REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE ORIGEM
RECONHECIMENTO PARCIAL
Sumário

I – O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras visa o reconhecimento meramente formal, o que significa que os tribunais, em princípio, se limitam a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não interferindo no fundo ou mérito da causa.
II - O tribunal português apenas deve verificar se a competência do tribunal de origem viola alguma norma portuguesa atributiva de competência exclusiva e se a competência deste tribunal foi provocada em fraude à lei.
III - O reconhecimento da sentença pode ser parcial, quando a mesma comportar partes dissociáveis e as condições de confirmação só se verifiquem relativamente a uma parte dela.
IV – Se não se consegue apreender, indubitavelmente, o montante da condenação (parcial) porque a quantia – não expressa por extenso – tanto poderia significar quinze libras, quinze mil libras ou mesmo mil e quinhentas libras, a sentença, nessa parte, torna-se ininteligível e não pode ser confirmada.

Texto Integral

Processo n.º 271/23.4YRPRT
Revisão/confirmação de sentença estrangeira

Requerente – A... Limited
Requerida – B..., Lda.

Relator: José Eusébio almeida; Adjuntos: Ana Olívia Loureiro e Jorge Martins Ribeiro.

Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
A... LIMITED, sociedade constituída de acordo com as leis de Inglaterra em sede em Londres, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 978 e ss. do Código de Processo Civil (CPC) instaurar contra a B..., LDA., com sede em ..., Aveiro, esta ação de revisão de sentença estrangeira, pedindo a final, que seja revista e confirmada a sentença que identifica “para que a mesma possa produzir em Portugal todos os seus efeitos legais, em que se condena a Requerida ao pagamento à Requerente da quantia global de €36.744,23, sendo €15.854,59 a título de dívida, €3.375,07 a título de juros e € 17.514,57 a título de custas”.

Fundamentando a sua pretensão, alegou, em síntese, que:
- A sentença proferida pelo Centro de Reclamações Pecuniárias do Tribunal da Comarca (County Court Money Claims Centre), do Reino Unido, no âmbito do processo H34YJ229, resulta de processo apresentado após o termo do período de transição estabelecido pelo Brexit (31.12.2020), tendo a revisão, por isso, de se reger pelo disposto nos artigos 978 a 985 do Código de Processo Civil (CPC).
- Na sentença, a requerida foi condenada a pagar à requerente a quantia de 13.578,35 £ a título de dívida e juros calculados até à data do julgamento no valor de 2.890,51£, a que acresce o valor de 15.000 £, a título de custos (Doc. n.º 1).
- A sentença consta de documento cuja autenticidade e conteúdo não podem ser postos em causa, conforme reconhecimento notarial e apostila (Doc. n.º 1), não havendo, de igual modo, dúvidas sobre a sua inteligência. A requerida foi regularmente citada e não apresentou contestação, tendo sido observados os princípios do contraditório e da igualdade de partes no processo que deu origem à decisão que se pretende rever.
- A decisão foi notificada as partes e transitou (Doc. n.º1); nenhuma das partes apresentou recurso ou intentou nova ação, em Portugal ou noutro país, com igual pedido e causa de pedir, não se podendo invocar o caso julgado ou a litispendência.
- De acordo com as regras processuais aplicáveis (Civil Procedure Rules, 40.11)3, a requerida dispunha de 14 dias a contar da notificação da decisão para proceder ao pagamento das quantias em que foi condenada, o que, até à data, não fez.
- A decisão provém de tribunal competente e não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses. Requerente e requerida são partes legítimas e dotadas de capacidade judiciaria, e a decisão não conduz a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, estando em conformidade com a legislação pertinente.

Contestou a requerida. Reconhecendo a sua citação para os termos da ação pretendida rever, depois de um introito, vem dizer, em síntese:
- Falta de evidência do trânsito em julgado: Não se mostra certificado pelo tribunal que proferiu a sentença estrangeira revidenda, aquele requisito legal [trânsito em julgado], o que se exceciona.
- Incompetência internacional do tribunal que proferiu a sentença: A ação foi intentada já após o terminus do período de transição fixado no acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeias da Energia Atómica (2019/C 384 1/01), e dispõe o artigo 66 do Brexit que no Reino Unido, será aplicável o Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho aos contratos celebrados antes do termo do período de transição, que é o caso, e o Regulamento em causa dispõe (artigo 3.º) sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), o primado da liberdade de escolha, pelo que, em princípio, as questões relacionadas com a interpretação, o cumprimento das obrigações dele decorrentes, dos limites dos poderes atribuídos ao tribunal pela respetiva lei de processo, as consequências do incumprimento total ou parcial dessas obrigações, incluindo a avaliação do dano, na medida em que esta avaliação seja regulada pela lei, as diversas causas de extinção das obrigações, bem como a prescrição e a caducidade e as consequências da invalidade do contrato (artigo 12.º), regem-se pela lei escolhida pelas partes, devendo esta escolha ser expressa ou resultar de forma clara das disposições do contrato, ou das circunstâncias do caso. No caso, em que a requerida nega ter dado acordo à designação pela impetrante, seja da lei aplicável, seja da escolha do foro, é-lhe permitido, para demonstrar que não esse acordo, a possibilidade de invocar a lei do país em que tenha a sua residência habitual (Direito Interno Português), se resultar das circunstâncias que não seria razoável determinar os efeitos do seu comportamento nos termos da lei aplicável pelo regulamento (escolha dos contraentes), o que aqui se cuida, nomeadamente do regime fixado pelo RJSPME, que faz depender a validade do contrato e a eficácia das condições aí estipuladas do preenchimento de determinadas obrigações por parte do prestador de serviço, melhor identificadas nos artigos 90 e 91 deste regime, que não foram minimamente cumpridas no caso, para além de que, sendo a contestante uma microempresa, terá o mesmo tratamento processual que o “Consumidor” (artigo 76, n.º 2 e 100, n.º 1, do RJSPME). Inexiste, pois, acordo entre as partes quanto à submissão do pleito ao ordenamento jurídico da Inglaterra e País de Gales; logo, por força do n.º 3 do artigo 4.º e n.º 1, al. a) e n.º 2 do artigo 6.º, ambos do CE 593/2008, será aplicável, não a lei Inglesa e do País de Gales, mas o regime jurídico diretamente aplicável em território português, tendo em contas as diversas fontes do direito interno e, do mesmo modo, quanto à “alegada“ escolha dos tribunais de Inglaterra e País de Gales para dirimir o pleito, decidindo-se pela competência internacional a atribuir aos tribunais portugueses, em desfavor do tribunal de Inglaterra. Não existindo acordo sobre o tribunal competente, a regra geral em conformidade com o disposto no artigo 4.º do citado CE 1215/2012, o critério geral será, então, o de as pessoas domiciliadas num Estado-Membro serem demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro. Ao mesmo resultado chegamos seguindo o aludido no ponto 2 do artigo 17 do Regulamento Comunitário CE 1215/2012 CE, por a requerida beneficiar do “estatuto” de microempresa, equivalente ao de consumidor, ou ainda, tendo em conta este benefício de tratamento, nos termos do n.º 2 do artigo 18.º daquele CE 1215/2012, pois a requerente só podia intentar uma ação contra consumidor nos tribunais do Estado-Membro em cujo território estiver o consumidor domiciliado.
- Inobservância do Princípio do Contraditório e da Igualdade: Houve inobservância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes no procedimento que culminou com a prolação da sentença revidenda: a requerida foi citada para ação, com entrega de petição traduzida em português e à qual respondeu, enviando a sua contestação em Português, traduzida para inglês, juntando 8 documentos; a contestação foi rececionada e nela a requerida invocava a incompetência internacional dos tribunais ingleses, assim como impugnou a existência de qualquer dívida à requerente. Foi proferida a sentença revidenda, após ser “eliminada” a defesa apresentada e apenas com a inquirição do legal representante da impetrante, dela não resultando sequer que aquele tribunal inglês haja apreciado alguma das questões suscitadas na defesa, ou considerado a contraprova documental junta. Ainda que, nestes autos, não se cuide de apreciar o mérito da sentença revidenda, parece que não foram concedidos à requerida as mesmas armas que foram concedidas à requerente, tanto mais que a requerida, tal e qual o legislador comunitário conclui, enquanto “utilizadora” com o estatuto de microempresa, equivale-lhe a posição de consumidor, e não se encontrava sequer patrocinada por advogado inglês. Ao ignorar por completo o pedido formulado pela contestante de inquirição de 3 testemunhas, bem como da relevância probatória dos documentos juntos com a defesa e que culminou com a “eliminação da defesa” apresentada naqueles autos, encontra-se ferida de “parcialidade” a sentença, por violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes, nos termos a que se alude na alínea e) do artigo 980 do CPC a contrario.
- Resultado da ação mais favorável, se aplicado o direito material português: O resultado da ação seria mais favorável se o tribunal inglês tivesse aplicado o direito material português: o tribunal inglês não fixou o início da mora, embora na sentença proferida fixe o valor de juros em 2.890,51£, sem indicar o início da contagem, nem o seu fim, ou a taxa. Quanto às custas, embora a impetrante no seu requerimento inicial peticionasse 1500£ (incluindo IVA) pelos custos, acrescido de 678,92£ a título de custas do tribunal, a verdade é que aquele tribunal fixou a quantia de 13,578.35£, acrescida de juros no valor de 2890,51£ e 15,000£, ou seja, decuplicou o valor peticionado, sem qualquer justificação. Se bem que a tradução também aqui nos pareça ter falhas, o cálculo das alegadas perdas foi calculado em euros, porquanto na versão dos factos apresentada pela impetrante, a perda que a mesma teria sofrido resulta precisamente da diferença cambial, entre o momento da compra de Dólares Americanos (USD) pela requerida à requerente, pagando-lhe em Euros e, assim, mesmo a conceder-se razão a esta, o valor do seu crédito pecuniário seria de 15.002,33€ e, não tendo sido invocado o pagamento de qualquer valor em libras esterlinas, não fará sentido liquidar-se o valor nessa moeda, que não tem curso legal no espaço da união; quanto aos juros, os fixados e peticionados pela requerente mostram-se usurários; também quanto às custas, elas seriam, neste caso, 50% de 678,92£, ou seja 339,46£ e não 1500£, como fixado, ainda que a título provisório.
- Da cessação dos efeitos do contrato: O processo que correu termos no Tribunal Inglês e que culmina na sentença revidenda está relacionado com o cumprimento ou incumprimento de obrigações decorrentes de contrato que foi celebrado em Portugal, entre a requerida – sociedade de direito e com sede em Portugal – com a então sucursal da requerente em Portugal. A partir de 31.12.2020, a requerente por via da sua sucursal em Lisboa, deixou de estar autorizada a operar em Portugal e, sendo assim, ficou impossibilitada cumprir com a sua obrigação, ao abrigo do dito contrato, para com a requerida, verificando-se a impossibilidade objetiva e superveniente de cumprimento do contrato, fazendo-o extinguir; assim, a resolução do contrato pela requerente a 7 de janeiro é ineficaz, pelo que, nem a requerente nem a requerida, após 31.12.2020, podiam exigir à contraparte o cumprimento do contrato. Ainda que assim não fosse, na contestação apresentada perante o tribunal inglês (Doc. n.º 1), a requerida procedeu unilateralmente à “anulação” do contrato em crise (doc. 8 junto com a sua contestação “eliminada”), comunicação que corresponde a uma denúncia. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 94 do RJSPME, o utilizador de serviços de pagamento pode denunciar o contrato-quadro em qualquer momento, salvo se as partes tiverem acordado num período de pré-aviso, o qual não pode ser superior a um mês e, sendo um consumidor ou uma microempresa, a denúncia é sempre isenta de encargos para o utilizador. Assim, a 7 de janeiro de 2021, seguramente que o contrato já não estava em vigor, e não gozava de qualquer eficácia entre as partes, nada sendo a requerida devedora e sendo cristalino que, para além da jurisdição dos tribunais portugueses, a aplicação in casu da lei portuguesa, conduz a um resultado bem mais favorável à requerida, como acaba de se demonstrar, constituindo fundamento para recusa da confirmação da sentença.

