ESCRITURA PÚBLICA
VALIDADE DE DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO
VALOR DO USUFRUTO
VALOR PATRIMONIAL DO PRÉDIO
CERTIFICADO ENERGÉTICO
Sumário

I - Da leitura conjugada das normas constantes dos artigos 70º, nº1, alínea g), e 46º, n.º 1, al. g), ambos do Código do Notariado, não resulta que a omissão da data de validade do documento de identificação que tenha sido exibido por um outorgante constitua causa de nulidade da escritura pública, por vício de forma, nem se encontra plasmada em tais normas a obrigatoriedade do Notário fazer constar esse elemento por referência ao documento de identificação, apresentado pelos outorgantes, quer se trate de passaporte, bilhete de identidade ou cartão de cidadão.
II - Não resulta do nº3 do artigo 48º do Código do Notariado, a intenção do legislador de distinguir entre os documentos de identificação, para efeitos do artigo 46º, nº1, alínea g), do mesmo código. Se o legislador, ao formular a lei, não introduziu nela quaisquer ressalvas, especificações ou exclusões, é porque pretendeu que ela valesse nos precisos termos em que está formulada, ou seja, para todos os “documentos apenas exibidos”, os Senhores Notários devem mencionar a data da respectiva emissão.
III - Ao pretender incluir a data de validade do documento de identificação do outorgante, na alínea g) do nº1 do artigo 46º do Código do Notariado, a Recorrente está a substituir-se ao legislador, aditando uma causa de nulidade às taxativamente elencadas (“apenas”) no artigo 70º do Código do Notariado.
IV - Da leitura conjugada das normas constantes dos artigos 70º, nº1, alínea g), e 46º, n.º 1, al. g), ambos do Código do Notariado, não resulta que a omissão do valor do usufruto e do valor patrimonial global do prédio constitua causa de nulidade da escritura pública, por vício de forma.
V - A omissão da referência do certificado energético não constitui fundamento de nulidade da escritura pública, por vício de forma, nos termos dos artigos 70º e 46º, n.º 1, alínea g), do Código do Notariado, encontrando-se as sanções para esse incumprimento previstas no Decreto-Lei n.º 101-D/2020.

Texto Integral

Processo nº 207/23.2T8PRT-A.P1



Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Anabela Mendes Morais

Primeiro Adjunto: Desembargador Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais

Segundo Adjunto: Desembargador Jorge Martins Ribeiro

I_ Relatório

AA intentou contra BB e mulher, CC, a presente acção declarativa de condenação, pedindo que:

a) seja reconhecida e decretada a nulidade do documento autêntico através do qual foi formalizada a compra e venda do prédio urbano objecto dos autos, por violação de formalidades/requisitos legais essenciais;

b) se assim não for entendido, seja reconhecida e decretada a anulabilidade do negócio jurídico, por falta ou vícios na formação da vontade, com todas as consequências legais;

c) se assim não for entendido, seja reconhecida e decretada a anulabilidade do negócio jurídico, por usura, com todas as consequências legais;

d) se assim não for entendido, seja reconhecido e decretado o enriquecimento sem causa dos RR., que, com estratagema para enganar a A., passaram a ser titulares da raiz ou nua propriedade de um prédio urbano que vale, no mercado imobiliário, quase meio milhão de euros, sem pagar nada por ele, determinando a restituição da raiz do bem imóvel à titularidade da A., com efeitos desde 31/08/2021;

e) em qualquer dos casos, seja decretada e imposta a desvinculação do R. como 2.º titular da conta bancária do Banco 1... sob o IBAN PT50....51.9, impedindo o mesmo de a movimentar;

f) seja reconhecido que essa conta bancária sempre foi da A. e que sempre teve, em exclusivo, fundos próprios desta, pelo que as aplicações financeiras não vencidas foram constituídas com dinheiro da titularidade daquela, determinando-se ao Banco 1... que permita a sua desmobilização/liquidação antecipada ou nas respectivas datas de vencimento, em exclusivo pela A.;

g) no caso de procedência do pedido de decretação da nulidade do documento autêntico ou de anulabilidade do negócio jurídico, por falta ou vício na formação da vontade e/ou usura ou o enriquecimento sem causa, seja ordenada a restituição do imóvel injustamente locupletado e decretado o cancelamento dos registos prediais sob as Ap. ...28, de 2021/09/01 e Ap. ...29, de 2021/09/01, reactivando-se a Apresentação da qual decorre a propriedade plena da A., com todas as legais consequências.

I.1_ Alegou, em síntese, que:

_ A A. é uma senhora viúva, com 89 anos de idade, com problemas de saúde, que reside sozinha na Rua ..., na cidade do Porto.

_ Era titular do direito de propriedade sobre o prédio urbano correspondente a casa de rés- do-chão e dois andares, dependência e quintal, sito na Rua ..., na União das Freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...10 (com origem no artigo urbano ...98, da freguesia ...), descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...94, da freguesia ..., com o valor patrimonial de €77.677,00 (setenta e sete mil seiscentos e setenta e sete euros).

_ Por dissolução da comunhão conjugal, por óbito do cônjuge, em 19/11/2019, a A., sua única e universal herdeira legitima, passou a ser a única titular do direito de propriedade sobre aquele bem imóvel.

_ No dia 02/07/2021, a A. decidiu revogar o testamento anteriormente feito, a favor do Réu, outorgado em 21/5/2021, no Cartório Notarial a cargo do Notário DD, e realizar novo testamento, instituindo como sua única e universal herdeira, EE.

_ Em 31/08/2021, sem que a A. tivesse solicitado ou sequer tivesse conhecimento, deslocaram-se à sua residência, um senhor que se apresentou como sendo o Ilustre Notário, DD e o Réu, bem sabendo este que às 19.00h desse dia, encontraria a primeira, pois EE, sua companhia diária, saía todos os dias antes dessa hora.

_ A A., na sua residência, supostamente vendeu ao R., com reserva de usufruto vitalício para si, o prédio urbano, descrito no art.º 2.º deste articulado, pelo valor de € 30.000,00 (trinta mil euros) que tinha, em 31/08/2021, o valor patrimonial de €77.677,00 (setenta e sete mil seiscentos e setenta e sete euros) e tem o valor de mercado de €421.500,00 (quatrocentos e vinte e um mil e quinhentos euros).

_ A A. não quis vender o seu prédio urbano, a sua residência própria e permanente, por um valor inferior a metade do valor patrimonial do imóvel, nem teria querido vendê-lo pelo seu justo e actual valor de mercado.

_ Consta do contrato que o preço devia ser pago da seguinte forma:

a) € 5.000,00, na data de outorga da escritura pública de compra e venda, em 31/8/2021;

b) € 25.000,00, divididos em 5 prestações trimestrais, no valor unitário de €5.000,00, com vencimento em 01/12/2021; 01/03/2022; 01/06/2022; 01/09/2022 e 01/12/2022.

_ Consta, ainda, do contrato que o R. é o 2.º titular da conta bancária da A., com o IBAN PT50....51.9, o que sucedeu porque esta deixou-se convencer que aquele poderia ajudar no pagamento das contas, no envio do IRS e no tratamento de outros assuntos burocráticos e que tal seria mais fácil se pudesse movimentar a sua conta bancária.

_ A primeira prestação, por conta do alegado preço, foi paga em 31/08/2021, na data da outorga da escritura pública, com dinheiro da A.

_ Em 07.12.2021, o R. transferiu para a conta bancária sob o IBAN PT50....51.9, € 5.000,00, a título da 2.ª prestação.

_ Em 01.03.2022, o R. transferiu para a conta bancária sob o IBAN PT50....51.9, a título da 3.ª prestação.

_ Em Junho e em Setembro de 2022, o R. não transferiu qualquer valor para aquela conta.

_ Esses €15.000,00, pagos com dinheiro da A, foram aplicados pelo R. num depósito a prazo a 360 ou 180 dias, mediante produtos DP NET MILL FLEXIVEL, com vencimento respectivamente em 02/12/2022, 27/01/2023 e 21/08/2023, o que sucedeu sem o conhecimento e sem a autorização da A., que nunca teve acesso ao dinheiro da suposta venda do imóvel.

