30 anos, a taxa de juros convencionada, a identificação do imóvel sobre o qual foi constituída a hipoteca, e a alegação de que é devida a quantia de € 53.582,51 correspondendo a € 53.539,48 de capital e € 43,03 de juros.
Mais foi alegado que:
- o crédito ascende ao valor global de € 128.686,50;
- ao valor total mencionado acrescem despesas de cobrança no valor de € 3.860,60;
- ao crédito reclamado deve ser reconhecida a natureza de crédito comum;
- se houver resolução em benefício da massa insolvente do ato de doação do imóvel onerado com a hipoteca, então o crédito decorrente do contrato de mútuo com hipoteca deverá assumir a natureza de garantido.
O referido crédito não foi impugnado.
Foi apreendido em favor a massa insolvente o imóvel sobre o qual incide a hipoteca.
Da relação de créditos reconhecidos apresentada pelo AI consta, entre outros, o crédito reclamado pela CGD com fundamento no contrato de mútuo PT (…), exarado como crédito garantido pelo valor de € 53.539,48 de capital e € 6.565,49 de juros desde 07/02/2022 a 15/03/2024, pelo valor global de € 60.104,97.
Da proposta de graduação dos credores reconhecidos apresentada pelo AI consta que, em relação ao produto da venda do imóvel apreendido sob a verba n.º 1, deve obter pagamento, em 1.º lugar, o crédito garantido da CGD no montante máximo assegurado de € 98.516,50, no valor de € 60.104,97, sendo € 53.539,481 a título de capital e € 6.565,49 a título de juros desde 07/02/2022 a 15/03/2024, com menção[1] de que sobre o capital em dívida acrescem juros vencidos e vincendos, calculados à taxa contratual até ao montante máximo garantido, os quais terão a natureza de crédito garantido até ao limite temporal de três anos (07/02/2022 a 07/02/2025), previsto no artigo 693.º/2, do Código Civil.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença reconhecendo sobre o Insolvente, entre outros, o crédito da Caixa Geral de Depósitos, SA no montante global de € 139.069,56 (sendo € 60.104,97 crédito garantido e € 78.964,59 crédito comum). Em sede de graduação dos créditos foi consignado o seguinte:
«Para serem pagos pelo produto da venda do prédio urbano destinado a habitação, composto por rés-do-chão e 1.º andar para habitação e quintal, situado na Rua (…), freguesia e concelho de Sousel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sousel sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…) [Verba n.º 1]:
• 1.º lugar: o crédito reconhecido à Caixa Geral de Depósitos, no montante de € 60.104,97 (crédito garantido);
• 2.º lugar: rateadamente entre si, os créditos comuns, incluindo os créditos dos garantidos ou privilegiados que não fiquem integralmente satisfeitos pelo produto da venda dos bens a que digam respeito».
Inconformado, o Credor CGD apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que gradue os seus créditos garantidos nos termos descritos na alegação do recurso, para pagamento pelo produto da venda do imóvel apreendido como verba 1 até ao limite garantido. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«A. Na sentença alvo de recurso, o douto Tribunal a quo entendeu graduar os créditos verificados, quanto ao prédio urbano destinado a habitação, composto por rés-do-chão e 1.º andar para habitação e quintal, situado na Rua (…), freguesia e concelho de Sousel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sousel sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…) nos seguintes termos: “1.º lugar: o crédito reconhecido à Caixa Geral de Depósitos, no montante de € 60.104,97 (crédito garantido)”.
B. Todavia, salvo o devido respeito que é muito, considera a Credora Recorrente que a graduação feita quanto ao seu crédito não podia ficar por aí.
C. Credora Recorrente reclamou créditos no valor total de € 132.547,10 (cento e trinta e dois mil, quinhentos e quarenta e sete euros e dez cêntimos).
D. Dentro desse valor, € 53.582,51 correspondia ao valor em dívida no âmbito da operação PT (…), sendo € 53.539,48 devido a título de capital e € 43,03 a título de juros.
E. Este valor - € 53.582,51 - foi reclamado como crédito comum uma vez que o imóvel que garantia a dívida - prédio urbano destinado a habitação, composto por rés-do-chão e 1.º andar para habitação e quintal, situado na Rua (…), freguesia e concelho de Sousel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sousel sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…) – havia sido doado a terceiros, tendo a Credora Recorrente na sua reclamação de créditos salvaguardado que, se houvesse resolução em benefício da massa do ato de doação do imóvel, então o crédito decorrente da operação PT (…) deveria assumir a natureza de crédito garantido.