Notificada da contestação, a requerente veio responder. Em síntese, sustenta:
- A requerida faz uso de diversos argumentos que em muito se prendem, exclusivamente, com o mérito da sentença, pondo em causa a correção da decisão substantiva e, adicionalmente, alega não estarem preenchidos os requisitos necessários para a sua confirmação, mais concretamente, no que respeita à alegada falta de trânsito da decisão e à violação do princípio do contraditório. No entanto, nenhum dos argumentos invocados é suscetível de ter assento legal.
- No que concerne ao requisito do trânsito em julgado da sentença, contrariamente ao que sucede no sistema judicial português, o tribunal que proferiu a sentença não emite, habitualmente, certidões de trânsito, motivo pelo qual a mesma não foi junta aos autos. De todo o modo, de acordo com o CPR 52.12(2), a parte vencida tem “21 dias após a data da decisão do tribunal de primeira instância de que o recorrente pretende recorrer”, para apresentar recurso, salvo se o tribunal fixar outro prazo, o que, na situação em apreço, não sucedeu. Tendo a requerida optado por não apresentar pedido de recurso ou de anulação da decisão, à data da propositura da presente ação, 12 de setembro de 2023, a decisão tinha já transitado. Em todo o caso, a requerente protesta juntar, para o caso de o tribunal considerar existirem dúvidas sobre o tema, um documento emitido pelo tribunal inglês que ateste o trânsito.
- Quanto à observância dos princípios do contraditório e da igualdade de partes, a requerida sugere que a contestação por ela apresentada foi “eliminada” pelo County Court Money Claims Centre, não tendo este tribunal levado em consideração os argumentos invocados nem a prova documental junta aos autos. Ora, estipula a alínea e) do artigo 980 do CPC (...) no caso a requerida foi regularmente citada no âmbito do processo, o que, aliás, não coloca em dúvida, ou seja, foi-lhe conferido o direito de exercer o contraditório. Quanto à alegada “eliminação” da contestação, tal terá sucedido, certamente, por a requerida não se ter oposto à ação de forma válida, ou seja, de acordo com as normas legais inglesas. A peça é desentranhada dos autos não por o tribunal estar a ser parcial ou injusto com uma das partes, mas por incumprimento de algum, ou alguns, dos requisitos formais do processo. De todo o modo, deveria a requerida ter procurado saber junto do County Court Money Claims Centre o motivo legal para o seu desentranhamento, não podendo vir agora, perante um tribunal português, lamentar-se de tal facto quando sempre tomou uma atitude passiva em relação ao assunto, nem sendo possível a este tribunal censurar os termos processuais seguidos pela lei do processo do Estado de origem da sentença.
- Relativamente ao alegado resultado mais favorável à requerida, é pacífico que o sistema português de revisão é puramente formal, sem prejuízo da exceção consagrada no artigo 982, n.º 2 do CPC. Mas, ainda que a ação tivesse sido intentada em Portugal (o que não poderia ter feito devido à cláusula de foro convencionada entre as partes), a requerida sempre seria obrigada a pagar à segunda as quantias a que foi condenada. O artigo 3.º, n.º 1 do Regulamento Roma I consagra o primado da liberdade de escolha da lei a aplicar aos contratos e, mesmo que assim não fosse, sempre seria aplicável ao contrato de prestação de serviços a “lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual”, conforme alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º desse Regulamento. Sucede que as partes definiram, ab initio, as condições pelas quais se regeria a relação contratual tendo a requerida aceitado a prestação de serviços nos termos apresentados pela requerente (doc. n.º 20), e não podendo agora afirmar desconhecer os termos e condições da requerente. A alegada falta de informação apenas terá ocorrido, presumivelmente, por falta de diligência da requerida que, por negligência grosseira e censurável, não terá tido interesse em ler as referidas cláusulas, limitando-se a aceitá-las “de cruz”, até porque a requerida é uma pessoa coletiva constituída há cerca de 18 anos e não um mero consumidor particular. Contudo, fruto da alteração dos mencionados termos e condições, a 2 de janeiro de 2020, a requerente enviou um email aos seus clientes, entre os quais a requerida, informando que se encontrava a atualizá-los, tendo, em dezembro de 2020, fruto dessa alteração, enviado os termos e condições atualizados e, independentemente dessa atualização, a condição sobre a lei do foro aplicável em caso de conflito sempre foi a mesma “Inglaterra e do País de Gales”, conforme a requerida reconhece no artigo 37.º da oposição apresentada.
- Quanto às quantias em dívida: - A requerida não pode invocar as normas nacionais para a fixação do valor das custas, pretendendo que as mesmas sejam aplicadas a um processo que correu termos num país estrangeiro, mostrando discordância, nomeadamente, com o valor de custas fixado numa sentença transitada. Tendo o tribunal proferido a sentença condenatória constante no doc. n.º 1 junto com a petição, não pode, neste momento, tal sentença ser alterada, nomeadamente, através da redução do valor das custas fixadas.
- Dos demais argumentos invocados: No capítulo I “Introito”, a requerida, apresenta o que se assemelha a uma contestação, que deveria ter sido apresentada no âmbito do processo H34YJ229. Além disso, é alegada a incompetência internacional do tribunal que proferiu a sentença estrangeira que agora se pretende rever, mencionando-se ainda a alegada má aplicação da lei ao caso (capítulo III da oposição). Mais alega que da referida sentença não resulta a sua condenação no pagamento de qualquer quantia e que “apenas se ordena e concede a aqui impetrante aqueles valores acima referidos”, argumento sem qualquer fundamento, na medida em as sentenças estrangeiras não revestem, nem tem de revestir, os aspetos formais que se verificam numa sentença proferida por um tribunal português.

