NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
REJEIÇÃO DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EMBARGO DE OBRA NOVA
NOVIDADE
Sumário

I - Não integra omissão de pronúncia geradora de nulidade a situação em que o tribunal, para além de indeferir o pedido de produção de meios de prova, salvaguarda a possibilidade de, oficiosamente, decidir de forma diversa em momento ulterior, mesmo que depois acabe por não tomar tal decisão.
II - O ónus da impugnação da matéria de facto, previsto na al. b) do artigo 640.º/1, do Código de Processo Civil, não é observado se o recorrente fundamenta a sua discordância em meios de prova que não foram produzidos, ou que, mesmo com supostas fragilidades, apontam apenas no sentido decidido em primeira instância ou quanto aos quais são imputadas divergências não concretizadas.
III - Ocorre igualmente motivo de rejeição do recurso em matéria de facto quando a factualidade pretendida aditar pelo recorrente é incompatível e contraditória com a restante matéria provada e não impugnada.
IV - Constitui ainda fundamento para rejeitar a reapreciação da matéria de facto e da prova, por inutilidade, o caso em que as alterações factuais pedidas pelo recorrente são irrelevantes para o mérito da causa.
V - Deve ser indeferido o pedido de embargo de obra nova, ou determinado o levantamento dessa providência, por falta do requisito da novidade, previsto no art. 397.º/1 do Código de Processo Civil, se os trabalhos questionados constituem meros acabamentos e finalizações de uma obra estrutural, de reconstrução e reconfiguração de edifício, de que eles fazem parte e na qual já não produzem modificação substancial.

Texto Integral

Embargo Obra Nova nº1432/23.1T8PVZ-E.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca
2.º Adjunto: José Nuno Duarte

RELATÓRIO.
Nos presentes autos de procedimento cautelar de embargo de obra nova, são requerentes AA, titular do NIF ..., e BB, portador do NIF ..., residentes em Santo Tirso, e requerida A..., LDA., com o NIPC ..., sediada em ....
O procedimento foi instaurado mediante requerimento submetido a juízo a 17/1/2024, por apenso à acção principal previamente iniciada (a 19/9/2023).
Produzida a prova admitida dos requerentes, sem audiência prévia da contraparte, o pedido cautelar foi julgado procedente, por decisão datada de 23/1/2024, que ordenou a suspensão imediata das obras em curso nas frações “AL”, “AM “e “AN” do prédio localizado na Praça ..., ..., respectivamente, em Santo Tirso, e condenou a requerida de abster-se de continuar essas obras, sob pena de cometimento do crime de desobediência qualificada previsto no artigo 375º do Código de Processo Civil e de ter de repor a situação anterior ao embargo.
No entanto, deduzida oposição pela requerida, após o decretamento da providência, e produzidos os meios probatórios admitidos que ela requereu, foi proferida a decisão final de 10/4/2024 que, pela procedência da oposição, determinou o levantamento do embargo.
No âmbito do procedimento cautelar, os requerentes interpuseram recurso, em primeiro lugar, da decisão de indeferimento dos meios de prova cuja produção haviam pedido já na fase da oposição, quer quanto à junção de documentos, quer a respeito da inspecção ao local, e que este Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente, mediante acórdão proferido a 10/7/2024, transitado em julgado e constante no apenso B.
Todavia, inconformados igualmente com a decisão que determinou o levantamento do embargo, os requerentes dela também interpuseram recurso que, tramitado neste apenso E, foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo e subida nos próprios autos do apenso, por força da correcção, nesta Relação, por despacho de 20/9/2024, do regime de subida.
Nas suas alegações, os requerentes culminaram com as seguintes conclusões:
A) No decurso da audiência final realizada no dia 05.04.2024 o mandatário dos requerentes, ora recorrentes, pediu a palavra e requereu o seguinte: “(…) Bem como, atento os depoimentos das próprias testemunhas, parece necessário que o tribunal se certifique se as lojas em causa estão divididas, têm saneamento, têm sistemas de contadores elétricos, conforme as mesmas depuseram. Assim requer a reinquirição da devida testemunha e inspeção ao local, para verificação destes factos.”
B) O Tribunal indeferiu a inspeção judicial nos seguintes termos: “Quanto à inspeção ao local, vai indeferida por esse motivo, sem prejuízo de se o tribunal entender relevante para decidir, nomeadamente, quando estiver a fazer a decisão. Se entender que será indispensável vir a fazê-la, mas neste momento, indefere-se a inspeção ao local.”
C) Os Apelantes não se conformaram com o Despacho que indefere a realização da Inspeção Judicial do imóvel, fundamentadamente requerida pelo mandatário da requerente e interpuseram recurso de apelação autónoma nos termos do disposto no artigo 644º nº2 alínea d) do CPC.
D) Proferida Decisão Final emerge também da análise do processado que o Tribunal a quo não chegou a proferir qualquer decisão sobre a pertinência ou não deste meio de prova.
E) Daqui decorre a omissão de pronuncia por parte do Tribunal a quo e, consequentemente, a nulidade da Sentença nos termos do disposto no artigo 615º, nº1, alínea d), do C.P.C..
Sem prescindir:
F) Os Apelantes impugnam os seguintes pontos da matéria de facto dada como provada: “90 - Aquilo que os requerentes aqui identificam como “obra nova” são trabalhos de revestimentos e pintura de paredes e tectos, com recurso a placas de gesso cartonado e a abertura de sulcos para colocação de tubagem do sistema de ar condicionado.”
“91 - A divisão exterior dos espaços comerciais do rés-do-chão, a sua caixilharia exterior, as suas infraestruturas eléctricas, de saneamento e água canalizada, as suas divisões sanitárias estão concluídas, pelo menos desde 1 de Março de 2023. - “ut” Doc. 20 a 25”
G) Deveriam tais factos terem sido dados como não provados.
H) Antes deveria ter sido dado como provado: que as frações autónomas não se encontram divididas, não têm casas de banho, encontram-se no estado grosso, com paredes de betão e sem revestimentos, sendo, contudo, verdade que a caixilharia exterior encontra-se terminada desde março de 2023.
I) Tal como resulta do depoimento da testemunha indicada pela requerida CC prestado no dia 05.04.2024 e transcrito supra na motivação.
J) Bem como do registo fotográfico junto aos autos realizado aquando da concretização do embargo.
K) A prova testemunhal em que se baseia a Douta Decisão em recurso para dar como provada a matéria de facto impugnada (os três subempreiteiros, DD, EE e FF) apresenta fragilidades, pois, todos participaram nas obras do edifício, mas já não sabiam em que estado estavam as frações autónomas pertencentes aos recorrentes – conforme se conclui da transcrição dos seus depoimentos supra.
Acresce que:
L) A prova testemunhal produzida em audiência, confrontada com a prova fotográfica junta aos autos com a concretização do embargo resulta haver uma total discrepância entre ambas.
M) Ao indeferir o meio de prova essencial para apurar qual o verdadeiro estado do interior das frações autónomas em discussão - a Inspeção Judicial - o Tribunal escolheu confiar no depoimento de testemunhas indicadas pela requerida – uma vez que segue a tese de que o monopólio da prova no incidente de posição é da requerida.
N) Ora, no presente caso concreto, estando os recorrentes impedidos de exercerem qualquer meio de prova, restava-lhes, visando a boa decisão da causa, tão só, “pedir” ao Tribunal que com os seus olhos verificasse os factos, mostrando-se inspeção ao local indispensável ao apuramento da verdade.
O) Na verdade, somente a observação ocular do Juiz era capaz de verificar o real estado do interior das frações autónomas pertencentes aos recorrentes, evitando-se que se desse como provada uma factualidade que não corresponde à realidade.
P) Sem a realização da inspeção judicial a resposta a dar à matéria de facto na sentença a proferir nos autos será, necessariamente, deficiente e obscura já que baseada somente na prova indicada pela requerida.
Q) As fotografias juntas aos autos aquando da realização do embargo (cfr. requerimento dos recorrentes de 26.01.2024) transmitem uma realidade bem diferente daquela que foi dada como provada nos pontos 90. e 91. com base em depoimentos testemunhais e fotos do exterior do edifício.
R) E, com o devido respeito, o Tribunal a quo não pode impedir o contraditório, nem olvidar a prova já produzida, em específico o registo fotográfico aquando da realização do embargo.
