VENDA JUDICIAL
LEILÃO
ADJUDICAÇÃO
NULIDADE
Sumário

Adjudicado o bem ao proponente cuja proposta de licitação tem valor inferior ao valor anunciado para a venda, a venda não se pode manter.

Texto Integral

291/17.8T8STR-F.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I- Massa Insolvente de (…) e (…) reclama para a conferência da seguinte decisão singular do ora relator:
“I – Relatório
1. Nos autos de liquidação que correm por apenso ao processo especial de insolvência em que foram declarados insolventes (…) e (…), a Exma. Administradora de Insolvência nomeada promoveu a venda, em leilão electrónico, do prédio urbano constituído por 5 moradias de rés-do-chão, sito no Bairro da (…), (…), em Évora, pelo valor mínimo de € 158.950,00 e obtida uma única licitação de € 135.607,50, houve lugar à adjudicação do bem, com o fundamento que apesar do valor ser inferior ao “valor de venda, ainda assim, é superior ao valor de abertura” e à entrega de sinal pelo proponente comprador, correspondente a 20% do valor da proposta.
Os Insolventes vieram requerer a anulação da venda, entre outras razões, por discordarem “do valor da venda final, inferior quer ao valor de mercado, quer ao valor mínimo de € 158.000,00” e alegam saber “que uma imobiliária do local recebeu uma oferta de pelo menos € 210.000.000”.