Na sequência do protesto feito pela requente, foi-lhe concedido prazo para junção de documento relativo ao trânsito da sentença pretendida rever. O prazo foi sucessivamente renovado, até ser proferido o seguinte despacho: “Pretendeu a requerente, sucessivamente, juntar aos autos documento confirmativo do trânsito em julgado da decisão que pretende rever. Tendo em conta que se trata de documento emitido em país (jurisdição) estrangeiro, o tribunal foi, sucessivamente também, concedendo e prorrogando o prazo para a pretendida junção. Sucede que os autos aguardam a aludida junção desde há meses, e a requerida veio, agora, opor-se a nova prorrogação do prazo. Tendo em conta a finalidade do documento em causa e o disposto no artigo 984 do Código de Processo Civil (CPC) e na ponderação de que não cabe à requerente a demonstração do trânsito em julgado, nada obsta ao prosseguimento dos autos e nada justifica, assim, que continuem a aguardar a junção protestada. Assim, não se vendo provas que importe produzir, determina-se o cumprimento do disposto no artigo 982, n.º 1 do CPC”.

Em alegações a requerente veio sustentar:
1 – Está em causa uma sentença estrangeira transitada em julgado, proferida pelo Centro de Reclamações Pecuniárias do Tribunal da Comarca do Reino Unido.
2 - Nos termos da referida sentença, a requerida foi condenada a pagar à requerente a quantia de 13.578,35£ a título de dívida, e juros calculados até à data do julgamento no valor de 2.890,51£, a que acresce ainda o valor de 15.000£, a título de custas.
3 - Nos termos do artigo 980 do CPC (...)
4 – Todos os referidos requisitos se encontram cumpridos.
5 - Em primeiro lugar, foi apresentado documento autêntico bastante, referente a sentença transitada, cuja autenticidade e conteúdo não podem ser postos em causa, não havendo, de igual modo, dúvidas sobre a inteligência da decisão.
6 – A respeito do trânsito, a requerente tentou obter junto do tribunal inglês uma certidão que o confirmasse, conforme documento junto aos autos.
7 - Contudo, por aquele tribunal não emitir habitualmente certidões de transito em julgado, a requerente não obteve, em tempo, o referido documento.
8 - Ainda assim, o facto de tal documento não ter sido atempadamente junto não poderá ser causa justificativa do indeferimento do pedido.
9 - Porquanto, a requerente não era obrigada a obter tal documento comprovativo.
10 - E, de acordo com lei inglesa, a parte vencida tem “21 dias após a data da decisão do
tribunal de primeira instância de que o recorrente pretende recorrer”, para apresentar recurso, salvo se o Tribunal fixar outro prazo, conforme dispõe o CPR 52.12(2), o que não sucedeu (e que, em qualquer caso, caberia a requerida demonstrar).
(...)
13 – A requerida foi regularmente citada para a ação.
(...)
15 - Nenhuma das partes apresentou recurso da decisão condenatória ou intentou nova ação com igual pedido e causa de pedir,
16 - A decisão não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
17 - A sentença tem força executiva no país em que foi proferida.
18 - Requerente e a requerida são partes legítimas e dotadas de capacidade judiciaria.
19 - A decisão não conduz a um resultado incompatível com os princípios da ordem publica internacional do Estado Português, nem ofende as disposições do direito português, estando em conformidade com a legislação pertinente.
Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e por via dela ser revista e confirmada a sentença estrangeira, com todas as consequências legais para que a mesma possa produzir em Portugal sendo, assim, a Requerida condenada ao pagamento à Requerente da quantia global de € 36.744,23 (trinta e seis mil setecentos e quarenta e quatro euros e vinte e três cêntimos), do seguinte modo: • € 15.854,59 (quinze mil oitocentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta e nove cêntimos), a título de capital em dívida; • € 3.375,07 (três mil trezentos e setenta e cinco euros e sete cêntimos), a título de juros de mora calculados até à data da sentença estrangeira, em 23 de fevereiro de 2023; • € 17.514,57 (dezassete mil quinhentos e catorze euros e cinquenta e sete cêntimos), a título de custas processuais.

O Ministério Público, por sua vez, veio alegar:
- Não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do documento de que consta a decisão revidenda, nem sobre a inteligibilidade da decisão nela contida. Presume-se o seu trânsito em julgado. A decisão revidenda foi proferida por autoridade cuja competência não se mostra ter sido provocada em fraude à lei e não versa sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais Portugueses. Não se vê que se possam invocar aqui as exceções do caso julgado ou da litispendência, com fundamento em causa afeta a Tribunal Português. A decisão revidenda não contém decisão cujo reconhecimento conduza a resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.