_ Sob o título “Da falta de requisitos legais no documento autêntico”, invoca que da escritura pública de compra e venda resultam, no mínimo, estranhos os seguintes pormenores:

(a) ter sido realizada na residência da A., quando a mesma não estava impedida de se deslocar ao Cartório Notarial; (b) ter sido realizada às 19.00h, quando o horário de funcionamento do Cartório do Dr. DD é de segunda a sexta-feira, das 9.00h às 17.00h;

(c) ter sido sentida a necessidade de colocar a idade da suposta vendedora no texto da escritura;

(d) o comprador ter sentido a necessidade de comprar o bem imóvel em 31/08/2021, quando lhe havia sido feito um testamento, em 21/05/2021, a instituí-lo como único e universal herdeiro da A., o que só pode decorrer do conhecimento de um testamento posterior, a favor de EE;

(e) o comprador não estar identificado de forma completa, quanto à validade do seu cartão de cidadão;

(f) não estar discriminado o valor da raiz ou nua propriedade e o valor do usufruto;

(g) estar incorrectamente indicado o valor patrimonial do prédio urbano (está indicado o valor de €69.909,30 e o correcto, desde 2019, é €77.677,00);

(h) estar indicado o prédio como “inscrito a favor da extinta comunhão conjugal do autor da herança pela inscrição Ap. ...8/20080212”, quando essa Ap. se refere à aquisição do prédio urbano, tendo ocorrido a dissolução conjugal apenas em 19/11/2019, por morte do cônjuge da A.;

(i) constar que, da quantia de €30.000,00, foi paga, naquela data, o valor de € 5.000,00, através de transferência bancária, de uma conta bancária titulada pelos RR. sob o IBAN PT50....49.4, para a conta da A. sob o IBAN PT50....51.9, sendo o R. titular de ambas as contas e, em 18.08.2021, ter sido creditado o valor de € 10.000,00 na conta da A., decorrente de uma poupança aforro, que foi imediatamente transferida para o R, pelo que, este “paga” os primeiros € 5.000,00, em 31.08.2021, com o dinheiro da A., ali vendedora;

(j) ser referido, na escritura, que foi exibida “Caderneta Predial urbana obtida via internet em 30.03.2021, dela constando que o artigo ...98 da extinta freguesia ... foi inscrito anteriormente ao ano de mil novecentos e cinquenta e um, mas, tal informação não consta da caderneta predial de data anterior ou posterior à data da escritura;

(k) era exigível a licença de utilização (por o prédio não ser anterior a 1951), para a celebração da escritura pública, pelo que se verifica a nulidade do documento autêntico, nos termos do disposto no art.º 286.º do C.C, pela inobservância de requisitos legais;

(m) não há referência à certificação energética do prédio alienado, sem prejuízo da sua obrigatoriedade, nos termos do art.º 31.º do DL n.º 101-D/2020, de 07 de Dezembro, pelo que se verifica a nulidade do documento autêntico, nos termos do disposto no art.º 286.º do CC, pela inobservância de requisitos legais.

_ O negócio jurídico revela demasiadas incoerências e inconsistência, nomeadamente quanto à forma como o mesmo foi realizado e quanto ao pagamento do preço, arguindo, com esse fundamento, a invalidade do documento autêntico, com todas as consequências legais.

_ Invoca, ainda, a (II) “falta ou vícios na formação da vontade”, (III) tratar-se de “negócio usurário” e (IV) o instituto do “enriquecimento sem causa”.

I.2_ Por requerimento de 19/1/2023, foi junta aos autos a certidão de óbito da Autora, em 4/1/2023.

I.3_ Por despacho de 20/2023, foi decidido “Mostrando-se documentado/comprovado nos autos o decesso da A., ocorrido no dia 4-1-2023, julgo suspensa a presente instância até à notificação da decisão que considere habilitado(s) o(s) sucessor(es) da mesma (arts. 269º, nº 1, al.a), 270º, 276º, nº 1, al. a), e 351.º, n.º 3 todos do CPC, e art. 1175.º do CC).”.

I.4_ Deduzido o incidente de habilitação de herdeiros, por sentença proferida em 14/3/2023, corrigida em 16/3/2023, foi decidido “ao abrigo do disposto no artigo 353º nº3, 1.ª parte, do Código de Processo Civil, julgo habilitada a Requerente, EE, para prosseguir na causa, como sucessora da Autora, AA, na posição que antes cabia a esta última.

Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal - arts. 539º, nº 1, do Cód. Proc. Civil e 7º, nº 4, do RCP.”

I.5_ Os Réus CC e BB apresentaram contestação.

Pronunciando-se sobre os fundamentos do pedido principal, deduzido na alínea a) da petição inicial (único que releva para o objecto deste recurso), alegaram, em síntese, que:

_ Não gera a pretendida nulidade da escritura de compra e venda:

a. Ter sido realizada na residência da autora quando a mesma não estava impedida de se deslocar ao Cartório Notarial: o nº 3 do artigo 4º do Código do Notariado permite ao Notário, dentro da área do concelho em que se encontra sediado o Cartório, praticar todos os actos da sua competência, o mesmo dispõe o art.º 7, nº 1, do DL n.º 26/2004, de 04 de Fevereiro. O artigo 46º nº 1, a) do mesmo código impõe que na escritura conste o local em que for lavrada, situando-se a Rua ... no concelho do Porto, o concreto Notário dispõe de legitimidade para lavrar o documento. É também pacifico que as partes podem solicitar que o Notário se desloque a um determinado local, pagando, naturalmente, o encargo que daí resultar, o que se justificava face à idade e estado de saúde da D. AA.

b. Ter sido realizada às 19h quando o horário de funcionamento do Cartório é das 9h às 17h: os Notários são profissionais liberais e não estão proibidos de trabalhar fora das horas habituais de expediente. A pedido das partes – consta da escritura – o Notário deslocou-se a casa da Dª AA e celebrou a escritura, não definindo a lei qualquer requisito para o Notário se poder deslocar a casa de alguém para outorgar um acto notarial; basta pedirem-lhe, agendarem e custearem o encargo.

c. O Notário referir, na escritura, a idade da vendedora: fê-lo, naturalmente, porque na escritura só foi vendida a raiz ou nua propriedade e ser essencial fazer constar a idade da vendedora, para o cálculo do valor patrimonial da nua propriedade; o valor patrimonial tributário do usufruto varia em função da idade daquele que fica titular dessa parte do direito de propriedade.

d. O comprador ter sentido a necessidade de comprar quando era herdeiro testamentário da vendedora: a decisão de comprar tem de ser corroborada, concertada com a da venda, ou seja, tem de resultar da vontade de quem vende e de quem compra.

e. A não referência da validade do cartão de cidadão do réu: o Notário fez menção de referir que verificou a identidade dos outorgantes pela exibição dos seus documentos de identificação. A alegação é inócua e não tem sentido, já que não vem posta em causa a identificação dos outorgantes e em nada contende com a validade da escritura.

f. A falta de discriminação do valor da raiz ou nua propriedade e do valor do usufruto: este fundamento foi invocado por distracção já que o valor da venda da raiz ou nua propriedade consta da escritura, inequivocamente - €30.000,00 (trinta mil euros); o mesmo sucede com o do usufruto.

g. O valor patrimonial tributário do prédio é de €77.677,00 e na escritura foi declarado o valor de €69.909,30: novo erro técnico-jurídico em que a autora habilitada labora. Nos termos do artigo 13º do Código sobre as Transmissões Onerosas de Bens, o valor do usufruto corresponde a 10% do valor patrimonial tributário quando o usufrutuário tem 85 anos ou mais. Deste modo o valor que consta na escritura representa o valor patrimonial tributário – €77.677,00 deduzido de 10%, ou seja, € 69.909,30.

h. O Notário refere na escritura que o prédio está inscrito a favor do extinto casal formado por ela, vendedora, e pelo que foi seu marido pela AP ...8 de 2008/02/12 e é o que consta no registo predial.

i. Os primeiros €5.000,00 foram pagos em 31/08/2021 como consta da escritura mas fez o pagamento com dinheiro da vendedora: impugnou tal facto.

j. Não consta da caderneta predial que o prédio foi inscrito antes de 1951 na matriz: consta logo na 1ª página, sob o item descrição do prédio, conforme documento nº 1 junto com a p.i.

l. O Notário não fez constar o certificado energético do prédio na escritura: a norma que a Autora invoca refere-se apenas aos edifícios mencionados na alínea e) do nº 1 do artigo 18º, norma que não se aplica ao caso dos autos e caso se aplicasse não geraria nunca qualquer nulidade.

Concluem, pugnando pela improcedência do pedido de declaração de nulidade da escritura pública com fundamento na “violação de formalidades/requisitos legais essenciais”.

