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ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
BENFEITORIA
Sumário
1. A acessão constitui uma das formas de aquisição originária do direito de propriedade e no entendimento comum esta traduz-se na aquisição que o proprietário de uma coisa, considerada principal, faz de uma outra considerada acessória quando esta última venha a ligar-se com a primeira de modo a formar um todo inseparável. 2. Na base do instituto da acessão há um conflito de direitos reais, uma vez que enquanto a acessão não actua, subsistem duas propriedades. Como consequência desta natureza da acessão, e enquanto o respectivo direito não for exercido, cada uma das coisas mantém certa individualidade, designadamente para efeitos jurídicos, e os respectivos sujeitos conservam os seus direitos e podem exercê-los, de harmonia com as circunstâncias. 3. Tomando em consideração os aspectos fundamentais da legislação interna deve entender-se que a vontade na acessão industrial imobiliária no ordenamento jurídico português, embora essencial, não é o factor determinante da aquisição do direito de propriedade, não basta o exercício do direito potestativo por parte do seu titular, pois o factor que consagra tal aquisição é o pagamento da prestação pecuniária. 4. A acessão pressupõe que uma coisa se una ou incorpore de forma inseparável (definitiva, permanente) a outra. Não basta a mera adjunção, justaposição ou um simples nexo de afectação ou destino: é necessário que a coisa se una a outra ou se integre ou incorpore (faça corpo) com a outra, sendo que esta inseparabilidade deve ser entendida em sentido económico e não meramente material. 5. Embora objectivamente se apresentem com caracteres idênticos, a benfeitoria e a acessão constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela. Na acessão existe uma incorporação de um valor económico novo naquele bem, que poderá alterar a substância do objecto da posse porque é inovadora. 6. O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para a apreciação do objecto processual posterior. 7. Essa imutabilidade ou indiscutibilidade da decisão judicial definitiva impede que a questão que foi objecto da decisão proferida e inimpugnável possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação do Tribunal. 8. Existe o princípio fundamental que aquilo que foi objecto de julgamento definitivo não pode ser novamente submetido à discussão, salvo se se verificar um conjunto restrito de fundamentos que visa combater um vício ou anomalia processual de especial gravidade, de entre um elenco taxativamente previsto. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Processo n.º 6315/20.4T8STB.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Central de Competência Cível de Setúbal – J2
* Documentação junta em sede de recurso:
As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º[1][2]ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
Tendo presente que o acórdão em causa foi proferido em 22/05/2024, após a prolação da sentença recorrida e na medida em que a documentação em causa pode revelar interesse para a justa decisão da causa, admite-se a respectiva junção.
Sem tributação.
Notifique. * Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
* I – Relatório:
Na presente acção de condenação proposta por (…) contra (…), (…) e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), uma vez proferida sentença, o Autor veio interpor recurso da mesma. *
A parte activa pediu que fosse(m):
a) reconhecida a aquisição do direito de propriedade pelo Autor, através da acessão industrial imobiliária, do prédio rústico sito em (…), freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…).
b) ordenado o registo na Conservatória do Registo Predial de Palmela do referido imóvel a favor do Autor com a consequente anulação de todos os registos que com este conflituem.
c) condenados os Réus a reconhecer o direito de propriedade do Autor por acessão imobiliária industrial.
*
Em benefício da respectiva pretensão, o Autor adiantou que edificou uma casa no terreno dos dois primeiros Réus, com autorização destes e com o propósito de, após a construção do imóvel habitar, no mesmo Fez essa construção com materiais próprios e custeou todas as obras, sendo que, com isso, se formou um todo único, cujo valor é substancialmente superior ao valor do terreno. Em função disso, estão verificados os pressupostos da aquisição da propriedade por via da acessão industrial imobiliária. *
Os dois primeiros Réus não apresentaram contestação. *
A Ré Caixa de Crédito Agrícola apresentou contestação, onde, além de impugnar parcialmente os factos alegados, se defendeu por excepção, ao invocar a existência de caso julgado da sentença proferida no processo registado sob o n.º 6939/11.0TBSTB, do Juízo Central Cível de Setúbal (J2). *
Foram deduzidos reciprocamente pedidos de condenação como litigantes de má-fé.
*
O Autor pronunciou-se relativamente à matéria da excepção.
*
Realizou-se audiência prévia e foi proferido despacho saneador, no qual se julgou procedente a excepção do efeito positivo do caso julgado material, decidindo-se que deveria ser respeitada a autoridade do caso julgado formado com a sentença proferida no processo n.º 6939/11.0TBSTB, ficando assente a constituição, validade, protecção e registo da hipoteca constituída a favor da Ré Caixa de Crédito Agrícola sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º (…). *
Realizado o julgamento, o Tribunal a quo decidiu:
i) absolver os Réus do pedido.
ii) julgar improcedente o pedido de condenação do Autor por litigância de má-fé.
iii) julgar improcedente o pedido de condenação da Ré Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…) por litigância de má-fé.