2. Houve lugar ao seguinte despacho:
Vêm os insolventes, pelos últimos requerimentos juntos aos autos, requerer a declaração de anulação da venda cujo título de transmissão foi ora junto pela Sra. AI alegando, não apenas irregularidades que o Tribunal já julgou improcedentes por despacho proferido em 16-1-2024 no processo principal, pacificamente transitado em julgado, mas também 1) no facto de o imóvel ter sido colocado em venda por valor muito inferior ao constante do relatório de avaliação; 2) não ter sido divulgada a venda nem prestadas informações aos interessados sobre o imóvel; e 3) não ter havido pronúncia da Sra. AI quando a propostas recebidas de valor superior àquela que aceitou a final.
Notificada para pronunciar-se, a Sra. AI refutou as imputações.
Cumpre apreciar.
Conforme resulta dos autos, relativamente ao pedido de suspensão da liquidação de 14-8-2023, na sequência do despacho de 19-8-2023 suspendendo a venda por leilão eletrónico que estava em curso, a Sra. AI veio juntar o comprovativo em 25-8-2023, não tendo havido qualquer exercício de contraditório dos insolventes nos 10 dias posteriores. Por conseguinte, a omissão de notificação subjacente ao pedido de suspensão da liquidação sanou-se. Concomitantemente, da resposta da Sra. AI de 7-8-2023 também resulta esclarecida a necessidade de prosseguimento dos autos para liquidação, sendo escolha da Sra. AI, e não dos insolventes, optar pela ordem de liquidação que melhor acautele os interesses da massa insolvente – artigo 158.º/1, do CIRE – não havendo qualquer direito legal de oposição por parte dos insolventes quanto a essa escolha.
Em 19-10-2023 foi junto novo aviso de abertura de abertura de leilão relativamente à Verba n.º 1, com um valor de abertura de € 158.950,00 e data de fecho em 20-11-2023. Este leilão ficou vazio de ofertas, conforme o relatório de venda na modalidade de Leilão eletrónico, pelo que foram os imóveis novamente colocados em venda, na modalidade de leilão eletrónico, pelo novo valor de abertura de € 135.107,50, com termo em 10-Janeiro-2024 (comunicação da Sra. AI de 7-12-2023).
Em 12-1-2024 veio a Sra. AI comunicar que decorreu de 07-12-2023 a 10-01-2024 o leilão eletrónico da Verba n.º 1, onde foi obtida uma única licitação, pelo valor de € 135.607,50, que embora seja inferior ao valor de venda, ainda assim, é superior ao valor de abertura, motivo pelo qual procedeu à adjudicação da venda ao proponente comprador, tendo este procedido à entrega de sinal, no valor de € 27.121,50, correspondente a 20% do preço.
Em 23-1-2024 vêm os insolventes peticionar a anulação desta venda porquanto:
«insistiu ”teimosamente” A sra. A.I. na venda de determinado bem – Uma morada de casas em Évora – não prestando contas aos autos de como os Insolventes procederam ao pagamento (de que modo, em que datas através de quem ) de outros Créditos que não o da (…), S.A., Reclamados nestes Autos
2. Em nenhum dos relatórios juntos a estes autos ,e seus apensos se pode concluir que a Sra. A.I. assumiu de alguma forma o controlo efectivo da massa insolvente
3. Não prestou contas por exemplo da venda de viatura automóvel apreendida aos Insolventes matricula (...).
4. Desconhecendo -se ainda quais os valores de tal venda
(…)
tomou conhecimento que durante a período em que a venda do referido bem se encontrava a decorrer na plataforma eletrónica não foram fornecidas informações a possíveis interessados /compradores/licitadores
15. Nomeadamente a empresas e particulares da zona de Évora
16. Finalmente não podem concordar os Insolventes com o valor de venda final inferior quer ao valor de mercado, quer ao valor mínimo de € 158.000,00 sendo que sabem que uma imobiliária do local recebeu uma oferta de pelo menos € 210.000,00».
Apenas os fundamentos constantes deste pedido de anulação podem ser apreciados pelo Tribunal, uma vez que apenas este é tempestivo – artigo 838.º e ss. do CPC e 199.º e 149.º do CPC. Os pedidos de anulação subsequentes, deste mesmo ato, são extemporâneos e constituem uma forma de pressão do Tribunal para a decisão sem que seja respeitado o prazo de contraditório de todos os interessados, que não podem deixar de ser censurados, designadamente pela confusão processual que lançam.
Assim, relativamente à escolha que a Sra. AI fez do bem a liquidar, não existe qualquer previsão nos autos de audição dos insolventes quanto à ordem de liquidação nem, muito menos, a possibilidade de a discordância dos mesmos obstar à liquidação nos moldes que melhor acautele, na perspectiva do Sr. AI, os interesses da massa insolvente. Por conseguinte, não merece aqui qualquer reparo a seleção da Sra. AI.
Os relatórios da liquidação juntos aos autos pela Sra. AI cumprem com a exigência do artigo 61.º do CIRE relativamente ao nível da informação prestado.
Quanto à prestação de contas, a mesma terá lugar após o pagamento das custas processuais, subsequente ao encerramento da vertente liquidação – art. 62.º/1, do CIRE.
A forma como a Sra. AI optou por cumprir o artigo 150.º/1, do CIRE não mereceu qualquer oposição dos credores, sendo esses, e não os insolventes, os interessados numa apreensão efetiva dos bens apreendidos para a massa pela necessidade de conservar os mesmos. Mais acresce que, havendo arrendatários da Verba n.º 1, a escolha da Sra. AI de manter o cumprimento dos contratos, com o consequente recebimento das rendas pela massa insolvente, tem o seu enquadramento legal (artigo 109.º do CIRE), pelo que não existe aqui qualquer reparo a fazer.
Quando à discrepância entre o valor de avaliação da verba n.º 1 e o valor de venda da mesma, os diversos relatórios da venda por leilão juntos aos autos, julgando a mesma deserta por falta de ofertas, são comprovativos do desfasamento existente entre o relatório de avaliação e o valor comercial efetivo da verba. A urgência legal dos autos, sobretudo da conclusão da liquidação (artigo 169.º do CIRE) são justificativos bastantes para a opção da Sra. AI de ir baixando em 15% o valor de abertura do leilão a cada tentativa de venda.
Mais acresce que o relatório pericial não é vinculativo no âmbito do direito civil (artigo 389.º do CC).
Em face do exposto, também quanto a este fundamento, não se verifica mérito do mesmo nos vertentes autos.
Por fim, relativamente à omissão de informações a possíveis interessados /compradores/licitadores, não foi junta qualquer prova pelos insolventes dessa ocorrência (artigo 342.º/1, do CC).
Em face do exposto, e quanto ao pedido de anulação da venda tempestivamente apresentado, conclui o Tribunal que o mesmo deve improceder na sua totalidade, o que se determina”.