Pronunciaram-se sobre os demais fundamentos e pedidos deduzidos (os quais não relevam para a presente decisão), pugnando pela improcedência da acção, e deduziram reconvenção, pedindo a anulação dos testamentos outorgados pela falecida a favor da habilitada EE.

I.6_ A habilitada EE apresentou réplica, pronunciando-se sobre os documentos juntos pelos Réus, as excepções invocadas na contestação e a reconvenção.

Concluiu, pedindo que a reconvenção não seja admitida, mas sendo-o, seja julgada totalmente improcedente, por não provada, com todas as consequências legais.

I.7_ Por despacho de 14/9/2023, foi fixado o valor da causa em €50.100,00 e declarado o Juízo Local Cível do Porto incompetente, em razão do valor, para julgar a presente acção, determinando a remessa dos autos, após trânsito, para o Juízo Central Cível do Porto, por ser o competente.

I.8_ Remetidos os autos ao Juízo Central Cível do Porto, em 26/10/2023, foi proferido despacho de aperfeiçoamento (na parte que releva para o objecto do recurso) por referência ao pedido identificado pela letra a), na petição inicial:

“Despacho de aperfeiçoamento:

A autora/habilitada apresentou a presente acção formulando vários pedidos.

Na alínea a) formula o seguinte pedido:

“Reconhecer e decretar a nulidade do Documento Autêntico, através do qual foi formalizada a compra e venda do prédio urbano dos autos, por violação de formalidades/requisitos legais essenciais”

O documento a que se está a reportar é a escritura pública de compra e venda outorgada no dia 31 de Agosto de 2021 junto com a PI como documento n.º 5.

Este pedido restringe-se aos requisitos formais da escritura e aos elementos que a autora considera serem essenciais para que a mesma tenha o valor de documento autêntico.

Os artigos 70º e 71º do Código do Notariado preveem os casos de nulidade dos actos notariais.

Ora, salvo melhor entendimento, da alegação da autora não resulta a alegação vertida nos citados normativos, alegando a autora factos contrários aos próprios documentos que junta, como por exemplo a alegação de que o artigo foi inscrito na matriz apenas em 1988 sem atender ao artigo matricial de onde proveio e que é anterior a 1951, facto do seu conhecimento porque mencionado no documento de avaliação que a própria juntou como documento n.º 8.

Em face do exposto deve a autora, em 10 dias, enquadrar juridicamente o seu pedido e/ou clarificar se o pretende manter (esclarecendo, se não pretende desistir desse pedido)…”.

I.9_ Por requerimento de 13/11/2023, a habilitada veio alegar quanto ao pedido formulado na alínea a) da petição inicial (o restante conteúdo do requerimento não releva para o objecto do recurso), que:

_ O cartão de cidadão é um dos documentos a exibir nos actos notariais e decorre do disposto no n.º 3 do art.º 48.º do Código do Notariado que “Nos actos notariais devem ser mencionados o número e a data dos documentos exibidos para a identificação de cada outorgante, bem como o respectivo serviço emitente.”;

_ Na escritura pública de compra e venda, outorgada em 31.08.2021, o comprador, aqui Réu, foi identificado pelo número de cartão de cidadão, mas sem data de emissão/validade, formalidade que reputa de essencial com fundamento no n.º 2, do art.º 48.ºdo Código do Notariado que dispõe “Não deve ser aceite, para verificação da identidade, documento cujos dados não coincidam com os elementos de identificação fornecidos pelo interessado ou cujo prazo de validade tenha expirado, admitindo-se a alteração da residência e do estado civil, se, quanto a este, for exibido documento comprovativo da sua alteração não ocorrida há mais de seis meses.”.

_ Quanto à situação da caderneta predial, reitera ter existindo lapso seu ao mencionar que a realização da escritura estava dependente da licença de utilização.

_ A escritura é omissa quanto ao valor do usufruto e ao valor patrimonial global do prédio. O valor da raiz, de €30.000,00, encontra-se “atribuído pelos declarantes”, mas falta a indicação do valor do usufruto, e do valor patrimonial global do prédio, dispondo o art.º 63.º do Código do Notariado que:

“1 - Nos actos sujeitos a registo predial deve indicar-se o valor de cada prédio, da parte indivisa ou do direito a que o acto respeitar, devendo também mencionar-se o valor global dos bens, descritos ou relacionados, sempre que dele dependa a determinação do valor do acto.

2 - O valor dos bens, quando não seja determinado com base em simples declaração das partes ou em publicação oficial, deve ser comprovado pela exibição dos documentos necessários ou do título do registo actualizado ou de caderneta predial visada pela repartição de finanças, com antecedência não superior a seis meses, mencionando-se no instrumento o valor patrimonial indicado no documento apresentado.”;

_ Era devida a entrega, ao comprador, de Certificado Energético ou, pelo menos, a menção, na escritura, do número do certificado e da obrigatoriedade do mesmo. O imóvel dos autos, sem prejuízo da data de construção ser anterior a 1951, está abrangido pelo Decreto-Lei n.º 101-D/2020 de 7 de Dezembro, que aprova o Sistema de Certificação Energética dos Edifícios (SCE), o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Habitação (REH) e o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Comércio e Serviços (RECS), sendo obrigatória a apresentação de Certificado Energético em processos de venda ou arrendamento, invocando para sustentar a sua posição, os artigos 18º, n.º 2, “a contrario”; 29.º, nº1, alínea c), e 31º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de Dezembro. Da articulação destas normas conclui que era possível fazer-se a escritura pública de compra e venda sem a entrega ao comprador do Certificado Energético, desde que o Sr. Notário fizesse constar do documento autêntico o número do Certificado, o que não aconteceu. Não tendo sido exibido o certificado no acto notarial, nem tendo sido feita menção da sua obrigatoriedade, mostra-se violado o disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º do Código do Notariado e na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º do mesmo diploma legal.

Nesse requerimento, a Habilitada EE reiterou o interesse no pedido que se encontra formulado na alínea a) da petição inicial.

I.10_ Os Réus CC, por requerimento de 13/12/2023, no exercício do contraditório, alegaram, em síntese, que:

_ Sobre a identificação do Réu: a interpretação que a Habilitada promove da alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º e do n.º 1 do artigo 70.º, ambos do Código do Notariado é totalmente desajustada, não tendo sequer amparo nos termos linguísticos assumidos pelo legislador ordinário. Resulta do n.º 1 do artigo 46.º do C.N., e para os fins que aqui relevam, que o instrumento notarial deve conter, entre o mais, «(…) c) o nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes (…);». Resulta do acto notarial cuja validade é posta em crise que o Senhor Notário, após identificar os outorgantes, com os diferentes elementos discriminados na norma indicada, menciona «Verifiquei a identidade dos outorgantes e a idade da primeira por exibição dos seus referidos documentos de identificação». Em caso algum, estava o Senhor Notário vinculado a fazer constar do texto do instrumento lavrado a data de validade dos documentos de identificação e também isso não era imposto pela alínea g) que se limita a referir que «A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente (…)». Em caso algum se refere a data de validade, nem isso resulta do n.º 3 do artigo 48.º do C.N., acrescentando que esta formalidade, ou a sua inobservância, não é susceptível de gerar o vício imputado. O que o legislador consagrou, sob o artigo 48.º do C.N., é o procedimento a assumir pelo Senhor Notário para atestar a identidade dos outorgantes, referindo-se que «Não deve ser aceite, para verificação da identidade, documento cujos dados não coincidam com os elementos de identificação fornecidos pelo interessado ou cujo prazo de validade tenha expirado (…)».

Nada ressuma do documento junto com o n.º 5 com a petição inicial que esse procedimento não tenha sido adoptado pelo Senhor Notário.

_ Sobre a omissão de indicação do valor do usufruto e do valor patrimonial global do prédio no texto da escritura: a Habilitada não cumpriu o determinado no despacho de 26 de Outubro de 2023; não resulta dos artigos 70º e 71º do Código de Notariado a imputação de qualquer consequência quanto à suposta não indicação ou discriminação do valor do usufruto e do valor patrimonial global do prédio. Assim, por ausência de sustentação factual e enquadramento jurídico deste concreto fundamento alegado, deve o mesmo ser desconsiderado pelo Tribunal em sede própria.