*
O recorrente não se conformou com a referida decisão e nas suas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«a) Encontra-se inscrita a favor do recorrente, na matriz predial urbana da freguesia do Pinhal Novo, sob o artigo (…), a propriedade do prédio urbano sito na Rua dos (…), (…), Pinhal Novo.
b) Sobre este prédio rústico foi registada uma penhora a favor da 3ª Recorrida.
c) Em 1999 o recorrente, na altura casado com (…), iniciou a remodelação da casa já existente no prédio rústico acima referido e que deu origem ao imóvel referido em a).
d) À data do início das obras na casa, o recorrente estava convencido que o prédio era dos pais, tendo diligenciado pela obtenção de todos os materiais e custeado as obras do imóvel e também nelas empregou a sua força de trabalho.
e) Fê-lo deliberadamente, bem sabendo que o terreno e a casa onde se realizaram as obras não eram seus.
f) Mas com o consentimento dos 1º e 2º recorridos para a realização dessas obras.
g) Estando o imóvel em condições de habitabilidade, o recorrente efetuou a mudança para o mesmo em definitivo.
h) Tendo aí instalado a sua casa de morada de família.
i) Em 2005 o recorrente decidiu ainda ampliar o imóvel, edificando um anexo.
j) O imóvel referido em foi efectiva e integralmente construído pelo recorrente, com materiais deste, tendo a sua construção sido autorizada pelos aqui 1º e 2º recorridos, que, muito antes do recorrente ter iniciado a obra, a 1.ª e 2º recorridos já tinham a posse do prédio rústico.
k) À data do início obra, o recorrente e a interveniente principal se encontravam de boa-fé porquanto o mesmo, desde que se recorda, os pais, aqui 1ª e 2.º recorridos sempre se comportaram como sendo os legítimos e totais proprietários do terreno.
l) E sempre, assim os viu como donos do terreno, que outrora pertencera aos avós maternos, motivo pelo qual, se considera efetivamente o recorrente no direito de requerer a transmissão, por acessão industrial imobiliária, do direito de propriedade sobre o aludido terreno nos termos da lei, mormente de acordo com o disposto nos artigos 1325.º, 1326.º, n.º 1 e 2, e 1340.º, n.º 1 e 4, todos do Código Civil.
m) Adquirindo assim o beneficiário da incorporação a propriedade do prédio pagando o valor que o mesmo tinha antes das obras, na altura do exercício do direito de acessão.
n) O recorrente não só custeou realmente todas as obras do imóvel, como empregou nela grande esforço físico da sua parte, o qual não pode, em momento algum deixar de ser considerado, ao contrário do que aparenta acontecer nos autos, quer por leitura e análise das perícias de avaliação realizadas ao imóvel, quer na sentença.
o) O recorrente que, sempre que necessário, efetua e custeia todas obras com vista à sua conservação e manutenção, quer do imóvel quer da área envolvente, agindo como o verdadeiro proprietário que é e deve ser.
p) Em 2005 decidiu ainda ampliar o imóvel, edificando um anexo, que visava compensar de alguma maneira os recorridos, edificando então um anexo, sua propriedade, destinado a ser utilizado pelos 1º e 2º recorridos e em benefício destes.
q) Sendo todas as obras efetuadas a exclusivas expensas do recorrente.
r) O imóvel, edificado pelo recorrente, tem valor substancialmente maior do que o valor patrimonial fixado em 2018 de € 51.430,00, tal como resulta claro do relatório pericial constante dos autos.
s) O valor estimado para as citadas construções é de € 176.671,71.
t) Valor muito superior ao valor do prédio rústico.
u) O relatório pericial não foi levado em consideração na parte que avalia as edificações, tendo a mesma se ficado por um valor patrimonial fixado em 2018.
v) O valor patrimonial é, as mais das vezes, muito inferior ao valor comercial do imóvel, e também o é aqui.
w) A perícia em causa veio fixar o valor global do prédio rústico em € 136.961,08 (cento e trinta e seis mil e novecentos e sessenta e um euros e oito cêntimos), tendo o mesmo sido considerado na decisão recorrida.
x) A decisão recorrida não considerou o valor pericial relativo à edificação!
y) Tendo considerado apenas a perícia parcialmente, no tocante à parte rústica, sem qualquer justificação plausível.
z) Tratando-se de questões inerentes ao Direito das Obrigações, e por isso submetidas à Autonomia das Partes, aquela que é a compensação a ter em conta nos termos do disposto no artigo 1340.º, n.º 1, Código Civil, encontra-se consequentemente submetida à disponibilidade das partes.
aa) Não é censurável que, no âmbito do disposto no artigo 837.º do Código Civil e da livre disponibilidade das partes, os credores, aqui 1.º e 2.º Réus, assintam que o anexo edificado configure pagamento suficiente da compensação devida nos termos do artigo 1340.º, n.º 1, do Código Civil.
bb) Ou até, em última ratio, remitam a dívida nos termos do disposto no artigo 863.º do Código Civil, pois, reitera-se a livre disponibilidade das partes, o aqui Autor e 1.º e 2.º Réus.
cc) No âmbito do processo 657/10.4TAMTJ.L1, que correu termos no Juízo Central Criminal de Almada – J2 foi proferida em 16/01/2024, que veio condenar (…), nascido a 11/07/1974, empresário, de nacionalidade Portuguesa, em autoria material de “(…) pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea e) e n.º 3, do CP, na pena de 2 anos de prisão;”, contra os aqui 1.º e 2.º Réus.
dd) Relativamente à Hipoteca constituída sobre o terreno nestes autos em discussão, conforme resulta dos “Factos Provados” n.º 21º, 25º, 30º, 31º, 35º, 36º, 39º e 41º do Acórdão do Juízo Central Criminal de Almada – J2 – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
ee) A 28/05/2024, foi proferido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com o número de processo n.º 657/10.4TAMTJ.L1, que veio reconhecer a sentença proferida.