3. Os Insolventes recorrem deste despacho, motivam o recurso e concluem:
“O presente recurso é interposto da sentença proferida, no âmbito do Apenso D, a qual julgou improcedente o pedido de anulação de venda apresentado pelos insolventes, ora recorrentes.
2.º A sentença de que ora se recorre considerou:
- Que o pedido de anulação da venda tempestivamente apresentado deve improceder na sua totalidade,
- Apenas os fundamentos constantes do pedido de anulação constantes do requerimento apresentado podem ser apreciados pelo Tribunal, uma vez que apenas este é tempestivo – artigos 838.º e ss. do CPC e 199.º e 149.º do CPC.
- Os pedidos de anulação subsequentes, deste mesmo ato, são extemporâneos e constituem uma forma de pressão do Tribunal para a decisão sem que seja respeitado o prazo de contraditório de todos os interessados, que não podem deixar de ser censurados, designadamente pela confusão processual que lançam.
- Relativamente à escolha que a Sra. AI fez do bem a liquidar, não existe qualquer previsão nos autos de audição dos insolventes quanto à ordem de liquidação nem, muito menos, a possibilidade de a discordância dos mesmos obstar à liquidação nos moldes que melhor acautele na perspectiva do AI os interesses da massa insolvente. Por conseguinte não merece aqui qualquer reparo a seleção da Sra. AI.
- Os relatórios da liquidação juntos aos autos pela Sra. AI cumprem com a exigência do artigo 61.º do CIRE relativamente ao nível da informação prestada.
- Quando à discrepância entre o valor de avaliação da verba nº 1 e o valor de venda da mesma, os diversos relatórios da venda por leilão juntos aos autos, julgando a mesma deserta por falta de ofertas, são comprovativos do desfasamento existente entre o relatório de avaliação e o valor comercial efetivo da verba.
- A urgência legal dos autos, sobretudo da conclusão da liquidação (artigo 169.º do CIRE) são justificativos bastantes para a opção da Sra. AI de ir baixando em 15% o valor de abertura do leilão a cada tentativa de venda.
3.º A primeira questão, objecto principal o presente recurso, prende-se com o facto de a Mm.ª Juiz a quo ter considerado que apenas o nosso requerimento de 23.01.2024 merecia ser atendido, desvalorizando todos os restantes.
4.º A sentença ora recorrida ignora, pois, toda a matéria de facto e direito invocada em vertida nos vários requerimentos apresentados pela ora recorrente (ref.ª 10363957, de 29.01.2024 e ref.ª 10549558, de 03.04.2024 e ref.ª 10592413, de 19.04.2023), cujo teor damos aqui por integralmente reproduzidos.
5.º Com o único fundamento de que tais requerimentos seriam extemporâneos, ainda que tais requerimentos tenham sido fundamentados e aceites quer pelo Tribunal quer por todos os restantes sujeitos processuais, não tendo estes tomado qualquer posição, nomeadamente procedido à sua impugnação.
6.º S.M.O. a esta decisão que merecerá relevância face a outra questão que em nossa humilde opinião constitui objecto do presente recurso.
7.º Cumpria in casu apurar, se, efectivamente, conforme referimos nos nossos requerimentos supra identificados, se pode concluir que a Sra. A.I., ao contrário do que é seu legal dever, assumiu de alguma forma o controlo efectivo da massa insolvente.
8.º Sendo que a mesma desde 2021 teria conhecimento por relatório pericial que esta terá mandado elaborar de que o valor de mercado do imóvel vendido muito superior, quer ao valor mínimo de licitação, quer ao do valor da melhor licitação em leilão.
9.º Termos em que atenta a factualidade deveria a Mma. Juiz ter procedido à suspensão das diligências de venda com todas as legais consequências e mandado apurar, nos termos do disposto artigo 835.º (aplicável ex vi do artigo 837.º) do C.P.C..
10.º A inexistência de fundamentos legais para proceder ao desentranhamento dos requerimentos supra referidos, a matéria neles invocada deveria ter sido objecto de apreciação e consequente decisão.