S) É certo que na ação principal os recorrentes alegaram a realização de obras por parte da requerida nas suas frações, contudo, desta vez, a requerida pretende realizar obras no interior das frações que alteram toda a configuração interior das lojas (frações AL AM e AN) pertencentes aos recorrentes e não meros acabamentos.
T) Mesmo as dadas como provadas – colocação de pladur e rasgos no chão – pontos 13. e 90. da matéria de facto dada como provada – são suscetíveis de alterarem todo o interior das frações dos requerentes – causando prejuízos irreparáveis, pois, violam o direito de propriedade e impedem os requerentes de escolher os materiais que pretende colocar nos interiores das frações que lhe pertencem.
U) Sendo certo que, mesmo essas obras (as dadas como provadas nos pontos 13. e 90. do elenco dos factos dados como provados) que a requerida se encontrava a realizar nas frações dos recorrentes têm relevância necessária para ser decretado o embargo.
V) Donde resulta, que deve o presente Apelação proceder e em consequência revogada a Douta Sentença, julgando a oposição improcedente mantendo-se o Embargo de Obra Nova, fazendo-se assim JUSTIÇA!
Foi apresentada resposta ao recurso, na qual, em síntese, a requerida defendeu que é incompreensível a arguição de nulidade, por omissão de pronúncia, quando da decisão que indeferiu a inspecção os requerentes interpuseram recurso autónomo, para além de o tribunal a quo ter sido absolutamente claro na decisão de indeferimento, e de a suposta nulidade não ter sido arguida no local próprio, por um lado, e por outro, que os recorrentes não deram cabal cumprimento ao ónus de impugnação da matéria de facto, nos termos exigidos pelo art. 640.º do CPC, não passando a alegação, nessa parte, de uma amálgama sem conteúdo material e nexo perceptível, sem a mínima densificação do que seja o fundamento da impugnação, e que, mesmo assim não se entendendo, os pontos impugnados foram bem decididos.
Em último lugar, ao abrigo do disposto no art. 636.º/1 do CPC, a recorrida requereu a ampliação do objecto do recurso, a título subsidiário, quanto à excepção da caducidade, que rematou com a conclusão única no sentido de que está há muito extinto, por caducidade, o direito que aqui se pretende fazer valer, ofendendo, neste sentido, a douta Decisão final o estabelecido pelo artigo 397.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido com o efeito legalmente previsto.

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OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635º/4 e 639º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) se a sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia a respeito do pedido, prévio a ela, de realização da prova por inspecção judicial (conclusões A a E);
b) se foi validamente deduzida e procede a impugnação da matéria de facto, quanto aos factos provados nº90 e 91, de modo que lhe seja dada resposta negativa e, em sua substituição, se julgue provado que as frações autónomas dos requerentes não se encontram divididas, não têm casas de banho, encontram-se no estado grosso, com paredes de betão e sem revestimentos, embora a caixilharia exterior esteja terminada desde março de 2023 (conclusões F a S);
c) se, mercê dessa alteração dos factos provados, ou mesmo sem ela, deve ser decidida a manutenção do embargo (conclusões T a V);
d) na afirmativa a esta última questão, se está verificada a excepção da caducidade do embargo (conclusão única da recorrida).
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Em sede de factualidade relevante julgada provada em primeira instância, foi impugnada a resposta afirmativa dada nos pontos 90 e 91, cujo conhecimento por este Tribunal da Relação deverá fazer-se mais adiante.
Assim, sem prejuízo da subsequente apreciação dessa alegação, com a eventual modificação dos referidos pontos, está apurada nos autos a seguinte matéria factual, extraída da decisão recorrida:
1. Na cidade de Santo Tirso existe um prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., Rua ... e Praça ..., conhecido como Prédio ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o nº ... inscrito na matriz urbana da União de Freguesias ..., ... (... e ...) e ... sob o artigo 7394 (artigo ... da extinta freguesia ...).
2. Os requerentes (AA) têm inscrita a seu favor no registo predial a aquisição das seguintes frações autónomas que integram o prédio supra identificado:
a) Fração autónoma designada pelas letras “AL”, correspondente a um estabelecimento no rés-do-chão direito, com entrada pelo número ... da Praça ..., com um compartimento e um sanitário;
b) Fração autónoma designada pelas letras “AM”, correspondente a um estabelecimento no rés-do-chão esquerdo centro, com entrada pelo número ... da Praça ..., com um compartimento e um sanitário;
c) Fração autónoma designada pelas letras “AN”, correspondente a um estabelecimento no rés-do-chão esquerdo frente, com entrada pelo número ... da Praça ..., com um compartimento e um sanitário; - Doc. 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 juntos com a P.I que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
3. Por as terem adquirido por título de transmissão emitido em 31 de Maio de 2010 pela solicitadora de execução do processo executivo com o nº5161/08.8TBSTJ que correu termos no 4º Juízo Cível do Tribunal
4. E por escritura publica datada de 22 de Julho de 2010 realizada no Cartório Notarial da Drª GG, sito na Avenida ..., Centro Comercial ..., 3º andar em Santo Tirso, outorgada pelos autores na qualidade de primeiros outorgante e HH e mulher II na qualidade de segundos outorgantes e JJ, na qualidade de terceiro outorgante, declararam que eram donos da frações autónomas identificadas em 1. em comum e na proporção de 1/3 para os primeiros e 2/3 para os segundos e terceiro e que, não pretendendo permanecer na situação de compropriedade, punham termo à divisão, adjudicando aos primeiros outorgantes as cinco verbas que repunham as tornas do segundo e terceiro outorgantes, os quais declararam dar quitação. – cfr. Doc. 9 junto com a P.I. e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
5. As aquisições das frações identificadas em 2. encontram-se registadas a favor dos autores através da Ap. ... de 13 de agosto de 2010 conforme Doc. 10 junto com a P.I e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
6. O prédio onde foi construído o edifício identificado em 1. pertenceu, em tempos, a KK e JJ.
7. A requerida vem ocupando os espaços onde estava prevista a implantação daquelas fracções.
8. Negando-se a entregá-los.
9. Como consta da contestação apresentada pela Requerida, esta alega a feitura de obras.
10. E com base nelas vem pedir o reconhecimento da propriedade, via acessão imobiliária.
11. Sempre os aqui requerentes afirmaram - e afirmam - que a requerida nas fracções reivindicadas não executou obras.
12. No dia de 16 de janeiro de 2024 foi visto um veículo automóvel (camião) a descarregar material no espaço do rés-do-chão, correspondente a uma loja, que os requerentes identificam como a fração “AL”.
13. E na mesma serem realizadas obras como rasgos no chão e colocação de pladur, Doc.1
14. O mandatário dos requerentes deslocou-se ao local a fim de proceder a embargo extrajudicial.
15. Um dos operários que ali trabalhava não permitiu a presença quer do mandatário, quer dos requerentes, na loja.
16. Fê-lo em tom agressivo, dizendo “se não sair vou ter de por lá fora”
17. Foi-lhe transmitido que apenas necessitava da sua identificação para proceder ao embargo.
18. A tal se negou e insistiu para que o mandatário e requerentes saíssem.
19. Foi solicitado ao referido operário que telefonasse ao gerente para na pessoa deste ser realizado o embargo.
20. Para evitar conflitos o mandatário e os requerentes abandonaram o edifício.
21. Eram então 14H30.
22. Mesmo assim, o mandatário dos Requerentes telefonou ao colega que patrocina os interesses da Requerida, transmitiu-lhe o problema e pediu a colaboração para evitar conflitos.
23. A resposta foi: “vou contactar o representante da empresa e já digo algo”.
24. O tempo passou em mais de uma hora.
25. Pelo que foi pedida a intervenção da P.S.P. ... para identificar algum dos operários que, entretanto, se haviam fechado na supra identificada loja que os requerentes identificam como sua fração.
26. A P.S.P compareceu quando eram cerca de 16H30 e não conseguiu entrar naquele local.
28. (não existe facto nº27) Nem o gerente da requerida compareceu no local, nem os trabalhadores aceitaram identificar-se.
29. Nem foi autorizada a entrada dos requerentes e seu mandatário.
30. Daquilo que os requerentes puderam ver (os vidros que delimitam as lojas estão pintados por forma a que não seja possível ver para o seu interior) são sulcos no chão e colocação de divisões em pladur.
31. Sempre foi defendido pelos Requerentes que a Requerida nas referidas frações não executou obras.
32. E prepara-se para executar obras também nos espaços das lojas de rés-chão que os requerentes identificam como frações “AN” e “AM”.