ff) Terreno esse executado no âmbito do processo n.º 910/12.2TBSTB, que corre termos no Juízo de Execução de Setúbal, em que é Exequente a aqui Ré Caixa de Agrícola Mútuo do (…), SA.
gg) Deverá ser reconhecida a Inexistência de Título Executivo!
hh) Por reconhecida a falsidade do documento que constituiu a hipoteca.
ii) Questão prejudicial relativamente aos presentes autos e que nunca poderá deixar de ser considerada nos mesmos, porquanto vem prejudicar todas quantas são as considerações feitas nos presentes autos pelo Tribunal a quo.
jj) Não fosse a existência de título executivo falso, não haveria lugar á constituição de hipoteca sobre o prédio rústico em causa.
kk) E seria, em face do valor superior das edificações, de reconhecer a Acessão Industrial Imobiliária do recorrente sobre o terreno no qual se procedeu à edificação do imóvel.
ll) Razão pela qual compete ao Tribunal ad quem decisão diferente daquela que resulta dos presentes autos.
mm) Conforme disposto no artigo 623.º do CPC, “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”.
nn) Presunção que não foi, nem pode ser afastada!
Termos em que deverá o presente recurso proceder por provado e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, condenando-se os Réus nos pedidos, fazendo-se assim a costumada Justiça!».
*
Houve lugar a resposta que pugnou pela improcedência do recurso.
*
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Apesar da sua exagerada extensão, analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro na:
i) apreciação da matéria de facto;
ii) aplicação do direito.
* III – Da factualidade apurada: 3.1 – Matéria de facto provada:
Com pertinência para a decisão da causa provou-se que:
1. Encontra-se inscrita a favor do Autor, na matriz predial urbana da freguesia do Pinhal Novo, sob o artigo (…), a propriedade do prédio urbano sito na Rua dos (…), (…), Pinhal Novo.
2. Encontrando-se o mesmo omisso na Conservatória do Registo Predial.
3. O imóvel supra referido está implantado no terreno inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, sob o artigo (…), secção (…), com a área total de 1,2196 hectares, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º (…), cuja propriedade está inscrita em nome da primeira e do segundo Réus.
4. O referido prédio rústico confronta a Norte com (…), a sul com (…), a nascente com Rua do (…) e a Poente com Caminho Público.
5. Sobre este prédio rústico foi registada uma penhora a favor da terceira Ré.
6. Em 1999 o Autor, na altura casado com (…), iniciou a remodelação da casa já existente no prédio rústico acima referido e que deu origem ao imóvel referido em 1.
7. Muito antes de iniciada a obra já a 1ª e 2º Réus utilizavam o prédio rústico e habitavam na casa aí existente.
8. O prédio pertenceu aos antecessores da 1ª Ré e estava omisso na Conservatória do Registo Predial.
9. Metade da propriedade do prédio rústico em causa transmitiu-se à 1.ª Ré e seus irmãos por partilha de herança, registada a favor destes em 25/03/2008.
10. Tendo, posteriormente, por usucapião, a 1ª Ré adquirido o prédio em causa, registado em 14/04/2009.
11. À data do início das obras na casa, o Autor estava convencido que o prédio era dos pais, tendo diligenciado pela obtenção de todos os materiais e custeado as obras do imóvel e também nelas empregou a sua força de trabalho.
12. Fê-lo deliberadamente, bem sabendo que o terreno e a casa onde se realizaram as obras não eram seus.
13. Mas com o consentimento dos 1º e 2º Réus para a realização dessas obras.
14. Em 2005 deram por concluídas parte das obras.
15. E estando o imóvel em condições de habitabilidade, efectuou a mudança para o mesmo em definitivo.
16. Tendo-o o Autor usado desde então e continuando a usar, para aí praticar todos os actos inerentes à vida familiar diária.
17. Tendo aí instalado a sua casa de morada de família.
18. Lugar onde recebe a correspondência, toma refeições e confecciona as mesmas, onde pernoita, realiza a higiene diária e recebe familiares e amigos.
19. Tudo isto há mais de 15 anos e à vista de toda a gente.
20. Em 2005 o Autor decidiu ainda ampliar o imóvel, edificando um anexo.
21. O referido prédio urbano ocupa uma porção de terreno com a área de 149,7500 m2.
22. E foi-lhe atribuído o valor patrimonial de € 51.430,00, fixado em 2018.
23. Os 1º e 2º Réus nunca exigiram qualquer compensação ao Autor, seu filho, por terem autorizado a remodelação e ampliação do imóvel pré-existente.
24. Relativamente ao prédio rústico acima referido, foi fixado um valor estimado de € 136.961,08.
* 3.2 – Factos não provados:
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente, que:
1. Em 1999 o Autor iniciou a construção de um imóvel no terreno propriedade dos 1ª e 2º Réus.
2. Os primeiros Réus sempre disseram ao Autor que aquele terreno seria para ele construir a casa para si e para a sua família.
3. Sendo o Autor que, sempre que necessário, efectua e custeia todas as obras com vista à sua conservação e manutenção, quer do imóvel quer da área envolvente.
4. O Autor edificou o anexo acima referido em 20 dos factos provados para compensar os seus pais, aqui 1ª e 2º Réus, pela autorização destes para fazer as obras de remodelação da casa, para que nele pudessem habitar.