11.º A sentença de que ora se recorre consignou que tais requerimentos não seriam atendíveis, logo a Mma. Juiz deixou de se pronunciar sobre questões, em nosso humilde entendimento, essenciais para uma justa decisão da causa.
12.º Resultando, em nossa humilde opinião, prejudicado, quer pela consideração do tardiamente defendido pela Administradora da Insolvência, quer pelos argumentos que foram atempadamente e justificadamente invocados pelos Insolventes, o argumento da M.ª Juiz de que “A urgência legal dos autos, sobretudo da conclusão da liquidação (artigo 169.º do CIRE) são justificativos bastantes para a opção da sra. AI de ir baixando em 15% o valor de abertura do leilão a cada tentativa de venda”.
13.º Da mesma forma, não poderia a Mma. Juiz ignorar, sob pena de nulidade da sentença, a extemporaneidade que no o nosso requerimento ref.ª.10592413 de 19.04.
14.º Requerimento apresentado na sequência dos Insolventes terem tomado conhecimento do requerimento junto aos Autos pela Sra. Administradora de Insolvência Ref. ª 47630464 e face ao teor do mesmo terem exercido o direito ao contraditório arguindo a extemporaneidade do mesmo com seguintes fundamentos de facto e direito:
15.º 1. A sra. A.I. foi notificada a 04.03.24 para a mesma para informar o que tiver por conveniente em 10 dias, sobre o pedido de anulação de venda apresentado pelos Insolventes.
2. Tendo o Prazo de 10 dias terminou (S.M.O.) a 18 de Março de 2024 e ainda que se tratasse de processo urgente, e que não tenha sido invocado justo impedimento a sra. A.I., esta apenas apresentou o seu requerimento a 23 de Março de 2024.
16.º Concluíram então os insolventes peticionando o desentranhamento daquele com todas as legais consequências.
17.º Sendo que a apresentação de requerimento fora de prazo cominado acarreta também a desconsideração por parte do Julgador da factualidade nele invocada – o que não aconteceu!! A Mm.ª juiz a quo, não só não se pronunciou na decisão ora recorrida sobre esta questão, fazendo tábua rasa do invocado, como aceitou sem quaisquer reservas todos argumentos invocados em tal requerimento pela Sra. A.I..
18.º Sendo que só após se apurar das supra referida (invocadas) questões se poderia aferir da validade da venda.
19.º Sendo que nos parece também relevante o facto de a Sra. A.I. ter após sido notificada deste nosso requerimento, procedido de imediato á formalização da escritura de venda – realizada a 22 de Abril de 2024.
20.º Sem que tivesse aguardado por resposta/decisão judicial.
21.º Por tudo o supra exposto não podemos deixar de considerar que a venda do imóvel em causa se encontra ferida de nulidade.
22.º É nossa (humilde) opinião ser razoável que deveria a Sra. A.I. ter-se abstido de praticar qualquer acto até resolução da questão levantada pelos insolventes.
23.º Conforme ensina o Ilustre Professor Antunes Varela, in Manual de Processo Civil (Coimbra Editora, pág. 212): “Ao interesse de celeridade processual sobreleva, nesse caso, um outro interesse fundamental que é o de maior garantia de acerto ou perfeição de Decisão”.
24.º Destarte, não deveria a Mm.º Juiz a quo ter dado como valida e devidamente justificada a venda.
25.º É assim, nossa assumida opinião que a presente venda apresenta graves irregularidades e que desta forma a mesma consubstancia um acto inválido, aqui se abrangendo não só a nulidade mas também a anulabilidade e ineficácia do acto.
Logo,
Atento o supra exposto, deverá a sentença ora recorrida ser revogada por violação dos artigos 3.º, n.º 3, 4.º, 149.º, 617.º, alínea c), 835.º (aplicável ex vi do artigo 837.º), todos do C.P.C., bem como dos artigos 61.º, 150.º, n.º 1 e 158.º do CIRE.
Nestes termos e nos mais de Direito doutamente supridos por V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso, fazendo-se, assim, a costumada Justiça!”.