Igualmente alegou a requerida:
- DA FALTA DE EVIDÊNCIA DO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA REVIDENDA
2 - A requerida não desconhece que a nossa jurisprudência vem entendendo que este requisito se presume, cabendo à requerida demonstrar a sua não verificação.
3 - A verdade é que dos documentos juntos não resulta que a sentença já tenha transitado, avolumando-se as dúvidas com o facto de o tribunal que proferiu a decisão, apesar de solicitação nesse sentido, não ter atestado tal facto.
4 - Aliás na sequência do pedido de emissão de certidão por parte da requerente perante aquele tribunal, este remeteu a 15.11.2023 notificação à requerida (Doc. n.º 1) onde refere que tal pedido (apresentado a 24.10.2023) carece de despacho do Juiz, podendo ser agendada, para tal, audiência, ou ser decidido por simples despacho, dando ainda conhecimento que seriamos sempre notificados do que viesse a ser decidido.
5 - Logo, se dúvidas existiam inicialmente perante esta postura do tribunal Inglês, não vemos como a requerida, pudesse vir a demonstrar “cabalmente” que aquela sentença ainda não transitou em julgado.
(...)
- DA EXCEPÇÃO DA COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES À LUZ DO CE 593/2008 DE 17 DE JUNHO
7 - A ação onde foi proferida a sentença revidenda, foi intentada já após o terminus do período de transição fixado no acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeias da Energia Atómica (2019/C 384 1/01), que sucedeu a 31 de dezembro de 2020.
8 - Dispõe o artigo 66 do citado acordo (Brexit), que no Reino Unido, será aplicável o Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho aos contratos celebrados antes do termo do período de transição, que é o caso.
9 - Para além da requerida não ter aceitado qualquer acordo referente à lei aplicável ou à escolha do foro, nos termos do n.º 2 do artigo 10 do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, é-lhe permitido, para demonstrar que não deu o seu acordo, a possibilidade de invocar a lei do país em que tenha a residência habitual (Direito Interno Português), se resultar das circunstâncias que não seria razoável determinar os efeitos do seu comportamento nos termos da lei aplicável pelo Regulamento (escolha dos contraentes).
10 - Ora, precisamente o regime fixado pelo RJSPME, faz depender a validade do contrato e a eficácia das condições aí estipuladas do preenchimento de determinadas obrigações por parte do prestador de serviço, melhor identificadas nos artigos 90 e 91 daquele regime legal, que não foram minimamente cumpridas no caso em apreço,
11 - Para além de que tratando-se, a requerida, de uma microempresa, terá o mesmo tratamento processual que um “consumidor”.
(...)
13 – Da declaração Conjunta do Conselho e da Comissão sobre o artigo 15.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 afirma-se que «o simples facto de um sítio da internet ser acessível não basta para tornar aplicável o artigo 15.º, é preciso também que esse sítio internet convide à celebração de contratos à distância e que tenha efetivamente sido celebrado um contrato à distância por qualquer meio. A este respeito, a língua ou a moeda utilizadas por um sítio internet não constituem elementos relevantes».
14 - Os consumidores deverão estar protegidos pelas disposições do seu país de residência habitual, que não são derrogáveis por acordo.
15 - O ónus da prova do cumprimento daqueles requisitos de informação, cabe de resto ao prestador de serviço (a requerente), por força do disposto no artigo 8.º do RJSPME.
16 - Inexistindo, como não existe, acordo entre as partes quanto à submissão do presente pleito ao ordenamento jurídico de Inglaterra e País de Gales.
17 - Do mesmo modo, “mutatis mutandis”, quanto à “alegada” escolha pelas partes dos tribunais de Inglaterra e País de Gales, para dirimir o presente pleito, decidindo-se pela competência internacional a atribuir exclusivamente aos tribunais portugueses, em desfavor do tribunal de Inglaterra.
18 - Acresce que, ainda que aquele acordo sobre a jurisdição, fosse válido e eficaz, a nossa jurisprudência vem entendendo que o mesmo só seria aplicável relativamente a matéria controvertida entre as partes relativamente ao contrato, mas enquanto tal contrato fosse válido e eficaz entre as partes,
19 - Deixando tal pacto de ser aplicável e invocável, após a cessação dos efeitos de tal contrato declarado por uma ou por ambas as partes, como sucede in casu (Doc. n.º 8 junto com a contestação e o confessado pela requerente em 79 da sua resposta) com o pedido de fixação de indemnização relacionada com o incumprimento contratual de uma das partes, perante o tribunal Inglês.
(...)
21 - Não existindo acordo sobre o tribunal competente, como se disse, a regra geral em conformidade com o disposto no artigo 4.º do CE 1215/2012, o critério geral será o das pessoas domiciliadas num Estado-Membro serem demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.
22 - Sendo a requerida uma sociedade de direito português, com sede em Portugal e com o seu centro de negócios em Portugal, impunha-se que a mesma fosse demandada em Portugal.
23 - Por outro lado, seguindo o aludido no ponto 2 do artigo 17 do citado Regulamento Comunitário CE 1215/2012, por a requerida beneficiar do “estatuto” de microempresa (docs. n.º 12 a 19 da contestação), equivalente ao de consumidor e sendo a requerente uma sociedade de direito inglês, com sede em Londres, Inglaterra (país que já não é membro da União Europeia), e que teve uma sucursal com estabelecimento na cidade de Lisboa, que foi de resto a interveniente no negócio em discussão, deverá considerar-se, para este efeito, o seu domicilio (da requerente) no Estado-Membro em que se situa tal sucursal (Portugal, comarca de Lisboa).
24 - Ou, mesmo ainda, tendo em conta aquele benefício de tratamento da requerida como “consumidor”, tendo sido celebrado o contrato com sociedade “estrangeira” e não tendo a sua sede social no território de um Estado-Membro, nos termos do n.º 2 do artigo 18 daquele CE 1215/2012, a requerente (contraparte no contrato) só pode intentar uma ação contra o consumidor nos tribunais do Estado-Membro em cujo território estiver domiciliado esse consumidor.
25 - A expressão “só pode intentar ação contra o consumidor...”, inculca uma disposição que não pode ser derrogada por acordo das partes (que, reitera-se, não existiu, nem existe). Logo,
26 - Os efeitos do artigo 67 do acordo de saída, vulgo “Brexit” (2019/C 384 I/01), afastam a força executiva das sentenças proferidas em sede de processo judicial ao Reino da Grã- Bretanha ou o reconhecimento automático perante um Estado-Membro da União, como é o presente caso, quando os processos tiveram o seu início já após o termo do período de transição, mas não afasta a vigência automática daquele Regulamento Comunitário aos estados membros da União Europeia, incluindo Portugal, em razão do primado das leis comunitárias sob o direito interno.
27 - Assim, quanto à apreciação que aqui importa fazer (mesmo a título oficioso), à luz do citado Regulamento Comunitário CE 1215/2012, bem como do acordo “Brexit”, deverá ser julgado o tribunal inglês internacionalmente incompetente, por a competência internacional caber exclusivamente aos tribunais portugueses.
25 - Sendo a matéria discutida na decisão revidenda da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
- DA INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DE IGUALDADE DAS PARTES NO PROCEDIMENTO JUDICIAL QUE CORREU TERMOS PERANTE O TRIBUNAL INGLÊS,
(...)
27 - Ainda hoje a requerida desconhece os motivos e fundamentos para a “eliminação da sua contestação”, bem como as razões e fundamentos para a não inquirição das testemunhas arroladas.
28 - Sendo ainda certo que, pelo que se pode ler da sentença revidenda, o tribunal deu como provados todos os factos invocados pela requerente, com base no depoimento do seu representante legal.
29 - Não é sequer abordada, ainda que oficiosamente, na sentença revidenda, a questão da incompetência invocada pela requerida na contestação eliminada.
30 - Desconhecendo-se os fundamentos seja para a eliminação da contestação, seja para a não inquirição das testemunhas, pouco importando as “especulações” que a este propósito a requerente reproduz no seu articulado de resposta, e estando a sentença revidenda ferida de “parcialidade”, por violação do princípio do contraditório e igualdade das partes, nos termos da al. e) do artigo 980 do CPC a contrario.
31 - Devendo, também, por esta razão, não ser confirmada a sentença revidenda.
- DO PRIVILÉGIO DA NACIONALIDADE
32 - Embora na sentença revidenda o Mmo. Juiz inglês “concedeu” à entidade requerente o valor de 13.578,35£, acrescido de juros no valor de 2.890,51£ e ainda a título de custas sumariamente avaliadas no valor de 15.000£, não resulta qualquer condenação de pagamento. Ou seja, não se trata de uma ação declarativa de condenação, mas, se se quiser, uma acção de simples apreciação quanto ao alegado incumprimento do contrato celebrado entre as partes.
33 - E, a ser confirmada a sentença revidenda, seria confirmada nos termos em que foi fixado pelo tribunal inglês, e não convolando aquele procedimento como sentença de condenação da requerida no pagamento daquelas quantias. Dito isto,
34 - Segundo as regras de conflito aqui aplicáveis (CE 1215/2012 de 12 de Dezembro, DL 91/2018 de 12 de novembro e, artigo 62, 64 e 81, n.º 2, todos do CPC, para além da competência internacional pertencer em exclusivo aos tribunais Portugueses, seria também de aplicar regras de direito português ao abrigo do CE 593/2008 de 17 de Junho e Acordo de Saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (2019/C 384 I/01), que neste caso ao regime instituído pelo DL 91/2018 de 12 de Novembro (RJSPME) e Código Civil Português. Chegados aqui,
35 - O processo está relacionado com o cumprimento ou incumprimento de obrigações decorrentes de contrato.
36 - Contrato, esse, que foi celebrado em Portugal, entre a requerida – sociedade de direito e com sede em Portugal – com a então sucursal da requerente em Portugal, devidamente registada junto do Banco de Portugal e com sede em Lisboa
37- Não há dúvidas, que a partir de 31.12.2020, a requerente por via da dissolução e liquidação da sua sucursal em Lisboa, deixou de estar autorizada a operar em Portugal, tendo caducado o seu registo para o efeito, junto do Banco de Portugal, com o fim do período de transição da saída do Reino Unido do Espaço Europeu (Brexit);
38 - Sendo assim, ficou a requerente impossibilitada cumprir com a sua obrigação, ao abrigo do dito contrato, para com a requerida,
39 - Verificando-se, pois, a impossibilidade objetiva superveniente de cumprimento do contrato, fazendo-o extinguir, cfr. n.º 1 do artigo 790 do nosso Código Civil.
40 - Assim sendo, como é, a resolução do contrato pela requerente a 7 de janeiro é ineficaz, por o contrato já se encontrar extinto e consequentemente extintas as obrigações daí decorrentes para as partes.
41 - Pelo que, em face disto nem a requerente, nem a aqui requerida após 31.12.2020 poderiam exigir à contraparte o cumprimento do aludido contrato, por o mesmo estar extinto (morto), “não se podendo matar alguém que já estava morto...”
42 - Pelo que à luz do acordo firmado entre a União Europeia e o Reino Unido, a que vulgarmente se denomina “Brexit”, que tem força de lei e de aplicação imediata no ordenamento jurídico português, o contrato em apreço deixou de vigorar, porque precisamente a requerente deixou de poder exercer a sua atividade - prestação de serviços de emissão de moeda eletrónica - em território Português, por falta de autorização pelo Banco de Portugal. Mais,
43 - Na contestação apresentada perante o tribunal inglês (Doc. n.º 1, junto com a contestação), a requerida procedeu unilateralmente à “anulação” do contrato.
44 - Tal comunicação, parece-nos, corresponde a uma denúncia do contrato.
45 - Ora, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 94 do RJSPME, o utilizador de serviços de pagamento pode denunciar o contrato-quadro em qualquer momento, salvo se as partes tiverem acordado num período de pré-aviso, o qual não pode ser superior a um mês.
46 - E, quando o utilizador de serviços de pagamento seja consumidor ou microempresa, a denúncia do contrato-quadro é sempre isenta de encargos para o utilizador.
47 - Assim sendo, como é, desde as 16:27 horas do dia 15 de junho de 2020, que o contrato em apreço foi extinto, por denúncia da contestante, ou, na pior das hipóteses, após 30 dias, correspondente ao período de pré-aviso (a 15 de julho de 2020).
48 - Sendo que a partir de então a requerida não efetuou qualquer tipo de contrato ou acordo com a requerente (Doc. n.º 21)
49 - Isto para dizer que, a 7 de janeiro de 2021, seguramente que o contrato já não estava em vigor, e consequentemente não gozava de qualquer eficácia entre as partes, seja por vontade manifestada unilateralmente pela requerida, seja por impossibilidade legal, em razão da falta de autorização pelo Banco de Portugal, para a requerente operar em território português, nomeadamente pela prestação de serviços de pagamento e moeda eletrónica.
50 - Pelo que, nos termos sobreditos, não é a requerida devedora de qualquer quantia.
51 - Sendo cristalino que, para além da jurisdição dos tribunais portugueses, a aplicação in casu do direito substantivo português e comunitário – de aplicação imediata -, designadamente o disposto no RJSPME, o resultado da decisão no que concerne à cessação do vínculo contratual e suas consequências é inquestionavelmente mais favorável à requerida, em razão da proteção conferida nesta matéria ao consumidor e às microempresas, designadamente estabelecendo liberdade de resolução ou denúncia dos contratos, estabelecida no artigo 94 daquele regime legal.
(...)
56 - O cálculo das alegadas perdas como resulta à evidência dos “detalhes da Requisição” (petição inicial perante o tribunal inglês), foi efetuado em Euros, mais propriamente 15.002,33€, valor exigido no dia 12.01.2021.
57 - E foi calculado em euros, porquanto na versão dos factos apresentada pela impetrante, a perda que a mesma teria sofrido resulta precisamente da diferença cambial entre o momento da compra de Dólares Americanos pela contestante à impetrante, pagando-lhe em Euros. Nunca esteve em causa, por isso, qualquer pagamento em libras esterlinas, seja a crédito seja a débito.
58 - Ora, dispõe o artigo 550 do nosso Código Civil (...)
59 - Assim, mesmo a dar-se razão à requerente, o valor do seu crédito seria de 15.002,33€, não sendo convertível em libras, para mais tarde voltar a ser convertido em euros.
60 - Aliás, concordando as partes que a requerente se obrigou a vender USD à requerida e esta a pagar em Euros, é nessa moeda que deverá ser cumprida a sua obrigação, independentemente da variação do seu valor (taxa de câmbio) - artigo 553 do CC.
61 - Não faz sentido nesta sede liquidar-se o valor em libras esterlinas, que não tem curso legal no espaço da união europeia
62 - O mesmo se diga a propósito da taxa de juros (...)
63 - Constituindo o valor dos juros fixados e peticionados pela impetrante verdadeiros juros usurários, tal como vem definido nos artigos 559-A e 1146 do CC.
64 - O tribunal inglês não fixou sequer o início da mora ou taxa de juros a aplicar.
65 - Já quanto ao valor de custas, para além da tradução da sentença não ser fidedigna, como facilmente se verifica, mesmo para quem não domine perfeitamente a língua inglesa, existe uma clara decuplicação do valor peticionado pela requerente, perante o tribunal inglês, sem aparente justificação, passando de 1500 para 15.000, e exorbitando o pedido.
66 - Além disso, quanto às custas é aplicável o disposto nos artigos 529, 532 e 533 do Código Civil e DL n.º 34/2008, que no artigo 26 fixa o cálculo das custa e despesas suportadas pelas partes, aí se incluindo o valor das taxas de justiça, e a percentagem de 50% do somatório das taxas de justiça pagas pelas partes como compensação da parte vencedora face às despesas e honorários do seu mandatário judicial.
67 - Assim, neste caso para este tipo de encargos (despesas com os mandatários forenses) seria 50% de 678,92£, ou seja 339,46£ e não 1500£, como vem fixado, ainda que a título provisório (avaliação sumária).
68 - O valor dos encargos com o processo, bem como o cálculo do quantum indemnizatório, taxa de juro, constituem matéria substancial e não matéria processual, pelo que, demonstrado que a lei portuguesa é aplicável, ela dá um tratamento indubitavelmente mais favorável à requerida, e, também por este motivo, deverá ser recusada a confirmação da sentença, com fundamento no privilégio da nacionalidade.