- Sobre a não entrega ao comprador do documento titulativo da certificação energética do imóvel, ou pelo menos, a sua menção no acto de escritura, configurar violação da alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º do C.N. que, por apelo ao n.º 1 do artigo 70.º do mesmo diploma, funda uma situação de nulidade do acto notarial, refere que da alegação efectuada pela Habilitada não se alcança a conclusão que procura retirar. Na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º do C.N., o legislador previu que «O instrumento notarial deve conter: g) A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente (…)». Trata-se, portanto, de norma destinada ao Senhor Notário quanto à relacionação, no contexto do texto da escritura, daqueles que foram os elementos documentais exibidos, sob pena de ser esse factor de invalidação da escritura, por apelo à citada alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º do C.N. Daqui não se extrai que o Notário esteja obrigado a mencionar a exibição do certificado energético que, porventura, seja exigível para a concretização de determinada escritura sobre um determinado prédio.

O diploma que regula esta matéria, a saber, o Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 07 de Dezembro, prevê ele próprio as sanções que do putativo incumprimento das obrigações das diferentes entidades intervenientes (consagradas sob os artigos 29.º a 33.º) derivam. A obrigatoriedade de apresentação de certificado energético para a concretização do acto de venda dirige-se única e exclusivamente ao proprietário, que é por aquela via sancionado, no caso de não cumprir e pode coenvolver a responsabilização do autor do acto notarial, se não cominar para a necessidade da sua entrega, caso ele ainda não exista, ou não faça consignar o seu número, no caso contrário. Em caso algum se trata de requisito ou obrigação cujo incumprimento possa por em causa a eficácia do negócio jurídico, coenvolvendo, portanto, a sua nulidade, posição que tem apoio no Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado, aprovado por unanimidade no dia 21 de Outubro de 2021 e homologado pela Senhora Presidente do mesmo, em 22 de Outubro.

Concluem os Réus que soçobra, por totalmente infundado, o pedido formulado sob a alínea a) do petitório, já que nenhuma nulidade se verifica em relação ao acto notarial praticado, o qual, a padecer de algum vício, sempre seria susceptível de ser suprível a qualquer momento, por se tratar de vício de índole formal, e a coenvolver algum tipo de sancionamento, seria doutra natureza e fim que não relacionado com o conteúdo da escritura em si.

I.11_ Consta do despacho saneador, proferido em 21/12/2023, «Consideramos que o processo fornece todos os elementos para que seja proferida decisão de mérito em relação ao pedido formulado pela autora na alínea a), em que é peticionado: “a) Reconhecer e decretar a nulidade do Documento Autêntico, através do qual foi formalizada a compra e venda do prédio urbano dos autos, por violação de formalidades/requisitos legais essenciais”, entendimento que já adiantamos no despacho proferido no dia 26-10-2023 e sobre o qual as partes já exerceram o direito ao contraditório.».

Apreciado esse pedido, decidiu o Tribunal a quo:

“Em face do exposto, julgo improcedente o pedido formulado pela autora/habilitada de nulidade da escritura pública de compra e venda outorgada no dia 31 de Agosto de 2021, por vícios formais, absolvendo os réus/reconvintes desse pedido.”

Custas pela autora (artigo 527º, n.º 1 do C.P.C.) (relega-se para sentença final a proporção do vencimento).

Registe e notifique.”.

I.12_ Inconformada com essa decisão, a habilitada EE interpôs recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:

“1. Resulta do douto Despacho Saneador, proferido pelo digníssimo Tribunal a quo, que: “nenhum dos fundamentos que alegou são sancionados com a nulidade por vícios formais, da escritura”.

2. No entanto, não podemos concordar com tal segmento decisório, porquanto o mesmo, salvo melhor e douto entendimento, viola o disposto no art.º 70.º, n.º 1, al. g) e n.º 2 conjugado com o art.º 46.º, n.º 1, al. g); no art.º 48.º, n.º 3; no art.º 63.º, todos do Código do Notariado, bem como no n.º 2, do art.º 18.º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro à contrário, e os art.ºs 29.º e 31.º do mesmo Diploma Legal.

3. Para além disso, salvo melhor e douto entendimento, o digníssimo Tribunal a quo faz uma errónea interpretação e aplicação das normas jurídicas que constituem fundamento jurídico da decisão proferida, designadamente do art.º 70.º n.º 1 e n.º 2; e do art.º 46.º, n.º 1, al. g) do Código do Notariado, devendo ser alterados os factos provados:

• 3.º - Não é verdade que as menções à identificação do segundo outorgante, o Réu, sejam as mesmas menções da identificação da primeira outorgante, a Autora, excecionando apenas a idade. Na verdade, não foi indicada a validade do cartão de cidadão do Réu, nem a entidade emissora desse cartão (este elemento é omisso em relação a ambos os outorgantes);

A redação deste facto provado deve passar a ser: “Da escritura consta a identificação do Sr. Notário que celebrou a escritura, a identificação da primeira outorgante, com a identificação do número e da validade do seu cartão de cidadão, do NIF, estado civil, naturalidade, residência e idade (88 anos), assim como a identidade do segundo outorgante, o réu, com os mesmos elementos exceto a validade do cartão de cidadão e a idade”;

• 5.º - O imóvel foi identificado pelo seu artigo matricial e freguesia, mas não decorre do mesmo o valor patrimonial do imóvel ou o valor do usufruto, sendo obrigatório constar da escritura. O valor patrimonial do imóvel era € 77.677,00.

A redação deste facto provado deve passar a ser: “Foi identificado o imóvel objeto da compra e venda, quer pelo artigo matricial, pela freguesia e pelo valor tributável da raiz ou nua propriedade, quer pela descrição predial, quer o trato sucessivo, ou seja, as razões pelas quais a primeira outorgante tinha legitimidade para vender.

4. QUANTO AO FACTO PROVADO 4.º - Apesar de não ser devida a alteração da sua redação, cumpre salientar que, independentemente da verificação da identidade dos outorgantes por exibição dos respetivos documentos de identificação, é devida, pelo Ex.mo Sr. Notário, a menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão (esta redação remete-nos para o bilhete de identidade, sendo certo que, a partir da existência do cartão de cidadão, nos documentos autênticos, deixou de se colocar a data de emissão, para se colocar a data de validade do cartão de cidadão) e entidade emitente (esta redação remete-nos mais uma vez para o bilhete de identidade, sendo certo que, a partir da existência do cartão de cidadão, nos documentos autênticos, deixou de se colocar o serviço de identificação civil emissor, para se colocar “emitido pela República Portuguesa”).

4.1 De acordo com o disposto no n.º 1, do art.º 70.º do Código do Notariado: o ato notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos: “(…) g) a observância do disposto na alínea g) do n.º 1, do art.º 46.º.”.

4.2 De acordo com o disposto na alínea g), do n.º 1, do art.º 46.º do Código do Notariado, o instrumento notarial deve conter: “A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente e, ainda, tratando-se de certidões de registo, a indicação do respetivo número de ordem ou, no caso de certidão permanente, do respetivo código de acesso;”.

4.3 Sem prejuízo de, da redação de tal norma legal, não constar a “data de validade” como elemento obrigatório, note-se que o Bilhete de Identidade (BI) deixou de ser emitido a 31 de dezembro de 2018 e foi substituído pelo Cartão de Cidadão. O BI vitalício continua, para todos os efeitos legais, a ser aceite como documento de identificação em Portugal e como documento de viagem dentro da União Europeia e do Espaço Schengen.

4.4 O certo é que, nas escrituras públicas, como nos documentos particulares autenticados, quando os outorgantes se identificam com o cartão de cidadão, os Srs. Notários ou os restantes Agentes Autenticadores com poderes para o efeito, identificam os outorgantes pelo número do cartão de cidadão, pela entidade emissora e pela validade.

4.5 O bilhete de identidade/cartão de cidadão é um dos documentos a exibir nos atos notariais (Cfr. art.º 46.º, n.º 1, al. g) do Código do Notariado) e decorre do disposto no n.º 3, do art.º48.º do Código do Notariado: “Nos actos notariais devem ser mencionados o número e a data dos documentos exibidos para a identificação de cada outorgante, bem como o respectivo serviço emitente.”.

4.6 A “data”, neste normativo, deve ser entendida, após 31.12.2018, como: a) Tratando-se do cartão de cidadão – a data de validade; b) Tratando-se de bilhete de identidade – a data de emissão.

4.7 Na escritura pública de compra e venda outorgada em 31.08.2021, o comprador, aqui 1.º Réu, foi identificado pelo número de cartão de cidadão, mas sem data de emissão/validade/entidade emissora.