Não houve lugar a resposta.
Atenta a simplicidade da questão a decidir, profere-se decisão sumária (artigo 656.º do Código de Processo Civil, doravante CPC).

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC), nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, cumpre decidir se a venda eletrónica realizada nos autos deve ser anulada.

III. Fundamentação
1. Factos
Relevam os factos que constam do relatório supra e as seguintes ocorrências processuais:
a) O bem objecto de venda constitui a verba n.º 1 do auto de apreensão e, após avaliação, foi-lhe atribuído o valor base de € 244.400,00 (informação de 31/05/2021).
b) Anunciada a venda em leilão electrónico, pelo referido valor e, sucessivamente, pelo valor de € 207.740,00, não foi oferecida qualquer proposta de licitação (informação de 23/08/2021).
c) Anunciada a venda pelo valor de € 187.000,00 (16/11/2021), veio a obter uma proposta de licitação de € 159.450,00 (informações de 24/10/2021 e 7/12/2021).
d) Anunciada a venda pelo valor de € 187.000,00, em 16/02/2023, 05/09/2023 e 20/11/2023, não houve lugar a qualquer proposta de licitação (informações de 16/1/2023, 09/07/2023 e 20/11/2023).
e) Anunciada venda pelo valor de € 158.950,00, veio a ser oferecida uma proposta de licitação no valor de € 135.607,50 aceite pela Sra. Administradora da insolvência, com a seguinte fundamentação: (…) foi obtida uma única licitação, pelo valor de € 135.607,50, que embora seja inferior ao valor de venda, ainda assim, é superior ao valor de abertura” (informação de 12/01/2024).