33. Tem no local máquinas utensílios e matérias de construção designadamente contraplacados.
34. Por escritura pública outorgada em 24 de Novembro de 1982, lavrada a fls. 83 e seguintes do livro de notas ...-F do então Sétimo Cartório Notarial do Porto, foi constituído em regime de propriedade horizontal o prédio onde se integram as fracções autónomas ora judicadas, nos termos aí exarados - doc. 1 e 2 da petição inicial dos autos principais.
35. Tal escritura pública foi lavrada antes de efectuada a construção do prédio – “ut” Doc. 1 da inicial dos autos principais.
36. Entretanto, por escritura pública outorgada em 7 de Janeiro de 1983, lavrada a fls. 45 e seguintes do livro de notas ...-F daquele mesmo Sétimo Cartório Notarial do Porto, foi alterada aquela propriedade horizontal nos termos aí exarados - “ut” Doc. 3 da inicial dos autos principais
38. Tal escritura pública de constituição de propriedade horizontal e sua rectificação foram levadas a registo predial pela AP..., mostrando-se aquelas fracções autónomas inscritas a favor dos titulares que figuram no registo predial, ali devidamente identificados – “ut” Doc 1 a 178 da contestação dos autos principais.
39. Aquela operação urbanística foi objecto de licenciamento administrativo no âmbito do qual foram emitidos pela Câmara Municipal ... alvarás de licença de construção ou seus aditamentos- ut” Doc. 179, 180, 181, 182, 183, 184 e 185 da contestação dos autos principais.
40. Na formulação e especificações do conjunto daqueles alvarás, o prédio a edificar configurava-se como um edifício de habitação colectiva composto por 4 blocos, com 16 pisos acima do solo e 2 abaixo do solo - “ut” Doc. 186, 187, 188, 189, 190, 191 e 192 da contestação dos autos principais.
41. Do conjunto do prédio que havia sido projectado e licenciado, apenas foi edificada e concluída uma sua parte, entre 1979 e 1982, constituída pelas designadas fracções autónomas A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q e R, do bloco ..., S, T, U, V, X, Z, AA, AB, AC, AD, AE, AF, AG, AH, AI e AJ, do bloco ..., bem como as fracções autónomas DU, DV, DX, DZ, EA, EC, ED, EH, FE, FF, FG, FH, FI, FJ, FL, FM, FN, FO, FP e FQ o que ficou devidamente reflectido no registo predial.
42. Aquelas identificadas fracções autónomas efectivamente construídas e concluídas constituíam-se como dois blocos, edificados sobre a superfície de 521,49 metros quadrados do terreno primitivo.
43. Na superfície remanescente do prédio inicial, entre 1982 e 1984, foi edificada uma estrutura em betão armado e alvenaria, que nunca foi acabada, tendo sido abandonada pelo respectivo promotor, a qual, ao longo e no decurso dos anos, durante quase três décadas, esteve exposta aos elementos naturais, acumulando água e detritos no seu perímetro, o que deteriorou os seus elementos construtivos estruturais, configurando-se, pois, como uma verdadeira ruína.
44. A degradação desses elementos construtivos foi causa de apodrecimento e fissurações dos materiais neles integrados
45. A sub-cave estava parcialmente inundada por águas.
46. O prédio localiza-se no centro da cidade de Santo Tirso, precisamente na sua principal entrada viária, paredes meias com um estabelecimento de ensino, a um passo do Tribunal, dois da Câmara Municipal, pelo que, ao longo dos anos, desfigurou seriamente a imagem da cidade, transformando-se num emblema negativo do município.
47. As fracções autónomas, de que os requerentes dizem ser donos e legítimos proprietários, não foram construídas.
48. Tal como conformadas e configuradas naquele título e seu registo predial, as mesmas não possuíam paredes ou outra forma física de definição do seu perímetro exterior e nunca formaram qualquer compartimento, divisão ou espaço determinado que lhes correspondesse.
49. Nunca tiveram portas ou saídas para a via pública ou zonas comuns (que igualmente nunca existiram), nunca dispuseram de janelas de qualquer espécie.
50. Nunca estiveram dotadas de qualquer instalação sanitária, lavabo, ou seus elementos componentes, que não se encontraram nunca individualizados, nunca existiu qualquer instalação elétrica, de abastecimento de água, de saneamento, de comunicações ou de detecção de incêndios que as servisse.
51. Os seus tectos e pavimentos nunca estiveram revestidos, mostrando-se, até à intervenção da requerida, com o betão armado da estrutura à vista.
52. Não se encontrou materializada qualquer forma de separação física das previstas zonas comuns do prédio.
53. Não lhes foi conferida administrativamente qualquer autorização para ocupação ou utilização.
54. Encontravam-se, “ab initio”, no estado documentado pelas imagens fotográficas juntas à oposição sob o n.º 1 a 9.
55. Em 19 de Agosto de 2016, a sociedade comercial “B..., Lda”, solicitou à Câmara Municipal ... uma licença para ocupação de espaço público, para efeito da instalação de tapumes no âmbito de operações de limpeza, demolição e consolidação de estrutura que se propunha ali realizar– “ut” Doc. 193 da contestação dos autos principais.
56. Em Maio de 2017, a dita “B...” vedou inteiramente o perímetro do terreno onde estava edificada aquela estrutura, com recurso a prumos e chapas metálicas, conforme é usual fazer em qualquer estaleiro de obras.
57. A “B...” arrogava-se beneficiar da titularidade de inscrições prediais de propriedade sobre 108 das fracções autónomas ainda não construídas, mas identificadas no título constitutivo da propriedade horizontal e descritas no registo predial.
58. E, bem assim, da titularidade da posição contratual de promitente-compradora relativamente às remanescentes fracções “AL”, “AM”, “AN”, “CS” e “FS”, através de contrato-promessa de compra e venda de 29 de Setembro de 2017, outorgado com os aqui requerentes AA e BB – “ut” Doc.195 e 196 da contestação dos autos principais.
59. No contrato-promessa é referido no considerando inicial que, “aquando a cessão de quotas da sociedade comercial B..., Lda, ocorrida em 25/11/016, e tendo em conta as negociações desencadeadas entre os outorgantes para concretização dessa cessão e para a reconstrução e reabilitação do prédio” e, na cláusula segunda que o prédio “encontra-se abandonado e inacabado há mais de trinta anos, sendo que a maioria das fracções não se encontram construídas”.
60. E que as suas chamadas fracções “AL”, “AM”, “AN”, “CS” e “FS”, se encontravam “inacabadas” (cfr. sua cláusula terceira).
61. Neste contexto, os ali promitentes-vendedores concederam à promitente- compradora, por um lado, a faculdade de efectuar “obras e demolições nas fracções em causa e proceder à alteração do seu fim” (cfr. cláusula décima, ponto um) e, também, para efectuar “obras e demolições que entender no prédio, incluindo partes comuns, dando o seu consentimento para, se entender, alterar o projecto de licenciamento e alterar a propriedade horizontal” (cfr. mesma cláusula décima ponto segundo), que haviam de ser inteiramente custeados pela “B...” (cfr. esta cláusula décima, ponto quatro).
62. A “A...”, acertou com a B... o negócio com vista à aquisição das suas fracções, tendo por fito a remodelação, reconstrução e conclusão do edifício.
63. Na sequência, encomendou à “C..., Lda”, a realização de estudos técnicos tendo vista efectuar a avaliação geológica do terreno e fundações existentes e, bem assim, do estado da referida estrutura.
64. Esta sociedade, por sua vez, encomendou à “D..., Lda”, a realização do estudo geológico e de fundações e à “E..., Lda”, a realização de inspecção à estrutura do edifício, que culminaram na elaboração de dois relatórios – “ut” Doc. 197 e 198 da contestação dos autos principais.
65. O relatório da dita “E..., Lda”, identifica o terreno em causa, a sua configuração e limites e bem como descreve a estrutura de betão e alvenaria que aí se encontrava construída e o estado em que se encontrava, exaustivamente analisados, quer quanto à sua identificação, quer no que concerne ao seu estado de conservação.
66. Face ao PDM em vigor, em meados de 2017, não era possível a execução do projecto tal como inicialmente previsto.
67. A “A...” adquiriu créditos de que a “B...” era devedora e, depois, adquiriu, por dação e pagamento e compra e venda, as 108 fracções autónomas da titularidade daquela, através de escrito de 3 de Novembro de 2017, que foram registadas a seu favor, conforme supra já alegado – “ut” Doc. 199 da contestação dos autos principais.