Valor da Causa: 36.744,23€ (valor oferecido pela requerente e não impugnado pela requerida).

Saneamento
O processo de revisão é o próprio, as partes são legítimas e não vemos exceções, questões prévias ou nulidades que obstem ao conhecimento da causa.

II – Fundamentação
II.I – Fundamentação de facto
Com relevo para a apreciação da pretensão formulada nos autos, e sem embargo de outras referências em sede de aplicação do Direito, mostram-se documentados nos autos os seguintes factos:
A – A requerida foi citada para a ação, no âmbito do processo H34YJ229, nos termos da Convenção de Haia, a 24.09.2021.
B - Com tal citação, foram entregues à requerida cópia do “formulário de requisição”, onde a requerente peticiona o pagamento de capital em divida (13.578,35£), acrescido de custas do tribunal (678,92£) e custos do representante legal (110,00), totalizando 14.367,27£, com tradução para português devidamente certificada daquele “formulário de requisição”, assim como do “aviso de notificação fora da jurisdição onde a autorização do tribunal não é necessária”.
C - A requerida apresentou defesa “response pack”, instruída com 8 documentos, que foi remetida por correio eletrónico de 8.10.2021 (doc. 1 e 2, juntos com a oposição), tendo suscitado a incompetência internacional do Tribunal Inglês e tendo impugnado a existência de qualquer crédito por parte da requerente.
D – Posteriormente, a requerida recebeu a notificação, através do documento intitulado “notice of proposed allocation to the fast track”, em inglês, datado de 25.10.2021, tendo enviado a 3.12.2021 solicitação da respetiva tradução para português (docs. 3 e 4 juntos com a oposição), tradução que veio a receber a 22.12.2021 (docs. 5 e 6, juntos com a oposição).
E – Na sequência, a requerida remeteu ao tribunal inglês, a 28.12.2021, formulário em Inglês “Directions questionnaire (Small Claims Track) – docs. 7 e 8, juntos com a oposição.
F - A 19.06.2023, a requerida foi notificada da sentença proferida no sobredito processo.
G - Foi proferida a seguinte sentença, a 23.02.2023 e aqui pretendida rever:
“Upon the matter being listed for a Fast Track Trial
Upon hearing from Mr. AA of Counsel for a Claimant and the Defendant not attending, and
Upon consideration of de Trial Bundle filed for today’s hearing
For the reasons given at the conclusion of the hearing

IT IS ORDERED THAT:
1 – The Defendant’s Defense is struck out pursuant to CPR 3.4(1) (C).
2 – Judgment for the Claimant is awarded in the sum of £13,578.35 plus interrest in the sum of £2,890.51.
3 – The Claiment is awarded its cots summarily assessed in the sum of £15,000.”