2. Direito
A venda teve lugar no apenso da liquidação da massa insolvente, regendo-se pelas disposições dos artigos 156.º a 170.º do CIRE e subsidiariamente pelo CPC, em tudo o que não contrarie as disposições as disposições daquele Código [artigo 17.º, n.º 1, do CIRE].
Segundo o artigo 164.º, nºs 1 e 2, do CIRE, o administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente, ouvindo o credor com garantia real sobre o bem a alienar sobre a modalidade da alienação e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.
A prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência depende, no entanto, do consentimento da comissão de credores ou, se esta não existir, da assembleia de credores [artigo 161.º, n.º 1, do CIRE] e a intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio deverão ser comunicadas não só à comissão de credores, se existir, como ao devedor [artigo 161.º, n.º 4, do CIRE], enumerando a lei, sem exclusão de outros, actos considerados de especial relevo e, entre eles, a alienação de qualquer bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza [artigo 161.º, n.º 2, alínea g), do CIRE].
Assim, e apesar de a alienação em vista nos autos reunir estas qualidades – o preço é superior a € 10.000,00, representa mais de 10% da massa insolvente (cfr. autos de apreensão de 15/4/2020) e versa sobre bens imóveis –, a venda não foi realizada por negociação particular, teve lugar em leilão eletrónico, o que significa que não carecia de ser comunicada aos devedores, nem estes teriam o direito, à luz deste regime, de reagir contra ela visando, como visam, a sua anulação, sem prejuízo de serem ressarcidos por danos causados pela actuação do administrador da insolvência nos termos gerais previstos no artigo 59.º do CIRE.
Ocorre, porém, atentar nas concretas circunstâncias postas nos autos das quais resulta, em síntese relevante, cifrarem-se os créditos ainda em dívida, para além das dívidas da massa insolvente, em € 63.107,61, verificando-se assim face ao valor de venda do bem, € 135.607,50, a real possibilidade, pouco frequente, de existir saldo remanescente depois do pagamento integral dos créditos sobre a insolvência a favor dos Insolventes [artigo 184.º, n.º 1, do CIRE].
Saldo que será tanto maior quanto maior o êxito da venda e daqui o interesse directo dos Insolventes na venda, rectius no preço da alienação.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar que “a celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência”. Aceitar tal interpretação seria o mesmo que desistir do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador” e que, em tais situações, a acção de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência ou o pedido da sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o artigo 20.º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa” [cfr. Acs. do STJ de 4/4/2017 (proc. 1182/14.0T2AVR-H.P1) e de 15/2/2018 (proc. 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1) www.dgsi.pt].
Razões que os autos, a meu ver, convocam.
Justificada se mostra, pois, a apreciação das suscitadas irregularidades da venda à luz das regras do processo civil, tal como (pacificamente) ocorreu em 1ª instância, restando verificar se a venda, por irregular, não se deve manter, desiderato do recurso.
A venda reporta-se ao prédio urbano constituído por 5 moradias de rés-do-chão, sito no Bairros da (…), (…), em Évora e os Insolventes suscitam a sua irregularidade, em substância, por haver sido anunciada com um valor “inferior (…) ao valor de mercado” e concretizada por valor “inferior ao valor mínimo de € 158.000,00”.
A decisão sobre a venda deve conter, em outras determinações, a modalidade da venda e o valor base dos bens a vender [artigo 812.º, n.º 2, do CPC], dispondo a lei de regras para determinar o valor base dos bens imóveis [nºs 3 a 5 do referido artigo 812.º].
A determinação do valor base dos bens a vender ocorre em todas as modalidades de venda e a venda há-de ser efectuada por preço igual ou superior ao valor-base fixado, excepto nos casos de acordo unânime a que se reportam as alíneas a) e b) do artigo 832.º, do CPC e da venda ter lugar mediante propostas em carta fechada, caso em que o valor a anunciar para venda é igual a 85% do valor base dos bens [artigo 816.º, n.º 2, do CPC].
A venda em leilão electrónico não constitui excepção; segundo dispõe o artigo 837.º, n.º 2, do CPC deve ser publicitada nos termos dos nºs 2 e 4 do artigo 817.º e processa-se nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, ou seja, pela Portaria n.º 282/2013, de 29/8 que veio regulamentar os termos da venda em leilão eletrónico de bens penhorados [artigo 1º, alínea j)], determinando que o anúncio para publicitar a venda deve, entre outras menções, conter o valor para a venda [artigo 19.º, n.º 2, alínea f)] e a estabelecer o seguinte no n.º 2 do seu artigo 23.º:
2 - Só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação de cada bem a vender e, de entre estas, é escolhida a proposta cuja oferta corresponda ao maior dos valores de qualquer das ofertas anteriormente inseridas no sistema para essa venda”.
Esta norma parece deixar claro que as ofertas de licitação admitidas devem ser iguais ou superiores ao valor base da licitação do bem a vender; licitação inferiores não são admitidas e a venda não se concretiza por efeito da sua apresentação.
Compreende-se; o valor anunciado para a venda constitui uma informação da maior relevância para os interessados compradores e a indicação do valor a partir da qual podem adquirir o bem um factor, porventura decisivo, para a sua participação no procedimento de venda, exigindo absoluta previsibilidade.
No caso, foi anunciado para a venda o valor de € 158.950,00 e o bem veio a ser adjudicado por € 135.607,50.
O valor da oferta é inferior ao valor base da licitação e ao adjudicar-se o bem ao proponente, nestas circunstâncias, praticou-se um acto que a lei não admite suscetível de influir na decisão da causa e, assim, um acto nulo o que determina que a venda fique sem efeito [artigos 195.º, n.º 1 e 839.º, n.º 1, alínea c), do CPC].
Solução que não sofre constrangimento ainda que se considere aplicável a disciplina do artigo do 816.º, n.º 2, do CPC, própria da venda mediante em carta fechada, como se estabelece na alínea q) do n.º 1 do artigo 2.º do despacho n.º 12624/2015, da Ministra da Justiça [D.R. n.º 219/2015, Série II, de 2015-11-09], de acordo com a qual se entende por “«valor mínimo» o valor, inclusive, a partir do qual o bem pode ser vendido que corresponde, nos termos do n.º 2 do artigo 816.º do CPC, a 85% do valor base”, uma vez que o valor base do bem se expressou em € 244.400,00 e a proposta aceite não representa 85% deste valor.
O recurso procede com a revogação do despacho recorrido e a anulação da venda.

3. Custas
As custas correm por conta dos Recorrentes, uma vez que não houve vencimento e são estes quem do recurso tiraram proveito (artigo 527,º, n.º 1, do CPC).
(…)
IV. Dispositivo:
Decide-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida e em declarar sem efeito a venda.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 10/9/2024