5. Sendo estes Réus que utilizam o anexo em benefício dos mesmos.
6. Todas as obras foram efetuadas a exclusivas expensas do Autor.
7. À data do início da construção, o terreno teria um valor de € 8.500,00.
8. O Autor intentou a presente acção com o propósito de obstar ao prosseguimento da ação executiva que corre termos no Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1, sob o n.º 910/12.2TBSTB, procurando criar uma artificial “causa prejudicial” que fundamentasse a suspensão da referida instância executiva.
* IV – Fundamentação: 4.1 – Da alteração da decisão de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas dadas a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de primeira instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados. *
A parte recorrente não indica minimamente, tanto no corpo das alegações como nas conclusões, as passagens das gravações em que funda as alterações pretendidas, nem indica claramente qual é a matéria controvertida.
Diz a exposição de motivos da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho [Novo Código de Processo Civil] que «se cuidou de reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória –, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material».
Porém, este reforço de poderes e deveres não é unidirecional. Na verdade, a lei ao mesmo tempo impõe novas regras das condições de exercício do direito de recurso. Assim, os recorrentes têm agora o dever de modelar a peça de interposição de recurso com a seguinte estrutura: (i) especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (ii) indicar os concretos meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diferente, (iii) adiantar qual deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas e (iv) mencionar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso.
Actualmente, nos termos do n.º 1 do artigo 640.º[3] do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Na realidade, tanto na motivação como nas conclusões de recurso a peça de recurso não cumpre integralmente as exigências legais e a jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça estabilizou na interpretação que «a inobservância deste ónus de alegação, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica, como expressamente se prevê, no artigo 640.º, n.º 1, do NCPC, a rejeição do recurso, que é imediata, como se acentua na alínea a) do n.º 2 desse artigo.
Nesta sede, foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento da alegação a dirigir ao apelante. A lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de incumprimento pelo recorrente do referido ónus processual (artigo 640.º, n.º 2)» [4][5][6].
Diz-nos, a este propósito, Abrantes Geraldes que relativamente «a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos».
A possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1.ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver a reapreciação global de toda a prova produzida, impondo-se, por isso, ao impugnante, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, a observância das citadas regras.
Em conclusão, a impugnação da decisão de facto que omita em absoluto a indicação concreta das passagens das gravações dos depoimentos em que funda o recurso feita implica a rejeição do pedido de modificação da matéria de facto, por não cumprir os requisitos impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Deste modo, o Tribunal ad quem está inibido de alterar a decisão de facto com base nas declarações produzidas em audiência, podendo, no entanto, modificar a decisão de facto a partir de outros elementos probatórios se for o caso. *
Ainda assim é possível descortinar que o Autor pretende a alteração do facto indicado em 24[7], sublinhando que, de acordo com o relatório pericial presente nos autos, “o valor estimado para as citadas construções é de € 176.671,71”.
O Recorrente assinala que não consegue alcançar por que razão na decisão recorrida o relatório pericial não foi levado em consideração na parte que avalia as edificações, tendo a mesma se ficado por um valor patrimonial fixado em 2018.
Em sede de audiência prévia realizada em 07/10/2022, foi admitida a perícia de avaliação de prédio rústico requerida pelo Autor.
O relatório pericial concluiu que o valor do terreno + valor das construções era de € 136.961,08 + € 137.803,93 = € 274.765,01 (valor estimativo para a avaliação).
No entanto, a Ré apresentou reclamação. E, nessa sequência, em 13/02/2022, a Mma. Juíza de Direito considerou que «pese embora o relatório pericial que antecede também se refira às edificações existentes no local, tal matéria, referente à avaliação das construções existentes no prédio rústico em causa, não deverá ser tida em conta para efeitos de prova, uma vez que extravasa o objeto fixado para a perícia».
Porém, mesmo que assim não fosse, tal como alerta a sentença recorrida, «o que se provou foi que o mesmo procedeu a obras de remodelação e ampliação de uma casa já existente no dito terreno dos seus pais», «pertencente aos RR. e onde estes sempre viveram, antes e depois das obras» e que não ficou demonstrado que «o valor que as obras realizadas pelo A. trouxeram à totalidade do prédio dos primeiros RR. é maior do que o valor que este tinha antes da realização das obras».
Tal como consta do texto da fundamentação da decisão de facto, o Autor «não construiu uma casa, de raiz, no terreno dos seus pais, mas sim fez a remodelação e ampliação da casa que aí já existia e onde os pais sempre viveram e ele próprio já tinha vivido com a mulher logo após o casamento, mas que, por já estar velha, necessitou de obras para ficar com melhores condições de habitabilidade».
Por outras palavras, aquilo que o Autor tinha o ónus de provar era o valor inicial do terreno e da construção pré-existente e, bem assim, que os montantes despendidos na obra de remodelação eram superiores à valorização que o prédio tinha antes da realização destas.
Deste modo, para além de não terem sido articulados os factos que permitiam a reconstituição de toda a operação urbanística realizada, a perícia em causa, enquanto meio de prova, não permite concluir que a parte urbana que foi ampliada e melhorada pelo Autor é de valor superior ao do terreno e ao edificado anteriormente existente.