F. O Sr. Administrador de Insolvência levou a cabo a resolução em benefício da massa do ato de doação do imóvel que garantia a dívida decorrente da operação PT (…).
G. Nessa sequência o Sr. Administrador de Insolvência reconheceu o valor em dívida no âmbito da operação PT (…) como crédito garantido.
H. Esse valor ascendia a € 60.104,97, sendo € 52.539,48 devido a título de capital e € 6.565,49 devido a título de juros calculados desde 07 de fevereiro de 2022a 15 de março de 2024.
I. A hipoteca foi constituída para garantia do empréstimo concedido no âmbito da operação PT (…) e encontra-se devidamente registada pela Ap. (…), de (…), assegurando um capital de € 70.000,00 (correspondendo ao valor mutuado), juros anuais à taxa de 8,246%, acrescido de 4% em caso de mora a título de cláusula penal e despesas, tendo como montante máximo assegurado a quantia de € 98.516,60.
J. O imóvel sobre o qual a Credora detém hipoteca foi apreendido para os autos como verba 1 estando a declaração de insolvência registada através da Ap. (…), de (…).
K. Da Sentença de Verificação e Graduação de Créditos datada de 23.08.2024 e com referência 33470296, o douto Tribunal a quo decidiu, “b) reconhecer sobre o Insolvente (…) os seguintes créditos: Caixa Geral de Depósitos, S.A. – € 139.069,56 (sendo € 60.104,97 crédito garantido e € 78.964,59 crédito comum)”.
L. E resulta ainda da sentença que “A hipoteca é uma garantia real das obrigações que confere a certos credores o direito de serem pagos pelo valor de certos bens imobiliários do devedor que não gozem de garantia real prevalecente ou de privilégios creditórios especiais (cfr. artigos 686.º, 693.º e 751.º do Código Civil)”.
M. Pelo que, resultando demonstrado que o crédito reconhecido a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A., no valor de € 60.104,97, se encontra garantido por hipoteca constituída sobre o imóvel identificado sob o ponto 3) dos factos provados, deve este crédito ser graduado com preferência sobre os demais credores (cfr. artigo 174.º, n.º 1, do CIRE)”.
N. Conforme decorre dos n.ºs 1 e 2 do artigo 693.º do CC, “1. A hipoteca assegura os acessórios do crédito que constem do registo. 2. Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos”.
O. Resulta da alínea a) do n.º 4 do artigo 47.º do CIRE: “4 - Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são: a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respetivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes”.
P. Assim, após a declaração de vencimento antecipado do Contrato supra descrito, cabem à aqui Credora Recorrente, os juros correspondentes aos 3 anos garantidos pela hipoteca, ou até ao momento da venda imóvel, se a mesma ocorrer antes do termino do prazo dos 3 anos garantidos pela hipoteca, a serem graduados como garantidos, nos termos do artigo 47.º, n.º 4, alínea a), do CIRE.
Q. O valor inserido na Lista Definitiva de Credores – € 60.104,97 – corresponde ao capital em dívida acrescido de juros calculados desde 7 de fevereiro de 2022 até 15 de março de 2024.
R. Não foram peticionados os juros até 3 anos uma vez que os mesmos ainda não se haviam vencido.
S. Todavia os mesmos são devidos e assumem a natureza garantida.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se são de reconhecer e graduar, como crédito da Recorrente, juros correspondentes aos 3 anos garantidos pela hipoteca, ou até ao momento da venda do imóvel hipotecado, se a mesma ocorrer antes do término do prazo dos 3 anos.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os acima relatados.

B – A questão do Recurso
Nos termos do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, (…) reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem a sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros.
Ora, nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento, bem como uma proposta de graduação dos credores reconhecidos, que tenha por referência a previsível composição da massa insolvente e respeite o disposto no n.º 2 do artigo 140.º e na alínea d) do n.º 1 do artigo 241.º – artigo 129.º/1, do CIRE.
Da lista dos credores reconhecidos consta a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, as eventuais condições suspensivas ou resolutivas e o valor dos bens integrantes da massa insolvente sobre os quais incidem garantias reais de créditos pelos quais o devedor não responda pessoalmente – artigo 129.º/2, do CIRE.
Do regime conjugado inserto nos artigos 130.º/3 e 136.º/1, do CIRE resulta que os créditos reconhecidos que não tenham sido impugnados são, por sentença, verificados em conformidade com a lista de credores reconhecidos e graduados em atenção ao que conste dessa lista, salvo o caso de erro manifesto.