68. Com a celebração daquele contrato e esta promessa, a “B...” facultou à “A...” o terreno e estrutura nele edificada, com todos os seus elementos componentes.
69. A “A...” promoveu a renovação da licença de ocupação de espaço público, que lhe foi concedida através da emissão do alvará de licença ... emitido pela Câmara Municipal ..., em 5 de Janeiro de 2018, para limpeza, demolição e consolidação de estrutura – “ut” Doc. 200 da contestação dos autos principais.
70. A “A...” promoveu ainda a alteração do projecto antes previsto no licenciamento inicial, conformando agora o prédio como um edifício de habitação colectiva, destinado a habitação, comércio e garagem, com uma área de implantação de 2.211,10 m2, uma área total de construção de 18.829,93m2, dos quais 11.819,95m2, para habitação, 2.084,79m2 para comércio e 4.925.19m2 para garagem, com um total de 14 pisos, destes 11 acima da cota da soleira e 3 abaixo desta – “ut” Doc. 201 da contestação dos autos principais.
71. Não existe correspondência entre as fracções descritas naquele título constitutivo da propriedade horizontal e as fracções efectivamente licenciadas no âmbito da alteração ao procedimento administrativo e, entretanto, as efectivamente edificadas.
72. Quer ao nível do seu aspecto arquitectónico exterior e interior, quer ao nível do número de pisos, acima e abaixo da cota da soleira, quer ao nível do número de fracções autónomas e da sua afectação, quer ao nível da disposição e configuração interna das fracções, quer ao nível da conformação das zonas, espaços e equipamentos comuns.
73. Na propriedade horizontal estão previstas quatro lojas no rés-do-chão do bloco ... (fracções AL a AO) e cinco lojas no bloco ... (fracções CQ a CU).
74. No rés-do-chão do bloco construído pela requerida encontram-se oito lojas (espaços para comércio/serviços nºs 2 a 9 – cf. p. 7 do documento nº 201 da contestação).
75. O espaço previsto para as primitivas fracções “AL”, “AM”, “AN” é agora ocupado em parte por lojas, os espaços de comércio n.º 4, n.º 3 e n.º 2 – cf. p. 7 do documento nº 201 da contestação – e parte por espaços exteriores a lojas (de circulação).
76. E esses três espaços de comércio (nºs 2 a 4) foram implantados parcialmente em áreas projectadas inicialmente como espaços comuns.
77. Face ao licenciamento das operações de limpeza, demolição e consolidação de estrutura, a “A...” promoveu, em 3 de Janeiro de 2018, a celebração de empreitada de construção civil e suas especialidades com a sociedade “C..., Lda”, para a construção da totalidade do edifício, tal como projectado e identificado nos termos supra expostos, pelo valor global de €8.693.000,00, sem considerar IVA - “ut” Doc. 202 da contestação dos autos principais.
78. Na sequência, a “A...” deu entrada na Câmara Municipal ... do projecto de arquitectura e suas especialidades com aquela dita configuração em 18 de Abril de 2018 – “ut” Doc. 203 e 204 da contestação dos autos principais.
79. Na sequência, em 7 de Agosto de 2019, veio a ser emitido pela Câmara Municipal ..., em conformidade com o projecto apresentado pela ré, aditamento aos alvarás de licença de construção ... e ..., que se encontra actualmente vigor e com prazo para conclusão das obras até 7 de Agosto de 2025 – “ut” Doc. 205 da contestação dos autos principais.
80. Acontece que, no entretanto e no completo desconhecimento da “A...”, em 6 de Março de 2019, aqueles AA e BB declararam resolvido o contrato promessa celebrado com a “B...” relativo às ficcionadas fracções “AL”, “AM”, “AN”, “CS” e “FS”.
81. Tal declaração de resolução veio a ser objecto de confirmação judicial pela douta Sentença proferida em 15 de Janeiro de 2020, no âmbito do processo que sob o n.º 767/19.2T8PVZ, correu termos pelo Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
82. E, posteriormente, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Outubro de 2020.
83. Em 28 de Fevereiro de 2020 AA e BB comunicaram à “A...” que tinham resolvido o contrato com a B....
84. O gerente da B... só após a decisão do tribunal de 1ª instância é que informou a requerente dessa resolução.
85. Em Julho de 2020, a obra encontrava-se concluída na sua fase de alvenarias conforme documenta a imagem datada e georreferenciada obtida a partir da aplicação informática Google Earth Pro – “ut” Doc. 10.
86. Os tapumes exteriores do estaleiro da obra foram retirados em 2022.
87. A obra de reconstrução do edifício encontra-se totalmente concluída desde 1 de Março de 2023 – “ut” documentos 11 a 15.
88. Está requerida a emissão de licença de utilização do conjunto das fracções edificadas, por pedido que deu entrada nos serviços da Câmara Municipal ... em 17 de Março de 2023, encontrando-se este suspenso na sua apreciação– ut Doc. 206 da contestação dos autos principais.
89. Em Abril de 2023, o edifício mostrava-se como documenta a imagem datada e georreferenciada obtida a partir da referida aplicação informática Google Earth Pro – “ut” Doc. 16.
90. Aquilo que os requerentes aqui identificam como “obra nova” são trabalhos de revestimentos e pintura de paredes e tectos, com recurso a placas de gesso cartonado e a abertura de sulcos para colocação de de tubagem do sistema de ar condicionado.
91. A divisão exterior dos espaços comerciais do rés-do-chão, a sua caixilharia exterior, as suas infraestruturas eléctricas, de saneamento e água canalizada, as suas divisões sanitárias estão concluídas, pelo menos desde 1 de Março de 2023. - “ut” Doc. 20 a 25.
92. É do conhecimento dos requerentes que a divisão exterior dos espaços comerciais do rés-do-chão, a sua caixilharia exterior, estão concluídas desde 1/3/2013.
93. Correu termos por esse Juízo Central Cível – mas pelo Juiz 5 -, sob o n.º 226/21.3T8STS, procedimento cautelar de restituição provisória da posse, instaurado pelos aqui requerentes no início de 2021 contra a aqui requerida, que veio a culminar com decisão de levantamento da providência que antes havia sido decretada sem contraditório, por consequência à oposição entretanto deduzida.
94. Fundou-se tal procedimento na causa de pedir constante do respectivo requerimento inicial, no qual foi expressamente alegado (os sublinhados e destaque são da requerida) no seu artigo 28.º: Logo após a decisão de 1ª instância, e apesar da interposição do recurso “per saltum” para o STJ por parte da B..., os requerentes, não concordando com as alterações que o referido projecto visava (e visa) para as fracções que são da sua propriedade, enviaram uma missiva à requerida A..., datada de 28/02/2020, dando conhecimento de todo o sucedido, e interpelando-a para não prosseguir com qualquer obra de alteração nas fracções AL, AM, AN, CS e FS”
95. E, já no seu artigo 32.º, a requerida avançou com a obra de forma galopante, desconhecendo os Requerentes quais as alterações em concreto que já terão sido efectuadas nas fracções AL, AM, AN e CS pois não conseguem ter acesso às mesmas.
96. Adiante, no seu artigo 52.º: A requerida continua a desenvolver obras de alteração nas fracções mencionadas em 1º, sem a autorização dos Requerentes, e contra a sua vontade, prejudicando o fim a que as mesmas se destinavam quando os Requerentes as adquiriram.
97. Nos autos principais do presente procedimento, os aqui requerentes estribaram a causa de pedir, entre o demais, no facto do seu artigo 32.º (novamente, são da requerida os destaques e sublinhados):
Já no decorrer da ação judicial, finais de agosto/inícios de setembro de 2019, os autores tiveram conhecimento que, para o prédio identificado em 1, no qual se integral as frações de que são proprietários, foi emitido em alvará de obras de alteração e ampliação em nome da ré A..., Lda.
98. No seu artigo 33.º: Após consulta do processo de licenciamento em causa, os autores constataram que omesmo tinha sido instruído, entre outros documentos, com o contrato promessa de compra e venda que haviam celebrado com a sociedade B... em setembro de 2017.
99. Já no seu artigo 41.º. afirmam: Mesmo assim, a ré, em data que os autores não conseguem determinar, mas que se situa entre maio e junho de 2020, iniciou obras nas fracções dos autores (...)