Neste espectro lógico-jurídico, não é possível alterar a resposta ao ponto 24 dos factos provados. *
Quanto à questão do alegado pagamento do valor que o prédio tinha antes das obras, por parte do Recorrente, enquanto beneficiário da cessão não foram arregimentadas provas que permitam concluir nesse sentido.
*
Nestes termos, mostra-se assim perfeitamente consolidada a matéria de facto apurada e é com base na mesma que será realizada a operação de subsunção ao direito.
* 4.2. – Do erro de Direito – Da acessão industrial imobiliária:
A acessão constitui uma das formas de aquisição originária do direito de propriedade e ocorre quando a coisa que é propriedade de alguém se une ou incorpora outra coisa que não lhe pertencia, como se extraí claramente do estatuído no artigo 1325.º do Código Civil.
Dá-se a acessão industrial, quando, por facto do homem, se confundem objectos pertencentes a diversos donos, ou quando alguém aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com propriedade alheia (2.ª parte do n.º 1 do artigo 1326.º do Código Civil).
Na base do instituto da acessão há um conflito de direitos reais, uma vez que enquanto a acessão não actua, subsistem duas propriedades[8]. Como consequência desta natureza da acessão, e enquanto o respectivo direito não for exercido, cada uma das coisas mantém certa individualidade, designadamente para efeitos jurídicos, e os respectivos sujeitos conservam os seus direitos e podem exercê-los, de harmonia com as circunstâncias[9].
Entende-se comummente por acessão a aquisição que o proprietário de uma coisa, considerada principal, faz de uma outra considerada acessória quando esta última venha a ligar-se com a primeira de modo a formar um todo inseparável[10].
Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações (artigo 1340.º, n.º 1, do Código Civil).
Na acessão industrial imobiliária, ao contrário da acessão natural, a aquisição é potestativa, isto é depende de manifestação de vontade de seu beneficiário e ainda, normalmente, da efectivação de determinado pagamento[11][12][13][14][15][16]. A favor do carácter automático da acessão pronunciam-se Pires de Lima e Antunes Varela[17].
Tomando em consideração os aspectos fundamentais da legislação interna deve entender-se que a vontade na acessão industrial imobiliária no ordenamento jurídico português, embora essencial, não é o factor determinante da aquisição do direito de propriedade, não basta o exercício do direito potestativo por parte do seu titular, pois o factor que consagra tal aquisição é o pagamento da prestação pecuniária[18].
A união provocada de boa fé, quando a separação das coisas acarrete danos a quaisquer das partes, confere ao titular da coisa mais valiosa o direito à aquisição do conjunto, desde que indemnize o outro titular (artigo 1333.º, n.º 1). Porém, o autor da união fica sempre com o resultado da adjunção, independentemente do valor das coisas, se a outra parte preferir a indemnização.
Para que seja efectivada a aquisição em causa exige a lei que estejam cumulativamente verificados os pressupostos materiais ou substantivos inscritos no artigo 1340.º do Código Civil. Os pressupostos substantivos da acessão industrial imobiliária estabelecidos na legislação portuguesa são os seguintes: (a) a incorporação consistente no acto voluntário de realização da obra, sementeira ou plantação; (b) a natureza alheia do terreno sobre o qual é erguida a construção, lançada a sementeira ou efectuada a plantação; (c) a pertença inicial dos materiais ao autor da incorporação; (d) a formação de um todo único entre o terreno e a obra, (e) o maior valor da obra relativamente ao terreno e, finalmente, (f) a boa fé do autor da incorporação.
O n.º 4 do artigo 1340.º do Código Civil sublinha que a boa-fé existe se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno. Em adição, a boa fé deve existir no momento da construção, sementeira ou plantação, tal como resulta do texto legal.
A autorização para praticar os actos materiais em que a acessão se traduz tanto pode ser atribuída através de uma declaração de vontade expressa, feita pelo proprietário da coisa, como resultar, por exemplo, de um contrato translativo nulo por falta de forma[19] ou de um contrato promessa em que se convencione a imediata entrega da coisa ao promissário, para que dela se sirva como se já lhe pertencesse[20]. Na falta de acto expresso, a autorização pode revestir a forma tácita, ou seja, pode assentar em factos que, com toda a probabilidade, a revelem[21][22].
Em suma, a acessão pressupõe dois requisitos. Um de ordem material que consiste na combinação ou fusão de duas (ou mais) coisas que existiam de forma autónoma e outro que se consubstancia na inseparabilidade resultante da união.
Relativamente à união provocada de má fé a situação é disciplinada pelo artigo 1334.º do Código Civil.
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A acessão pressupõe que uma coisa se una ou incorpore de forma inseparável (definitiva, permanente) a outra. Não basta a mera adjunção, justaposição ou um simples nexo de afectação ou destino: é necessário que a coisa se una a outra ou se integre ou incorpore (faça corpo) com a outra, sendo que esta inseparabilidade deve ser entendida em sentido económico e não meramente material. Consequentemente, duas ou mais coisas encontram-se unidas de modo inseparável quando a desincorporação, embora física e materialmente possível, destruísse ou danificasse gravemente a coisa principal[23].
Por virtude de uma qualquer causa, que pode ser natural ou provir da acção do homem, intencional ou casual, duas (ou mais) coisas combinam-se ou fundem-se uma na outra. O fenómeno é de ordem material ou física. Duas (ou mais) coisas que existiam material ou fisicamente de modo autónomo, sendo valoradas pelo Direito como tal, surgem, por força de um facto, natural ou humano, combinadas ou fundidas uma na outra[24]. A este requisito inicial adiciona-se um outro que se traduz na inseparabilidade da coisa resultante da união ou mistura de duas (ou mais) coisas autónomas[25].