4.8 Essa formalidade é essencial, porquanto decorre do n.º 2 do art.º 48.º do Código do Notariado que: “Não deve ser aceite, para verificação da identidade, documento cujos dados não coincidam com os elementos de identificação fornecidos pelo interessado ou cujo prazo de validade tenha expirado, admitindo-se a alteração da residência e do estado civil, se quanto a este, for exibido documento comprovativo da sua alteração não ocorrida há mais de seis meses.”.

4.9 Tal falta de formalidade não fica suprida, pela indicação de que o Sr. Notário verificou os documentos de identificação dos outorgantes, porquanto, relativamente aos documentos a exibir, é necessário fazer constar do documento autêntico as menções aos elementos obrigatórios previstos Código do Notariado.

4.10 Sem prejuízo de não se poder confirmar a validade do cartão de cidadão do Réu, o mais relevante é que o Exmo. Sr. Notário não fez constar do ato notarial uma menção obrigatória – a data de validade do cartão de cidadão, cuja falta fere de nulidade o mesmo.

5. QUANTO AO FACTO PROVADO 5.º - Quanto à situação da caderneta predial/falta da licença de utilização, a mandatária signatária já reconheceu o seu lapso ao comparar o Doc. 1 e o Doc. 7, na Réplica, de 29.05.2023. Após reconhecimento do lapso, pelo qual se penitenciou de imediato, não reiterou a invocação de tal nulidade, nem mais a defendeu.

6. QUANTO AO FACTO PROVADO 7.º - Foi identificado o valor patrimonial tributável correspondente à raiz ou nua propriedade (€69.909,30), mas não foi identificado o valor do usufruto, nem o valor patrimonial do imóvel (à data, € 77.677,00);

6.1 Essa omissão constitui outra das formalidades que não foi observada no ato notarial e que devia ter sido, nos termos conjugados do art.º 70.º, n.º 1, al. g) e n.º 2; do art.º 46.º, n.º1, al. g), e do art.º 63.º, todos do Código do Notariado.

6.2 O preço de venda “atribuído pelos declarantes” é de €30.000,00 (menos de metade do valor patrimonial do imóvel e menos de metade do valor tributável da raiz em sede de IMT, que calculada de acordo com o VP de € 77.677,00, é de €69.909,30 – Cfr. art.º 13, do Anexo II do Código do IMT).

6.3 Foi indicado o valor tributável da raiz ou nua propriedade, mas falta a indicação do valor do usufruto, e do valor patrimonial global do prédio.

6.4 De acordo com o disposto no n.º 1, do art.º 70.º do Código do Notariado: o ato notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos: “(…) g) a observância do disposto na alínea g) do n.º 1, do artigo 46.º.”.

6.5 Ora, a caderneta predial é um dos documentos a exibir e quanto a este eram devidas menções obrigatórias.

6.6 Decorre do art.º 63.º do Código do Notariado: “1 - Nos actos sujeitos a registo predial deve indicar-se o valor de cada prédio, da parte indivisa ou do direito a que o acto respeitar, devendo também mencionar-se o valor global dos bens, descritos ou relacionados, sempre que dele dependa a determinação do valor do acto. 2 - O valor dos bens, quando não seja determinado com base em simples declaração das partes ou em publicação oficial, deve ser comprovado pela exibição dos documentos necessários ou do título do registo actualizado ou de caderneta predial visada pela repartição de finanças, com antecedência não superior a seis meses, mencionando-se no instrumento o valor patrimonial indicado no documento apresentado.).

6.7 Consta da escritura pública, que foi exibida e obtida via internet, em 30.03.2021, uma caderneta predial, mas não há qualquer referência ao valor patrimonial do bem imóvel, objeto desse instrumento público.

6.8 Falta, então, uma menção obrigatória num documento a exibir obrigatoriamente no ato notarial, pelo que tal preterição, também o fere de nulidade.

7. Era devida a entrega ao comprador de Certificado Energético ou, pelo menos, a menção na escritura ao número do certificado e à obrigatoriedade do mesmo.

8. O imóvel dos autos, sem prejuízo da data de construção ser anterior a 1951, está abrangido pelo Decreto-Lei n.º 101-D/2020 de 7 de Dezembro, que aprova o Sistema de Certificação Energética dos Edifícios (SCE), o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Habitação (REH) e o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Comércio e Serviços (RECS), sendo obrigatória a apresentação de Certificado Energético em processos de venda ou arrendamento – Cfr. n.º 2 do art.º 18.º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro a contrario).

8.1 Decorre ainda do art.º 29.º do Diploma Legal supra citado: “1 - Constituem obrigações dos proprietários dos edifícios ou dos sistemas técnicos assegurar: “c) A entrega de cópia do certificado energético ou a disponibilização, por via digital, da informação relativa ao respetivo conteúdo ao comprador, locatário ou adquirente previamente à celebração de contrato-promessa de compra e venda, locação, dação em cumprimento e trespasse, secundada pela entrega da versão original, previamente à celebração do contrato definitivo”.

8.2 E decorre do art.º 31.º do mesmo Diploma: “Constitui obrigação dos notários e das demais entidades com competência para a autenticação de documentos particulares consignar o número do certificado energético nos suportes documentais dos autos de outorga, respetivamente da escritura pública e do termo de autenticação dos negócios jurídicos de transação de edifícios mencionados na alínea e) do n.º 1 do artigo 18.º.”.

8.3 Era possível fazer-se a escritura pública de compra e venda sem a entrega ao comprador do Certificado Energético, desde que o Exmo. Sr. Notário fizesse constar do documento autêntico o número do Certificado, o que não aconteceu.

8.4 O Certificado Energético era um dos documentos a exibir no ato notarial, com expressa menção quanto à natureza, data de emissão e entidade emitente, para além da alusão à sua obrigatoriedade e de que não havia sido entregue ao comprador.

8.5 Não tendo sido exibido na escritura ou sequer sido feita menção à sua obrigatoriedade, está violado o disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º do Código do Notariado e na alínea g), do n.º 1, do art.º 46.º do mesmo Diploma Legal, bem como o n.º 2, do art.º 18.º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro à contrario, e os artigos 29.º e 31.º do mesmo Diploma Legal, o que importa um vício formal conducente à nulidade da escritura pública.”.

I.13_ Notificados, os Réus apresentaram resposta, alegando, em síntese, que:

_ A pretendida alteração da matéria de facto não se justifica, nem tem qualquer interesse, motivo pelo qual não deve ser atendida.

_ A norma do artigo 70º do Código do Notariado elenca os requisitos cuja falta pode ser fundamento de nulidade, fazendo-o de forma taxativa.

_ A obrigatoriedade de fazer constar a data da validade do cartão de cidadão numa escritura de compra e venda não está plasmada em qualquer norma. Ninguém coloca em causa que foi o apelado quem esteve na escritura. Nem a autora. E se esta realidade é pacífica, já não é de bom senso pretender que a escritura seja declarada nula, sem sanação, só porque o Notário fez constar na escritura a data da validade do cartão de cidadão da vendedora (que não tinha que fazer constar) e não fez constar a data da validade do réu. O Senhor Notário fez constar que verificou os elementos de identificação dos outorgantes, destinando-se o cartão de cidadão a comprovar que as pessoas outorgantes declaradas no título eram as próprias. O escopo da lei é de que intervenha na escritura a pessoa certa, e não há dúvidas para ninguém que foi o aqui réu quem interveio na escritura, representando esta abordagem da Autora manifesto venire contra factum proprium.

_ A apelante veio, agora, aduzir um novo argumento, com a insinuação de que lhe parece estar caducado o cartão, na data da escritura, o que consubstancia matéria inovatória e por isso, fora do objecto deste recurso.

_ Só é obrigatória a declaração do valor total do prédio quando dele dependa a determinação do valor do acto, o que não é o caso pois, o valor do acto corresponde ao valor do bem transmitido. O Senhor Notário fez constar o valor correspondente à nua propriedade, como estava obrigado. A alegada omissão não está elencada como causa de nulidade de acto notarial. Se tivesse que ter declarado o valor total do prédio, mesmo assim por via do consignado na escritura, podia-se chegar a tal valor já que da escritura consta a idade da vendedora.

_ O Decreto-Lei nº 101-D/2020, de 07/12, não comina com nulidade, nos termos dos artigos 70º e 46º, nº 1, g) do Código do Notariado, a omissão da referência, na escritura, ao certificado energético. Ademais, o certificado energético é exigido no interesse do comprador. A autora não forneceu ao Notário a referência do Portal SCE e quer beneficiar, agora, desse comportamento.