100. Ainda, no seu artigo 45.º: continuando nas mesmas a realizar obras como se de propriedade sua se tratasse.
101. Também, nos seus artigos 48.º e 49.º, lido este por referência àquele, portanto, em 5 de Julho de 2021: Nessa altura os autores tomaram conhecimento de todas as alterações efectuadas pela ré nas fracções autónomas (...)
102. Igualmente, no seu artigo 50.º: Obras essas com alterações profundas, sobretudo na fracção FS.
103. Do mesmo modo, no seu artigo 61.º: Nas frações AL, AM, AN e CS localizadas ao nível do rés-do-chão foram também ocupadas e efectuadas obras pela ré, alteradas as áreas e a localização.
104. Finalmente, no seu artigo 62.º ao ocupar as fracções autónomas identificadas em 2 e nas mesmas realizar obras.
*
O DIREITO.
A) Sobre a nulidade da sentença.
Dispõe o art. 615.º/1, al. d), do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando, entre o mais, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Trata-se da consequência prevista para a infracção ao comando do art. 608.º/2 do mesmo diploma legal, segundo o qual, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Na interpretação dessa causa da nulidade da decisão, importa distinguir claramente, em primeiro lugar, as nulidades processuais, cometidas por acção ou omissão no decurso do procedimento, das nulidades específicas da sentença a que se refere o art. 615.º do CPC.
As primeiras, “sendo actos de tramitação processual stricto sensu, que se situam a montante da decisão final, não se confundem com os actos ou omissões praticadas pelo tribunal, já a jusante, no âmbito do processo decisório e com este concomitantes, como integrando este, actos que tangem ao âmago da decisão, nulidades de conhecimento, de índole material decisória, que a lei adjectiva também considera e classifica como nulidades do julgamento ou da sentença” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2022, Nuno Ataíde das Neves, processo nº9337/19.4T8LSB, acessível em texto integral na referida base de dados).
Neste enquadramento, ao arrepio do entendimento da recorrida, pensamos que a nulidade apontada pelos recorrentes diz respeito à sentença.
Com efeito, compulsados os autos, constata-se que a inspecção ao local foi requerida pelos requerentes na audiência final e, portanto, no momento imediatamente anterior à prolação da sentença recorrida, visto que, após a produção de prova no decurso da referida diligência, os autos foram conclusos e, acto contínuo, foi proferida a decisão final.
O que significa que os requerentes não tiveram oportunidade de suscitar a falta de apreciação do pedido probatório em qualquer outro momento, que não no presente recurso, por um lado, e por outro, que com aquela decisão final, o tribunal a quo viu esgotado o seu poder jurisdicional sobre todas as questões relativas ao mérito da causa, nos termos do art. 613.º do CPC.
Ora, estas considerações vêm demonstrar que, embora a alegada omissão tenha ocorrido perante um requerimento prévio à sentença, o vício em causa, ficando coberto por aquela, é susceptível de repercutir-se na decisão judicial, passando a ser nesta que, pela última vez, o tribunal de primeira instância poderia e deveria conhecer a questão, sem prejuízo do disposto no art. 617.º do Código de Processo Civil.
No mesmo sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/7/2019 (tirado no processo nº4794/18.9T8OER e disponível na referida base de dados) que “a arguição da nulidade, nos termos dos artigos 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1 do Código de Processo Civil, só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso”.
E também no caso apreciado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2022, acima citado, ocorreu semelhante problema, pois estava em causa, muito sinteticamente, a circunstância de, ao ser proferida a decisão final referente a um incidente de habilitação, ter sido ignorado pelo Juiz da primeira instância, em momento imediatamente prévio, o deferimento tácito do pedido de apoio judiciário, assim como a não verificação judicial oficiosa da renúncia à herança por parte das recorrentes.
Justificando que o STJ, em tal aresto, tenha considerado que as nulidades invocadas deixaram de se inscrever no segmento de desvio do formalismo processual prescrito na lei, como questão de natureza procedimental ou processual, passando a configurar-se, isso sim, “como omissões ou vícios de natureza material ou substantiva, cometidos no próprio momento da decisão, corrompendo esta”.
Identicamente, aliás, ao entendimento da doutrina a respeito das designadas decisões surpresa, tal como em situações análogas de repercussão de irregularidades na sentença, “sempre que a nulidade processual apenas seja evidenciada pela própria decisão, o interessado (parte vencida) deve reagir mediante a interposição do recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615.º, nº1, al. d)” (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 24-9).
Importa por isso concluir que, para além de não ter podido suscitar a questão da falta de apreciação do pedido probatório anteriormente, os requerentes arguiram a questão legal e tempestivamente no recurso.
Sendo certo que, face ao disposto no art. 615.º/4 do Código de Processo Civil, as nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 desse preceito legal só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.
A verdade, porém, é que isso não basta, naturalmente, para imputar à sentença de primeira instância, com sucesso, a nulidade decorrente da omissão de pronúncia.
Para esse efeito, antes do mais, é mister que tenha ocorrido realmente o que constitui o cerne do vício em causa: uma ausência de apreciação sobre questão relevante concernente ao pedido, à causa de pedir ou à causa de contestar.
É necessário, pois, para a verificação da omissão de pronúncia, que “o julgador deixe de resolver questões que tenham sido submetidas à sua apreciação pelas partes, a não ser que esse conhecimento fique prejudicado pela solução a outras questões antes apreciadas” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/10/2022, relator: Isaías Pádua, relativo ao processo nº602/15.0T8AGH e acessível no referido sítio).
Todavia, compulsados os autos, não se vislumbra a ocorrência de semelhante nulidade quanto ao pedido de inspecção ao local ou quanto a qualquer outra questão relevante.
Na verdade, resulta da própria alegação dos recorrentes que, por um lado, o tribunal apreciou e decidiu a questão - quanto à inspeção ao local, vai indeferida por esse motivo (explicitado em momento anterior na mesma decisão), sem prejuízo (…) – e, por outro, que inclusivamente os requerentes dessa decisão interpuseram recurso autónomo, o qual foi entretanto julgado improcedente por este Tribunal da Relação do Porto, como acima se fez referência no relatório.
E sem que essa conclusão mereça reparo em face da circunstância de o despacho ter ressalvado (sem prejuízo) a possibilidade de decidir de forma diversa em momento ulterior.
Visto que tal eventualidade não contende com o indeferimento decidido e apenas contempla a hipótese de, oficiosamente, por iniciativa do tribunal, poder ser determinada posteriormente a produção desse ou de qualquer outro meio de prova contanto que, nos termos da segunda parte do art. 607.º/1 do CPC, fosse necessário para o julgador ficar “suficientemente esclarecido”.
Algo que, em bom rigor, o tribunal recorrido nem precisaria de ressalvar expressamente, por ser inerente aos poderes oficiosos de averiguação a que se refere aquela e outras disposições legais (cfr. arts. 411.º e 604.º/7 do CPC), e cuja referência expressa foi feita somente como aditamento ao indeferimento e a benefício do cabal esclarecimento das partes.
Significando o silêncio posterior da primeira instância a esse respeito, muito naturalmente, não qualquer omissão de pronúncia, mas apenas a circunstância de o tribunal não ter sentido necessidade de accionar os poderes oficiosos a que se havia referido anteriormente a título de mera possibilidade.
A análise dos autos demonstra, aliás, que o tribunal recorrido teve o cuidado de explicar e fundamentar devidamente essa asserção, já através da indicação de que a parte, os requerentes, na fase da oposição, “não tem legitimidade o requerimento para fazer a produção de prova”, já mediante a alusão à “prova que pode ser produzida oficiosamente pelo tribunal”.
Dessa forma, para além de esclarecedor, o tribunal a quo logrou garantir a observância do princípio da igualdade das partes (art. 4.º do CPC), certo que, após a produção da prova indicada exclusivamente pelos requerentes, na primeira audiência, sem qualquer intervenção da requerida, seguiu-se a prova que esta indicou na oposição e onde os requerentes puderam participar.
Razão pela qual, se para além dessa participação, fosse ainda permitido aos requerentes, novamente, solicitar meios de prova, daí adviria de modo evidente a concessão de um iníquo tratamento de maior protecção em face daquele que é atribuído à contraparte.
Donde que, em rigor, não está em causa o reconhecimento à requerida do monopólio da produção da prova na oposição, mas o propósito de evitar que, visto o procedimento no seu todo, nele os requerentes beneficiem de uma posição privilegiada, ou monopolizadora, nessa matéria.
Para concluir que, neste ponto, o tribunal recorrido, para além de não ter incorrido em omissão de pronúncia, decidiu cabal e fundamentadamente as questões relevantes que foram colocadas à sua apreciação.