Na concepção de José Alberto Vieira a inseparabilidade significa que «não basta um mero contacto material, uma justaposição de coisas, para que haja lugar à aplicação do regime da acessão. Somente quando as coisas adjuntas ou misturadas perdem a sua autonomia como coisas para se integrarem numa nova coisa (simples) se pode falar de acessão», razão por que, «não havendo inseparabilidade, qualquer dos proprietários das coisas justapostas pode reclamar a separação e a entrega (reivindicação) a quem a tenha em seu poder»[26].
A verdadeira acessão é uma extensão do direito de propriedade de uma coisa à qual se une ou incorpora outra que não lhe pertencia. É esta a característica da acessão e que a distingue, não só dos frutos, mas também das benfeitorias[27].
Na realidade, a benfeitoria e a acessão, embora objectivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela[28].
As benfeitorias correspondem apenas a despesas para conservar ou melhorar a coisa (artigo 216.º, n.º 1), havendo assim apenas uma manutenção ou desenvolvimento do seu valor económico, que gera apenas obrigações de restituição das despesas ou um ius tollendi, não criando um conflito de direitos. Já na acessão, vai-se mais longe, efectuando-se uma incorporação de um valor económico novo naquele bem, através da união com outra coisa ou da sua transformação por aplicação de trabalho, o que gera um direito novo sobre a coisa, que entra em conflito com o do proprietário primitivo[29]. Acrescenta Manuel Rodrigues que os actos de acessão ainda se distinguem porque «alteram a substância do objecto da posse, porque inovam»[30].
A incorporação é uma ligação permanente que provoca a perda da individualidade das coisas unidas ao solo, pela formação de uma coisa única, um corpo único, não desmembrável sem alteração da substância do todo[31][32].
Como consequência desta natureza da acessão, e enquanto o respectivo direito não for exercido, cada uma das coisas mantém certa individualidade, designadamente para efeitos jurídicos, e os respectivos sujeitos conservam os seus direitos e podem exercê-los, de harmonia com as circunstâncias[33].
A existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule à pessoa a coisa beneficiada é assim o carácter decisivo para distinguir a benfeitoria da acessão. Em boa verdade, nem todas as situações de união ou mistura de coisas pertencentes a proprietários diferentes permitem accionar o regime jurídico da acessão.
Está perfeitamente identificado pela doutrina e pela jurisprudência a existência de um grupo de situações em que a celebração de um negócio jurídico ou a subsunção a um quadro normativo alternativo pode afastar o recurso às regras típicas da acessão. Efectivamente, podem sobrevir situações jurídicas reais ou obrigacionais em que a um sujeito é conferida a possibilidade de actuar materialmente sobre uma coisa corpórea alheia e desse exercício resultar a união de coisas pertencentes a proprietários distintos em que está legalmente arredada a submissão às regras da acessão. A par de negócios jurídicos em que a liberdade negocial assim o admita, existe um catálogo legal de hipóteses em que é aplicável o regime das benfeitorias como sucede relativamente ao possuidor (artigos 1273.º a 1275.º), ao comproprietário (artigo 1411.º), ao usufrutuário (artigo 1450.º), ao usuário e ao morador usuário (artigo 1450.º, ex vi do artigo 1490.º), ao locatário (artigo 1406.º, n.º 1) e ao comodatário (artigo 1138.º, n.º 1). Por isso, a acessão só opera quando a união ou mistura de coisas propriedade de diferentes donos não seja regulada por outro regime específico.
Em função da disciplina contida nos artigos 216.º, n.º 1 e 1325.º do Código Civil e dos regimes particulares acima evidenciados, uma obra poderá ser qualificada como acessão ou benfeitoria conforme o regime jurídico que lhe deva ser aplicado[34]. No entanto, a questão matricial da distinção radica na natureza inovadora e transformadora das obras, que podem, a nosso ver, ter lugar em qualquer prédio alheio, seja unicamente no solo, seja em construção nele existente, desde que, no entanto, se não trate de simples obras de melhoramento ou de reparação[35].
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Dito tudo isto, reitera-se que não se provou que o Autor construiu uma casa no terreno propriedade dos 1ª e 2º Réus e a edificação em questão não se trata de uma nova casa, mas sim do melhoramento da casa já pré-existente, que pertencente aos seus pais e onde estes sempre viveram, antes e depois das obras.
Nesta ordem de ideias, face à incompletude da alegação e, consequentemente da prova, faltam assim os pressupostos necessários para declarar a aquisição do prédio por via da acessão.
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Aquilo que se pergunta então é se a decisão proferida no âmbito do processo 657/10.4TAMTJ.L1, que condenou (…) pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º n.º 1, alínea e), e n.º 3, do Código Penal na pena de 2 anos de prisão, tem a susceptibilidade de alterar o juízo efectuado?
Tal como é defendido na resposta ao recurso interposto, aquele documento nenhuma influência assume na procedência da acção de acessão aqui em discussão.
É certo que a detectada falsificação poderá ter influência na matéria relacionada com a hipoteca e admite-se, em tese, que daí possa derivar a inexistência ou qualquer outro vício no título executivo que legitima a execução em curso.