II – Argumenta o seguinte:
“1. A decisão sumária proferida considerou procedente o recurso de apelação, revogando o despacho recorrido e declarando sem efeito a venda por entender que esta foi efetuada por valor inferior ao valor anunciado para a venda, fora dos casos em que a lei a permite.
2. Com todo o devido respeito, a decisão sumária em causa fez uma errada interpretação e aplicação da lei, nomeadamente do previsto no artigo 837.º, n.º 2, do CPC, sobre venda em leilão eletrónico, as quais são publicitadas, com as devidas adaptações, nos termos dos nºs 2 a 4 (e não nºs 2 e 4, como se lê naquela decisão) do artigo 817.º do CPC.
3. Sendo que o n.º 3 do artigo 817.º do CPC refere expressamente que do anúncio consta o valor a anunciar para a venda, apurado nos termos do nº. 2 do artigo anterior, isto é, do artigo 816º, o qual dispõe que o valor a anunciar para a venda é igual a 85% do valor base dos bens (disposição legal que não se aplica, portanto, apenas à venda mediante propostas em carta fechada).
4. Por outro lado, a Portaria n.º 282/2013, de 29/8, que veio, entre outras, regulamentar os termos da venda em leilão eletrónico de bens penhorados [artigo 1.º, n.º 1, alínea j)], quando refere que o anúncio deve conter o valor para a venda [artigo 19.º, n.º 2, alínea f)], e que só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação de cada bem a vender [artigo 23.º, n.º 2], deve ser entendido que este valor base de licitação corresponderá ao valor a anunciar para a venda, de acordo com o previsto nos mencionados artigos 816.º, n.º 2 e 817.º, n.º 3, ambos do CPC, por uma questão de interpretação sistemática, e não que aquele valor base da licitação corresponda ao valor base do bem.
5. Em consonância com o acima exposto, o Despacho n.º 12624/2015, da Ministra da Justiça, publicado no Diário da República, 2ª Série, 219, de 09 de Novembro de 2015, no seu artigo 2.º, alínea q) vem definir «Valor mínimo» o valor, inclusive, a partir do qual o bem pode ser vendido que corresponde, nos termos do n.º 2 do artigo 816.º do CPC, a 85% do valor base; e na alínea o) vem definir «Valor base» o valor do bem, tal como foi determinado no âmbito do processo a que respeita a venda.
6. No caso dos presentes autos, tal como resulta da factualidade dada como provada, não obstante o bem imóvel objeto de venda, após avaliação, ter-lhe sido atribuído o valor base inicial de € 244.400,00, que serviu para o anúncio da venda no primeiro leilão eletrónico efetuado, esse valor base foi posteriormente diminuindo nos anúncios de venda nos tês seguintes leilões eletrónicos realizados, todos sem qualquer proposta de licitação.
7. Desta forma, foi o bem imóvel objeto de venda publicitado pelo valor base de € 158.950,00, e veio a ser oferecida uma proposta de licitação no valor de € 135.607,50, que é superior em € 500,00 ao valor resultante de 85% daquele valor base [€ 158.950,00 x 85% = € 135,107,50], cumprindo assim o valor mínimo face àquele valor base.
Nestes termos requer-se a V. Exas. que profiram acórdão que julgue improcedente o recurso, mantendo a validade da venda, com todas as consequências legais”.

III- Não houve lugar a resposta.

IV- De acordo com o artigo 652.º, n.º 3, do CPC, “quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão”, incumbindo “ao relator submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária”.
É esta conferência que agora tem lugar.