Improcedendo, por isso, manifestamente, as conclusões A a E da motivação do recurso.
*
B) Sobre a impugnação de facto.
Importa agora verificar se foi validamente deduzida e se é procedente a impugnação dirigida aos factos provados nº90 e 91 (conclusões F a S).
Adiantando já a resposta, vejamos os dois motivos essenciais que, a nosso ver, concorrem no sentido negativo.
Em primeiro lugar, e como é sabido, a admissibilidade do recurso da matéria de facto depende do cumprimento, pelo recorrente, dos ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, cujo nº1 impõe ao recorrente, no que agora importa, que especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
Enquanto o número 2 prevê que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Parece-nos que o primeiro requisito acima elencado foi observado pelos recorrentes, uma vez que, não obstante a impugnação em conjunto de dois factos, a matéria impugnada está indissociavelmente ligada entre si e a sua apreciação global tem respaldo nos mesmos meios de prova.
Neste sentido, por exemplo, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que “tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova - o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal” (cfr. Acórdão de 1/6/2022, relatado por Mário Belo Morgado, no processo nº1104/18.9T8LMG, e disponível na base de dados acima identificada).
O mesmo já não se verifica, no entanto, segundo pensamos, em relação à segunda exigência acima indicada, aquela que requer a especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (art. 640.º/1, al. b), do CPC).
Na verdade, como resulta das conclusões acima citadas, e ainda mais da alegação do recurso, os requerentes baseiam a sua discordância a respeito da comprovação dos factos nº90 e 91, em primeiro e decisivo lugar, num meio probatório que não foi produzido – a inspecção ao local – e que, a seu ver, seria decisivo para o referido apuramento factual.
Referindo, nesta senda, que ao indeferir o meio de prova essencial para apurar qual o verdadeiro estado do interior das frações autónomas em discussão - a Inspeção Judicial – o Tribunal escolheu confiar no depoimento de testemunhas indicadas pela requerida, argumento que reiteram nas conclusões M a P, sustentando, em síntese, que somente a observação ocular do Juiz era capaz de verificar o real estado do interior das frações autónomas pertencentes aos recorrentes, evitando-se que se desse como provada uma factualidade que não corresponde à realidade.
Simplesmente, para impugnar validamente a matéria de facto julgada provada em primeira instância, nos termos do art. 640.º/1, al. b), do CPC, é mister que o recorrente fundamente a sua discordância em meios probatórios que já constem no processo, e não noutros, não produzidos, ainda que a seu ver fossem essenciais para a decisão da causa.
Como refere a doutrina, a impugnação deve assentar em “três tipos de meios de prova: os que constam no processo (como os documentos ou as confissões reduzidas a escrito), os que nele ficaram registados por escrito (v. g. os depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar) e, por fim, os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistemas áudio ou vídeo (cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., p. 197).
Em segundo lugar, os recorrentes fundamentam a sua divergência factual relativamente à decisão recorrida com base, precisamente, nos mesmos meios probatórios que foram considerados pela primeira instância para julgar provados os factos impugnados, apontando para o efeito “discrepâncias” ou “fragilidades” que não concretizam minimamente.
De acordo com o tribunal a quo, a prova do dia da conclusão da obra no edifício tem, mais uma vez, amparo no depoimento de CC. Datou daí o pedido de licença de utilização (facto corroborado por AA).
No mesmo sentido, FF, subempreiteiro da parte da electricidade afirmou que a sua especialidade terminou em 2022. Conforme data do último auto de medição (doc 23 da oposição).
Dos depoimentos dos três subempreiteiros, DD, EE e FF, e dos respectivos orçamentos e facturas juntas à oposição se extraiu que a caixilharia exterior e infraestruturas eléctricas, saneamento, água e divisões sanitárias estão prontas desde 1 de Março de 2023.
Ao passo que os recorrentes, para além de indicarem exactamente a testemunha CC (conclusão I), transcrevem uma parte do seu depoimento que apenas serve de respaldo à decisão de primeira instância (as lojas, os espaços físicos as aprovações estão feitas, as infraestruturas, agora é questões de decorações, de (impercetível) quando preparam a loja para um determinado negócio, e tudo mais, são obras apenas de… é, é de decoração, embelezamento, de introdução de materiais. Fisicamente as lojas, as lojas estavam concluídas à data do pedido de emissão do período de licença).
Seguindo-se a menção aos depoimentos, que igualmente serviram de amparo aos factos julgados provados, de DD, EE e FF, e a quem os recorrentes apontam fragilidades que depois não logram identificar nem justificar.
E que, em qualquer caso, traduzindo meios de prova que apontam no sentido decidido em primeira instância, não são capazes, como é óbvio, de impor decisão factual diversa da recorrida, ainda que evidenciassem, o que não se vislumbra, como se disse, as dificuldades que lhes são apontadas.
O mesmo ocorrendo relativamente aos documentos, os quais, no entendimento manifestado no recurso, evidenciariam divergências face aos factos que, depois, porém, não são concretizadas.
Ora, toda esta alegação dos recorrentes, salvo o devido respeito, está muito afastada do caminho exigido para o preenchimento, na impugnação de facto, do requisito previsto na al. b) do art. 640.º/1 do CPC.
A propósito desse comando legal, na verdade, pode dizer-se que constitui manifestação da ideia de que a impugnação traduz um pedido de reapreciação dos factos que deve transmitir de imediato algum nível de viabilidade, suficiente para justificar uma nova análise em segunda instância, que pode inclusivamente abranger todas as provas ou, dito noutro termos, que não mereça um juízo de indeferimento liminar.
E não tem a virtualidade de transmitir a ideia de viabilidade mínima a impugnação que, no essencial, está sustentada em meios de prova que não foram produzidos no processo, ou que, ainda que com supostas fragilidades, apontam apenas no sentido decidido em primeira instância ou quanto aos quais são imputadas divergências que não são concretizadas.
Em sentido próximo, aliás, a doutrina vem preconizando que as exigências previstas no art. 640.º do CPC “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor”, como “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (Abrantes Geraldes, Ob. cit., pp. 201-2, que também refere a necessidade de cumprimento dos indicados ónus para que a impugnação “ultrapasse a fase liminar”).
Verificando-se, pois, tal como sucedeu em casos idênticos apreciados na jurisprudência, “uma ausência de argumentação quanto à indicação dos meios probatórios que implicariam uma decisão diferente. Os recorrentes não cumpriram a tarefa de esclarecer as razões pelas quais, do seu ponto de vista, os concretos factos impugnados mereciam uma resposta diversa, estabelecendo a correlação dos meios de prova que permitiriam conduzir ao resultado pretendido. Os recorrentes limitaram-se a apresentar considerações genéricas sobre a prova, intercalando o direito com os factos, mas de uma forma ineficaz” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/2024, relatado por Maria do Rosário Gonçalves, no processo nº4770/21.4T8VNF e disponível em texto integral em www.dgsi.pt).
Finalmente, sobre os requisitos para a impugnação de facto, pensamos que, no caso em apreço, também não foi devidamente observada a exigência prevista na al. c) do art. 640.º/1 do Código de Processo Civil.
Nessa parte, a lei determina que o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ónus que os recorrentes procuraram observar com a indicação de que, em lugar dos factos 90 e 91, fosse julgado provado “que as frações autónomas não se encontram divididas, não têm casas de banho, encontram-se no estado grosso, com paredes de betão e sem revestimentos, sendo, contudo, verdade que a caixilharia exterior encontra-se terminada desde março de 2023”.
Todavia, se bem pensamos, esta factualidade é incompatível e contraditória com a restante matéria provada e que não foi impugnada no recurso, com ressalva da mera redundância que deve ser apontada à sua parte final, relativa à finalização da caixilharia.
Com efeito, que a caixilharia exterior está terminada desde Março de 2023 é facto que facilmente se extrai dos pontos 87 e 92, que não mereceram qualquer censura por parte dos requerentes e, desde logo, da circunstância de que é do conhecimento deles que a divisão exterior dos espaços comerciais do rés-do-chão, e a sua caixilharia exterior, estão concluídas desde 1/3/2013.
Na parte restante, porém, crê-se que a referência ao estado das fracções autónomas no recurso apenas se compreende pela insistência dos requerentes numa versão dos factos que, após toda a matéria factual apurada na sequência da oposição, deixou de corresponder à realidade provada e, ao cabo de contas, com ela contende frontalmente.