Porém, essa é matéria que apenas é instrumental aos presentes autos e referida a título meramente incidental, sem qualquer conteúdo vinculativo fora deste processo.
Neste particular, importa sublinhar que, em sede de audiência prévia, se decidiu que deveria ser respeitada a autoridade do caso julgado formado com a sentença proferida no processo registado sob o n.º 6939/11.0TBSTB, ficando assente que a constituição, validade, protecção e registo da hipoteca se encontra constituída a favor da Ré Caixa de Crédito Agrícola.
Desta decisão não houve recurso autónomo – trata-se de uma decisão tomada no despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decidiu parcialmente sobre o mérito da causa –, tal como era possível ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Penal. Por conseguinte, mostra-se, pois, nesse segmento, esgotado o poder jurisdicional quanto a esta parte da acção.
As excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado (artigo 580.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (artigo 580.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
O instituto do caso julgado material é analisado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado. O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para a apreciação do objecto processual posterior[36].
Essa imutabilidade ou indiscutibilidade da decisão judicial definitiva impede que a questão que foi objecto da decisão proferida e inimpugnável (ou não tempestiva e adequadamente impugnada) possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação do Tribunal: se tal ocorrer, por força da figura da excepção de caso julgado – que reflecte a chamada função negativa da figura do caso julgado – deve o juiz abster-se de voltar a apreciar a matéria ou a questão que já se mostra jurisdicionalmente decidida, em termos definitivos, como objecto de uma anterior acção[37].
A essencial identidade e individualidade da causa de pedir não é afectada, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções[38].
A excepção de caso julgado visa evitar que o Tribunal se veja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior. A autoridade do caso julgado significa que, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, quer nela surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor e ao réu[39].
A figura da excepção de caso julgado (…) tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de essa mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individualizada nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado[40].
Feito este percurso importa dizer que, relativamente a decisões transitadas, este Tribunal «ad quem», nesta sede, está, obviamente, impedido de alterar qualquer veredicto prévio, designadamente está cerrada a hipótese de declarar a inexistência do título executivo, dado que esse juízo prudencial está claramente fora da órbita da presente acção.
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Não obstante, enquanto mera declaração obter dicta, directa ou indirectamente, caso se verifique o cenário descrito nas alegações de recurso (este processo do Tribunal da Relação de Évora não tem qualquer conexão com os autos que a seguir se nomeiam e desconhecem-se quais são os traços particulares dos mesmos, sendo esta pronúncia meramente hipotética) referimos que a sobredita condenação apenas poderá ter efeitos jurídicos no âmbito do processo n.º 910/12.2TBSTB, que corre termos no Juízo de Execução de Setúbal, em que é Exequente a aqui Ré “Caixa de Agrícola Mútuo do (…), SA” ou no processo registado sob o n.º 6939/11.0TBSTB do Juízo Central de Competência Cível de Setúbal.
Sem prejuízo de uma sentença não pode servir de fundamento a recurso extraordinário de revisão por não poder ser qualificada como um documento, caso existia alguma injustiça no previamente decidido, que surja associada ao conteúdo decisório do precedente referenciado processo crime, poderão existir meios processuais tendentes a contornar os efeitos do caso julgado, se a decisão condenatória não puder ser esgrimida directamente em sede de execução.
O recurso extraordinário de revisão interpõe-se de decisões transitadas em julgado (sentenças, despachos e acórdãos) e representa uma possibilidade de reabertura do processo que escapa ao axioma da res iudicata pro veritate habetur.
Neste domínio, existe o princípio fundamental que aquilo que foi objecto de julgamento definitivo não pode ser novamente submetido à discussão, salvo se se verificar um conjunto restrito de fundamentos que visam «combater um vício ou anomalia processual de especial gravidade, de entre um elenco taxativamente previsto»[41].
Efectivamente, alvitrava Alberto dos Reis que o recurso extraordinário de revisão apresentava «o aspecto de atentado contra a autoridade do caso julgado» e se situava no âmbito do «conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza»[42].
A revisão de uma decisão transitada em julgado deverá ser algo de excepcional, sendo que a regra é que o caso julgado, a bem da segurança jurídica, torne a decisão indiscutível. Estando-se perante um recurso que é extraordinário e que existe precisamente para que o caso julgado possa ser ultrapassado, as exigências para a admissão do mesmo têm de ser particularmente cuidadas, para que não se faça da excepção a regra[43].
Todavia, como já se deixou alinhavado, a apreciação dessa possibilidade e dos requisitos formais e temporais inerentes à mencionada pretensão escapa, de igual modo e completamente, ao objecto do presente recurso.
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No mais, não estão assim preenchidos os requisitos constitutivos consignados na lei indispensáveis para concretizar a almejada aquisição por acessão, mantendo-se assim a decisão recorrida.
* V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas ao cargo do recorrente, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 25/10/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Mário João Canelas Brás
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[1] Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento (artigo 425.º do Código de Processo Civil).
[2] Por seu turno, o artigo 423.º do Código de Processo Civil tem a seguinte redacção:
1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
[3] Artigo 640.º (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto):
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/07/2016, in www.dgsi.pt.
[5] No mesmo sentido pode ser consultado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2016, in www.dgsi.pt, que sublinha que «para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, conforme impõe o artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC. Não tendo o recorrente cumprido o ónus de indicar a decisão a proferir sobre os concretos pontos de facto impugnados, bem andou a Relação em não conhecer da impugnação da matéria de facto, não sendo de mandar completar as conclusões face à cominação estabelecido naquele nº 1 para quem não os cumpre».