_ As nulidades do Código do Notariado são sanadas, revalidadas ou confirmadas e, por essa razão não são verdadeiras nulidades de acordo com o regime jurídico do Código Civil. São, por isso, designadas por atípicas e tudo isto tem uma verdadeira explicação. Da conjugação dos artigos 70º do CN e 369º, nº 1, do Código Civil conclui-se que um acto nulo é válido quanto ao seu conteúdo, tendo, no caso, dado origem ao registo de aquisição, após o controlo que a Conservadora do Registo Predial fez dele. Conclui-se, assim, que mesmo que ocorresse alguma nulidade do artigo 70º mesmo assim o contrato material permanecia válido.

I.14_ Por despacho de 28/2/2024, foi admitido o recurso.

I.15_ Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


*

II_ Questões

Nos termos dos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Assim, perante as conclusões da Recorrente há que apreciar as seguintes questões:

1_Impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto por referência aos seguintes factos considerados assentes:
i. Facto ínsito no ponto 3 [Da escritura consta a identificação do Sr. Notário que celebrou a escritura identificação da primeira outorgante, com a identificação do número e da validade do seu cartão de cidadão, do NIF, estado civil, naturalidade, residência e idade (88 anos), assim como a identidade do segundo outorgante, o réu, com os mesmos elementos excepto a idade”]: deve passar a ter a seguinte redacção: “Da escritura consta a identificação do Sr. Notário que celebrou a escritura, a identificação da primeira outorgante, com a identificação do número e da validade do seu cartão de cidadão, do NIF, estado civil, naturalidade, residência e idade (88 anos), assim como a identidade do segundo outorgante, o réu, com os mesmos elementos excepto a validade do cartão de cidadão e a idade”.
ii. Facto ínsito no ponto 5 [ 5.Foi identificado o imóvel objecto da compra e venda, quer pela matriz, quer pela descrição predial, quer o trato sucessivo, ou seja, as razões pelas quais a primeira outorgante tinha legitimidade para vender.] deve passar a ter a seguinte redacção: “Foi identificado o imóvel objeto da compra e venda, quer pelo artigo matricial, pela freguesia e pelo valor tributável da raiz ou nua propriedade, quer pela descrição predial, quer o trato sucessivo, ou seja, as razões pelas quais a primeira outorgante tinha legitimidade para vender”.

2_ Da nulidade da escritura pública de compra e venda, outorgada em 31/8/2021, com os seguintes fundamentos: (i) omissão da data de validade do cartão de cidadão do outorgante Réu; (ii) omissão do valor do usufruto, e do valor patrimonial global do prédio; e (iii) falta de entrega, ao comprador, do certificado energético e/ou omissão da menção do número do certificado e da obrigatoriedade do mesmo.

III_ Fundamentação de facto

Foram considerados os seguintes factos “provados por documento e por confissão com relevância para conhecer do pedido formulado pela autora na alínea a):

1.º Com data de 31 de Agosto de 2021 foi outorgada a escritura pública denominada de “Compra e Venda” junta com a PI como documento n.º 5 e cujo conteúdo se dá por reproduzido;

2.º Do texto da escritura consta que a mesma foi outorgada na Rua ..., ..., Porto, que constituía a residência da primeira outorgante, AA, a data, mês, ano, onde foi outorgada;

3.º Da escritura consta a identificação do Sr. Notário que celebrou a escritura, a identificação da primeira outorgante, com a identificação do seu cartão de cidadão, do NIF, estado civil, naturalidade, residência e idade (88 anos), assim como a identificação do segundo outorgante, o réu, com os mesmos elementos excepto a idade;

4.º Consta que o Sr. Notário verificou os documentos de identificação e exarou na escritura as declarações da primeira e do segundo outorgante;

5.º Foi identificado o imóvel objecto da compra e venda, quer pela matriz, quer pela descrição predial, quer o trato sucessivo, ou seja, as razões pelas quais a primeira outorgante tinha legitimidade para vender.

6.º Fez-se constar o preço da venda da raiz ou nua propriedade e a constituição de usufruto em favor da primeira outorgante;

7.º Foi identificado o valor patrimonial correspondente à nua propriedade;

8.º Foi mencionada a forma de pagamento do preço;

9.º Fez-se constar que foram arquivados os documentos comprovativos do pagamento do IMT e de outros impostos; a exibição da caderneta predial e descrição predial e a menção de que o imóvel tinha sido inscrito na matriz em ano anterior a 1951, anterior à publicação do RGEU;

10.º Mais consta que a escritura foi lida e explicada aos outorgantes e encontra-se assinada.”

IV. Fundamentação de direito

1ª Questão

Dissente a Recorrente da decisão proferida quanto à matéria de facto por referência aos seguintes factos:
I. Facto ínsito no ponto 3 [Da escritura consta a identificação do Sr. Notário que celebrou a escritura identificação da primeira outorgante, com a identificação do número e da validade do seu cartão de cidadão, do NIF, estado civil, naturalidade, residência e idade (88 anos), assim como a identidade do segundo outorgante, o réu, com os mesmos elementos excepto a idade”].
II. Facto ínsito no ponto 5 [ 5.Foi identificado o imóvel objecto da compra e venda, quer pela matriz, quer pela descrição predial, quer o trato sucessivo, ou seja, as razões pelas quais a primeira outorgante tinha legitimidade para vender.].


I. Facto ínsito no ponto 3 [Da escritura consta a identificação do Sr. Notário que celebrou a escritura identificação da primeira outorgante, com a identificação do número e da validade do seu cartão de cidadão, do NIF, estado civil, naturalidade, residência e idade (88 anos), assim como a identidade do segundo outorgante, o réu, com os mesmos elementos excepto a idade”]:

Insurge-se a Recorrente contra o facto ínsito no ponto 3, pretendendo, com fundamento na escritura pública junta com a petição inicial (documento nº5) que ao mesmo seja conferida a seguinte redacção: “Da escritura consta a identificação do Sr. Notário que celebrou a escritura, a identificação da primeira outorgante, com a identificação do número e da validade do seu cartão de cidadão, do NIF, estado civil, naturalidade, residência e idade (88 anos), assim como a identidade do segundo outorgante, o réu, com os mesmos elementos excepto a validade do cartão de cidadão e a idade”.

Advogam os Réus que não se justifica a alteração da matéria de facto e é desprovida de interesse.

Efectivamente, não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria a proibição legal da prática no processo de actos inúteis[1].

No caso dos autos, considerando que a Recorrente alicerça a sua construção jurídica de nulidade da escritura com fundamento na omissão da data de validade do cartão de cidadão do comprador – ainda que não se acompanhe esse entendimento -, assume pertinência a inclusão do facto na factualidade assente.

Da leitura do documento nº5 junto com a petição inicial, verifica-se que assiste razão à Recorrente, pelo que sem necessidade de mais considerações, procede a impugnação, nesta parte, alterando-se a redacção do ponto 3 dos factos assentes, passando a constar do mesmo:

3. Da escritura consta a identificação do Sr. Notário que celebrou a escritura, a identificação da primeira outorgante, com a identificação do número e da validade do seu cartão de cidadão, do NIF, estado civil, naturalidade, residência e idade (88 anos), assim como a identidade do segundo outorgante, o réu, com os mesmos elementos excepto a validade do cartão de cidadão e a idade”.

ii. Facto ínsito no ponto 5 [ 5.Foi identificado o imóvel objecto da compra e venda, quer pela matriz, quer pela descrição predial, quer o trato sucessivo, ou seja, as razões pelas quais a primeira outorgante tinha legitimidade para vender.]

Insurge-se a Recorrente contra a decisão da matéria de facto por referência ao facto ínsito no ponto 5, propondo que ao mesmo seja conferida a seguinte redacção: “Foi identificado o imóvel objeto da compra e venda, quer pelo artigo matricial, pela freguesia e pelo valor tributável da raiz ou nua propriedade, quer pela descrição predial, quer o trato sucessivo, ou seja, as razões pelas quais a primeira outorgante tinha legitimidade para vender”.

Do confronto entre o teor dos pontos 5 e 7 dos factos assentes facilmente se constata que o facto que pretende introduzir no ponto 5 já consta do ponto 7 dos factos assentes [7. Foi identificado o valor patrimonial correspondente à nua propriedade.], pelo que improcede a pretensão recursória.