É que, como se demonstrou no facto nº71, não existe correspondência entre as fracções descritas no título constitutivo da propriedade horizontal – incluindo as fracções identificadas por “AL”, “AM” e “NA”, registadas a favor dos requerentes – e as fracções licenciadas no âmbito da alteração ao procedimento administrativo e que, entretanto, foram efectivamente edificadas.
Mais, segundo resulta dos factos nº47 e segs., as fracções autónomas de que os requerentes dizem ser donos e legítimos proprietários, não foram construídas, tal como conformadas e configuradas naquele título e no registo predial, não possuíam paredes ou outra forma física de definição do seu perímetro exterior e nunca formaram qualquer compartimento, divisão ou espaço determinado que lhes correspondesse, nunca tiveram portas ou saídas para a via pública ou zonas comuns, nunca dispuseram de janelas e nunca estiveram dotadas de qualquer instalação sanitária, lavabo, ou seus elementos componentes, que não se encontraram nunca individualizados.
Com efeito, na sequência da impossibilidade de edificar o projecto inicial, “porque o PDM em vigor não permitia levantar uma torre com 16 pisos”, tornou- -se “incontestado que o edifício construído é diferente do inicialmente projectado” (cfr. motivação da decisão recorrida).
E, nessa sequência, foi julgado demonstrado, pacificamente, que “o espaço previsto para as primitivas fracções “AL”, “AM”, “AN” é agora ocupado em parte por lojas, os espaços de comércio n.º 4, n.º 3 e n.º 2 (…) e parte por espaços exteriores a lojas (de circulação), acrescendo que esses três espaços de comércio (nºs 2 a 4) foram implantados parcialmente em áreas projectadas inicialmente como espaços comuns” (factos nº75 e 76).
Ora, julgados provados estes factos, sem qualquer contestação no recurso, a eventual demonstração de que as referidas “frações autónomas não se encontram divididas, não têm casas de banho, encontram-se no estado grosso, com paredes de betão e sem revestimentos”, pretendida pelos recorrentes, com aqueles seria manifestamente inconciliável.
Por outras palavras, se está apurado que as fracções “AL”, “AM”, “AN” nunca foram implantadas de acordo com o projecto inicial, existindo agora, diversamente, espaços comerciais que, em parte, ocupam a área que no início lhes estava destinada, não tem sentido, salvo o devido respeito, aditar factos que supõem para as fracções implantação idêntica à projectada.
Em consequência, exigindo a lei que, na sentença, a matéria de facto seja toda compatibilizada (art. 607.º do CPC), de modo a evitar ambiguidades que a possam inquinar de nulidade (art. 615.º/1, al. c), do CPC) ou justificar até a sua anulação oficiosa pelo Tribunal da Relação (art. 662.º/2, al. c), do CPC), da mesma forma, e em coerência, a procedência do recurso não pode determinar a prova de factos contraditórios ou não harmonizáveis entre si.
Tanto mais que as normas previstas para a sentença, nomeadamente aquela que manda compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, regem também a elaboração do acórdão de segunda instância (art. 663.º/2 do CPC).
Razões pelas quais importa concluir que os recorrentes, a nosso ver, cumpriram mal, o que equivale a incumprimento, o ónus que lhes era imposto pelo art. 640.º/1, al. c), do CPC.
*
Se este – a falta ou a deficiente observância dos ónus da impugnação previstos no art. 640.º do CPC – é o primeiro motivo para a rejeição do recurso, nesta parte, com ele, como se disse já, concorre uma segunda razão.
Com efeito, vistos os factos que os recorrentes pretendem ver aditados, por um lado, e aqueles que têm de manter-se inalterados, por não terem sido objecto de qualquer censura, por outro, deve concluir-se pela irrelevância das alterações propostas para a apreciação do mérito da causa.
Constatação que, de acordo com as regras gerais de gestão processual e de proibição da prática de actos inúteis, consagradas nos arts. 6.º e 130.º do CPC, determina a inviabilidade, em acréscimo ao incumprimento do disposto no art. 640.º do CPC, de proceder-se agora à reapreciação da prova.
É que, como tem sustentado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, “nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto, por se tratar de ato inútil” (cfr. Acórdão de 09/02/2021, tirado no processo 27069/18.3T8PRT.P1.S1, da autoria de Maria João Vaz Tomé e disponível em texto integral, em linha, no sítio jurisprudencia.pt).
Entendimento que, aliás, tem sido repetidamente defendido, mesmo em arestos mais recentes, destacando-se que “de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte” e, por isso, que “o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/11/2023, relatado por Mário Belo Morgado, no processo 835/15.0T8LRA e acessível na base de dados da Dgsi em linha).
É o que se passa, no caso dos autos, como se passará a fundamentar, a respeito de ambos os pontos de facto que os recorrentes pretendem excluir.
Neste conspecto, o primeiro juízo de irrelevância que deve ser dirigido à impugnação deduzida é factual, relativamente ao ponto 90, que se pretende ver retirado dos factos provados, segundo o qual, aquilo que os requerentes aqui identificam como “obra nova” são trabalhos de revestimentos e pintura de paredes e tectos, com recurso a placas de gesso cartonado e a abertura de sulcos para colocação de de tubagem do sistema de ar condicionado.
Ora, se não há dúvida, face ao teor da decisão recorrida, que semelhante facto foi extraído da oposição (art. 64), é também certo que ele, na essência, traduz mera repetição dos factos provados nº12 e 13.
Dos quais resulta que foi visto um veículo automóvel a descarregar material no espaço do rés-do-chão, correspondente a uma loja, que os requerentes identificam como a fração “AL”, onde foram vistas realizadas obras como rasgos no chão e colocação de pladur.
No entanto, rasgos no chão e abertura de sulcos são claramente expressões sinónimas, destinadas a retratar a mesma coisa, ao passo que a colocação de pladur constitui, como é evidente, trabalho de revestimento.
Assim sendo, há que concluir que o facto nº90 traduz mero enquadramento dos factos nº12 e 13, que aquele não contraria, sendo estes os únicos que, alegados pelos requerentes e mantidos após a oposição, são capazes de justificar o embargo, quer inicialmente, quer nesta fase, embora agora em confronto com a restante factualidade apurada.
Não se vislumbrando, por isso e face a toda a matéria resultante da oposição e que não foi colocada em crise no recurso, qualquer utilidade ou relevância na exclusão do ponto nº90 do elenco dos factos provados.
Da mesma forma, a irrelevância do facto seguinte impugnado no recurso (nº91) resulta também do seu confronto com a restante matéria apurada, desde logo porque a finalização da divisão exterior dos espaços comerciais do rés-do-chão e da sua caixilharia exterior, a que ele se refere, já resulta demonstrado igualmente no facto nº92, que os recorrentes aceitaram, e no facto nº87, relativo à conclusão da obra de reconstrução de todo o edifício, que também não foi colocado em crise no recurso.
Para além disso, essa falta de relevância prende-se com os requisitos normativos para a procedência do embargo de obra nova, nos termos do art. 397.º do CPC, razão pela qual, a sua apreciação deve ter lugar no ponto seguinte desta fundamentação.
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C) Sobre os requisitos do embargo de obra nova.
De acordo com o disposto no art. 397.º/1 do Código de Processo Civil, Aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente.
Trata-se, para além disso, de um procedimento cautelar especificado, com funções preventivas ou conservatórias, visando estabilizar a situação de facto, relativamente ao espaço onde é edificada a obra, até que seja resolvido o litígio na acção principal.
Daqui resultam desenhados os seguintes requisitos necessários, de modo cumulativo, para o sucesso da providência: a) a titularidade de um direito de propriedade, ou de qualquer outro direito real de gozo, ou a posse, por parte do requerente; b) a realização de uma obra, trabalho ou serviço por parte do requerido; c) a novidade da obra, trabalho ou serviço, isto é, a alteração do prédio ou edificação no estado em que foi inicialmente recebido, desde que a mesma alteração não tenha sido iniciada há mais de trinta dias, contados do seu conhecimento por parte do requerente; e d) o prejuízo causado, ou da ameaça do mesmo, ao requerente, resultado daquela obra, trabalho ou serviço (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7/10/2021, relatado por António Barroca Penha, relativo ao processo nº1150/20.2T8PTL, e pesquisável na citada base de dados em linha).
Em primeira instância, foi decidido o levantamento do embargo mercê do apuramento de factos, resultantes da oposição da requerida, com idoneidade para afastar a verificação do requisito, acima identificado na alínea c), relativo à novidade da obra.