V- Apreciação
Verificando que na venda em leilão electrónico do prédio urbano constituído por 5 moradias de rés-do-chão, sito no Bairro de Nossa Senhora da (…), (…), em Évora, a Administradora da insolvência veio a aceitar uma proposta de licitação (€ 135.607,50) inferior ao valor anunciado para a venda (€ 158.000,00), adjudicando o bem ao proponente com a entrega por este de 20% do preço a título de sinal, a decisão reclamada declarou sem efeito a venda.
A Massa Insolvente de (…) e (…) reclama para a conferência considerando que o valor mínimo da venda corresponde a 85% do valor anunciado para a venda e, assim, a proposta de licitação, superior a 85% do valor anunciado para a venda, deve ser aceite [“(…) foi o bem imóvel objeto de venda publicitado pelo valor base de € 158.950,00, e veio a ser oferecida uma proposta de licitação no valor de € 135.607,50, que é superior em € 500,00 ao valor resultante de 85% daquele valor base [€ 158.950,00 x 85% = € 135,107,50], cumprindo assim o valor mínimo face àquele valor base”].
Sem razão, a nosso ver.
Como se anotou na decisão reclamada, a decisão sobre a venda deve conter, em outras determinações, a modalidade da venda e o valor base dos bens a vender [artigo 812.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC)], dispondo a lei de regras para determinar o valor base dos bens imóveis [n.ºs 3 a 5 do referido artigo 812.º].
O valor-base dos bens a vender define, em regra, o preço da venda, isto é, a venda só pode ser feita por preço igual ou superior ao valor-base fixado na decisão sobre a venda. Como anotam Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, com actualidade embora por referência ao CPC pregresso: “(…) a venda (…) há de ser (…) feita por preço igual ou superior ao valor-base fixado na decisão sobre a venda (…). Se o valor base não for atingido, só por acordo de todos os interessados ou autorização judicial será possível a venda por preço inferior. Embora a lei nada diga, releva do poder jurisdicional a decisão de dispor do bem penhorado, pertença do executado e garantia dos credores, mediante a obtenção de um preço inferior àquele que, de acordo com o resultado das diligências efetuadas pelo agente de execução (…), corresponde ao valor de mercado do bem; nem faria sentido que, quando o agente de execução é encarregado da venda ou escolha a pessoa que a fará, lhe coubesse baixar o valor base dos bens com fundamento na dificuldade em o atingir. O juiz conserva o poder que já tinha de autorizar a venda por valor inferior ao valor-base” [CPC anotado, vol. 3º, págs. 601 e 602].
Com excepções.
Na venda mediante propostas em carta fechada, o valor a anunciar para a venda é igual a 85 % do valor base dos bens [artigo 816.º, n.º 2, do CPC], o que significa que na venda mediante propostas em carta fechada o bem é anunciado para venda pelo valor correspondente a 85% do valor-base e, como nas demais modalidades de venda, pode ser vendido por preço igual ou superior ao valor anunciado.
Este regime é aplicável à venda em depósito público ou equiparado e à venda em leilão electrónico [artigos 836.º, n.º 2, 837.º, n.º 2 e 817.º, n.º 3, do CPC].
Na venda em leilão electrónico, o valor a anunciar para a venda é igual a 85% do valor base dos bens; neste ponto a Reclamante tem inteira razão.
A este valor – valor a anunciar – se refere a alínea f) do n.º 2 do artigo 19.º da Portaria n.º 282/2013, de 29/8 [regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis, entre eles, a tramitação da venda em leilão electrónico de bens penhorados] ao estabelecer que o anúncio do leilão deve conter o valor para a venda; a este valor se reporta, também, a alínea q) do artigo 2.º do despacho n.º 12624/2015, de Sua Ex.ª a Ministra da Justiça de 9/11 [[D. R. n.º 219/2015, Série II, de 2015-11-09], de acordo com a qual se entende por “«valor mínimo» o valor, inclusive, a partir do qual o bem pode ser vendido que corresponde, nos termos do n.º 2 do artigo 816.º do CPC, a 85% do valor base”.
Assim, na venda em leilão electrónico «valor-base dos bens» e «valor a anunciar para a venda» são conceitos distintos, representando este último 85% do primeiro.
Do que tudo se conclui que na venda em leilão electrónico de bens penhorados, o valor a anunciar para a venda é igual a 85 % do valor base dos bens e é a partir deste valor (mínimo) anunciado que o bem pode ser vendido; licitações inferiores – condicionais na terminologia das alíneas i) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 2.º do despacho n.º 12624/2015 – não podem ser aceites, sem prejuízo da sua ponderação como propostas de compra na venda por negociação particular.
No caso, a venda foi anunciada pelo o valor de € 158.950,00 [valor inferior a 85% do valor base, não questionado no recurso], valor mínimo a partir do qual o imóvel podia ser vendido e o bem foi adjudicado por valor inferior (€ 135.607,50) ao valor anunciado para a venda.
Adjudicado o bem ao proponente cuja proposta de licitação tem valor inferior ao valor anunciado para a venda, a venda não se pode manter.
Dito isto, o presente coletivo mantém e subscreve o singularmente decidido.

VI- Decisão:
Delibera-se, pelo exposto, em desatender a reclamação, mantendo-se a decisão reclamada.
Custas pela Reclamante.
Évora, 25 de Outubro de 2024
Francisco Matos
Maria Domingas Simões
Eduarda Branquinho