[6] Na esteira da mais avalizada jurisprudência [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2015, in www.dgsi.pt], também entendemos que «não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado».
[7] (24) Relativamente ao prédio rústico acima referido, foi fixado um valor estimado de € 136.961,08.
[8] Oliveira Ascensão, As Relações Jurídicas Reais, pág. 140.
[9] Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, pág. 403.
[10] Cesare Sanfilippo, Accessione (diritto romano), in Nuovo Digesto Italiano, vol. I, pág. 64.
[11] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex, Lisboa, 1993, pág. 503.
[12] No mesmo sentido, Oliveira Ascensão, Estudos sobre a Superfície e a Acessão, separata da Studia Iuridica, Braga, 1973, pág. 63, Relações Jurídicas Reais, Lisboa, 1962, pág. 140 e Direitos Reais, Lisboa, 1971, pág. 439.
[13] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2010 e de 07/04/2011, in www. dgsi.pt.
[14] Carvalho Fernandes, Direitos Reais, Quid Juris, págs. 503-504, diz que é concedida «ao beneficiário, de uma faculdade de aquisição, cujo exercício não pode ser contrariado pela outra parte», qualificando-se assim «um direito potestativo atribuído ao beneficiário, cabendo-lhe a ele decidir sobre as conveniências do seu exercício”, que muitas vezes “tem a sua eficácia condicionada, por força de lei”, ao pagamento de certas quantias à parte contrária».
[15] José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra 2008, págs. 707 e seguintes, entende que o «regime jurídico da acessão industrial constrói-se na base de um direito jurídico potestativo, justamente o direito de acessão (…) A indemnização ao proprietário da coisa unida ou misturada que não beneficia da acessão constitui uma verdadeira condição de aquisição da propriedade da coisa adjunta. A mera manifestação da vontade de beneficiar da acessão, pelo titular do direito não chega para que a aquisição da propriedade se dê. Apenas com o pagamento da indemnização se processa a aquisição a favor do titular do direito de acessão. Assim o proprietário (ou titular do direito real menor) cujo direito é sacrificado pelo funcionamento da acessão recebe uma contrapartida da perda da coisa na indemnização atribuída. Enquanto essa indemnização não lhe for paga pelo titular do direito de acessão, o direito de propriedade (ou o direito menor) permanece na sua esfera jurídica)».
[16] Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 246-247.
[17] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 165-166.
[18] Sofia de Oliveira Moiteiro, A vontade na aquisição do direito de propriedade por acessão (estudo sobre o direito português), in repositorio.ucp.pt/.../A%20 vontade%20na%20aquisição%20do%20direito %20de%20...
[19] Pires de Lima, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 100º, págs. 12 e seguintes.
[20] Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 102º, págs. 167 e seguintes.
[21] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/02/2000, CJ XXV, I, 17.
[22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/11/2004, in www.dgsi.pt.
[23] Mónica Jardim e Dulce Lopes, Acessão Industrial Imobiliária e Usucapião versus Destaque, publicado em “O Urbanismo, o Ordenamento do Território e os Tribunais”, n.º 24, Almedina, 2010, págs. 757 a 812.
[24] José Alberto Vieira, Direitos Reais, página 677.
[25] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/06/2013, in www.dgsi.pt.
[26] José Alberto Vieira, Direitos Reais, págs. 680-681.
[27] Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, Vol. XI, Coimbra Editora, n.º 1772.
[28] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 163.
[29] Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 240.
[30] Manuel Rodrigues, A posse, Almedina, Coimbra, 1996, pág. 312.
[31] Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, CJ STJ, ano IV (1996), Tomo I, págs. 11 e seguintes.
[32] Ou, na formulação de António Carvalho Martins, Acessão, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pág. 19, é necessária «a união inseparável de duas ou mais coisas pertencentes a donos diversos ou uma das quais não quais não tinha dono conhecido; esta inseparabilidade deve ser entendida no sentido económico e não no material, porque a separação, embora possível, destruiria ou danificaria gravemente a coisa principal». Na óptica deste autor «esta inseparabilidade é uma condição necessária, mas não suficiente, do funcionamento da acessão. Nunca se verifica acessão sem união inseparável, mas a inversa não é verdadeira. Pode, nomeadamente, a solução encontrar-se na destruição de coisa acedida, como acontece na hipótese dos artigos 1334.º e 1341.º (se a união for realizada de má fé)».
[33] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/04/95, in www.dgsi.pt.
[34] Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 108º, pág. 265, segue esse critério objectivo, como directiva geral, mas que pode ser excluído, «para determinados efeitos e casos» pelo respectivo regime jurídico ou mesmo por convenção das partes.
[35] Neste sentido surge igualmente a conclusão tirada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/05/2009, in www.dgsi.pt.
[36] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/1998, in www.dgsi.pt.
[37] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/04/2013, in www.dgsi.pt.
[38] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/04/2013, in www.dgsi.pt.
[39] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/09, in www.dgsi.pt.
[40] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/04/2013, in www.dgsi.pt.
[41] José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 302.
[42] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, reimpressão de 1980, págs. 335-336.
[43] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2021 (proc. 15/10.0TTPRT-B.P1-B.S1), pesquisável em www.dgsi.pt.