2ª Questão

Dissente a Recorrente da decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou improcedente o pedido formulado pela autora/habilitada de declaração de nulidade da escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 31 de Agosto de 2021, por vícios formais.

Sustenta que a decisão proferida pelo Tribunal a quo viola o disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea g) e n.º 2, conjugado com o artigo 46.º, n.º 1, alínea g); no artigo 48.º, n.º 3; e no artigo 63.º, todos do Código do Notariado, bem como o disposto nos artigos 18.º, nº2, “a contrario”, 29º e 31º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de Dezembro.

Vejamos, então, individualizadamente, os fundamentos invocados pela Recorrente

Da nulidade da escritura pública por o Senhor Notário não ter mencionado a data de validade do cartão de cidadão do Réu.

Estipula o artigo 70º do Código do Notariado, sob a epígrafe, “Casos de nulidade por vícios de forma e sua sanação”, que:

1 - O acto notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos:
a) A menção do dia, mês e ano ou do lugar em que foi lavrado;
b) A declaração do cumprimento das formalidades previstas nos artigos 65.º e 66.º;
c) A observância do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 41.º;
d) A assinatura de qualquer intérprete, perito, leitor, abonador ou testemunha;
e) A assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar;
f) A assinatura do notário.
g) A observância do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º

2 - As nulidades previstas nas alíneas a), b), d), e), f) e g) do número anterior consideram-se sanadas, conforme os casos:
a) …;
b) …;
c) …;
d) …;
e) …;
f) Se em face da inobservância do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º, ou da incorreta menção dos requisitos nele exigidos, for comprovado, mediante exibição da certidão de registo ou do correspondente código de acesso, que a mesma já existia à data da celebração do acto.”.

De harmonia com o disposto na alínea g) do nº1 do artigo 46º do Código do Notariado, no instrumento notarial deve constar “A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente e, ainda, tratando-se de certidões de registo, a indicação do respetivo número de ordem ou, no caso de certidão permanente, do respetivo código de acesso”.

Por sua vez, dispõe o artigo 48º do Código do Notariado que:

“1 - A verificação da identidade dos outorgantes pode ser feita por alguma das seguintes formas:
a) Pelo conhecimento pessoal do notário;
b) Pela exibição do bilhete de identidade, de documento equivalente ou da carta de condução, se tiverem sido emitidos pela autoridade competente de um dos países da União Europeia;
c) Pela exibição do passaporte;
d) Pela declaração de dois abonadores cuja identidade o notário tenha verificado por uma das formas previstas nas alíneas anteriores, consignando-se expressamente qual o meio de identificação usado.
2 - Não deve ser aceite, para verificação da identidade, documento cujos dados não coincidam com os elementos de identificação fornecidos pelo interessado ou cujo prazo de validade tenha expirado, admitindo-se a alteração da residência e do estado civil, se, quanto a este, for exibido documento comprovativo da sua alteração não ocorrida há mais de seis meses.
3 - Nos actos notariais devem ser mencionados o número e a data dos documentos exibidos para a identificação de cada outorgante, bem como o respectivo serviço emitente.”
Da leitura conjugada das normas constantes dos artigos 70º, nº1, alínea g), e 46º, n.º 1, al. g), ambos do Código do Notariado, não resulta que a omissão da data de validade do documento de identificação que tenha sido exibido por um outorgante constitua causa de nulidade da escritura pública, por vício de forma, nem se encontra plasmada em tais normas a obrigatoriedade do Notário fazer constar esse elemento por referência ao documento de identificação, apresentado pelos outorgantes, quer se trate de passaporte, bilhete de identidade ou cartão de cidadão, o que é reconhecido pela Recorrente, nas suas conclusões [conclusão 4.3] quando refere «Sem prejuízo de, da redacção de tal norma legal, não constar a “data de validade”…».

Igual entendimento extrai-se da norma constante do nº3 do artigo 48º do Código do Notariado, invocada pela Recorrente, como suporte da posição por si defendida. À semelhança do artigo 46º, n.º 1, al. g), do Código do Notariado, o legislador não impõe, ao Notário, nos actos notariais, a menção da validade dos documentos que tenham sido exibidos para a identificação dos outorgantes.

Defende a Recorrente que a “data”, na norma constante do nº3 do artigo 48º do Código do Notariado, deve ser entendida, após a data a partir da qual deixou de ser emitido o bilhete de identidade, da seguinte forma:
a. como “data de validade”, no caso de o outorgante exibir como documento de identificação o cartão de cidadão;
b. como “data de emissão”, no caso de o outorgante exibir como documento de identificação o bilhete de identidade.

Argumenta, ainda, que nas escrituras públicas, como nos documentos particulares autenticados, quando os outorgantes se identificam com o cartão de cidadão, os Srs. Notários identificam os outorgantes pelo número do cartão de cidadão, pela entidade emissora e pela validade.

Salvo o devido respeito, não resulta da lei a intenção do legislador de fazer distinção entre os documentos de identificação, para efeitos do artigo 46º, nº1, alínea g), do Código do Notariado. A lei é clara: não existe a obrigatoriedade de mencionar a data de validade relativamente ao documento “apenas exibido”, seja cartão de cidadão, seja bilhete de identidade. Se o legislador, ao formular a lei, não introduziu nela quaisquer ressalvas, especificações ou exclusões, é porque pretendeu que ela valesse nos precisos termos em que está formulada, ou seja, para todos os “documentos apenas exibidos”, os Senhores Notários devem mencionar a data da respectiva emissão. Onde a lei não distingue, o intérprete não deve distinguir. Nem se descortina qualquer razão para exigir a menção da data da validade, tratando-se do cartão de cidadão, e estabelecer regime diferente para os demais documentos de identificação.

Ao pretender incluir a data de validade do documento de identificação do outorgante, na alínea g) do nº1 do artigo 46º do Código do Notariado, a Recorrente está a substituir-se ao legislador, aditando uma causa de nulidade às taxativamente elencadas (“apenas”) no artigo 70º do Código do Notariado.

É manifesto que o legislador não deixou de conferir relevância à data de validade do documento de identificação do outorgante, o que se extrai claramente da leitura conjugada dos artigos 46º e 48º do Código de Notariado. Dispõe o nº2 do artigo 48º que “Não deve ser aceite, para verificação da identidade, documento cujos dados não coincidam com os elementos de identificação fornecidos pelo interessado ou cujo prazo de validade tenha expirado (…)”. Significa que o Notário tem a obrigação de aferir a data de validade do documento de identificação, exibido pelo outorgante e constatando que o seu prazo de validade já expirou, “não deve” aceitá-lo. Se o Notário não pode aceitar o documento de identificação cujo prazo de validade já expirou, todo o documento de identificação utilizado pelos outorgantes, nos actos notariais, têm, necessariamente de se encontrar dentro desse prazo. Estando o Notário obrigado a conferir a validade do documento de identificação, daí que não seja relevante a indicação, no acto notarial, da data de validade do documento exibido.

No âmbito do recuso, a Recorrente aduz o argumento que o cartão de cidadão do Réu, «face às letras “ZY”, (…)parece estar caducado, na data da outorga da escritura”. Como observam os Requeridos, trata-se de questão nova.

Ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 8/10/2020[2], “Os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido. Além disso, sendo de excluir dos mesmos os meros argumentos ou raciocínios expostos na defesa da tese de cada uma das partes, visam modificar apenas as decisões de que se recorre, e não criar decisões sobre matéria nova, e não é lícito invocar neles questões que não tenham sido objecto das decisões impugnadas.”.

Pelo exposto, este Tribunal não se pronunciará sobre a alegada caducidade do cartão de cidadão do Réu, à data da escritura de compra e venda.

Improcede, assim, a nulidade da escritura pública com fundamento na omissão da data de validade do cartão de cidadão do Réu.

Da nulidade da escritura pública por omissão do valor do usufruto, e do valor patrimonial global do prédio

A Recorrente fundamenta esta nulidade nos artigos 70.º, n.º 1, al. g), e n.º 2; 46.º, n.º 1, al. g), e 63.º, todos do Código do Notariado.
Mais uma vez, da leitura conjugada das normas constantes dos artigos 70º, nº1, alínea g), e 46º, n.º 1, al. g), ambos do Código do Notariado, não resulta que a omissão do valor do usufruto e do valor patrimonial global do prédio constitua causa de nulidade da escritura pública, por vício de forma.