H – A qual se mostra certificada e traduzida nos autos nos seguintes termos:


II.II – Fundamentação de Direito
Considerações gerais
Como se revela consensual entre as partes, a revisão de sentença, pretendida nestes autos, segue o processo especial previsto nos artigos 978 e ss. do CPC. Segundo os pertinentes normativos – e no que ao caso relevará – mostra-se disposto:
Artigo 978: 1 - Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada. 2 - Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.
Artigo 980: Para que a sentença seja confirmada é necessário: a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Artigo 983: 1 - O pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980 ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do artigo 696. 2 - Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.
Artigo 984: O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.

- Como decorre do disposto no artigo 978, n.º 1 do CPC, “O direito interno português exige o reconhecimento expresso das decisões proferidas por tribunais estrangeiros ou por árbitros no estrangeiro (na sequência de processos que decorram igualmente no estrangeiro), mesmo que a decisão tenha sido proferida num processo de jurisdição voluntária”. A sentença estrangeira será confirmada se se mostrarem preenchidos os requisitos constantes das diversas alíneas do artigo 980 do CPC, mas o pedido de revisão “pode ser impugnado pelo requerido com base na falta de algum ou alguns dos requisitos do reconhecimento (art. 983.º, n.º 1, 1.ª parte)”, para além dos casos previstos no artigo 696, alíneas a) e c) do mesmo diploma. Acresce que, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa (singular ou coletiva) de nacionalidade portuguesa, “a impugnação do pedido de reconhecimento pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável, se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa”[1].

- As razões que fundamentam o reconhecimento das sentenças estrangeiras são de “índole eminentemente prática”; trata-se “de assegurar a continuidade e estabilidade das situações da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as expectativas dos interessados não sejam ofendidos. A circunstância de uma situação controvertida ter sido definida por um tribunal, cuja decisão é caso julgado no país em que foi proferida, não poderia ser ignorada. A decisão, pois que se tornou definitiva nesse país, pôs aí termos ao litígio, reforçou as expectativas das partes e de terceiros e consolidou direitos que anteriormente apareciam como incertos”. No direito português, as “condições da confirmação da sentença estrangeira (...) não respeitam senão à regularidade da decisão e do processo de que ela constitui o último termo”, ou seja, “o sistema de direito português é o da revisão formal ou deliberação”[2].

- O “sistema português de revisão de sentenças estrangeiras visa o reconhecimento meramente formal, o que significa que os tribunais competentes, em princípio, se limitam a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não interferindo no fundo ou mérito da causa”[3].

- O processo especial “de revisão de sentenças estrangeiras tem caráter subsidiário e natureza essencialmente formal, não sendo, em regra, possível efetuar uma revisão de mérito da decisão estrangeira”[4].

- “I - A revisão de sentença estrangeira ou ato equiparado com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional tem natureza formal, envolvendo apenas a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma. II - O requisito de autenticidade previsto na al. a) do art. 980.º do CPC, enquanto condição de confirmação da sentença estrangeira, traduz-se na necessidade de o tribunal adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico postulado na decisão revidenda, ainda que não se encontre formalizado em sentença no sentido próprio do termo. III - A exigência da ausência de dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença a rever tem de ser entendida nos termos referidos no n.º 2 do art. 365.º do CC, relevando para tal apenas as dúvidas fundadas. IV - O requisito relativo à inexistência de dúvidas sobre a inteligência da decisão, previsto na 2.ª parte da citada al. a), reporta-se ao conteúdo da decisão, no sentido de que o mesmo deve ser facilmente apreensível pelo órgão jurisdicional português. Atenta a natureza formal do nosso sistema de revisão formal, não cabe analisar, para tal efeito, a coerência lógica entre o segmento decisório e os fundamentos fáctico-jurídicos constantes da decisão revidenda”[5].

Como decorre da conjugação do disposto nas diversas alíneas do artigo 980 do CPC e no artigo 984 do mesmo diploma, e não estando em causa a previsão das alíneas a), c) e g) do artigo 696, ainda do CPC (artigo 983 do CPC), apenas a falta de dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença ou sobre a inteligência da decisão (alínea a)) e que a decisão a rever não conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (alínea f)) são de averiguação oficiosa. Dito de outro modo e relativamente aos demais requisitos de confirmação (alíneas b), c), d) e e), estes só conduzem ao indeferimento da confirmação se do exame do processo ou do exercício funcional se verificar a sua falta.

Vejamos, de seguida, os diversos requisitos que a requerida alega não se mostrarem verificados no caso que apreciamos e que, consequentemente, em seu entendimento, impedem a confirmação da sentença estrangeira.

O trânsito em julgado (980, alínea b) do CPC).

Sustenta a requerida, logo na sua oposição, que o trânsito em julgado não se evidencia na sentença pretendida rever e acrescenta, em sede de alegações, que, não tendo conseguido a requerente documentar esse trânsito, igualmente (ou por maioria de razão) a requerida não conseguiria cumprir o pertinente ónus, que reconhece ser seu, conforme entendimento consensual da jurisprudência e da doutrina[6].

Note-se que a dificuldade probatória não altera a oneração e, por outro lado, o exame do processo não permite concluir pela falta de trânsito. Efetivamente, importa atentar que a requerida fez juntar aos autos, de modo documental e completo, a diversa intervenção processual que teve perante o tribunal inglês. Não junta, porém (o que permitiria duvidar do referido trânsito) qualquer documento do qual se retire que haja recorrido ou reclamado da decisão que se pretende rever. Mas mais: em momento algum, na sua oposição (contestação) ou nas alegações, vem alegar que tenha tido tal atuação processual.

Assim, atendendo ao (não) alegado, aos diversos documentos que se juntaram aos autos e à oneração da requerida, entendemos que a alínea b) do artigo 980 do CPC se mostra preenchida.

Da competência exclusiva dos tribunais portugueses (alínea c) do artigo 980 do CPC)

A partir da redação dada pelo legislador de 1995 ao então artigo 1096 do CPC – e que corresponde, agora, à citada alínea c) do artigo 980, o entendimento consensual é que se pretendeu afastar a chamada tese da bilateralização ou, dito de outro modo, o preceito veio a consagrar a doutrina da unilateralidade, e evitou-se “a consagração de uma cláusula geral ou de outra solução que suscitasse dificuldades de aplicação. Foi reconhecido pela maioria dos membros da Comissão de Revisão que o tribunal de revisão não pode controlar a competência do tribunal estrangeiro que julgou de mérito, evitando-se, por conseguinte, a equívoca exigência de que o tribunal de origem seja competente segundo a sua própria lei. Assim, exige-se apenas que os tribunais portugueses não sejam exclusivamente competentes e que a competência do tribunal de origem não tenha sido provocada em fraude à lei”[7].

Em sentido idêntico, João Gomes de Almeida dá conta resultar “dos termos do preceito e dos trabalhos preparatórios que o legislador pretendeu afastar a tese da bilateralidade, em favor da tese da unilateralidade, sem que fosse consagrada qualquer cláusula de exceção. Deste modo, parece inequívoco que o tribunal português apenas deve verificar se (i) a competência do tribunal de origem viola alguma norma portuguesa atributiva de competência exclusiva e (ii) se a competência deste tribunal foi provocada em fraude à lei”[8].

Como decorre, a exigência constante da alínea c) do artigo 980 do CPC impõe que os tribunais portugueses não tenham competência exclusiva, e a competência exclusiva mostra-se prevista nas diversas alíneas do artigo 63 do mesmo diploma para situações diversas da que está em causa na sentença que se pretende rever.

Acresce que as partes convencionaram a jurisdição competente para dirimir o conflito (artigo 94 do CPC) o que podem fazer, justamente por não estar em causa, além do mais, a exclusiva competência dos tribunais portugueses (artigo 94, n.º 3, alínea d) do CPC).