No caso em apreço, estão em causa os juros vincendos (por referência à data do termo do prazo de reclamações, já que os vencidos até tal data, no montante de € 6.565,49, foram plasmados na relação dos créditos reconhecidos, tendo sido verificados e graduados como crédito garantido) relativos ao contrato de mútuo com hipoteca n.º PT (…) celebrado em 27 de julho de 2010, que não foram reconhecidos nem graduados, apesar de constar da proposta de graduação apresentada pelo AI que, ao capital em dívida, acrescem juros vencidos e vincendos calculados à taxa contratual até ao montante máximo garantido, os quais terão a natureza de crédito garantido até ao limite temporal de três anos (07/02/2022 a 07/02/2025), previsto no artigo 693.º/2, do Código Civil.
Como decorre do disposto nas alíneas b) e f) do artigo 48.º do CIRE, e contrariamente ao que se verificava no regime anterior, após a declaração da insolvência, os créditos sobre o insolvente continuam a vencer juros, sujeitos à classe de créditos a que corresponder o crédito a que respeitam, sendo que:
- os juros de créditos subordinados constituídos após a declaração de insolvência consideram-se subordinados (cfr. a citada alínea f);
- os juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração de insolvência consideram-se subordinados, exceto os juros abrangidos por garantia real e por privilégios creditórios gerais, até ao valor dos bens respetivos (cfr. a citada alínea b).
Nestes termos, os juros relativos ao contrato de mútuo com hipoteca n.º PT (…), a serem devidos, assumem a natureza de créditos subordinados, exceto aqueles que estejam garantidos pela hipoteca, que assumem a natureza de garantidos.
E os que estão garantidos pela hipoteca são os relativos a três anos – cfr. artigo 693.º, n.º 2, do CC.
Constata-se, porém, que a Credora Reclamante não reclamou os créditos de juros vincendos. Nada mais reclamou a título de juros, para além de € 43,03 de juros vencidos. Em ordem a ver verificados e graduados os juros desde então vencidos e os juros vincendos, impunha-se que os tivesse reclamado, fosse enquanto juros com a natureza de créditos subordinados (para o caso de não se efetivar a resolução em benefício da massa insolvente do ato de doação do imóvel onerado com a hipoteca), fosse enquanto juros com a natureza de créditos garantidos, na parte em que estivessem abrangidos pela hipoteca.
Impunha-se tal conduta por força do princípio do dispositivo, consagrado no artigo 5.º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 17.º/1, do CIRE. Dele resulta que “a iniciativa do processo e a conformação do respetivo objeto incumbem às partes; pelo que – para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respetivo pedido, ou seja, indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de ação proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida.”[2]
Em consonância com tal regime, determina o artigo 609.º, n.º 1, do CPC que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir. Por via do princípio do dispositivo, prevalece a estratégia assumida pelo autor, pelo que a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido e da causa de pedir.
Conforme exarado no Ac. TRG de 07/12/2023[3],
«A despeito do disposto no artigo 48.º, alínea b), do CIRE, o pagamento dos juros vencidos após a declaração da insolvência pressupõe que os mesmos hajam sido reclamados, não sendo devido o seu pagamento automático como consequência necessária, ex lege, do crédito já reconhecido, sem que tal configure violação do princípio par conditio creditorum no confronto com credores que fizeram tal pedido.»
Os juros vincendos devem ser reconhecidos desde que seja certo que foram reclamados[4], não havendo dúvidas de que foram reclamados.[5]
Resulta do que se deixa exposto que nenhuma censura merece a sentença proferida na parte em que não reconheceu nem graduou os juros de mora vincendos, correspondentes aos 3 anos garantidos pela hipoteca, relativos ao contrato de mútuo com hipoteca n.º PT (…).

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.
Évora, 25 de outubro de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Rosa Barroso
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Em nota de rodapé.
[2] Lopes do Rego, O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Feitas, vol. I, pág. 789.
[3] Proc. n.º 1300/20.9T8VNF-K.G1, Fernando Barroso Cabanelas.
[4] Cfr. Ac. STJ de 08/10/2021, Proc. n.º 1937/19.9T8STS-E.P1.S1, José Raínho.
[5] Cfr. Ac. TRE de 10/10/2019, Proc. n.º 1561/16.8T8T8STB-H.E1, José Manuel Barata.