Invoca a Recorrente o nº1 do artigo 63º do Código do Notariado que dispõe “Nos actos sujeitos a registo predial deve indicar-se o valor de cada prédio, da parte indivisa ou do direito a que o acto respeitar, devendo também mencionar-se o valor global dos bens, descritos ou relacionados, sempre que dele dependa a determinação do valor do acto.”.

Apesar da obrigatoriedade de constar da escritura pública “o valor de cada prédio, da parte indivisa ou do direito a que o acto respeitar”, a lei não comina com nulidade a omissão desses elementos, no artigo 70º do Código do Notariado.

Olvida a Recorrente o nº2 do citado artigo 63º do Código do Notariado que dispõe “O valor dos bens, quando não seja determinado com base em simples declaração das partes ou em publicação oficial, deve ser comprovado pela exibição dos documentos necessários ou do título do registo actualizado ou de caderneta predial visada pela repartição de finanças, com antecedência não superior a seis meses, mencionando-se no instrumento o valor patrimonial indicado no documento apresentado.”.

Da escritura pública consta a indicação do código de acesso à “certidão permanente do Registo Predial”.

Por último, como refere o Tribunal a quo, «Sobre os restantes “vícios” invocados, nada da lei resulta que são cominados com a nulidade, nomeadamente a ausência do valor do usufruto e da indicação do valor patrimonial total do imóvel. A autora através da menção que na escritura é efectuada ao valor da raiz, porque foi esse o acto de transmissão realizado, chega ao valor do usufruto e daí a relevância da menção da idade da primeira outorgante (10% de acordo com o disposto na tabela anexa ao artigo 13º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis).”

Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, improcede a nulidade.

Da nulidade da escritura pública por falta de entrega ao comprador do certificado energético ou por omissão da menção do número do certificado e da obrigatoriedade do mesmo Advoga a Recorrente que o imóvel em causa, sem prejuízo da data de construção ser anterior a 1951, está abrangido pelo Decreto-Lei n.º 101-D/2020 de 7 de Dezembro, que aprova o Sistema de Certificação Energética dos Edifícios (SCE), o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Habitação (REH) e o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Comércio e Serviços (RECS), sendo obrigatória a apresentação de certificado energético em processos de venda ou arrendamento – artigo 18.º, nº2, “a contrario” do Decreto-Lei n.º101-D/2020, de 7 de Dezembro.

Acrescenta que era possível fazer-se a escritura pública de compra e venda sem a entrega ao comprador do certificado energético, desde que o Sr. Notário fizesse constar do documento autêntico o número do certificado, o que não aconteceu. O certificado energético era um dos documentos a exibir no acto notarial, com expressa menção quanto à natureza, data de emissão e entidade emitente, para além da alusão à sua obrigatoriedade e de que não havia sido entregue ao comprador.

Não tendo sido exibido ou feita menção à sua obrigatoriedade, mostra-se violado o disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º e na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º, ambos do Código do Notariado, bem como o n.º 2 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de Dezembro, e os artigos 29.º e 31.º do mesmo diploma legal, o que importa um vício formal conducente à nulidade da escritura pública.
Discordam os Recorridos, sustentando que o Decreto-Lei nº 101-D/2020, de 07/12, não comina com nulidade da escritura, nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º e da alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º, ambos do Código do Notariado, a não exibição do certificado energético ou a omissão da menção da sua obrigatoriedade, encontrando-se as sanções para o incumprimento dessas obrigações previstas no referido Decreto-Lei 101-D/2020.
Advogam, ainda, que o certificado energético não é documento a exibir, mas a consultar no Portal SCE, pois são digitais (artigo 20º nº 1) e é exigido no interesse do comprador, acrescentando que a Autora não forneceu ao Notário a referência do Portal SCE e quer beneficiar agora desse comportamento.
Vejamos se assiste razão à Recorrente.
Dispõe o artigo 18º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de Dezembro, que:
1- Estão sujeitos ao cumprimento da obrigação de certificação energética:
a) A construção de edifícios novos, sem prejuízo de eventual isenção de controlo prévio nos termos do RJUE;

e) Os edifícios, no momento da respetiva venda, dação em cumprimento, locação ou trespasse, desde que este abranja a transmissão do espaço físico onde o estabelecimento se encontre instalado;

2- Excetuam-se do disposto no número anterior:
a) Os edifícios previstos no n.º 1 e nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 9.º;
b) As vendas ou as dações em cumprimento de edifícios a comproprietário, a locatário ou a entidade expropriante, quando decorrentes de processo executivo ou de insolvência, ou quando sejam efetuadas para a sua demolição total, sob condição da sua prévia confirmação pela entidade licenciadora competente;
c) As transmissões não onerosas, designadamente doações, legados e heranças;
d) As locações da residência habitual do senhorio por prazo inferior a quatro meses;
e) As locações a anterior locatário do edifício em momento imediatamente anterior ao novo negócio jurídico;
f) Os GES que não se encontrem em funcionamento, desde que não ocorra a sua venda, dação em cumprimento, locação ou trespasse após a entrada em vigor do presente decreto-lei;
g) Os edifícios em ruínas;
h) As infraestruturas militares e os edifícios sujeitos a regras de controlo e de confidencialidade, nomeadamente os afetos a forças e serviços de segurança ou a sistemas de informação;
i) Os edifícios de comércio e serviços inseridos em instalações sujeitas ao regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2008, de 15 de abril, na sua redação atual.

3 - O disposto no n.º 1 não é prejudicado pelas dispensas de apresentação de certificações técnicas constantes do RJUE.”
Como observa o Tribunal a quo, “a omissão da referência do certificado energético e da sua obrigatoriedade não é cominada com a sanção da nulidade nos termos dos artigos 70º e 46º, n.º 1, alínea g), do Código do Notariado. As sanções para esse incumprimento estão previstas no próprio diploma de 2020, mas não são fundamento de nulidade por vício formal do documento autêntico.”
Nos termos do nº1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, “Constituem obrigações dos proprietários dos edifícios ou dos sistemas técnicos assegurar: (c) [a] entrega de cópia do certificado energético ou a disponibilização, por via digital, da informação relativa ao respetivo conteúdo ao comprador, locatário ou adquirente previamente à celebração de contrato-promessa de compra e venda, locação, dação em cumprimento e trespasse, secundada pela entrega da versão original, previamente à celebração do contrato definitivo”.
Estatui o artigo 31º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020 que “Constitui obrigação dos notários e das demais entidades com competência para a autenticação de documentos particulares consignar o número do certificado energético nos suportes documentais dos autos de outorga, respetivamente da escritura pública e do termo de autenticação dos negócios jurídicos de transação de edifícios mencionados na alínea e) do n.º 1 do artigo 18.º”.
No artigo 35º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, o legislador comina como contraordenação “O incumprimento das obrigações dos proprietários, previstas nas alíneas a) a k) e m) do n.º 1 e nos n.ºs 2 e 3 do artigo 29.º”.

Em suma, a não exibição do certificado energético não consta do n.º 1 do artigo 70.º do Código do Notariado como causa de nulidade da escritura pública, nomeadamente da alínea g) que remete para a alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º do mesmo código. Conforme resulta do já exposto, a alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º reporta-se à obrigatoriedade de mencionar os “documentos apenas exibidos” e qual a informação que deve acompanhar essa menção, não estipulando quais os documentos que devem ser exibidos sob pena de nulidade.

Pelo exposto, concorda-se com a decisão de “improcedência do pedido formulado pela autora/habilitada, na alínea a) do seu petitório, na medida em que nenhum dos fundamentos que alegou são sancionados com a nulidade por vícios formais, da escritura pública”.

Improcede, assim, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas

As custas são integralmente da responsabilidade da Recorrente, considerando a total improcedência do recurso (artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC), .


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V. Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, julga-se improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, sem prejuízo da alteração da decisão da matéria de facto, por referência ao facto vertido no ponto 3, nos termos enunciados.

Custas do recurso a cargo da Recorrente (artigo 527º do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário concedido (artigo 18º, nº4, do Decreto-Lei 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 47/2007, de 28 de Agosto).


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Sumário:

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Porto,21/10/2024.

Anabela Morais

Miguel Baldaia de Morais

Jorge Martins Ribeiro


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[1] Como ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 3 de Novembro de 2023, proferido no processo nº 835/15.0T8LRA.C4.S1, acessível em www.dgsi.pt, “de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte (cfr. arts. 6.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, e 130.º, do CPC).”.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8/10/2020, proferido no processo nº4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cee4751329d337f980258634005f4627.