É certo que a requerida vem pôr em causa a validade do pacto atributivo de jurisdição (competência do tribunal estrangeiro), mas reconhece-o e – porque o pressupõe, questiona-o, e o tribunal inglês aceitou a sua própria competência internacional. Não compete, por isso, a este tribunal de revisão apurar se aquele pacto carece de validade.

Com efeito, mesmo que se entenda que a ação também poderia ser proposta em Portugal[9], não estamos perante uma competência exclusiva dos tribunal portugueses, proibitiva da possibilidade de convencionar a jurisdição competente.

Concluindo, não há obstá-lo à confirmação da sentença em razão da competência ter sido provocada em fraude à lei – que sequer se invoca – ou por a matéria versada ser da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

- Da inobservância do princípio do contraditório e da igualdade (alínea e), 2.ª parte do CPC).

Como decorre dos autos, a requerida foi validamente citada[10] e apresentou a sua defesa perante o tribunal inglês. No entanto, refere que continua a desconhecer “os motivos e fundamentos para a “eliminação da sua contestação”, bem como as razões e fundamentos para a não inquirição das testemunhas por si arroladas”; mais, que o tribunal inglês não abordou, “ainda que oficiosamente, na sentença revidenda, a questão da incompetência invocada pela requerida na contestação, que veio a ser eliminada”, e entende que “está a sentença revidenda ferida de “parcialidade”, por violação do princípio do contraditório e igualdade das partes”.

O que está em causa na alínea e), 2.ª parte, do artigo 980 do CPC, nunca é a qualidade do desempenho dos intervenientes processuais[11], e não é, também, a violação da ordem pública internacional material, que sempre seria de conhecimento oficioso, mas a ordem pública internacional processual, que tem de ser alegada e provada pela parte requerida. Note-se, por outro lado, que se considera “admissível o entendimento de que não há verdadeiro obstáculo ao reconhecimento de uma decisão estrangeira que, apesar de não salvaguardar os direitos fundamentais do réu, é aceite por este”[12] e, como se disse a propósito do trânsito em julgado da sentença que se pretende rever, a requerida não demonstrou, pois sequer alegou, que haja recorrido ou reclamado da sentença.

No caso presente, o tribunal inglês determinou o desentranhamento da contestação apresentada pela requerida. Trata-se de uma questão de natureza processual, fundamentada em (invocado) preceito da lei inglesa, e que não cabe a este tribunal (português) de revisão questionar ou apreciar. Decorrente desse desentranhamento, o tribunal inglês não produziu a prova requerida pela ré (aqui requerida). Também no direito processual português pode haver desentranhamento da oposição/contestação e a inerente desconsideração da prova pretendida. É, repetimos, uma questão processual que não cabe sindicar. Tal como a alegada omissão de pronúncia relativamente à (in)competência daquele tribunal estrangeiro, sendo certo, neste ponto, que o tribunal inglês aceitou a sua competência, ao decidir a ação interposta pela autora (aqui requerente). As questões processuais – tal como vêm colocadas – não têm o sentido violador do princípio do contraditório ou da igualdade das partes.

Por isso, entendemos que também este obstáculo, suscitado pela requerida à confirmação da sentença, não se verifica.

- Do privilégio da nacionalidade (artigo 983, n.º 2 do CPC)
Invoca a requerida, ainda, o privilégio da nacionalidade, sustentando, em síntese que, com a aplicação da lei portuguesa (em rigor, da lei que um tribunal português aplicaria) a decisão seria, necessariamente, mais favorável à requerida. Trata-se, agora, de uma ponderação do mérito da sentença estrangeira.

Importa notar, desde logo, não ser evidente a conclusão de que a lei portuguesa seja a competente, substantivamente, para regular a questão apreciada pelo tribunal estrangeiro, uma vez que o artigo 41 do Código Civil (CC) consagra, precisamente, um princípio de não exclusividade relativamente às obrigações provenientes de negócios jurídicos, ou seja, “constitui uma manifestação do princípio da autonomia da vontade em DIP. As obrigações provenientes de negócio jurídico, unilateral ou bilateral, são reguladas pela lei que os respetivos sujeitos tiverem nomeado ou tiverem tido em vista”[13] e o artigo 42 do mesmo diploma enuncia, apenas, um critério supletivo, que se não mostra esclarecedor, no caso presente. Tenha-se presente, por outro lado, que, da aplicação do Regulamento CE 593/2008 ou CE 1215/2022 não resulta – pelo contrário – a indisponibilidade da escolha, pelas partes da lei aplicável.

No fundo, a requerida sustenta a inaplicabilidade da lei inglesa na medida em que pretende que se considere inválido o pacto firmado com a requerente e do qual resulta a escolha/aceitação daquela lei, mas a questão não pode ser colocada nesses termos em sede de revisão, pois implicaria apurar (em sede de mérito, materialmente) qual a lei aplicável, antes de aplicar e quando – prima facie e sem outra indagação – houve escolha da lei aplicável.

Como quer que seja, a questão que se coloca é a de saber se a condenação da requerida, pela aplicação da lei portuguesa teria sido inequivocamente diferente e, necessariamente, mais favorável. Mas a condenação efetivamente determinada pelo tribunal estrangeiro e não o resultado da aplicação normativa de outros institutos ou a ponderação de factos que o tribunal estrangeiro não considerou nem aplicou, mesmo que existentes no seu ordenamento jurídico. Dito de outro modo, o objeto do processo é (apenas) o objeto da sentença que se pretende rever.

E, por ser assim, no caso presente a única parte da condenação da requerida que, legitimamente, permite a conclusão de desfavor no cotejo com a aplicação da lei portuguesa refere-se à condenação em custas/custos (costs, em rigor) que a requerente, na tradução apresentada, considera ser de quinze mil libras.

Sucede, pelo que se dirá de seguida, que não deve atender-se a essa parte da sentença estrangeira, o que, desde logo e no caso concreto, afasta o hipotético privilégio da nacionalidade.

Percorridos os requisitos que a requerida sustenta não estarem presentes, obstando à revisão da sentença estrangeira e também não estando em causa o disposto na alínea f) do artigo 980 do CPC, importa apreciar o requisito constante da alínea a) desse normativo, também ele de conhecimento oficioso: “Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão” e, concretamente, sobre a previsão final da alínea, a inteligência ou a inteligibilidade da sentença.

A “decisão é inteligível quando o tribunal de reconhecimento pode apreender o seu conteúdo. Isto pode exigir a tradução da sentença. Esta exigência não permite o exame da coerência lógica da decisão com os seus fundamentos”[14]. O “que se pretende é que o tribunal ad quem possa compreender o que foi decidido (isto é, o dispositivo da sentença) sem ter de se preocupar com a coerência lógica entre as premissas e a conclusão”[15].

No caso presente, a sentença que se pretende rever condena a requerida em três distintas quantias. Uma delas, traduzida como custos (costs) concedidos à requerente, corresponde a £15,000 (na versão original) e a 15 000£ (na versão traduzida).

Sabemos que, àquele título, o requerente tinha peticionado a quantia de 1.500,00£ (mil e quinhentas libras) e que a decisão do tribunal inglês, até pelo desentranhamento da contestação da requerida, corresponde – se assim o podemos dizer – a uma “condenação de preceito”, o que, sopesado, dá a ideia de um manifesto lapso. Só que, mesmo não descurando aquele pedido da requerente, tal hipótese de lapso, não deixaria de corresponder a uma apreciação de mérito.

Só que, olhando ao dispositivo da sentença, não podemos ter certeza sobre a condenação da requerida a título de custos. A matemática é, ela mesma, uma linguagem que, atento o seu significado universal, não carece de tradução. Sabemos que a utilização do ponto [.] ou da vírgula [,] não tem obrigatoriedade ou unanimidade mundial, mas a leitura imediata da versão inglesa pode corresponder a quinze libras, não se entendendo, nesse caso, o terceiro zero (numa moeda centesimal). A versão traduzida, por sua vez, corresponderá a quinze mil libras, mas não usa – diferentemente da sentença – vírgula ou ponto. Qualquer ilação que se tire do confronto entre o original e a tradução é dúbia, mas o próprio original não se mostra coerente com o sistema centesimal/decimal, nem com a eliminação, possível mas questionável na linguagem jurídica, da eliminação do grafar dos pence, ainda que estes correspondessem a zero.