E, segundo pensamos, essa foi a decisão acertada.
É certo que, numa fase inicial, o tribunal decretou a providência com base na realização de obras como rasgos no chão e colocação de pladur, em local correspondente a uma loja, que os requerentes identificaram como a fracção “AL”, antevendo, segundo máximas de experiência comum, a forte probabilidade de suceder o mesmo nas fracções “AN” e “AM” (factos provados 12, 13 e 34).
Todavia, em aditamento a esses factos, a prova produzida com a oposição veio trazer a demonstração de um amplo acervo factual que, claramente, alterou a perspetiva sobre a verdadeira natureza e significado dessas obras.
Estão em causa, como agora se sabe, trabalhos de enorme envergadura, iniciadas pela sociedade “A...”, após a alteração, em 2017, do projecto inicial, passando a conformar o prédio como edifício de habitação colectiva, destinado a habitação, comércio e garagem, com uma área de implantação de 2.211,10 m2, uma área total de construção de 18.829,93m2, dos quais 11.819,95m2, para habitação, 2.084,79m2 para comércio e 4.925.19m2 para garagem, com um total de 14 pisos, destes 11 acima da cota da soleira e 3 abaixo desta (facto nº70).
Sendo certo que, nessa sequência, face ao licenciamento das operações de limpeza, demolição e consolidação da estrutura, aquela sociedade celebrou, em Janeiro de 2018, contrato de empreitada de construção civil e suas especialidades para a reconstrução da totalidade do edifício (facto nº77).
Iniciados os trabalhos, em Julho de 2020 a obra encontrava-se já concluída na sua fase de alvenarias (facto nº85), em 2021 os requerentes evidenciavam conhecimento das alterações profundas efectuadas pela requerida nas fracções autónomas (facto nº102), até que, no ano seguinte, os tapumes exteriores do estaleiro da obra foram retirados (facto nº86), encontrando-se a obra de reconstrução do edifício totalmente concluída desde 1 de Março de 2023 (facto nº87), inclusive quanto à divisão exterior dos espaços comerciais do rés-do-chão e à colocação da sua caixilharia exterior, como é do conhecimento dos requerentes (facto nº92), seguindo-se, em 17/3/2023, o pedido de licença camarária para utilização das fracções edificadas (facto nº88).
Para além disso, não existe correspondência entre as fracções descritas no título constitutivo da propriedade horizontal e as fracções licenciadas no âmbito da alteração do projecto e que, entretanto, foram efectivamente edificadas (facto nº71).
Ora, em face destes factos, importa concluir, à luz de toda a prova produzida nos autos, que já não estão em causa, estritamente, as obras realizadas em espaço que poderia pertencer às fracções “AL”, “AM”, “AN”, mas, isso sim, os trabalhos de muito maior envergadura, em que aquelas obras se inserem, respeitantes à reconstrução de todo o edifício a que se refere o facto provado nº1.
E como estes trabalhos, globalmente considerados, tiveram início, pelo menos, em 2020, mostrando-se no essencial concluídos em Março de 2023, da reconfiguração dos factos resultante da oposição deixou de ser possível dar por verificado o requisito da novidade a que acima se aludiu.
Em consequência, vistos no quadro mais vasto do edifício intervencionado, os trabalhos agora realizados, no espaço inicialmente atribuído às fracções dos requerentes, traduzem meros acabamentos e finalizações da obra estrutural de que eles fazem parte e com a qual não contendem.
Por isso, é inteiramente justificado convocar a doutrina que restringe “o embargo às obras relevantes, excluindo as meramente secundárias, os acabamentos ou o aproveitamento das obras exteriores”, pois a “novidade que entra na qualificação do procedimento implica que apenas possam ser embargadas obras que impliquem uma modificação substancial da coisa e se não traduzam em meras modificações superficiais ou de mera reconstrução de uma situação preexistente” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2.ª ed., pp. 244-5).
Trata-se de um entendimento também consolidado na jurisprudência, desde pelo menos o Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 2/5/2000, segundo o qual, “para além dos requisitos gerais das providências cautelares, o embargo de obra nova pressupõe que a obra se tenha iniciado mas não esteja concluída”, pelo que, “não há lugar ao embargo de obra nova se a obra já está concluída, faltando apenas os "acabamentos" (processo 20285, sumariado em www.dgsi.pt).
E que vem sendo sucessivamente mantido até à actualidade, como pode ver-se nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 1/2/2011 (tirado no processo 4621/10.5TBBRG) e de 7/10/2021 (no processo 1150/20.2T8PTL, ambos disponíveis em texto integral na citada base de dados), do último dos quais resulta a exigência de que “a obra, trabalho ou serviço ainda não se tenha concluído nos seus aspetos fundamentais”, tendo em vista “assegurar a utilidade e eficácia da providência cautelar de embargo de obra nova, já que, por natureza e de forma geral, esta exerce uma função preventiva. A obra não poderá, assim, estar concluída, isto é, não lhe podem faltar apenas trabalhos secundários ou complementares (como sejam o reboco de muro, fechar de portas e janelas, o reboco de interiores ou a pintura de exteriores)”.
Neste enquadramento factual e jurídico, se bem pensamos, nenhum outro facto seria exigível ou necessário à requerida comprovar para eficazmente afastar a verificação, in casu, do apontado requisito da novidade da obra e, dessa forma, justificar a decisão de levantamento do embargo.
Assim se explicando, pois, a conclusão de que, também no plano da solução jurídica do litígio, seria irrelevante a exclusão do ponto nº91 do rol dos factos provados pretendida pelos recorrentes na sua impugnação.
Tanto mais que, segundo pensamos, o amplo acervo factual apurado na sequência da oposição veio decisivamente comprometer o preenchimento de outro requisito necessário à manutenção do embargo, agora radicado na exigência de que a obra, trabalho ou serviço novo cause ou ameace causar prejuízo.
Com efeito, embora seja discutida a questão de saber se o embargo requer a quantificação ou a qualificação da gravidade do prejuízo, a verdade é que, pelo menos, é necessária a prova da existência de dano ou da ameaça da sua ocorrência (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas cit., pp. 238 e 246).
É o que resulta, desde logo, da previsão legal, no art. 397.º/1 do CPC, no sentido de que a obra, trabalho ou serviço novo cause ou ameace causar prejuízo, mas também da aplicação subsidiária às providências especificados, nos termos do art. 376.º daquele diploma, das regras previstas para o procedimento cautelar comum, nelas incluindo a norma do art. 362.º do CPC, para além da exigência geral de que a ofensa mereça a tutela do direito (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/7/2022, tirado no processo 1178/22.8T8OER e disponível na base de dados abundantemente indicada, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 1/2/2011, acima citado).
Todavia, os factos apurados na sequência da oposição demonstram, entre o mais, que depois de os requerentes terem investido na aquisição, em venda judicial, das referidas três fracções, no ano de 2010 (facto nº3), o imóvel onde estas se integravam esteve ao abandono durante vários anos, assumindo-se inclusivamente como uma verdadeira ruína (facto nº43 e segs.), até que, em 2017, por acção da sociedade “B...” e, depois, da requerida, foram iniciados e executados os trabalhos de recuperação e reconfiguração global do edifício, neles incluindo, embora a título de finalização ou complemento, aqueles que foram questionados nos autos (factos nº56 e segs.).
Ora, com este enquadramento global, é de concluir que todos os trabalhos levados a efeito pela requerida desde 2020, quando as fracções haviam já assumido a configuração actual, incluindo as finalizações agora questionadas, apenas tiveram a virtualidade de valorizar o imóvel, sendo contrários à criação ou à ameaça de qualquer prejuízo.
De modo que, na procura da rendibilidade do investimento feito, parece que será mais coerente aos requerentes, em lugar de extremar o litígio, apostar agora, face à recente valorização do imóvel, na definição, porventura consensual, dos espaços que lhes serão entregues ou da quantificação pecuniária do seu direito.
Impondo-se reconhecer, em todo o caso, o mérito do trabalho realizado em primeira instância, cuja decisão não justifica, a nosso ver, qualquer censura, improcedendo as demais questões suscitadas no recurso, o que prejudica, por inutilidade, a apreciação da ampliação do seu objecto pedida pela recorrida.
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DECISÃO
Com os fundamentos expostos, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso e confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pelos requerentes, atento o seu decaimento (art. 527.º do CPC).
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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, 21/10/2024
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Teresa Fonseca
José Nuno Duarte