Perante isto, a conclusão revela-se óbvia: nessa parte, não se entende, não se apreende o seu verdadeiro sentido da sentença ou, dito de outro modo, não se mostra inteligível.

Logo, nos termos da alínea a) do artigo 980 do CPC, 2.ª parte, não pode ser confirmada. Ou melhor, não pode ser integralmente confirmada, mas o reconhecimento pode ser parcial, “quando a sentença comportar partes dissociáveis e as condições de confirmação só se verifiquem relativamente a uma parte da sentença”[16].

Em suma e concluindo, a presente ação especial mostra-se parcialmente procedente: há que confirmar a sentença, salvo na parte que refere £15,000, traduzida como 15,000£.

As custas são devidas por ambas as partes, na proporção do respetivo vencimento e decaimento, concretamente 12/25 (17.514,57/36.744,23) a cargo da requerente e 13/25 (19.229,66/36.744,23) a cargo da requerida.

IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em, na procedência parcial da presente ação, confirmar a sentença proferida a 23.02.2023 pelo Centro de Reclamações Pecuniárias do Tribunal da Comarca (County Court Money Claims Centre), do Reino Unido, no âmbito do processo H34YJ229, e que se mostra certificada nos autos, na parte em que concedeu à requerente as quantias de £13,578.35 e de £2,890.51, não a confirmando, no mais.

Custas por requerente e requerida, na proporção do vencimento e decaimento (12/25 e 13/25, respetivamente.

Registe e notifique.

Porto, 21.10.2014
José Eusébio almeida
Ana Olívia Loureiro
Jorge Martins Ribeiro
______________
[1] Miguel Teixeira de Sousa, João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, págs. 395/397.
[2] A. Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, 14.ª Reimpressão da Edição de outubro/2000, Almedina, 2024, págs. 460, 466 e 470.
[3] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, Almedina, 2022, pág. 445, anotação 7.
[4] João Gomes de Almeida, “Revisão de sentenças estrangeiras”, in Processos especiais, Volume I, Rui Pinto/Ana Alves Leal, coordenação, AAFDL Editora, 2020, págs. 311 e ss., a pág. 313.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2021 [Processo n.º 2652/19.9YRLSB.S1, Relatora, Conselheira Graça Amaral, dgsi].
[6] Presume-se “o trânsito em julgado, cabendo à parte que se opõe ao reconhecimento provar que tal ainda não ocorreu” – António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil... cit., pág. 450, anotação 3.
[7] Luís de Lima Pinheiro, Direito internacional Privado, Volume III – Tomo II, 3.ª Edição Refundida, AAFDL, 2019, págs. 213/214.
[8] “Revisão de sentenças estrangeiras”... cit., pág.323.
[9] Cf. Ac. do STJ de 9.07.2024 [Processo n.º 1132/23.2T8OER-A.L1-A.S1, Relator, Conselheiro Ricardo Costa, dgsi]: “I. O Regulamento (UE) 1215/2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, tem aplicação direta e prioritária na ordem jurídica interna e sobrepõe-se ao regime geral do CPC sobre competência internacional. II. Estabelece como regra geral atributiva de competência o domicílio do réu ou requerido (demandado), em princípio num dos Estados membros da União Europeia, independentemente da sua nacionalidade e de outras conexões da situação em concreto (art. 4º, 1). III. O respetivo art. 25º prevê a possibilidade de as partes, por acordo, fixarem a competência de um tribunal de um Estado membro distinto do «domicílio» das partes (ou mesmo que as partes não residam ou tenham sede na União Europeia) para dirimir os litígios que tenham surgido ou possam surgir de uma determinada relação jurídica – pacto atributivo de jurisdição –, que prevalece sobre as regras de direito interno, nomeadamente os arts. 59º (na parte aplicável) e 94º do CPC” e Ac. do STJ de 4.06.2024 [processo n.º 1978/19.6T8FNC.L1.S1, Relator, Manuel Aguiar Pereira, dgsi]: “I - Pode ser instaurada no tribunal português territorialmente competente, ainda que durante o período de transição previsto no acordo de saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia de Energia Atómica, a acção de condenação fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos praticados pelo demandado, sendo este domiciliado no Reino Unido, mas tendo os factos geradores do dano ocorrido em parte no Reino Unido e em parte em Portugal. II - A competência internacional em função do domicílio do demandado estabelecida como critério geral no art. 4.º n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12-12, pode ser afastada pela adoção do critério do local onde ocorreu o facto danoso (art.7.º n.º 2 do mesmo Regulamento), sem que seja necessário apurar a relatividade da relevância e a maior ou menor gravidade dos factos ocorridos em cada um dos Estados-Membros”.
[10] É a propósito da falta ou irregularidade da citação que a jurisprudência tem denegado a confirmação da sentença estrangeira com base na alínea que apreciamos. Assim, Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.09.2007 [Processo n.º 10353/2005-7, Relator, Desembargador Abrantes Geraldes, dgsi]: “É de negar a revisão e confirmação de sentença estrangeira que julgou procedente acção de investigação de paternidade contra “ Herdeiros de José […]” considerando-se que não foi citado nenhum herdeiro nem sequer houve diligências no sentido de o (os) identificar, o que traduz violação do disposto no artigo 1096.º,alínea e) e 1101º do Código de Processo Civil” e acórdão do mesmo Tribunal de 7.12.2026 [Processo n.º 12/16.2YRLSB-2, Relator, Desembargador Ezaguy Martins, dgsi]: “Não são observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, em processo onde proferida foi a sentença revidenda, se o ali Requerido – tendo sido inicialmente dado como residente na morada da residência da Requerente, quando de facto ali já não residia, sendo nessa circunstância lavrada certidão negativa referindo que pela Requerente foi informado que aquele tinha entretanto regressado a Portugal – veio a ser citado editalmente, a requerimento da Requerente, que necessariamente sabia a morada dos familiares do Requerido na cidade onde por último residiu com aquele em Portugal e que por aquele era contactada telefonicamente com frequência – sem que hajam sido efetuadas diligências tendo em vista a localização do paradeiro do Requerido, em ordem à sua citação por carta rogatória”. No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.05.20220 [Relator, Desembargadora Sílvia Pires, dgsi] deixou-se escrito: “Está demonstrado que a citação da Requerida para a acção onde foi proferida a decisão revidenda foi efetuada por carta registada com aviso de receção e foi entregue na morada para onde foi dirigida. Não coloca em crise a validade da citação o facto da mesma não ter sido, eventualmente, efetuada na sede social da Requerida, pois o que releva é ter chegado ao seu conhecimento, desiderato que é atingido com a sua efetuação na morada comercial. O argumento utilizado pela Requerida de que da sentença revidenda não consta quem recebeu a citação não apresenta qualquer relevância, porquanto desde que verificada a sua aparente conformidade com a lei, esse elemento não integra qualquer sentença. Assim, conclui-se pela verificação do requisito constante do art.º 980º, e) do C. P. Civil uma vez que está demonstrada a citação da Requerida”.
[11] Tal como se retira do acórdão do Supremo de 9.07.2015 [Processo n.º 36/14.4YRLSB.S1, Relator, Conselheiro Salazar Casanova, dgsi]: “Os princípios da igualdade e do contraditório que devem ser observados no processo (art. 980.º, al. e), do CPC) referenciam-se ao exercício dos atos processuais, não se referenciam às diferenças de natureza pessoal, designadamente às qualidades de desempenho dos intervenientes no processo, diferenças inerentes à condição humana; por isso, aceite pelo tribunal arbitral que o patrocínio forense seja exercido por profissional não forense, na sequência da posição da própria parte que decidiu prescindir dos serviços de advogado, optando por se fazer representar pro administrador, a posição de igualdade entre as partes está assegurada visto que tal entendimento vale de modo igual para todas as partes, não relevando a diferença qualitativa da representação que, se ocorreu, é da responsabilidade da recorrente”.
[12] João Gomes de Almeida, “Revisão de sentenças estrangeiras”... cit., pág. 330.
[13] Ana Taveira da Fonseca, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2.ª edição revista e atualizada, UCP Editora, 2023, pág. 141, anotação I.
[14] Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado... cit., pág. 223.
[15] A. Ferrer Correia, Lições de... cit., pág. 477.
[16] Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado... cit., pág. 236 e – defendendo o mesmo, a propósito da ordem pública internacional – pág. 229.